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As lutas de classes na França
Karl Marx

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Content
I — A derrota de Junho de 1848
II — O 13 de Junho de 1849
III — Consequências do 13 de Junho de 1849
IV — A abolição do sufrágio universal em 1850
 
I — A derrota de Junho de 1848
A seguir à revolução de Julho[1], o banqueiro liberal Laffitte, ao conduzir em triunfo para o Hôtel de Ville [2] o seu compère[3], o duque de Orléans[4] teve este comentário:

"Agora o reino dos banqueiros vai começar."

Laffitte traíra o segredo da revolução.

Porém, sob Louis-Philippe não era a burguesia francesa quem dominava. Quem dominava era apenas uma fracção dela: banqueiros, reis da Bolsa, reis do caminho-de-ferro, proprietários de minas de carvão e de ferro e de florestas e uma parte da propriedade fundiária aliada a estes — a chamada aristocracia financeira. Era ela quem ocupava o trono, quem ditava leis nas Câmaras, quem distribuía os cargos públicos desde o ministério até à adminstração dos tabacos.

A burguesia industrial propriamente dita constituía uma parte da oposição oficial, isto é, estava representada nas Câmaras apenas como minoria. A sua oposição manifestava-se tanto mais decididamente quanto mais se acentuava e desenvolvia a dominação exclusiva da aristocracia financeira, quanto mais a burguesia industrial julgava assegurada a sua dominação sobre a classe operária depois dos motins afogados em sangue de 1832, 1834 e 1839[5]. Grandin, um fabricante de Rouen, o porta-voz mais fanático da reacção burguesa, na Assembleia Nacional Constituinte como na Legislativa, era quem, na Câmara dos Deputados, se opunha com mais violência a Guizot. Léon Faucher, conhecido mais tarde pelos seus esforços impotentes para se guindar a um Guizot da contra-revolução francesa, travou nos últimos anos de Louis-Philippe uma polémica em favor da indústria contra a especulação e o seu caudatário, o governo. Bastiat fazia agitação em nome de Bordéus e de toda a França produtora de vinho contra o sistema dominante.

Tanto a pequena burguesia, em todas as suas gradações, como a classe camponesa estavam totalmente excluídas do poder político. Era, pois, na oposição oficial ou inteiramente fora do pays legal[6] que se encontravam os representantes e os porta-vozes ideológicos das classes mencionadas: intelectuais, advogados, médicos, etc. Numa palavra: as chamadas competências.

Pela penúria financeira, a monarquia de Julho[7] estava de antemão dependente da alta burguesia e a sua dependência da alta burguesia tornou-se a fonte inesgotável de uma penúria financeira sempre crescente. Impossível subordinar a administração do Estado ao interesse nacional sem equilibrar o orçamento, isto é, sem que haja equilíbrio entre as despesas e as receitas do Estado. E como estabelecer este equilíbrio sem limitação das despesas públicas, isto é, sem ferir interesses que eram outros tantos pilares do sistema dominante e sem nova regulamentação da distribuição de impostos, isto é, sem atirar para os ombros da alta burguesia uma significativa parte da carga fiscal?

O endividamento do Estado era, pelo contrário, o interesse directo da fracção da burguesia que dominava e legislava através das Câmaras. O défice do Estado, esse era o verdadeiro objecto da sua especulação e a fonte principal do seu enriquecimento. Todos os anos um novo défice. Quatro ou cinco anos depois um novo empréstimo. E cada novo empréstimo oferecia à aristocracia financeira uma nova oportunidade de defraudar o Estado, mantido artificialmente à beira da bancarrota; ele via-se obrigado a pedir mais dinheiro aos banqueiros, nas condições mais desfavoráveis. Cada novo empréstimo constituía uma nova oportunidade de pilhar o público que investira capitais em títulos do Estado, mediante operações de Bolsa em cujo segredo estavam o governo e a maioria representada na Câmara. Em geral, a situação periclitante do crédito público e a posse dos segredos do Estado davam aos banqueiros e seus associados nas Câmaras e no trono a possibilidade de provocar extraordinárias e súbitas flutuações na cotação dos valores do Estado, de que resultava sempre a ruína de uma enorme quantidade de capitalistas mais pequenos e o enriquecimento fabulosamente rápido dos grandes especuladores. Que o défice do Estado era o interesse directo da fracção burguesa dominante, eis o que explica que as despesas públicas extraordinárias nos últimos anos do reinado de Louis-Philippe tenham ultrapassado de longe o dobro das despesas extraordinárias no tempo de Napoleão. De facto, atingiram a soma anual de quase 400 milhões de francos enquanto o montante global anual da exportação da França raramente se elevava em média a 750 milhões de francos. Além disso, as enormes somas que passavam pelas mãos do Estado permitiam contratos de fornecimento fraudulentos, subornos, malversações e vigarices de toda a espécie. A defraudação do Estado, em ponto grande, como consequência dos empréstimos, repetia-se, em ponto menor, nas obras públicas. A relação entre a Câmara e o governo encontrava-se multiplicada nas relações entre as diversas administrações e os diversos empresários.

A classe dominante explorava a construção dos caminhos-de-ferro, tal como as despesas públicas em geral e os empréstimos do Estado. As Câmaras atiravam para o Estado os principais encargos e asseguravam à aristocracia financeira especuladora os frutos dourados. Recorde-se os escândalos ocorridos na Câmara dos Deputados quando, ocasionalmente, veio a lume que a totalidade dos membros da maioria, incluindo uma parte dos ministros, estavam interessados como accionistas nessa mesma construção dos caminhos-de-ferro que, como legisladores, depois mandavam executar à custa do Estado.

Em contrapartida, a mais insignificante reforma financeira fracassava face à influência dos banqueiros. Um exemplo: a reforma postal. Rothschild protestou. Deveria o Estado reduzir fontes de riqueza com que pagava os juros da sua crescente dívida?

A monarquia de Julho era apenas uma sociedade por acções para explorar a riqueza nacional da França e cujos dividendos eram distribuídos por ministros, Câmaras, 240 000 eleitores e o seu séquito. Louis-Philippe era o director desta sociedade, um Robert Macaire no trono. Num tal sistema, o comércio, a indústria, a agricultura, a navegação, os interesses da burguesia industrial não podiam deixar de estar constantemente ameaçados e de sofrer prejuízos. Gouvernement à bon marche, governo barato, fora o que ela durante as jornadas de Julho inscrevera na sua bandeira.

Enquanto a aristocracia financeira legislava, dirigia a administração do Estado, dispunha de todos os poderes públicos organizados e dominava a opinião pública pelos factos e pela imprensa, repetia-se em todas as esferas, desde a corte ao Café Borgne[8], a mesma prostituição, as mesmas despudoradas fraudes, o mesmo desejo ávido de enriquecer não através da produção mas sim através da sonegação de riqueza alheia já existente; nomeadamente no topo da sociedade burguesa manifestava-se a afirmação desenfreada — e que a cada momento colidia com as próprias leis burguesas — dos apetites doentios e dissolutos em que a riqueza derivada do jogo naturalmente procura a sua satisfação, em que o prazer se torna crapuleux[9], em que o dinheiro, a imundície e o sangue confluem. No seu modo de fazer fortuna como nos seus prazeres a aristocracia financeira não é mais do que o renascimento do lumpenproletariado nos cumes da sociedade burguesa.

As fracções não dominantes da burguesia francesa gritavam: Corrupçãol O povo gritava: À bas les grands voleurs! À bas les assassins![10] quando no ano de 1847. nos palcos mais elevados da sociedade burguesa, se representava em público as mesmas cenas que conduzem regularmente o lumpenproletariado aos bordéis, aos asilos, aos manicómios, aos tribunais, às prisões e ao cadafalso. A burguesia industrial via os seus interesses em perigo; a pequena burguesia estava moralmente indignada; a fantasia popular estava revoltada; Paris estava inundada de folhetos — La dynastie Rothschild, Les juifs róis de l'époque[11], etc. — nos quais, com mais ou menos espírito, se denunciava e estigmatizava o domínio da aristocracia financeira.

Rien pour la gloire![12] A glória não dá nada! La paix partout et toujours![13] A guerra faz baixar as cotações três a quatro por cento! — tinha a França dos judeus da Bolsa inscrito na sua bandeira. A política externa perdeu-se, por isso, numa série de humilhações do sentimento nacional francês, cuja reacção se tornou mais viva quando, com a anexação de Cracóvia pela Áustria[14], se completou a espoliação da Polónia e quando, na guerra suíça do Sonderbund[15], Guizot se pôs activamente ao lado da Santa Aliança[16]. A vitória dos liberais suíços neste simulacro de guerra elevou o sentimento de dignidade da oposição burguesa em França. O levantamento sangrento do povo em Palermo actuou como um choque eléctrico sobre a massa popular paralisada e despertou as suas grandes recordações e paixões revolucionárias[17].

Finalmente, dois acontecimentos económicos mundiais aceleraram o eclodir do mal-estar geral e amadureceram o descontentamento até o converter em revolta.

A praga da batata e as más colheitas de 1845 e 1846 aumentaram a efervescência geral do povo. A carestia de 1847 fez estalar conflitos sangrentos não só em França como no resto do Continente. Frente às escandalosas orgias da aristocracia financeira — a luta do povo pelos bens de primeira necessidade! Em Buzançais, os amotinados da fome executados[18]; em Paris, escrocs[19] de barriga cheia arrancados aos tribunais pela família real!

O segundo grande acontecimento económico que acelerou o rebentar da revolução foi uma crise geral do comércio e da indústria na Inglaterra. Anunciada já no Outono de 1845 pela derrota maciça dos especuladores em acções dos caminhos-de-ferro, retardada durante o ano de 1846 por uma série de casos pontuais, como a iminente abolição das taxas aduaneiras sobre os cereais, acabou por eclodir no Outono de 1847 com a bancarrota dos grandes mercadores coloniais londrinos, seguida de perto pela falência dos bancos provinciais e pelo encerramento das fábricas nos distritos industriais ingleses. Ainda os efeitos desta crise não se tinham esgotado no continente e já rebentava a revolução de Fevereiro.

A devastação que a epidemia económica causara no comércio e na indústria tornou ainda mais insuportável a dominação exclusiva da aristocracia financeira. Em toda a França, a burguesia oposicionista promoveu agitação de banquetes por uma reforma eleitoral que lhe conquistasse a maioria nas Câmaras e derrubasse o ministério da Bolsa. Em Paris, a crise industrial teve ainda como consequência especial lançar para o comércio interno uma massa de fabricantes e grandes comerciantes que, nas circunstâncias presentes, já não podiam fazer negócios no mercado externo. Estes abriram grandes estabelecimentos cuja concorrência arruinou em massa épiciers[20] e boutiquiers[21]. Daí um sem-número de falências nesta parte da burguesia parisiense, daí a sua entrada revolucionária em cena em Fevereiro. É conhecido como Guizot e as Câmaras responderam a estas propostas de reforma com um inequívoco desafio; como Louis-Philippe se decidiu demasiado tarde por um ministério Barrot; como estalaram escaramuças entre o povo e o exército; como o exército foi desarmado pela atitude passiva da Guarda Nacional[16], como a monarquia de Julho teve de ceder o lugar a um governo provisório.

O Governo provisório que se ergueu nas barricadas de Fevereiro espelhava necessariamente na sua composição os diferentes partidos entre os quais se repartia a vitória. Não podia, pois, ser outra coisa senão um compromisso das diferentes classes que, conjuntamente, tinham derrubado o trono de Julho, mas cujos interesses se opunham hostilmente. A sua grande maioria compunha-se de representantes da burguesia. A pequena burguesia republicana estava representada por Ledru-Rollin e Flocon; a burguesia republicana por gente do National[22]; a oposição dinástica por Crémieux, Dupont de l'Eure, etc. A classe operária tinha apenas dois representantes: Louis Blanc e Albert. Por fim, a presença de Lamartine no Governo provisório — isso não era a princípio um interesse real, uma classe determinada: era a própria revolução de Fevereiro, o seu levantamento comum com as suas ilusões, a sua poesia, o seu conteúdo imaginário, as suas frases. De resto, o porta-voz da revolução de Fevereiro, pela sua posição como pelas suas opiniões, pertencia à burguesia.

Se é Paris, em consequência da centralização política, que domina a França, em momentos de convulsões revolucionárias são os operários que dominam Paris. O primeiro acto da vida do Governo provisório foi a tentativa de se subtrair a esta influência predominante por um apelo da Paris embriagada à França sóbria. Lamartine contestou aos combatentes das barricadas o direito de proclamar a República, só a maioria dos franceses seria competente para tal; haveria que esperar que ela se manifestasse pelo voto, o proletariado parisiense não deveria manchar a sua vitória com uma usurpação. A burguesia permite ao proletariado uma única usurpação: a da luta.

Ao meio-dia de 25 de Fevereiro a República ainda não tinha sido proclamada; em contrapartida, já todos os ministérios se encontravam distribuídos entre os elementos burgueses do Governo provisório e entre os generais, banqueiros e advogados do National. Os operários, porém, desta vez, estavam decididos a não tolerar uma escamoteação semelhante à de Julho de 1830. Estavam prontos a retomar a luta e a impor a República pela força das armas. Foi com esta mensagem que Raspail se dirigiu ao Hôtel de Ville. Em nome do proletariado de Paris ordenou ao Governo provisório que proclamasse a República. Se dentro de duas horas esta ordem do povo não tivesse sido cumprida, ele regressaria à frente de 200 000 homens. Os cadáveres dos combatentes caídos na luta mal tinham começado a arrefecer, as barricadas ainda não tinham sido removidas, os operários não tinham sido desarmados e a única força que se lhes podia opor era a Guarda Nacional. Nestas circunstâncias, dissiparam-se repentinamente as objecções de subtileza política e os escrúpulos jurídicos do Governo provisório. O prazo de duas horas ainda não tinha expirado e já todas as paredes de Paris ostentavam as palavras históricas em letras enormes:

Republique Française! Liberte, Egalité, Fraternité![23]

Com a proclamação da República com base no sufrágio universal extinguira-se até a recordação dos objectivos e motivos limitados que haviam atirado a burguesia para a revolução de Fevereiro. Todas as classes da sociedade francesa — em vez de algumas, poucas, fracções da burguesia — foram de repente arremessadas para o círculo do poder político, obrigadas a abandonar os camarotes, a plateia e a galeria e a vir representar, em pessoa, no palco revolucionário! Com a monarquia constitucional desapareceram também a aparência de um poder de Estado contraposto soberanamente à sociedade burguesa (bürgerlichen Gesellschaft) e toda a série de lutas secundárias que esse poder aparente provoca!

Ao ditar a República ao Governo provisório e, por meio de o Governo provisório, a toda a França, o proletariado passou imediatamente ao primeiro plano como partido autónomo mas, ao mesmo tempo, desafiou contra si toda a França burguesa. O que ele conquistou foi o terreno para a luta pela sua emancipação revolucionária, de modo nenhum essa mesma emancipação.

A República de Fevereiro teve isso sim de começar por consumar a dominação da burguesia fazendo entrar, ao lado da aristocracia financeira, todas as classes possidentes para o círculo do poder político. A maioria dos grandes proprietários fundiários, os legitimistas[24], foram emancipados da nulidade política a que a monarquia de Julho os havia condenado. Não fora em vão que a Gazette de France[25] fizera agitação juntamente com os jornais oposicionistas; não fora em vão que La Rochejaquelein tomara o partido da revolução na sessão da Câmara dos Deputados de 24 de Fevereiro. Através do sufrágio universal, os proprietários nominais, que constituem a grande maioria dos Franceses, os camponeses, passaram a ser os árbitros do destino da França. Ao destronar a coroa, atrás da qual o capital se mantinha escondido, a República de Fevereiro fez que, finalmente, a dominação da burguesia se manifestasse na sua pureza.

Tal como nas jornadas de Julho os operários tinham conquistado a monarquia burguesa, nas jornadas de Fevereiro conquistaram a república burguesa. Tal como a monarquia de Julho fora obrigada a anunciar-se como uma monarquia rodeada por instituições republicanas, assim a República de Fevereiro foi obrigada a anunciar-se como uma república rodeada por instituições sociais. O proletariado parisiense forçou também esta concessão.

Um operário, Marche, ditou o decreto no qual o recém-formado Governo provisório se comprometia a assegurar a existência dos operários por meio do trabalho e a proporcionar trabalho a todos os cidadãos, etc. E quando, alguns dias mais tarde, o Governo se esqueceu das suas promessas e pareceu ter perdido de vista o proletariado, uma massa de 20 000 operários dirigiu-se ao Hôtel de Ville gritando: Organização do trabalho! Criação de um ministério especial do Trabalho! A contragosto e depois de longos debates, o Governo provisório nomeou uma comissão especial permanente encarregada de encontrar os meios para a melhoria das classes trabalhadoras! Essa comissão era constituída por delegados das corporações de artesãos de Paris e presidida por Louis Blanc e Albert. Para sala de sessões foi-lhes destinado o Palácio do Luxemburgo. Assim, os representantes da classe operária foram afastados da sede do Governo provisório, tendo a parte burguesa deste conservado exclusivamente nas suas mãos o verdadeiro poder do Estado e as rédeas da administração; e, ao lado dos ministérios das Finanças, do Comércio, das Obras Públicas, ao lado da Banca e da Bolsa ergueu-se uma sinagoga socialista, cujos sumo-sacerdotes, Louis Blanc e Albert, tinham como tarefa descobrir a terra prometida, pregar o novo evangelho e dar trabalho ao proletariado de Paris. Diferentemente de qualquer poder estatal profano não dispunham nem de orçamento, nem de poder executivo. Era com a cabeça que tinham de derrubar os pilares da sociedade burguesa. Enquanto o Luxemburgo procurava a pedra filosofal, no Hôtel de Ville cunhava-se a moeda em circulação.

E, contudo, as reivindicações do proletariado de Paris, na medida em que ultrapassavam a república burguesa, não podiam alcançar outra existência senão a nebulosa existência do Luxemburgo.

Os operários tinham feito a revolução de Fevereiro juntamente com a burguesia; ao lado da burguesia procuravam fazer valer os seus interesses, tal como tinham instalado um operário no próprio Governo provisório ao lado da maioria burguesa. Organização do trabalho! Mas o trabalho assalariado é a organização burguesa existente do trabalho. Sem ele não há capital, nem burguesia, nem sociedade burguesa. Um ministério especial do Trabalho! Mas os ministérios das Finanças, do Comércio, das Obras Públicas não são eles os ministérios burgueses do trabalho? Ao lado deles, um ministério proletário do trabalho tinha de ser um ministério da impotência, um ministério dos desejos piedosos, uma Comissão do Luxemburgo. Do mesmo modo que os operários acreditaram poder emancipar-se ao lado da burguesia, também julgaram poder realizar uma revolução proletária dentro dos muros nacionais da França, ao lado das restantes nações burguesas. As relações de produção da França, porém, estão condicionadas pelo seu comércio externo, pelo seu lugar no mercado mundial e pelas leis deste. Como é que a França as romperia sem uma guerra revolucionária europeia que tivesse repercussões sobre o déspota do mercado mundial, a Inglaterra?

Uma classe em que se concentram os interesses revolucionários da sociedade encontra imediatamente na sua própria situação, mal se ergue, o conteúdo e o material da sua actividade revolucionária: bater inimigos, lançar mão de medidas ditadas pela necessidade da luta; as consequências dos seus próprios actos empurram-na para diante. Não procede a estudos teóricos sobre a sua própria tarefa. A classe operária francesa não se encontrava ainda neste ponto. Era ainda incapaz de levar a cabo a sua própria revolução.

O desenvolvimento do proletariado industrial está, em geral, condicionado pelo desenvolvimento da burguesia industrial. Só sob a dominação desta ganha a larga existência nacional capaz de elevar a sua revolução a uma revolução nacional; só então cria, ele próprio, os meios de produção modernos que se tornam noutros tantos meios da sua libertação revolucionária. A dominação daquela arranca então as raízes materiais da sociedade feudal e aplana o terreno no qual, e só aí, é possível uma revolução proletária. A indústria francesa é mais evoluída e a burguesia francesa é mais desenvolvida revolucionariamente do que a do resto do continente. Mas a revolução de Fevereiro, não foi ela directamente dirigida contra a aristocracia financeira? Este facto demonstrou que a burguesia industrial não dominava a França. A burguesia industrial só pode dominar onde a indústria moderna dá às relações de propriedade a forma que lhe corresponde. A indústria só pode alcançar este poder onde conquistou o mercado mundial, pois as fronteiras nacionais são insuficientes para o seu desenvolvimento. A indústria francesa, porém, em grande parte, só assegura o seu próprio mercado nacional através de um proteccionismo mais ou menos modificado. Por conseguinte, se o proletariado francês no momento de uma revolução em Paris possui efectivamente força e influência que o estimulam a abalançar-se para além dos seus meios, no resto da França encontra-se concentrado em centros industriais dispersos, quase desaparecendo sob um número muito superior de camponeses e pequenos burgueses. A luta contra o capital, na sua forma moderna desenvolvida, no seu factor decisivo, a luta do operário assalariado industrial contra o burguês industrial, é em França um facto parcial que, depois das jornadas de Fevereiro, podia tanto menos fornecer o conteúdo nacional à revolução quanto a luta contra os modos subordinados da exploração do capital, a luta do camponês contra a usura e a hipoteca, do pequeno burguês contra os grandes comerciantes, banqueiros fabricantes, numa palavra, contra a bancarrota, estava ainda embrulhada na sublevação geral contra a aristocracia financeira. Portanto, é mais do que explicável que o proletariado de Paris procurasse fazer valer o seu interesse ao lado do da burguesia, em vez de o fazer valer como o interesse revolucionário da própria sociedade, que deixasse cair a bandeira vermelha diante da tricolor[26] Os operários franceses não podiam dar um único passo em frente, tocar num só cabelo da ordem burguesa, enquanto o curso da revolução não tivesse revoltado a massa da nação situada entre o proletariado e a burguesia, os camponeses e os pequenos burgueses, contra esta ordem, contra a dominação do capital, e a não tivesse obrigado a juntar-se aos proletários como seus combatentes de vanguarda. Só à custa da tremenda derrota de Junho[27] puderam os operários alcançar esta vitória.

À Comissão do Luxemburgo, essa criação dos operários de Paris, cabe o mérito de ter revelado, de uma tribuna europeia, o segredo da revolução do século XIX: a emancipação do proletariado. O Moniteur[28] corou quando teve de propagar oficialmente os "extravagantes devaneios" que até então tinham estado enterrados nos escritos apócrifos dos socialistas e que apenas de quando em quando, como lendas remotas, meio assustadoras, meio ridículas, feriam os ouvidos da burguesia. A Europa acordou sobressaltada da sua modorra burguesa. Na ideia dos proletários, que confundiam a aristocracia financeira com a burguesia em geral; na imaginação pedante dos republicanos bem-pensantes, que negavam a própria existência das classes ou, quando muito, a admitiam como consequência da monarquia constitucional; na fraseologia hipócrita das fracções burguesas até esse momento excluídas do poder — fora abolida a dominação da burguesia com a instauração da República. Todos os realistas (Royalisten) se converteram então em republicanos e todos os milionários de Paris em operários. A frase que correspondia a esta imaginária abolição das relações entre classes era fraternité, a fraternidade universal, o amor entre irmãos. Esta cómoda abstracção dos antagonismos de classes, esta conciliação sentimental dos interesses de classe contraditórios, esta visionária elevação acima da luta de classes, a fraternité era na verdade a palavra-chave da revolução de Fevereiro. As classes estavam divididas por um simples mal-entendido. Em 24 de Fevereiro, Lamartine baptizou assim o Governo provisório: "un gouvernement qui suspend ce matenlendu terrible qui existe entre les différentes classes"[29].O proletariado de Paris regalou-se nesta generosa embriaguez de fraternidade.

Por seu lado, o Governo provisório, uma vez forçado a proclamar a república, tudo fez para a tornar aceitável pela burguesia e pelas províncias. Os terrores sangrentos da primeira república francesa[30] foram obviados por meio da abolição da pena de morte por crimes políticos; a imprensa foi aberta a todas as opiniões; o exército, os tribunais e a administração permaneceram, com poucas excepções, nas mãos dos seus antigos dignitários; nenhum dos grandes culpados da monarquia de Julho foi chamado a prestar contas. Os republicanos burgueses do National divertiam-se a trocar nomes e trajos monárquicos por velhos nomes e trajos republicanos. Para eles a república não passava de um novo trajo de baile para a velha sociedade burguesa. A jovem república procurava o seu principal mérito em não assustar ninguém, antes assustando-se constantemente, cedendo, não resistindo, a fim de, com a sua falta de resistência assegurar existência à sua existência e desarmar a resistência. Foi dito bem alto, no interior, às classes privilegiadas, e às potências despóticas, no exterior, que a república era de natureza pacífica. O seu lema era, diziam, viver e deixar viver. A isto acrescentou-se que, pouco tempo depois da revolução de Fevereiro, os alemães, os polacos, os austríacos, os húngaros e os italianos se revoltaram, cada povo de acordo com a sua situação imediata. A Rússia, ela própria agitada, e a Inglaterra, esta última intimidada, não estavam preparadas. Por conseguinte, a república não encontrou perante si nenhum inimigo nacional. Não havia, pois, nenhumas complicações externas de grande monta que pudessem inflamar energias, acelerar o processo revolucionário, impelir para a frente o Governo provisório ou atirá-lo pela borda fora. O proletariado de Paris, que via na república a sua própria obra, aclamava, naturalmente, todos os actos do Governo provisório que faziam com que este se afirmasse com mais facilidade na sociedade burguesa. Deixou de bom grado que Caussidière o empregasse nos serviços da polícia a fim de proteger a propriedade em Paris tal como deixou Louis Blanc apaziguar os conflitos salariais entre operários e mestres. Fazia point d'honneur[31] em manter intocada aos olhos da Europa a honra burguesa da república.

Nem do exterior nem do interior a república encontrou resistência. Foi isto que a desarmou. A sua tarefa já não consistia em transformar revolucionariamente o mundo, consistia apenas em se adaptar às condições da sociedade burguesa. As medidas financeiras do Governo provisório são o mais eloquente exemplo do fanatismo com que este se encarregou dessa tarefa.

Tanto o crédito público como o crédito privado estavam, naturalmente, abalados. O crédito público assenta na confiança com que o Estado se deixa explorar pelos judeus da finança. Contudo, o velho Estado tinha desaparecido e a revolução tinha sido sobretudo dirigida contra a aristocracia financeira. As oscilações da última crise comercial europeia ainda não se tinham dissipado. As bancarrotas ainda se seguiam umas às outras.

Por conseguinte, antes de rebentar a revolução de Fevereiro o crédito privado estava paralisado, a circulação obstruída, a produção interrompida. A crise revolucionária intensificou a comercial. E se o crédito privado se apoia na confiança de que a produção burguesa em toda a extensão, de que a ordem burguesa permanecem intocadas e intocáveis, como havia de actuar uma revolução que punha em questão os fundamentos da produção burguesa, a escravidão económica do proletariado, uma revolução que, perante a Bolsa, erguia a esfinge do Luxemburgo? O levantamento do proletariado é a abolição do crédito burguês pois é a abolição da produção burguesa e da sua ordem. O crédito público e o crédito privado são o termómetro económico pelo qual se pode medir a intensidade de uma revolução. No mesmo grau em que estes descem, sobem o ardor e a força criadora da revolução.

O Governo provisório queria despojar a república da sua aparência antiburguesa. Por isso, tinha, sobretudo, de procurar garantir o valor de troca desta nova forma de Estado, a sua cotação na Bolsa. Com o preço corrente da república na Bolsa o crédito privado voltou necessariamente a subir.

Para afastar até a suspeita de que não queria ou não podia honrar as obrigações contraídas pela monarquia, para dar crédito à moral burguesa e à solvência da república, o Governo provisório recorreu a uma fanfarronice tão indigna quanto pueril: antes do prazo de pagamento fixado por lei o Governo provisório pagou aos credores do Estado os juros de 5%, 41/2% e 4%. A proa burguesa, a jactância dos capitalistas despertaram subitamente ao verem a pressa escrupulosa com que se procurava comprar-lhes a confiança.

Naturalmente os embaraços pecuniários do Governo provisório não se reduziam por meio de um golpe de teatro que o privava do dinheiro à vista disponível. Já não se podia ocultar por mais tempo os apuros financeiros e foram pequenos burgueses, criados e operários quem teve de pagar a agradável surpresa que se havia proporcionado aos credores do Estado.

As cadernetas de depósito de mais de 100 francos foram declaradas não convertíveis em dinheiro. Os montantes depositados nas Caixas Económicas foram confiscados e transformados, por decreto, em dívida do Estado não amortizável. O pequeno burguês, já de si em apuros, exasperou-se contra a república. Ao receber títulos de dívida pública em vez da caderneta, via-se obrigado a vendê-los na Bolsa e, assim, a entregar-se directamente nas mãos dos judeus da Bolsa contra os quais fizera a revolução de Fevereiro.

A aristocracia financeira, que dominara na monarquia de Julho, tinha na Banca a sua Igreja Episcopal. A Bolsa rege o crédito do Estado como a Banca o crédito comercial.

Ameaçada directamente pela revolução de Fevereiro, não só na sua dominação como na sua existência, a Banca procurou desde o princípio desacreditar a república generalizando a falta de crédito. De um momento para o outro recusou o crédito aos banqueiros, aos fabricantes e aos comerciantes. Esta manobra, ao não provocar imediatamente uma contra-revolução, virou-se necessariamente contra a própria Banca. Os capitalistas levantaram o dinheiro que tinham depositado nos cofres dos bancos. As pessoas que tinham papel-moeda acorreram às caixas para o trocar por ouro e prata.

O Governo provisório podia, legalmente, sem ingerência violenta, forçar a Banca à bancarrota; tinha apenas de se comportar passivamente e abandonar a Banca ao seu destino. A bancarrota da Banca — isso teria sido o dilúvio que, num abrir e fechar de olhos, varreria do solo francês a aristocracia financeira, a mais poderosa e perigosa inimiga da república, o pedestal de ouro da monarquia de Julho. E, uma vez a Banca levada à falência, a própria burguesia tinha de considerar como uma última e desesperada tentativa de salvação que o governo criasse um banco nacional e submetesse o crédito nacional ao controlo da nação.

O Governo provisório, pelo contrário, deu às notas de Banco curso forçado. E mais. Transformou todos os bancos provinciais em filiais do Banque de France fazendo assim com que este lançasse a sua rede por toda a França. Mais tarde, como garantia de um empréstimo que contraiu junto dele, hipotecou-lhe as matas do Estado. Deste modo, a revolução de Fevereiro reforçou e alargou imediatamente a bancocracia que a havia de derrubar.

Entretanto, o Governo provisório vergava-se sob o pesadelo de um défice crescente. Em vão mendigava sacrifícios patrióticos. Apenas os operários lhe atiravam esmolas. Era necessário um rasgo de heroísmo, o lançamento de um novo imposto. Mas lançar impostos sobre quem? Sobre os tubarões da Bolsa, os reis da Banca, os credores do Estado, os rentiers[32]. os industriais? Não era este o meio da república cativar as simpatias da burguesia. Isto significava, por um lado, fazer perigar o crédito do Estado e o crédito comercial enquanto, por outro, se procurava obtê-los com tão pesados sacrifícios e humilhações. Mas alguém tinha de pagar a factura. E quem foi sacrificado ao crédito burguês? Jacques le bonhomme[33], o camponês.

O Governo provisório lançou um imposto adicional de 45 cêntimos por franco sobre os quatro impostos directos. A imprensa do governo fez crer ao proletariado parisiense que este imposto recaía preferencialmente sobre a grande propriedade fundiária, sobre os detentores dos mil milhões concedidos pela Restauração[34]. Na verdade, porém, esse imposto atingia sobretudo a classe camponesa, isto é, a grande maioria do povo francês. Os camponeses tiveram de pagar as custas da revolução de Fevereiro, neles a contra-revolução ganhou o seu material mais importante. O imposto de 45 cêntimos era uma questão de vida ou de morte para o camponês francês e este fez dele uma questão de vida ou de morte para a república. A partir desse momento, para o camponês, a república era o imposto dos 45 cêntimos, e no proletariado de Paris ele via o perdulário que vivia regalado à sua custa.

Enquanto a revolução de 1789 começou por sacudir dos camponeses os fardos do feudalismo, a revolução de 1848, para não pôr o capital em perigo e manter em funcionamento a sua máquina de Estado, anunciou-se com um novo imposto sobre a população camponesa.

O Governo provisório apenas por um meio podia remover todos estes estorvos e arrancar o Estado do seu antigo caminho: pela declaração da bancarrota do Estado. Recorde-se como, depois, Ledru-Rollin na Assembleia Nacional, recitou a virtuosa indignação com que rejeitou a pretensão do judeu da Bolsa Fould, actualmente ministro das Finanças em França. Fould tinha-lhe estendido a maçã da árvore da ciência.

Ao reconhecer as letras de câmbio que a velha sociedade burguesa sacara sobre o Estado, o Governo provisório pusera-se a sua mercê. Tinha-se tornado num acossado devedor da sociedade burguesa em vez de se lhe impor como credor ameaçador que tinha de cobrar dívidas revolucionárias de muitos anos. Teve de reforçar as vacilantes relações burguesas para cumprir obrigações que só dentro dessas relações têm de ser satisfeitas. O crédito tornou-se a sua condição de existência e as concessões ao proletariado, as promessas que lhe havia feito, outras tantas cadeias que era preciso romper. A emancipação dos operários — mesmo como mera frase — tornou-se um perigo insuportável para a nova república, pois constituía um contínuo protesto contra o restabelecimento do crédito que assenta no reconhecimento imperturbado e inconturbado das relações económicas de classe vigentes. Era preciso, pois, acabar-se com os operários.

A revolução de Fevereiro tinha atirado o exército para fora de Paris. A Guarda Nacional, isto é, a burguesia nas suas diferentes gradações, constituía a única força. Contudo, não se sentia suficientemente forte para enfrentar o proletariado. Além disso, fora obrigada, ainda que opondo a mais tenaz das resistências e levantando inúmeros obstáculos, a abrir, pouco a pouco, e em pequena escala, as suas fileiras e a deixar que nelas entrassem proletários armados. Restava, portanto, apenas uma saída: opor uma parte do proletariado à outra.

Para esse fim o Governo provisório formou 24 batalhões de Guardas Móveis, cada um deles com mil homens, cujas idades iam dos 15 aos 20 anos. Na sua maioria pertenciam ao lumpenproletariado, que em todas as grandes cidades constitui uma massa rigorosamente distinta do proletariado industrial, um centro de recrutamento de ladrões e criminosos de toda a espécie que vivem da escória da sociedade, gente sem ocupação definida, vagabundos, gens sans feu et sans aveu[35], variando segundo o grau de cultura da nação a que pertencem, não negando nunca o seu carácter de lazzaroni[29]; capazes, na idade juvenil em que o Governo provisório os recrutava, uma idade totalmente influenciável, dos maiores heroísmos e dos sacrifícios mais exaltados como do banditismo mais repugnante e da corrupção mais abjecta. O Governo provisório pagava-lhes 1 franco e 50 cêntimos por dia, isto é, comprava-os. Dava-lhes um uniforme próprio, isto é, distinguia-os exteriormente dos homens de blusa de operário. Para seus chefes eram-lhe impostos, em parte, oficiais do exército permanente, em parte, eram eles próprios que elegiam jovens filhos da burguesia que os cativavam com as suas fanfarronadas sobre a morte pela Pátria e a dedicação à República.

Assim, contrapôs-se ao proletariado de Paris, e recrutado no seu próprio seio, um exército de 24 000 jovens robustos e audaciosos. O proletariado saudou com vivas a Guarda Móvel nos seus desfiles pelas ruas de Paris. Reconhecia nela os seus campeões nas barricadas. Via nela a guarda proletária em oposição à Guarda Nacional burguesa. O seu erro era perdoável.

A par da Guarda Móvel o governo decidiu ainda rodear-se dum exército industrial de operários. O ministro Marie recrutou para as chamadas oficinas nacionais cem mil operários que a crise e a revolução haviam atirado para a rua. Debaixo daquela pomposa designação não se escondia senão a utilização dos operários para aborrecidas, monótonas e improdutivas obras de aterro a um salário diário de 23 sous. Workhouses[36] inglesas ao ar livre — estas oficinas nacionais não eram mais do que isto. O Governo provisório pensava que com elas tinha criado um segundo exército proletário contra os próprios operários. Desta vez, a burguesia enganou-se com as oficinas nacionais como os operários se tinham enganado com a Guarda Móvel. O governo tinha criado um exército para o motim.

Um objectivo, porém, fora conseguido.

Oficinas nacionais — este era o nome das oficinas do povo que Louis Blanc pregava no Luxemburgo. As oficinas de Marie, projectadas em oposição directa ao Luxemburgo, ofereciam a oportunidade, graças ao mesmo rótulo, para uma intriga de enganos, digna da comédia espanhola de criados. O próprio Governo provisório fez espalhar à socapa o boato que estas oficinas nacionais eram invenção de Louis Blanc, o que parecia tanto mais crível quanto é certo que Louis Blanc, o profeta das oficinas nacionais, era membro do Governo provisório. E na confusão, meio ingénua, meio intencional, da burguesia de Paris, na opinião, artificialmente mantida, da França, da Europa, estas workhouses eram a primeira realização do socialismo, que com elas era exposto no pelourinho.

Não pelo seu conteúdo, mas pelo seu nome, as oficinas nacionais, eram a encarnação do protesto do proletariado contra a indústria burguesa, o crédito burguês e a república burguesa. Sobre elas recaía portanto todo o ódio da burguesia. A burguesia encontrara ao mesmo tempo nelas o ponto para onde poderia dirigir o ataque logo que estivesse suficientemente robustecida para romper abertamente com as ilusões de Fevereiro. Ao mesmo tempo todo o mal-estar, todo o descontentamento dos pequenos burgueses dirigia-se contra estas oficinas nacionais, o alvo comum. Com verdadeira raiva calculavam as somas que os madraços dos proletários devoravam, enquanto a sua própria situação se tornava, dia a dia, mais insustentável. Uma pensão do Estado para um trabalho fingido, eis o socialismo! — resmungavam. As oficinas nacionais, os discursos do Luxemburgo, os desfiles dos operários através de Paris — era nisso que eles procuravam as razões da sua miséria. E ninguém era mais fanático contra as pretensas maquinações dos comunistas do que o pequeno-burguês que, sem salvação, oscilava à beira do abismo da bancarrota.

Assim, nas iminentes escaramuças entre a burguesia e o proletariado, todas as vantagens, todos os postos decisivos, todas as camadas intermédias da sociedade estavam nas mãos da burguesia ao mesmo tempo que sobre todo o continente as ondas da revolução de Fevereiro quebravam com fragor e cada novo correio trazia novos boletins da revolução, ora da Itália, ora da Alemanha, ora dos pontos afastados do sudeste da Europa, mantendo o povo num aturdimento generalizado, trazendo-lhe testemunhos constantes de uma vitória que ele deixara escapar entre os dedos.

O 17 de Março e o 16 de Abril foram as primeiras escaramuças da grande luta de classes que a república burguesa ocultava sob as suas asas.

O 17 de Março revelou a situação ambígua do proletariado, a qual não permitia nenhuma acção decisiva. A sua manifestação tinha originariamente como objectivo obrigar o Governo provisório a regressar à via da revolução e, eventualmente, expulsar os seus membros burgueses e adiar as eleições para a Assembleia Nacional e para a Guarda Nacional. Mas a 16 de Março, a burguesia representada na Guarda Nacional realizou uma manifestação hostil ao Governo provisório. Gritando: À bas Ledru-Rollin![37] dirigiu-se em massa ao Hôtel de Ville. E o povo foi obrigado a gritar em 17 de Março: viva Ledru-Rollin! Viva o Governo provisório! Fora obrigado a tomar contra a burguesia o partido da república burguesa, que lhe parecia posta em causa. E reforçou o Governo provisório em vez de o submeter a si. O 17 de Março acabou, pois, por esvaziar-se numa cena melodramática, e embora nesse dia o proletariado de Paris tivesse mais uma vez mostrado o seu gigantesco corpo, a burguesia, tanto dentro como fora do Governo provisório, ficou ainda mais decidida a dar cabo dele.

O 16 de Abril foi um mal-entendido organizado pelo Governo provisório com a colaboração da burguesia. Inúmeros operários tinham-se reunido no Campo de Marte e no Hipódromo a fim de preparar as suas eleições para o Estado-Maior da Guarda Nacional. De repente, com a rapidez de um relâmpago, espalhou-se em Paris inteira, de uma ponta a outra, o boato de que os operários se tinham reunido, armados, no Campo de Marte, sob a direcção de Louis Blanc, Blanqui, Cabet e Raspail, para daí se dirigirem ao Hôtel de Ville, derrubarem o Governo provisório e proclamarem um Governo comunista. Toca a reunir — mais tarde, Ledru-Rollin, Marrast e Lamartine discutiriam entre si a quem coube a honra da iniciativa — e numa hora surgem 100 000 homens em armas; o Hotel de Ville é ocupado em todos os pontos pela Guarda Nacional; o grito: Abaixo os comunistas! Abaixo Louis Blanc, Blanqui, Raspail, Cabet! ressoa em Paris inteira, e o Governo provisório é alvo de homenagens por parte de incontáveis delegações, todas elas prontas a salvar a Pátria e a sociedade. Quando, por fim, os operários aparecem em frente do Hôtel de Ville para entregar ao Governo provisório uma colecta patriótica que tinham efectuado no Campo de Marte descobrem, com grande espanto seu, que a Paris burguesa, numa luta fictícia montada com extrema prudência, tinha vencido a sua sombra. O terrível atentado do 16 de Abril forneceu o pretexto a que se voltasse a chamar o exército a Paris — o verdadeiro objectivo de toda aquela comédia tão grosseiramente montada — e às manifestações federalistas reaccionárias das províncias.

No dia 4 de Maio reuniu-se a Assembleia Nacional[38] saída das eleições gerais directas. O sufrágio universal não possuía o poder mágico que os republicanos da velha guarda acreditavam que tinha. Em toda a França, pelo menos na maioria dos franceses, viam eles citoyens[39] com os mesmos interesses, o mesmo discernimento, etc. Era este o seu culto do povo. Em vez deste povo imaginado, as eleições francesas trouxeram à luz do dia o povo real, isto é, os representantes das diferentes classes em que ele se divide. Vimos por que razão os camponeses e os pequenos burgueses, sob a orientação da belicosa burguesia e dos grandes proprietários fundiários ávidos da restauração, haviam sido obrigados a votar. Contudo, embora o sufrágio universal não fosse a varinha de condão por que os probos republicanos o tinham tomado, possuía o mérito incomparavelmente maior de desencadear a luta de classes, de fazer com que as diferentes camadas médias da sociedade burguesa vivessem rapidamente as suas ilusões e desenganos, de atirar de um só golpe todas as fracções da classe exploradora para o cume do Estado e, assim, arrancar-lhes a enganosa máscara, enquanto a monarquia com o seu censo fazia com que apenas determinadas fracções da burguesia se comprometessem, deixando outras escondidas atrás dos bastidores e envolvendo-as com a auréola de uma oposição comum.

Na Assembleia Nacional Constituinte, que se reuniu no dia 4 de Maio, os republicanos burgueses, os republicanos do National estavam na mó de cima. Até os legitimistas e os orleanistas[40] só sob a máscara do republicanismo burguês se atreveram a princípio a mostrar-se. Só em nome da República se podia iniciar a luta contra o proletariado.

A República, isto é, a república reconhecida pelo povo francês, data de 4 de Maio e não de 25 de Fevereiro. Não é a república que o proletariado de Paris impôs ao Governo provisório; não é a república com instituições sociais; não é o sonho que pairava perante os olhos dos combatentes das barricadas. A república proclamada pela Assembleia Nacional, a única república legítima, é a república que não é uma arma revolucionária contra a ordem burguesa, antes a reconstituição política desta, a consolidação política da sociedade burguesa, numa palavra: a república burguesa. Esta afirmação ressoou alto da tribuna da Assembleia Nacional e encontrou eco em toda a imprensa burguesa republicana e anti-republicana.

Vimos como, na verdade, a república de Fevereiro não era senão, e não podia deixar de o ser, uma república burguesa; como, porém, o Governo provisório, sob a pressão imediata do proletariado, fora obrigado a anunciá-la como uma república com instituições sociais; como o proletariado parisiense era ainda incapaz de ir além da república burguesa a não ser na representação e na fantasia; como ele agiu ao seu serviço em toda a parte em que verdadeiramente passou à acção; como as promessas que lhe haviam sido feitas se tornaram num perigo insuportável para a nova república; como todo o processo de vida do Governo provisório se resumiu a uma luta contínua contra as reivindicações do proletariado.

Na Assembleia Nacional era a França inteira que julgava o proletariado parisiense em tribunal. Ela rompeu imediatamente com as ilusões sociais da república de Fevereiro e proclamou sem rodeios a república burguesa como república burguesa, única e exclusivamente. Expulsou imediatamente da Comissão Executiva, por ela nomeada, os representantes do proletariado, Louis Blanc e Albert. Repudiou a proposta de um ministério do Trabalho especial e recebeu com tempestade de aplausos a declaração do ministro Trélat:

"Trata-se agora apenas de reconduzir o trabalho às suas antigas condições."

Tudo isto, porém, não chegava. A república de Fevereiro fora conquistada pela luta dos operários com a ajuda passiva da burguesia. Os proletários consideravam-se, pois, com razão, os vencedores de Fevereiro e apresentaram as altivas exigências do vencedor. Era preciso que os proletários fossem derrotados na rua, era preciso mostrar-lhes que sucumbiriam logo que combatessem não com a burguesia mas contra a burguesia. Assim como a república de Fevereiro com as suas concessões socialistas tivera necessidade de uma batalha do proletariado unido à burguesia contra a realeza, assim agora se tornava necessária uma nova batalha para separar a república das concessões socialistas, para se conseguir que a república burguesa fosse oficialmente o regime dominante. A burguesia tinha, pois, de, com as armas na mão, se opor às reivindicações do proletariado. E o verdadeiro berço da república burguesa não é a vitória de Fevereiro mas sim a derrota de Junho.

O proletariado acelerou esta decisão quando a 15 de Maio invadiu a Assembleia Nacional e procurou, sem êxito, reconquistar a sua influência revolucionária. Mas apenas obteve como resultado que os seus enérgicos chefes fossem entregues aos carcereiros da burguesia[34]. Il faut en finir! Esta situação tem de acabar! Com este grito, a Assembleia Nacional exprimia a sua determinação de obrigar o proletariado a uma batalha decisiva. A Comissão Executiva promulgou uma série de decretos provocatórios, como a proibição de ajuntamentos, etc. Do alto da tribuna da Assembleia Nacional Constituinte os operários foram abertamente provocados, insultados, escarnecidos. Mas o verdadeiro ponto de ataque era, como já vimos, as oficinas nacionais. Foi para estas que, numa atitude autoritária, a Assembleia Nacional Constituinte alertou a Comissão Executiva, que apenas estava à espera de ouvir claramente enunciado o seu próprio plano como ordem da Assembleia Nacional.

A Comissão Executiva começou pôr dificultar o ingresso nas oficinas nacionais, por mudar o salário ao dia para salário à peça e a desterrar para Sologne, sob pretexto de executarem obras de aterro, os operários que não fossem naturais de Paris. Essas obras de aterro eram apenas uma fórmula retórica com que se dourava o desterro, tal como os trabalhadores desiludidos que regressavam informavam os seus camaradas. Finalmente no dia 21 de Junho foi publicado um decreto no Moniteur que ordenava a expulsão violenta das oficinas nacionais de todos os operários solteiros ou a sua incorporação no exército.

Aos operários não restava escolha: ou morriam à fome ou iniciavam a luta. Responderam, em 22 de Junho, com a imensa insurreição na qual se travou a primeira grande batalha entre ambas as classes em que se divide a sociedade moderna. Foi uma luta pela manutenção ou destruição da ordem burguesa. O véu que encobria a república rasgou-se.

É conhecido como os operários, dando provas de uma coragem e genialidade inauditas, sem chefes, sem um plano comum, sem meios e sem armas na sua maioria, mantiveram em respeito durante cinco dias o exército, a Guarda Móvel, a Guarda Nacional de Paris e a Guarda Nacional que fora enviada em massa da província. É conhecida a brutalidade inaudita com que a burguesia se desforrou do medo mortal que tinha passado e massacrou mais de 3 000 prisioneiros.

Os representantes oficiais da democracia francesa estavam tão presos à ideologia republicana que só algumas semanas mais tarde começaram a pressentir o significado da luta de Junho. Estavam como que atordoados pelo fumo da pólvora em que a sua república fantástica se desfizera.

Permita-nos o leitor que descrevamos com as palavras da Neue Rheinische Zeitung a impressão imediata que a notícia da derrota de Junho provocou em nós:

"O último resto oficial da revolução de Fevereiro, a Comissão Executiva, diluiu-se como uma fantasmagoria perante a gravidade dos acontecimentos. Os foguetes luminosos de Lamartine transformaram-se nas granadas incendiárias de Cavaignac. A fraternité, a fraternidade das classes opostas, em que uma explora a outra, essa fraternité proclamada em Fevereiro, escrita em letras enormes na fachada de Paris, em cada prisão, em cada quartel — a sua expressão, a sua expressão verdadeira, autêntica, prosaica, é a guerra civil, a guerra civil na sua forma mais terrível, a guerra entre o trabalho e o capital. Esta fraternidade flamejava ainda diante de todas as janelas de Paris na noite de 25 de Junho, quando a Paris da burguesia se iluminava e a Paris do proletariado ardia, gemia e se esvaía em sangue. Esta fraternidade só durou enquanto o interesse da burguesia esteve irmanado com o interesse do proletariado. Pedantes da velha tradição revolucionária de 1793; doutrinários socialistas, que mendigavam à burguesia para o povo e a quem se permitiu longas discursatas e comprometerem-se enquanto foi necessário embalar o leão proletário; republicanos, que exigiam toda a velha ordem burguesa, descontada a cabeça coroada; oposicionistas dinásticos aos quais o destino surpreendeu com a queda de uma dinastia em vez da substituição de um ministério; legitimistas que não queriam atirar fora a libré mas somente alterar-lhe o corte — eram estes os aliados com os quais o povo fizera o seu Fevereiro... A revolução de Fevereiro foi a revolução bela, a revolução da simpatia universal, porque as oposições que nela eclodiram contra a realeza se encontraram uma ao lado da outra, tranquilamente adormecidas, não desenvolvidas, porque a luta social que constituía o seu pano de fundo apenas tinha obtido uma existência de ar, a existência da frase, da palavra. A revolução de Junho é a revolução feia, a revolução repugnante, porque o acto substituiu a palavra, porque a república pôs a descoberto a cabeça do próprio monstro ao derrubar a coroa que o protegia e ocultava. Ordem! era o grito de guerra de Guizot. Ordem! grita Sébastiani, o Guizotista, quando Varsóvia ficou nas mãos dos russos. Ordem! grita Cavaignac, o eco brutal da Assembleia Nacional Francesa e da burguesia republicana. Ordem! troava a sua metralha ao despedaçar o corpo dos proletários. Nenhuma das numerosas revoluções da burguesia francesa desde 1789 fora um atentado contra a ordem, pois todas deixavam de pé a dominação de classe, a escravidão dos operários, a ordem burguesa, muito embora a forma política dessa dominação e dessa escravidão mudasse. Junho tocou nessa ordem. Ai de ti Junho!" (N. Rh. Z, 29 de Junho de 1848.)[41]

Ai de ti Junho! responde o eco europeu.

O proletariado de Paris foi obrigado pela burguesia à insurreição de Junho. Já nisto havia a sentença que o condenava. Nem a sua necessidade imediata e confessada o levava a querer derrubar violentamente a burguesia, nem estava à altura de tal tarefa. O Moniteur teve de fazer-lhe saber oficialmente que o tempo em que a república se vira obrigada a prestar homenagem às suas ilusões já tinha passado, e só a sua derrota o convenceu desta verdade: que, no seio da república burguesa, a mais pequena melhoria da sua situação é uma utopia, uma utopia que passa a ser crime logo que queira realizar-se. Em vez das reivindicações exaltadas na forma, mas mesquinhas no conteúdo e mesmo ainda burguesas, cuja satisfação ele queria forçar a república de Fevereiro a conceder, surgia agora a audaciosa palavra de ordem revolucionária: Derrube da burguesia! Ditadura da classe operária!

Ao transformar o seu lugar de morte em lugar de nascimento da república burguesa, o proletariado obrigou-a ao mesmo tempo a manifestar-se na sua forma pura como Estado, cujo objectivo confesso é eternizar a dominação do capital e a escravidão do trabalho. Não tirando os olhos do inimigo cheio de cicatrizes, irreconciliável e invencível — invencível porque a sua existência é a condição da própria vida dela — a dominação burguesa, livre de todas as peias, tinha que imediatamente descambar no terrorismo burguês. Com o proletariado provisoriamente afastado do palco, com a ditadura burguesa reconhecida oficialmente, as camadas médias da sociedade burguesa, a pequena burguesia e a classe dos camponeses tiveram de se ligar cada vez mais ao proletariado na medida em que a sua situação se tornava mais insuportável e a sua oposição em relação à burguesia se tornava mais dura. Tinha agora de encontrar a razão das suas misérias na derrota daquele tal como outrora a haviam encontrado no seu ascenso.

Quando por toda a parte no continente a insurreição de Junho elevou a consciência de si própria da burguesia e a fez estabelecer abertamente uma aliança com a realeza feudal contra o povo, quem foi a primeira vítima dessa aliança? A própria burguesia continental. A derrota de Junho impediu-a de consolidar a sua dominação e de imobilizar o povo, meio satisfeito e meio melindrado, no escalão subalterno da revolução burguesa.

Finalmente, a derrota de Junho revelou às potências despóticas da Europa o segredo de que a França tinha de manter a todo o custo a paz com o exterior a fim de no interior levar a cabo a guerra civil. Assim, os povos que tinham iniciado a luta pela sua independência nacional foram abandonados à prepotência da Rússia, da Áustria e da Prússia, mas, ao mesmo tempo, o destino destas revoluções nacionais ficava sujeito à sorte da revolução proletária e despojado da sua aparente autonomia, da sua independência face à grande transformação social. O húngaro não será livre, nem o polaco, nem o italiano enquanto o operário for escravo!

Por fim, com as vitórias da Santa Aliança, a Europa adquiriu uma forma que faz imediatamente coincidir cada nova sublevação proletária em França com uma guerra mundial. A nova revolução francesa é obrigada a deixar imediatamente o solo nacional e a conquistar o terreno europeu, o único em que a revolução social do século XIX pode ser levada a cabo.

Portanto, só através da derrota de Junho foram criadas todas as condições no seio das quais a França pode tomar a iniciativa da revolução europeia. Só empapada no sangue dos insurrectos de Junho a tricolor se tornou bandeira da revolução europeia — bandeira vermelha!

E nós gritamos: A revolução morreu! Viva a revolução!


 
II — O 13 de Junho de 1849
O 25 de Fevereiro de 1848 tinha outorgado a república à França; o 25 de Junho impôs-lhe a revolução. E depois de Junho revolução significava: transformação da sociedade burguesa, enquanto antes de Fevereiro tinha significado: transformação da forma de Estado.

A luta de Junho fora conduzida pela fracção republicana da burguesia. Com a vitória caiu-lhe necessariamente nas mãos o poder de Estado. O estado de sítio pôs-lhe aos pés sem resistência Paris amordaçada. E nas províncias reinava um estado de sítio moral: a arrogância da vitória, brutal, ameaçadora, dos burgueses e o fanatismo da propriedade, à solta, dos camponeses. De baixo, portanto, nenhum perigo!

Com a quebra do poder revolucionário dos operários quebrou-se ao mesmo tempo a influência política dos republicanos democráticos, isto é dos republicanos no sentido da pequena burguesia, representados na Comissão Executiva por Ledru-Rollin, na Assembleia Nacional Constituinte pelo partido da Montagne[43] e na imprensa pela Reforme[44]. Em 16 de Abril[45] tinham conspirado juntamente com os republicanos burgueses contra o proletariado e nas jornadas de Junho tinham-no combatido juntamente com eles. Assim, eles próprios tinham feito saltar o plano recuado donde o seu partido emergira como uma força, pois a pequena burguesia só se pode afirmar revolucionariamente contra a burguesia quando o proletariado está por detrás dela. Foram despedidos. A aliança aparente contraída com eles contra vontade e com segundas intenções durante a época do Governo provisório e da Comissão Executiva, foi abertamente quebrada pelos republicanos burgueses. Desprezados e rejeitados como aliados, desceram ao nível de satélites secundários dos tricolores aos quais não podiam arrancar qualquer concessão, mas cuja dominação tinham de apoiar todas as vezes que esta, e com ela a república, parecesse posta em questão pelas fracções burgueses anti-republicanas. Finalmente, estas fracções, orleanistas e legitimistas, encontravam-se desde o princípio em minoria na Assembleia Nacional Constituinte. Antes das jornadas de Junho, só sob a máscara do republicanismo burguês se atreviam a reagir. A vitória de Junho fez por um momento toda a França burguesa saudar em Cavaignac o seu salvador, e quando, pouco tempo depois das jornadas de Junho, o partido anti-republicano de novo se autonomizou, a ditadura militar e o estado de sítio de Paris não lhe permitiram que estendesse as antenas senão muito tímida e cautelosamente.

Desde 1830 que a fracção republicano-burguesa agrupara os seus escritores, os seus porta-vozes, as suas competências, as suas ambições, os seus deputados, generais, banqueiros e advogados em torno de um jornal de Paris, em torno do National. Nas províncias, este possuía os seus jornais-filiais. A camarilha do National era a dinastia da república tricolor. Apossou-se imediatamente de todas as honrarias do Estado, dos ministérios, da prefeitura da polícia, da direcção do correio, das prefeituras, dos postos elevados do exército que tinham ficado vagos. À frente do poder executivo encontrava-se o seu general, Cavaignac. O seu redactor en chef, Marrast, passou a ser o presidente permanente da Assembleia Nacional Constituinte. Ao mesmo tempo, nos seus salões, fazia, como mestre de cerimónias, as honras da república honesta.

Até escritores franceses revolucionários, por uma espécie de timidez perante a tradição republicana, reforçaram o erro de que os realistas (Royalisten) teriam dominado na Assembleia Nacional Constituinte. Pelo contrário, desde as jornadas de Junho a Assembleia Constituinte permanecia a representante exclusiva do republicanismo burguês e dava relevo a esta faceta de um modo tanto mais decidido quanto mais a influência dos republicanos tricolores fora da Assembleia se desmoronava. Se se tratava de afirmar a forma da república burguesa, ela dispunha dos votos dos republicanos democráticos; se se tratava do conteúdo, a sua própria maneira de falar já não a separava das fracções burguesas realistas, pois os interesses da burguesia, as condições materiais da sua dominação de classe e exploração de classe constituem precisamente o conteúdo da república burguesa.

Não era portanto o monarquismo (Royalismus), mas o republicanismo burguês que se realizava na vida e nos actos desta Assembleia Constituinte que finalmente nem morria nem era morta, mas apodrecia.

Ao longo de toda a duração da sua dominação enquanto representava no proscénio a acção principal[46], representava-se ao fundo da cena uma ininterrupta celebração sacrificial: as contínuas condenações pelos tribunais marciais dos insurrectos de Junho presos ou a sua deportação sem julgamento. A Assembleia Constituinte teve o tacto de confessar que, quanto aos insurrectos de Junho, não julgava criminosos mas esmagava inimigos.

A primeira acção da Assembleia Nacional Constituinte foi a nomeação de uma Comissão de Inquérito acerca dos acontecimentos de Junho e de 15 de Maio e da participação dos chefes dos partidos socialista e democrático nessas jornadas. O inquérito visava directamente Louis Blanc, Ledru-Rollin e Caussidière. Os republicanos burgueses ardiam de impaciência por se verem livres destes rivais. Não podiam confiar a execução dos seus rancores a outro sujeito mais próprio para o efeito do que o senhor Odilon Barrot. o antigo chefe da oposição dinástica, o liberalismo personificado, a nullité grave[47], a superficialidade radical, que tinha não só de vingar uma dinastia mas também de pedir contas aos revolucionários por uma presidência de ministério frustrada: Garantia segura da sua inflexibilidade. Este Barrot, nomeado assim presidente da comissão de inquérito, forjou um processo completo contra a revolução de Fevereiro que se pode resumir do seguinte modo: 17 de Março, manifestação: 16 de Abril, conspiração; 15 de Maio, atentado; 23 de Junho, guerra civil!. Por que razão não estendeu ele as suas sábias e criminalísticas investigações até ao 24 de Fevereiro? O Journal des Débats[48] respondeu: o 24 de Fevereiro é a fundação de Roma. A origem dos Estados perde-se num mito em que se deve acreditar mas que não se deve discutir. Louis Blanc e Caussidière foram entregues aos tribunais. A Assembleia Nacional completou o trabalho do seu próprio saneamento que iniciara a 15 de Maio.

O plano concebido pelo Governo provisório e retomado por Goudchaux de um imposto sobre o capital — na forma de um imposto sobre hipotecas — foi rejeitado pela Assembleia Constituinte; a lei que limitava o tempo de trabalho a 10 horas foi revogada: a prisão por dívidas, restabelecida; a grande parte da população francesa que não sabia ler nem escrever foi excluída da admissão em júris. Porque não também do sufrágio? A caução para os jornais foi introduzida de novo e o direito de associação limitado.

Todavia, na sua pressa de restituir as antigas garantias às antigas relações burguesas e eliminar todos os traços que as ondas da revolução tinham deixado, os republicanos burgueses encontraram uma resistência que ameaçava com um perigo inesperado.

Ninguém nas jornadas de Junho tinha lutado com mais fanatismo pela salvação da propriedade e pelo restabelecimento do crédito do que os pequenos burgueses de Paris: donos de cafés, de restaurantes, marchands de vins[49], pequenos comerciantes, merceeiros, artesãos, etc. A boutique[50] unira-se e marchara contra a barricada para restabelecer a circulação que vem da rua para a boutique. Atrás da barricada, porém, estavam os clientes e os devedores, à frente dela encontravam-se os credores da boutique. E quando as barricadas foram derrubadas e os operários esmagados e os donos das lojas, ébrios com a vitória, se precipitaram para as suas lojas, encontraram a entrada barricada por um salvador da propriedade, um agente oficial do crédito, brandindo-lhes as cartas cominatórias: Letra vencida! Renda vencida! Título de dívida vencido! Boutique vencida! Boutiquier vencido!

Salvação da propriedade! Mas a casa em que viviam não era propriedade sua; a loja que tinham não era propriedade sua; as mercadorias em que negociavam não eram propriedade sua. Nem o negócio, nem o prato em que comiam, nem a cama em que dormiam lhes pertencia ainda. Tratava-se, pois, precisamente, de salvar esta propriedade para o dono da casa que a alugara, para o banqueiro que descontara as letras, para o capitalista que adiantara o dinheiro, para o fabricante que confiara as mercadorias a esses merceeiros para as vender, para o grande comerciante que fornecera a crédito as matérias-primas a estes artesãos. Restabelecimento do crédito! Mas o crédito de novo robustecido revelou-se precisamente como um deus vivo e fervoroso expulsando das suas quatro paredes, com mulher e filhos, o devedor insolvente, entregando os seus haveres ilusórios ao capital e atirando-o para a prisão por dívidas que, de novo, se erguera ameaçadora sobre os cadáveres dos insurrectos de Junho.

Os pequenos burgueses reconheceram com pavor que, ao derrotarem os operários, se tinham entregue sem resistência nas mãos dos seus credores. A sua bancarrota, que desde Fevereiro se arrastava cronicamente e parecia ignorada, manifestou-se claramente depois de Junho.

Enquanto foi necessário arrastá-los para o campo da luta em nome da propriedade não se lhes havia tocado na sua propriedade nominal. Agora que a grande questão com o proletariado estava arrumada, podia arrumar-se de novo o pequeno negócio com o épicier. Em Paris, o volume dos títulos protestados ultrapassava 21 milhões de francos, nas províncias 11 milhões. Proprietários de mais de 7 000 casas comerciais de Paris não pagavam a renda desde Fevereiro.

Como a Assembleia Nacional havia procedido a uma enquête[51] sobre a dívida política remontando até Fevereiro, os pequenos burgueses exigiram por seu lado uma enquête sobre as dívidas civis até 24 de Fevereiro. Reuniram-se em massa no salão da Bolsa e para cada comerciante que pudesse provar que a sua falência fora devida apenas à paralisação provocada pela revolução e que o seu negócio ia bem no dia 24 de Fevereiro exigiram com ameaças prolongamento do prazo de pagamento mediante sentença do Tribunal do Comércio e obrigação do credor de liquidar o seu crédito por um pagamento percentual moderado. Esta questão foi tratada na Assembleia Nacional como proposta de lei sob a forma de "concordais à l'amiable"[52]. A Assembleia estava vacilante; então, de súbito, tomou conhecimento de que, ao mesmo tempo, na Porte St. Denis, milhares de mulheres e filhos dos insurrectos preparavam uma petição de amnistia.

Ante o espectro de Junho, ressuscitado, os pequenos burgueses tremeram e a Assembleia recuperou a sua inflexibilidade. Os concordais à l'amiable, o entendimento amistoso entre credor e devedor foi rejeitado nos seus pontos essenciais.

Assim, muito tempo depois de no seio da Assembleia Nacional os representantes democráticos dos pequenos burgueses terem sido repelidos pelos representantes republicanos da burguesia, esta cisão parlamentar adquiriu o seu sentido burguês, o seu sentido económico real, quando os pequenos burgueses foram abandonados, como devedores, aos burgueses, como credores. Uma grande parte dos primeiros ficou completamente arruinada e aos restantes apenas foi permitido prosseguir o seu negócio sob condições que os tornavam servos incondicionais do capital. A 22 de Agosto de 1848, a Assembleia Nacional rejeitou os concordais à l'amiable. A 19 de Setembro de 1848, em pleno estado de sítio, o príncipe Louis Bonaparte e o preso de Vincennes, o comunista Raspail, foram eleitos deputados por Paris. A burguesia, porém, elegeu Fould, o cambista judeu e orleanista. Assim, de repente, surgiu de todos os lados ao mesmo tempo uma declaração de guerra aberta contra a Assembleia Nacional Constituinte, contra o republicanismo burguês, contra Cavaignac.

Não é preciso pormenorizar como a bancarrota em massa dos pequenos burgueses de Paris fez sentir os seus efeitos muito para além dos imediatamente atingidos e mais uma vez teve de abalar o comércio burguês, ao mesmo tempo que o défice do Estado voltava a crescer devido aos custos da insurreição de Junho e as receitas do Estado diminuíam constantemente em virtude da paralisação da produção, do consumo limitado e das importações cada vez menores. Nem Cavaignac, nem a Assembleia Nacional podiam recorrer a nenhum outro meio que não fosse um novo empréstimo que os sujeitava ainda mais à canga da aristocracia financeira.

Se, por um lado, os pequenos burgueses tinham colhido como fruto da vitória de Junho a bancarrota e a liquidação judicial, por outro, os janízaros[53] de Cavaignac, os guardas móveis, encontraram o seu pagamento nos braços macios das loretas e receberam, eles, "os jovens salvadores da sociedade", homenagens de toda a espécie nos salões de Marrast, o gentilhomme[54] da tricolor, que fazia ao mesmo tempo de anfitrião e de trovador da república honesta. Entretanto, esta preferência social e o soldo incomparavelmente mais elevado da Guarda Móvel irritava o exército, enquanto desapareciam todas as ilusões nacionais com que o republicanismo burguês por intermédio do seu jornal, o National, tinha sabido, no tempo de Louis-Philippe, prender a si uma parte do exército e da classe dos camponeses. O papel de medianeiro que Cavaignac e a Assembleia Nacional desempenharam na Itália do Norte para, juntamente com a Inglaterra, o atraiçoar em favor da Áustria — este único dia de poder anulou dezoito anos de oposição do National. Nenhum governo menos nacional que o do National; nenhum mais dependente da Inglaterra, e sob Louis-Philippe vivia ele da paráfrase diária do catoniano Carthaginem esse delendam[55]; nenhum mais servil para com a Santa Aliança, e por um Guizot tinha ele pedido o rompimento dos tratados de Viena. A ironia da história fez Bastide, ex-redactor da secção do estrangeiro do National, ministro dos Negócios Estrangeiros da França, a fim de refutar com cada despacho seu cada um dos seus artigos.

Por um momento, o exército e os camponeses tinham acreditado que, com a ditadura militar, estariam na ordem do dia da França a guerra com o exterior e a "gloire"[56]. Cavaignac, porém, não era a ditadura do sabre sobre a sociedade burguesa; era a ditadura da burguesia por meio do sabre. E agora do soldado precisavam apenas do gendarme. Por detrás dos seus traços severos de resignação de republicano da Antiguidade, Cavaignac ocultava a submissão insípida às condições humilhantes do seu cargo burguês (bürgerlichen Amtes). L'argent n'a pas de máitrel O dinheiro não tem amo! Cavaignac, tal como a Assembleia Constituinte em geral, idealizava este velho lema do tiers-état[57] traduzindo-o para a linguagem política: a burguesia não tem rei, a verdadeira forma da sua dominação é a república.

E na elaboração desta forma, a feitura de uma Constituição republicana, consistia a "grande obra orgânica" da Assembleia Nacional Constituinte. A mudança de nome do calendário cristão para um republicano, de São Bartolomeu para São Robespierre, fazia mudar o tempo e o vento tanto como esta Constituição alterava, ou deveria alterar, a sociedade burguesa. Quando ia além da troca do traje, limitava-se a lavrar em acta os factos existentes. Assim, registou solenemente o facto da república, o facto do sufrágio universal, o facto de uma única e soberana Assembleia Nacional em vez de duas Câmaras Constitucionais com atribuições limitadas. Assim, registou e legalizou o facto da ditadura de Cavaignac substituindo a monarquia hereditária, estacionária e irresponsável por uma monarquia electiva, ambulante e responsável, por uma presidência de quatro anos. Assim, elevou nada menos que a lei constituinte o facto dos poderes extraordinários com que, após os sustos de 15 de Maio e 25 de Junho, a Assembleia Nacional prudentemente, e no interesse da sua própria segurança, investira o seu presidente. O resto da Constituição foi obra de terminologia. As etiquetas realistas foram arrancadas à engrenagem da velha monarquia e substituídas por republicanas. Marrast, antigo redactor en chef do National, agora redactor en chef da Constituição, desempenhou-se, não sem talento, desta tarefa académica.

A Assembleia Constituinte assemelhava-se àquele funcionário chileno que queria regulamentar mais firmemente as relações da propriedade fundiária por meio da medição dos cadastros, no preciso momento em que o trovão subterrâneo já anunciava a erupção vulcânica que iria fazer fugir o solo sob os seus próprios pés. Enquanto na teoria traçava a compasso as formas em que a dominação da burguesia se exprimia republicanamente, na realidade só conseguia afirmar-se pela abolição de todas as fórmulas, pela força sans phrase[58], pelo estado de sítio. Dois dias antes de começar a sua obra constitucional, ela proclamou o seu prolongamento. Anteriormente tinham sido feitas e aprovadas Constituições logo que o processo de transformação social atingia um ponto de acalmia, as relações de classe recém-formadas se consolidavam e as fracções em luta da classe dominante se refugiavam num compromisso que lhes permitia continuar a luta entre si e, ao mesmo tempo, excluir dela a massa extenuada do povo. Esta Constituição, pelo contrário, não sancionava nenhuma revolução social, sancionava a vitória momentânea da velha sociedade sobre a revolução.

No primeiro projecto de Constituição[59], redigido antes das jornadas de Junho, ainda figurava o "droit au travail", o direito ao trabalho, a primeira fórmula canhestra em que se condensavam as exigências revolucionárias do proletariado. Foi transformado no droit à l'assistance, no direito à assistência pública. E que Estado moderno não alimenta, de uma maneira ou de outra, os seus pobres? No sentido burguês, o direito ao trabalho é um contra-senso, um desejo piedoso, miserável, mas por detrás do direito ao trabalho está o poder sobre o capital, por detrás do poder sobre o capital a apropriação dos meios de produção, a sua submissão à classe operária associada, portanto, a abolição do trabalho assalariado, do capital e da sua relação recíproca. Por detrás do "direito ao trabalho" encontrava-se a insurreição de Junho. A Assembleia Constituinte, que pusera efectivamente o proletariado revolucionário hors la loi, fora da lei, tinha que rejeitar, por princípio, a sua fórmula da Constituição, da lei das leis; tinha de lançar o seu anátema sobre o "direito ao trabalho". Mas não ficou por aqui. Como Platão tinha banido da sua república os poetas, assim ela baniu da sua e para a eternidade o imposto progressivo. E o imposto progressivo não é apenas uma medida burguesa, realizável em maior ou menor grau dentro das relações de produção existentes; era o único meio de amarrar as camadas médias da sociedade burguesa à república "honesta", de reduzir a dívida do Estado, de dar cheque à maioria anti-republicana da burguesia.

Por ocasião dos concordais à l'amiable, os republicanos tricolores tinham realmente sacrificado a pequena burguesia à grande. Por meio da proibição legal do imposto progressivo elevaram este facto isolado a um princípio. Puseram a reforma burguesa ao mesmo nível da revolução proletária. Mas que classe ficava então como sustentáculo da sua república? A grande burguesia, cuja massa era anti-republicana. Se explorava os republicanos do National para consolidar de novo as antigas relações de vida económica, pensou, por outro lado, explorar essas relações sociais novamente consolidadas para restabelecer as formas políticas correspondentes. Logo no princípio de Outubro, Cavaignac viu-se obrigado a nomear Dufaure e Vivien, antigos ministros de Louis-Philippe, para ministros da república, por mais que os desmiolados puritanos do seu próprio partido resmungassem e barafustassem.

A Constituição tricolor, enquanto recusava todo e qualquer compromisso com a pequena burguesia e não sabia prender à nova forma de Estado nenhum outro elemento novo da sociedade, apressava-se, em compensação, a restituir a tradicional intangibilidade a um corpo no qual o velho Estado encontrava os seus defensores mais fanáticos e encarniçados. Elevou a inamovibilidade dos juizes, posta em causa pelo Governo provisório, a lei constituiconal. O rei único que ela destronara surgia agora às centenas nestes inamovíveis inquisidores da legalidade.

A imprensa francesa analisou em múltiplos aspectos as contradições da Constituição do senhor Marrast, por exemplo, o facto de, lado a lado, existirem dois soberanos: a Assembleia Nacional e o presidente, etc, etc.

A ampla contradição desta Constituição consiste porém no seguinte: As classes cuja escravidão social deve eternizar: proletariado, camponeses, pequenos burgueses, ela coloca-as na posse do poder político por meio do sufrágio universal. E a classe cujo velho poder social sanciona, a burguesia, ela retira-lhe as garantias políticas desse poder. Comprime a sua dominação política em condições democráticas que a todo o momento favorecem a vitória das classes inimigas e põem em causa os próprios fundamentos da sociedade burguesa. A umas, exige que não avancem da emancipação política para a social, às outras, que não retrocedam da restauração social para a política.

Estas contradições incomodavam pouco os republicanos burgueses. Na mesma medida em que deixavam de ser indispensáveis, e indispensáveis só o foram enquanto defensores da velha sociedade contra o proletariado revolucionário, caíam, apenas algumas semanas depois da vitória, de uma posição de um partido para a de uma camarilha. E a Constituição manejavam-na eles como uma grande intriga. O que devia ser constituído nela era sobretudo a dominação da camarilha. O presidente devia ser o Cavaignac prolongado e a Assembleia Legislativa uma Constituinte prolongada. Esperavam reduzir o poder político das massas populares a um poder fictício e ser capazes de brincar suficientemente com esse poder fictício para agitar sem descanso perante a maioria da burguesia o dilema das jornadas de Junho: império do National ou império da anarquia.

A obra constitucional, começada a 4 de Setembro, terminou a 23 de Outubro. A 2 de Setembro, a Constituinte decidira não se dissolver até que as leis orgânicas complementares da Constituição estivessem promulgadas. Apesar disso, já em 10 de Dezembro, muito antes do ciclo da sua própria actuação estar encerrado, resolveu chamar à vida a sua criatura mais própria, o presiderite, tão segura estava de saudar na Constituição-homúnculo o filho da sua mãe. À cautela fora estabelecido que, se nenhum dos candidatos alcançasse dois milhões de votos, a eleição passaria da Nação para a Constituinte.

Vãs precauções! O primeiro dia da realização da Constituição foi o último dia da dominação da Constituinte. No abismo da urna devota estava a sua sentença de morte. Procurava o "filho da sua mãe" e encontrou o "sobrinho do seu tio". Saul Cavaignac obteve um milhão de votos, mas David Napoleão obteve seis milhões. Saul Cavaignac foi seis vezes derrotado[60].

O 10 de Dezembro de 1848 foi o dia da insurreição dos camponeses. Só a partir deste dia Fevereiro constituía uma data para os camponeses franceses. O símbolo que exprimia a sua entrada no movimento revolucionário, desajeitado e manhoso, velhaco e ingénuo, grosseiro e sublime, uma superstição calculada, um burlesco patético, um anacronismo genial e pueril, uma travessura histórico-universal, uns hieróglifos indecifráveis para a compreensão dos civilizados — esse símbolo apresentava a fisionomia inconfundível da classe que representa a barbárie no seio da civilização. A república anunciara-se perante ela com o executor de impostos; ela anunciava-se perante a república com o imperador. Napoleão era o único homem que representara, exaustivamente, os interesses e a fantasia da classe camponesa recém-criada em 1789. Ao inscrever o nome dele no frontispício da república, ela declarava guerra para o exterior e no interior fazia valer os seus interesses de classe. Para os camponeses, Napoleão não era uma pessoa mas um programa. Com bandeiras, ao som de música, dirigiam-se às assembleias de voto gritando: plus d'impôts, a bas les riches, à bas la republique, vive l'Empereur. Fora com os impostos, abaixo os ricos, abaixo a república, viva o Imperador. Por detrás do imperador escondia-se a guerra dos camponeses. A república que eles derrubavam com os votos era a república dos ricos.

10 de Dezembro foi o coup d'état[61] dos camponeses, que derrubou o Governo vigente. E a partir desse dia, em que eles tiraram um governo e deram um governo à França, os seus olhos fixaram-se em Paris. Por um momento heróis activos do drama revolucionário, já não podiam ser empurrados para o papel passivo e abúlico do coro.

As restantes classes contribuíram para completar a vitória eleitoral dos camponeses. A eleição de Napoleão significava para o proletariado a destituição de Cavaignac, a queda da Constituinte, a abdicação do republicanismo burguês, a cassação da vitória de Junho. Para a pequena burguesia, Napoleão era a dominação do devedor sobre o credor. Para a maioria da grande burguesia, a eleição de Napoleão era a rotura aberta com a fracção de que, durante um momento, teve de se servir contra a revolução, mas que se lhe tornou insuportável logo que procurou consolidar esta posição momentânea como posição constitucional. Napoleão em vez de Cavaignac era, para ela, a monarquia em vez da república, o princípio da restauração realista, o Orléans timidamente sugerido, a flor-de-lis[62] oculta entre as violetas. Finalmente, o exército votava por Napoleão contra a Guarda Móvel, contra o idílio da paz, pela guerra.

Deste modo, como escrevia a Neue Rheinische Zeitung, o homem mais simples da França adquiria o mais complexo dos significados[63]. Precisamente porque não era nada, podia significar tudo, menos ele mesmo. Todavia, por muito diferente que fosse o sentido do nome Napoleão na boca das diferentes classes, cada uma delas escrevia com este nome no seu boletim de voto: abaixo o partido do National, abaixo Cavaignac, abaixo a Constituinte, abaixo a república burguesa. O ministro Dufaure declarou abertamente na Assembleia Constituinte: o 10 de Dezembro é um segundo 24 de Fevereiro.

A pequena burguesia e o proletariado tinham votado en bloc[64] por Napoleão para votar contra Cavaignac e para, por meio da junção dos votos, arrancar à Constituinte a decisão final. Todavia, a parte mais avançada de ambas as classes apresentou os seus próprios candidatos. Napoleão era o nome colectivo de todos os partidos coligados contra a república burguesa; Ledru-Rollin e Raspail, os nomes próprios: aquele, o da pequena burguesia democrática; este, o do proletariado revolucionário. Os votos em Raspail — os proletários e os seus porta-vozes socialistas declararam-no bem alto — constituiriam uma simples manifestação, outros tantos protestos contra qualquer presidência, isto é, contra a própria Constituição, outros tantos votos contra Ledru-Rollin, o primeiro acto através do qual o proletariado, como partido político autónomo, se separava do partido democrático. Este partido, porém — a pequena burguesia democrática e o seu representante parlamentar, a Montagne — tratava a candidatura de Ledru-Rollin com toda a gravidade com que têm o hábito solene de se enganarem a si próprios. Foi, de resto, a sua última tentativa de se arvorarem em partido autónomo face ao proletariado. A 10 de Dezembro o partido burguês republicano não foi o único derrotado; foram-no também a pequena burguesia democrática e a sua Montagne.

Agora, ao lado de uma Montagne, a França possuía um Napoleão, prova de que ambos eram apenas as caricaturas sem vida das grandes realidades cujos nomes ostentavam. Louis-Napoléon, com o chapéu imperial e águia, não era mais miserável ao parodiar o velho Napoleão do que a Montagne, com as suas frases decalcadas de 1793 e as suas poses demagógicas, ao parodiar a velha Montagne. Assim, a superstição tradicional no 1793 foi abandonada ao mesmo tempo que a superstição tradicional em Napoleão. A revolução só ganhara a sua identidade no momento em que ganhara o seu nome original, próprio, e isso só o pôde fazer no momento em que a classe revolucionária moderna, o proletariado industrial, surgiu, dominante, no seu primeiro plano. Pode dizer-se que o 10 de Dezembro deixara já a Montagne confundida e desconfiada do seu próprio juízo uma vez que, rindo-se, rompera a clássica analogia com a velha revolução por meio de um grosseiro gracejo de camponês.

No dia 20 de Dezembro, Cavaignac demitiu-se do seu cargo e a Assembleia Constituinte proclamou Louis-Napoléon presidente da República. No dia 19 de Dezembro, o último dia da sua dominação exclusiva, a Assembleia rejeitou a proposta de amnistia dos insurrectos de Junho. Revogar o decreto de 27 de Junho por meio do qual, torneando a sentença judicial, havia condenado 15 000 insurrectos à deportação, não seria isso revogar a própria batalha de Junho?

Odilon Barrot, o último ministro de Louis-Philippe, tornou-se o primeiro ministro de Louis-Napoléon. Tal como Louis-Napoléon não datava a sua dominação a partir do 10 de Dezembro mas a partir de um decreto senatorial de 1804, assim ele encontrou um primeiro-ministro que não datava o seu ministério a partir de 20 de Dezembro mas a partir de um decreto real de 24 de Fevereiro. Como herdeiro legítimo de Louis-Philippe, Louis-Napoléon atenuou a mudança de governo mantendo o velho ministério que, aliás, não dispusera de tempo para se desgastar, pois nem arranjara tempo para começar a viver.

Os chefes das fracções burguesas realistas aconselharam-no a essa escolha. A cabeça da velha oposição dinástica, que inconscientemente tinha formado a transição para os republicanos do National, era ainda mais adequada para formar com plena consciência a transição da república burguesa para a monarquia.

Odilon Barrot era o chefe do único velho partido da oposição que, lutando sempre em vão por uma pasta ministerial, ainda não se tinha desgastado. Numa rápida sucessão, a revolução atirava todos os velhos partidos da oposição para os cumes do Estado a fim de que, não só nos actos, mas também na sua própria frase, tivessem de negar e revogar as suas velhas frases e de que, finalmente, reunidos numa repugnante mistura, fossem todos juntos atirados pelo povo para o monturo da história. E nenhuma apostasia foi poupada a este Barrot, essa encarnação do liberalismo burguês que, durante dezoito anos, ocultara a infame vacuidade do seu espírito debaixo do comportamento grave do seu corpo. Se, em momentos isolados, o contraste demasiado gritante entre os cardos do presente e os louros do passado a ele próprio o assustava, um simples olhar para o espelho restituía-lhe a compostura ministerial e a humana admiração por si próprio. A imagem que o espelho lhe devolvia era Guizot, que ele sempre invejou, que sempre o dominara, Guizot em pessoa, mas Guizot com a fronte olímpica de Odilon. O que ele não via eram as orelhas de Midas.

O Barrot de 24 de Fevereiro só se revelou no Barrot de 20 de Dezembro. A ele, o orleanista e voltairiano, juntou-se-lhe, como ministro do Culto, o legitimista e jesuíta Falloux.

Alguns dias mais tarde, o ministério do Interior foi entregue a Léon Faucher, o malthusiano. O Direito, a Religião, a Economia Política! O ministério Barrot continha tudo isto e também uma união de legitimistas e orleanistas. Só faltava o Bonapartista. Bonaparte ocultava ainda o apetite de significar o Napoleão, pois Soulouque ainda não representava o Toussaint-Louverture.

O partido do National foi imediatamente afastado de todos os altos cargos em que se tinha anichado. Prefeitura da polícia, direcção dos correios, procuradoria-geral, mairie[65] de Paris, tudo isto foi ocupado por velhas criaturas da monarquia. Changarnier, o letigimista, recebeu o alto comando unificado da Guarda Nacional do departamento do Sena, da Guarda Móvel e das tropas de linha da primeira divisão militar; Bugeaud, o orleanista, foi nomeado comandante em chefe do exército dos Alpes. Esta mudança de funcionários prosseguiu sem interrupção no governo Barrot. O primeiro acto do seu ministério foi a restauração da velha administração realista [royalistischen]. Num abrir e fechar de olhos a cena oficial transformou-se: cenários, guarda-roupa, linguagem, actores, figurantes, comparsas, pontos, posição dos partidos, motivos do drama, conteúdo da colisão, a situação na sua totalidade. Só a antediluviana Assembleia Constituinte se encontrava ainda no seu posto. Mas a partir da hora em que a Assembleia Nacional tinha instalado o Bonaparte, Bonaparte o Barrot, Barrot o Changarnier, a França saiu do período da constituição republicana para entrar no período da república constituída. E que é que uma Assembleia Constituinte tinha a fazer numa república constituída? Depois do mundo ter sido criado, ao seu criador restava apenas refugiar-se no céu. A Assembleia Constituinte estava resolvida a não seguir o seu exemplo. A Assembleia Nacional era o último asilo do partido dos republicanos burgueses. Se lhe tinham arrancado todas as alavancas do poder executivo, não lhe restava a omnipotência constituinte? O seu primeiro pensamento foi afirmar a todo o custo o posto soberano que detinha e, a partir daqui, reconquistar o terreno perdido. Afastado o ministério Barrot por um ministério doNational, o pessoal realista tinha de abandonar imediatamente os palácios da administração e o pessoal tricolor reentrou em triunfo. A Assembleia Nacional decidiu a queda do ministério, e o próprio ministério forneceu uma oportunidade de ataque tal que nem a Constituinte seria capaz de inventar outra melhor.

Recorde-se o que Louis Bonaparte significava para os camponeses: Fora os impostos! Esteve seis dias sentado na cadeira presidencial e ao sétimo dia, a 27 de Dezembro, o seu ministério propôs a manutenção do imposto sobre o sal, cuja abolição tinha sido decretada pelo Governo provisório. Juntamente com o imposto sobre o vinho, o imposto sobre o sal partilha o privilégio de ser o bode expiatório do velho sistema financeiro francês, especialmente aos olhos da população rural. O ministério Barrot não podia pôr na boca do eleito dos camponeses epigrama mais mordaz para os seus eleitores do que as palavras: restabelecimento do imposto sobre o sal! Com o imposto sobre o sal Bonaparte perdeu o seu sal revolucionário — o Napoleão da insurreição camponesa desfez-se como uma imagem de névoa e nada mais restou do que o grande desconhecido da intriga burguesa realista. E não foi sem intenção que o ministério Barrot fez deste acto, de desilusão desajeitadamente grosseira, o primeiro acto de governo do presidente.

Por seu lado, a Constituinte agarrou avidamente a dupla oportunidade de derrubar o ministério e de se apresentar face ao eleito dos camponeses como defensora dos interesses dos camponeses. Rejeitou a proposta do ministro das Finanças, reduziu o imposto sobre o sal a um terço do seu montante anterior, aumentando assim em 60 milhões um défice do Estado de 560 milhões e esperou tranquilamente depois desse voto de desconfiança a demissão do ministério. Quão pouco compreendia ela o novo mundo que a rodeava e a mudança da sua própria situação. Por detrás do ministério encontrava-se o presidente e por detrás dele encontravam-se 6 milhões que tinham deitado na urna outros tantos votos de desconfiança contra a Constituinte.

A Constituinte devolveu à nação o seu voto de desconfiança. Ridícula troca! Esquecia-se que os seus votos tinham perdido o curso legal. A rejeição do imposto sobre o sal apenas amadureceu a decisão de Bonaparte e do seu ministério de "acabar" com a Assembleia Constituinte. Começou aquele longo duelo que preenche toda a última metade da vida da Constituinte. O 29 de Janeiro, o 21 de Março, o 8 de Maio são as journées, os grandes dias desta crise, outros tantos precursores do 13 de Junho.

Os franceses, por exemplo Louis Blanc, interpretaram o 29 de Janeiro como a manifestação de uma contradição constitucional, a contradição entre uma Assembleia Nacional saída do sufrágio universal, soberana e indissolúvel e um presidente à letra responsável perante ela, na realidade, porém, não só igualmente sancionado pelo sufrágio universal — e além disso reunindo na sua pessoa todos os votos que se repartem e cem vezes se fragmentam por cada um dos membros da Assembleia Nacional —, mas também no pleno gozo de todo o seu poder executivo, sobre o qual a Assembleia Nacional paira apenas como poder moral. Esta interpretação do 29 de Janeiro confunde a linguagem da luta na tribuna, na imprensa, nos clubes, com o seu conteúdo real. Frente à Assembleia Nacional Constituinte, Louis Bonaparte não era apenas um poder constitucional unilateral frente a outro; não era o poder executivo frente ao legislativo; era a própria república burguesa constituída frente aos instrumentos da sua constituição, frente às intrigas ambiciosas e às exigências ideológicas da fracção burguesa revolucionária que a tinha fundado e que agora, perplexa, via que a sua república constituída se assemelhava a uma monarquia restaurada e queria manter pela força o período constituinte com as suas condições, as suas ilusões, a sua linguagem e as suas personagens, e impedir a república burguesa amadurecida de se revelar na sua forma acabada e peculiar. Tal como a Assembleia Nacional Constituinte representava o Cavaignac regressado ao seu seio, assim Bonaparte representava a Assembleia Nacional Legislativa ainda não divorciada dele, isto é, a Assembleia Nacional da república burguesa constituída.

A eleição de Bonaparte só podia explicar-se colocando no lugar de um nome os seus múltiplos significados, repetindo-se a si própria na eleição de uma nova Assembleia Nacional. O 10 de Dezembro tinha anulado o mandato da velha. Portanto, em 29 de Janeiro quem se defrontou não foi o presidente e a Assembleia Nacional da mesma república; foi, sim, a Assembleia Nacional da república que havia de ser e o presidente da república que já era, dois poderes que encarnavam períodos do processo de vida da república inteiramente diferentes; de um lado, a pequena fracção republicana da burguesia que era a única a poder proclamar a república, arrancá-la ao proletariado revolucionário por meio da luta de rua e do reinado do terror e esboçar na Constituição os seus traços ideiais; e do outro, a grande massa realista da burguesia, a única a poder dominar nesta república burguesa constituída, a retirar à Constituição os seus ingredientes ideológicos e a realizar as condições indispensáveis para a sujeição do proletariado por meio da sua legislação e da sua administração.

O temporal que se abateu em 29 de Janeiro tinha reunido os seus elementos durante todo o mês de Janeiro. Por meio do seu voto de desconfiança a Constituinte quis levar o ministério Barrot a demitir-se. Por seu turno, o ministério Barrot propôs à Constituinte que desse a si própria um voto de desconfiança definitivo, resolvesse suicidar-se e decretasse a sua própria dissolução. Por ordem do ministério, Rateau, um dos deputados mais obscuros, apresentou a 6 de Janeiro esta proposta àquela mesma Constituinte que já em Agosto havia decidido não se dissolver até promulgar uma série de leis orgânicas complementares da Constituição. O ministerial Fould declarou-lhe sem rodeios que a sua dissolução era necessária "para o restabelecimento do crédito abalado". Não abalava ela o crédito ao prolongar o provisório e ao pôr de novo em questão com Barrot a Bonaparte e com Bonaparte a república constituída? Barrot, o olímpico, transformado em Orlando Furioso pela perspectiva de se ver de novo despojado da presidência do Conselho de Ministros que desfrutara apenas durante duas semanas, cargo esse a que finalmente tinha deitado a mão e que os republicanos já haviam prorrogado por um decénio, isto é, por dez meses; Barrot, face a esta desgraçada Assembleia, excedia em tirania qualquer tirano. A mais suave das suas palavras era: "com ela não há futuro possível". E, na verdade, ela apenas representava o passado. "Ela é incapaz", acrescentava irónico, "de rodear a república das instituições que lhe são necessárias para a sua consolidação". De facto, assim era! Ao mesmo tempo que na sua oposição exclusiva ao proletariado a sua energia burguesa se perdia, na sua oposição aos realistas a sua exaltação republicana reaviva-se. Deste modo, era duplamente incapaz de consolidar por meio das instituições correspondentes a república burguesa que já não compreendia.

Com a proposta de Rateau, o ministério desencadeou ao mesmo tempo uma tempestade de petições em todo o país. Assim, dia após dia, de todos os cantos da França choviam em cima da Constituinte montes de billets-doux[66] em que se lhe pedia, mais ou menos categoricamente, que se dissolvesse e fizesse o seu testamento. A Constituinte, por seu lado, promovia contra-petições em que se fazia exortar a continuar viva. A luta eleitoral entre Bonaparte e Cavaignac renovou-se como duelo de petições a favor e contra a dissolução da Assembleia Nacional. Tais petições haviam de ser os comentários posteriores do 10 de Dezembro. Esta agitação prosseguiu durante o mês de Janeiro.

No conflito entre a Constituinte e o presidente, aquela não podia remontar às eleições gerais como a sua origem, pois era dela que se apelava para o sufrágio universal. Não podia apoiar-se em nenhum poder regular, pois tratava-se da luta contra o poder legal. Não podia derrubar o ministério por meio de votos de desconfiança, como em 6 e em 26 de Janeiro tentou de novo, pois o ministério não lhe pedia a sua confiança. Restava-lhe apenas uma possibilidade: a da insurreição. As forças armadas da insurreição eram a parte republicana da Guarda Nacional, a Guarda Móvel[67] e os centros do proletariado revolucionário, os clubes. Os guardas móveis, esses heróis das jornadas de Junho, constituíam em Dezembro a força de combate organizada da fracção burguesa republicana, tal como antes de Junho as oficinas nacionais[68] tinham constituído a força de combate organizada do proletariado revolucionário. Assim como a comissão executiva da Constituinte dirigiu o seu brutal ataque contra as oficinas nacionais quando teve de acabar com as reivindicações, tornadas insuportáveis, do proletariado, assim o ministério de Bonaparte dirigiu o seu ataque contra a Guarda Móvel quando teve de acabar com as reivindicações, tornadas insuportáveis, da fracção burguesa republicana. Ordenou a dissolução da Guarda Móvel. Metade dos seus efectivos foi licenciada e atirada para a rua; a outra recebeu uma organização monárquica em vez da sua organização democrática e o seu soldo foi reduzido ao nível do soldo normal das tropas de linha. A Guarda Móvel encontrou-se assim na situação dos insurrectos de Junho, e todos os dias os jornais publicavam confissões públicas em que aquela reconhecia a sua culpa de Junho e imploravam perdão ao proletariado.

E os clubes? A partir do momento em que a Assembleia Constituinte pusera em causa na pessoa de Barrot o presidente, na do presidente a república burguesa constituída e na da república burguesa constituída a própria república burguesa em geral, todos os elementos constituintes da república de Fevereiro, todos os partidos que queriam derrubar a república existente e transformá-la através de um processo violento de regressão na república dos seus interesses de classe e dos seus princípios, cerraram necessariamente fileiras em torno dela. O que acontecera deixara outra vez de acontecer, as cristalizações do movimento revolucionário tinham-se outra vez liquefeito, a república pela qual se lutou era outra vez a república indefinida das jornadas de Fevereiro cuja definição cada partido reservava para si. Por instantes, os partidos voltaram a ocupar as suas velhas posições de Fevereiro sem partilharem as ilusões de Fevereiro. Os republicanos tricolores do National voltaram a apoiar-se nos republicanos democráticos da Reforme e empurraram-nos como paladinos para o primeiro plano da luta parlamentar. Os republicanos democráticos apoiaram-se de novo nos republicanos socialistas — em 27 de Janeiro um manifesto público anunciava a sua reconciliação e a sua união — e preparavam nos clubes o terreno para a insurreição. A imprensa ministerial considerava com razão os republicanos tricolores do National como os insurrectos de Junho ressuscitados. Para se manterem à cabeça da república burguesa punham em questão a própria república burguesa. Em 26 de Janeiro, o ministro Faucher propôs um projecto de lei sobre o direito de associação, cujo primeiro parágrafo dizia: "São proibidos os clubes." Requereu que este projecto de lei fosse posto à discussão com carácter de urgência. A Constituinte rejeitou o pedido de urgência e, em 27 de Janeiro, Ledru-Rollin apresentou uma proposta com 230 assinaturas para se mover um processo ao ministério por violação da Constituição. Mover um processo ao ministério num momento em que um tal acto significava ou a revelação canhestra da impotência do juiz, isto é, da maioria da Câmara, ou um protesto impotente do acusador contra esta própria maioria — tal era o grande trunfo revolucionário que esta Montagne segunda jogaria a partir de agora em cada ponto alto da crise. Pobre Montagne esmagada pelo peso do seu próprio nome!

A 15 de Maio, Blanqui, Barbes, Raspail, etc, tinham tentado fazer saltar a Assembleia Constituinte ao entrarem violentamente na sala de sessões à cabeça do proletariado de Paris. Barrot preparou à mesma Assembleia um 15 de Maio moral ao ditar-lhe a sua autodissolução e ao querer encerrar a sala das sessões. Esta mesma Assembleia tinha encarregado Barrot de proceder a uma enquête contra os acusados de Maio e agora, neste momento, em que ele lhe aparecia como um Blanqui realista, em que ela procurava arranjar aliados contra ele nos clubes, entre os proletários revolucionários, no partido de Blanqui, neste momento, o inexorável Barrot torturava-a com a sua proposta de que os presos de Maio não fossem presentes ao tribunal de jurados mas sim entregues ao Supremo Tribunal, à haut cour, inventado pelo partido do National. É curioso como o medo exacerbado de perder uma pasta ministerial pôde fazer sair da cabeça de um Barrot graças dignas de um Beaumarchais! Depois de longa hesitação, a Assembleia Nacional aceitou a sua proposta. Frente aos autores do atentado de Maio regressava ao seu carácter normal.

Se, frente ao presidente e aos ministros, a Constituinte era compelida à insurreição, o presidente e o ministério, frente à Constituinte, eram empurrados para o golpe de Estado, pois não possuíam nenhum meio legal para a dissolver. Mas a Constituinte era a mãe da Constituição e a Constituição a mãe do presidente. Com o golpe de Estado o presidente rasgava a Constituição e suprimia o seu título jurídico republicano. Era, pois, obrigado a lançar a mão do título jurídico imperial; mas o título jurídico imperial fazia recordar o título orleanista, e ambos empalideciam perante o título jurídico legitimista. A queda da república legal só poderia fazer ascender o seu pólo diametralmente oposto, a monarquia legitimista, num momento em que o partido orleanista era apenas o vencido de Fevereiro e Bonaparte era apenas o vencedor do 10 de Dezembro, e em que ambos, à usurpação republicana, apenas podiam opor os seus títulos monárquicos igualmente usurpados. Os legitimistas, conscientes de que o momento lhes era favorável, conspiravam às claras. Podiam esperar encontrar o seu Monk no general Changarnier. O advento da monarquia branca era anunciado tão abertamente nos seus clubes como o da república vermelha nos clubes proletários.

Com um motim reprimido com felicidade o ministério ter-se-ia visto livre de todas as suas dificuldades. "A legalidade mata-nos", exclamava Odilon Barrot. Sob o pretexto da salut public[69], um motim teria permitido dissolver a Constituinte, violar a Constituição no interesse da própria Constituição. O procedimento brutal de Odilon Barrot na Assembleia Nacional, a proposta de dissolução dos clubes, a demissão ruidosa de 50 prefeitos tricolores e a sua substituição por realistas, a dissolução da Guarda Móvel, os maus tratos infligidos aos seus chefes por Changarnier, a reintegração de Lerminier, um professor impossível já no tempo de Guizot, a tolerância perante as fanfarronadas legitimistas, eram outras tantas provocações ao motim. Mas o motim manteve-se mudo. Era da Constituinte que esperava o sinal e não do ministério.

Finalmente, veio o 29 de Janeiro, o dia em que se decidiria da proposta apresentada por Mathieu (de la Drôme) de rejeição incondicional da proposta de Rateau. Legitimistas, orleanistas, bonapartistas, Guarda Móvel, Montagne, clubes, todos conspiravam nesse dia, cada um deles tanto contra o pretenso inimigo como contra o pretenso aliado. Bonaparte, do alto do seu cavalo, passou revista a uma parte das tropas na praça da Concórdia, Changarnier fazia teatro com um dispêndio de manobras estratégicas; a Constituinte encontrou o seu edifício das sessões ocupado militarmente. Ela, o centro onde se entrecruzavam todas as esperanças, receios, expectativas, fermentações, tensões, conspirações, ela, a Assembleia de ânimo de leão, não vacilou nem um momento ao aproximar-se mais do que nunca do espírito do mundo (Weltgeist). Assemelhava-se àquele combatente que não só receava utilizar as suas próprias armas como também se sentia obrigado a manter intactas as armas do adversário. Com desprezo pela sua morte assinou a sua própria sentença de morte e rejeitou a rejeição incondicional da proposta Rateau. Mesmo em estado de sítio, estabeleceu limites a uma actividade constituinte cujo quadro necessário fora o estado de sítio de Paris. Vingou-se de um modo digno dela ao impor no dia seguinte, uma enquête sobre o susto que no dia 29 de Janeiro o ministério lhe tinha metido. A Montagne demonstrou a sua falta de energia revolucionária e de senso político ao deixar-se utilizar pelo partido do National como arauto nesta grande comédia de intrigas. O partido do National fizera o último esforço para continuar a manter, na república constituída, o monopólio da dominação que detivera durante o período da formação da república burguesa. E fracassara.

Se na crise de Janeiro se tratara da existência da Constituinte, na crise de 21 de Março tratava-se da existência da Constituição: ali, do pessoal do partido nacional; aqui, do seu ideal. Escusado é dizer que os republicanos honestos abandonavam mais facilmente o sentimento elevado da sua ideologia do que o gozo mundano do poder governamental.

Em 21 de Março, na ordem do dia da Assembleia Nacional encontrava-se o projecto de lei de Faucher contra o direito de associação: a proibição dos clubes. O artigo 8 da Constituição garantia a todos os franceses o direito de se associarem. A interdição dos clubes era, portanto, uma inequívoca violação da Constituição, e a própria Constituinte devia canonizar a profanação dos seus santos. Mas os clubes eram os pontos de reunião, os centros de conspiração do proletariado revolucionário. A própria Assembleia Nacional tinha proibido a coligação dos operários contra os seus burgueses. E que eram os clubes senão uma coligação de toda a classe operária contra toda a classe burguesa, a formação de um Estado operário contra o Estado burguês? Não eram eles também outras tantas assembleias constituintes do proletariado e outros tantos destacamentos do exército da revolta prontos para o combate? O que acima de tudo a Constituição devia constituir era a dominação da burguesia. Era, portanto, evidente que a Constituição só podia entender por direito de associação as associações que se harmonizavam com a dominação da burguesia, isto é, com a ordem burguesa. Se, por uma questão de decoro teórico, ela se exprimia em termos gerais, não estavam lá o governo e a Assembleia Nacional para a interpretar e a aplicar nos casos especiais? E, se na época primordial da república, os clubes tinham sido efectivamente proibidos pelo estado de sítio, por que não deviam ser proibidos pela lei na república regulamentada, constituída? A esta interpretação prosaica da Constituição os republicanos tricolores nada tinham a opor senão a frase altissonante da Constituição. Uma parte deles, Pagnerre, Duclerc, etc, votou a favor do ministério dando-lhe assim a maioria. A outra parte, com o arcanjo Cavaignac e o padre da Igreja Marrast à frente, retirou-se, depois do artigo sobre a interdição dos clubes ter passado, juntamente com Ledru-Rollin e a Montagne para um gabinete especial e "reuniram-se em conselho". A Assembleia Nacional estava paralisada, já não dispunha do número de votos suficiente para tomar decisões. No gabinete o senhor Crémieux lembrou oportunamente que dali o caminho conduzia directamente para a rua e que já não se estava em Fevereiro de 1848 mas em Março de 1849. Subitamente iluminado, o partido do National regressou à sala das sessões da Assembleia Nacional. Atrás dele, enganada de novo, veio a Montagne que, constantemente atormentada por apetites revolucionários, mas também constantemente ávida de possibilidades constitucionais, se sentia cada vez mais no seu lugar atrás dos republicanos burgueses e não à frente do proletariado revolucionário. Assim terminou a comédia. E a própria Constituinte tinha decretado que a violação da letra da Constituição era a única realização consequente do seu espírito.

Restava apenas regulamentar um ponto: a relação da república constituída com a revolução europeia, a sua política externa. Em 8 de Maio de 1849 reinava uma desusada agitação na Assembleia Constituinte cujo prazo de vida terminaria dentro de breves dias. O ataque do exército francês a Roma, a retirada a que os romanos o haviam obrigado, a sua infâmia política e a sua vergonha militar, o vil assassínio da república romana pela república francesa, a primeira campanha de Itália do segundo Bonaparte, tudo isto estava na ordem do dia. A Montagne jogara de novo o seu grande trunfo, Ledru-Rollin pusera sobre a mesa do presidente a sua inevitável acusação contra o ministério, e desta vez também contra Bonaparte, por violação da Constituição.

O motivo do 8 de Maio repetiu-se mais tarde como motivo do 13 de Junho. Expliquemo-nos sobre a expedição romana.

Já em meados de Novembro de 1848 Cavaignac tinha enviado uma frota de guerra a Civitavecchia para proteger o papa, recolhê-lo a bordo e trazê-lo para França. O papa[70] devia abençoar a república honesta e assegurar a eleição de Cavaignac para presidente. Com o papa Cavaignac queria pescar os padres, com os padres os camponeses e com os camponeses a presidência. Sendo uma propaganda eleitoral na sua finalidade imediata, a expedição de Cavaignac era ao mesmo tempo um protesto e uma ameaça contra a revolução romana. Continha em germe a intervenção da França em favor do papa.

Esta intervenção em favor do papa com a Áustria e Nápoles contra a república romana, fora decidida na primeira sessão do conselho de ministros de Bonaparte, em 23 de Dezembro. Falloux no ministério, era o papa em Roma e na Roma... do papa. Bonaparte já não precisava do papa para se tornar o presidente dos camponeses, mas precisava da conservação do papa para conservar os camponeses do presidente. Fora a credulidade daqueles que o tinha feito presidente. Com a fé perdiam a credulidade e com o papa a fé. E os orleanistas e os legitimistas coligados que dominavam em nome de Bonaparte! Antes de restaurar o rei, tinha-se de restaurar o poder que sagra os reis. Abstraindo do seu monarquismo: sem a velha Roma submetida à sua dominação temporal não havia papa, sem papa catolicismo, sem catolicismo religião francesa e sem religião que aconteceria à velha sociedade francesa? A hipoteca que o camponês possui sobre os bens celestiais garante a hipoteca que o burguês possui sobre os bens do camponês. A revolução romana era, pois, um atentado à propriedade, à ordem burguesa, terrível como a revolução de Junho. A dominação burguesa restabelecida em França exigia a restauração da dominação papal em Roma. Finalmente, nos revolucionários romanos derrotava-se os aliados dos revolucionários franceses; a aliança das classes contra-revolucionárias na República Francesa constituída completava-se necessariamente na aliança da República Francesa com a Santa Aliança, com Nápoles e com a Áustria. A decisão do Conselho de Ministros de 23 de Dezembro não era segredo para a Constituinte. Já a 8 de Janeiro, Ledru-Rollin havia interpelado o ministério a esse respeito, o ministério negara e a Assembleia Nacional passara à ordem do dia. Acreditava ela nas palavras do ministério? Sabemos que passara todo o mês de Janeiro a dar-lhe votos de desconfiança. Mas se o ministério estava no seu papel ao mentir, também estava no papel da Constituinte fingir que acreditava nas mentiras daquele e assim salvar os dehors[71] republicanos.

Entretanto, o Piemonte fora derrotado. Carlos Alberto abdicara e o exército austríaco batia às portas da França. Ledru-Rollin fez uma interpelação vigorosa. O ministério demonstrou que na Itália do Norte não tinha feito outra coisa senão prosseguir a política de Cavaignac, e Cavaignac a política do Governo provisório, isto é, de Ledru-Rollin. Desta vez até recolheu um voto de confiança da Assembleia Nacional e foi autorizado a ocupar temporariamente um ponto conveniente na Alta Itália para apoiar as negociações pacíficas com a Áustria sobre a questão da integridade do território da Sardenha e sobre a questão romana. Como se sabe, o destino da Itália decide-se nos campos de batalha da Itália do Norte. Por isso, com a Lombardia e o Piemonte Roma caíra, ou seja, a França tinha de declarar guerra à Áustria e desse modo à contra-revolução europeia. A Assembleia Nacional tomava subitamente o ministério Barrot pelo velho Comité de Salvação Pública[72]? Ou a si mesma pela Convenção? Para quê, pois, a ocupação militar de um ponto da Alta Itália? Atrás deste véu transparente escondia-se a expedição contra Roma.

Em 14 de Abril, sob o comando de Oudinot embarcaram 14 000 homens para Civitavecchia. Em 16 de Abril, a Assembleia Nacional concedeu ao ministério um crédito de 1 200 000 francos a fim de financiar durante três meses a manutenção de uma frota de intervenção no Mediterrâneo. Deste modo, facultou ao ministério todos os meios para intervir contra Roma enquanto fingia que lhe permitia intervir contra a Áustria. Não via o que o ministério fazia, limitava-se a escutar o que ele dizia. Nem em Israel se encontraria uma tal fé. A Constituinte tinha caído na situação de não poder saber o que a república constituída tinha de fazer.

Finalmente, a 8 de Maio representou-se a última cena da comédia: a Constituinte exigiu ao ministério medidas rápidas que reconduzissem a expedição italiana ao objectivo que lhe fora posto. Nessa mesma tarde, Bonaparte fez publicar uma carta no Moniteur em que expressava a Oudinot o seu maior reconhecimento. A 11 de Maio, a Assembleia Nacional rejeitou a acusação contra o mesmo Bonaparte e o seu ministério. E a Montagne que, em vez de rasgar esta teia de mentiras, toma tragicamente a comédia parlamentar a fim de nela representar o papel de Fouquier-Tinville, deixou assim ver, por debaixo da pele de leão tomada de empréstimo à Convenção, a sua pele de cordeiro pequeno-burguesa com que nascera!

A última metade da vida da Constituição resume-se assim: em 29 de Janeiro confessa que as fracções burguesas realistas são os superiores naturais da república constituída por ela; em 21 de Março, que a violação da Constituição é a realização desta; e em 11 de Maio, que a aliança passiva da República Francesa com os povos em luta, bombasticamente anunciada, significa a sua aliança activa com a contra-revolução europeia.

Esta mísera Assembleia retirou-se do palco depois de, dois dias antes da festa do seu aniversário, a 4 de Maio, ter dado a si mesma a satisfação de rejeitar a proposta de amnistia para os insurrectos de Junho. Desfeito o seu poder; odiada mortalmente pelo povo; repudiada, mal-tratada, desprezivelmente posta de parte pela burguesia de que era instrumento; obrigada, na segunda metade da sua vida, a negar a primeira; despojada das suas ilusões republicanas; sem grandes criações no passado; sem esperança no futuro; o seu corpo vivo morrendo aos poucos — só era capaz de galvanizar o seu próprio cadáver evocando sem cessar e revivendo a vitória de Julho, afirmando-se através da sempre repetida maldição dos malditos. Vampiro que vivia do sangue dos insurrectos de Junho!

Deixou atrás de si o défice do Estado aumentado pelos custos da insurreição de Junho, pela perda do imposto sobre o sal, pelas indemnizações que ela concedeu aos donos das plantações pela abolição da escravatura negra, pelas despesas com a expedição romana, pela perda do imposto sobre o vinho, cuja abolição ela decidiu quando já estava a dar o último suspiro, como um velho manhoso, feliz por atirar para as costas do seu sorridente herdeiro uma comprometedora dívida de honra.

Desde o princípio de Março começara a agitação eleitoral para a Assembleia Nacional Legislativa. Dois grupos principais se enfrentavam: o partido da ordem[73] e o partido democrata-socialista ou partido vermelho. Entre ambos situavam-se os amigos da Constituição, nome sob o qual os republicanos tricolores do National procuravam apresentar um partido. O partido da ordem constituiu-se imediatamente a seguir às jornadas de Junho. Porém, só depois do 10 de Dezembro lhe ter permitido livrar-se da camarilha do National, dos republicanos burgueses, se revelou o segredo da sua existência: a coligação dos orleanistas e legitimistas num partido. A classe burguesa cindia-se em duas grandes fracções que alternadamente — a grande propriedade fundiária sob a monarquia restaurada[74], a aristocracia financeira e a burguesia industrial sob a monarquia de Julho — tinham mantido o monopólio da dominação. Bourbon era o nome régio da influência preponderante dos interesses de uma das fracções; Orléans, o nome régio da influência preponderante dos interesses da outra fracção. O império anónimo da república era o único em que ambas as fracções podiam afirmar com igual poder o interesse de classe comum sem abandonar a sua rivalidade recíproca. Se a república burguesa não podia ser senão a dominação completa e nitidamente revelada de toda a classe burguesa, podia ela ser outra coisa senão a dominação dos orleanistas completados pelos legitimistas e a dos legitimistas completados pelos orleanistas, a síntese da restauração e da monarquia de Julho?. Os republicanos burgueses do National não representavam nenhuma grande fracção da sua classe assente em bases económicas. Possuíam apenas o significado e o título histórico de terem feito valer, sob a monarquia — frente a ambas as fracções burguesas que só compreendiam o seu regime particular —, o regime geral da classe burguesa, o império anónimo da república, que idealizavam e adornavam com arabescos antigos, mas onde saudavam, acima de tudo, a dominação da sua camarilha. Se o partido do National duvidou do seu próprio juízo quando viu os realistas coligados no topo da república fundada por ele, também aqueles não se iludiam menos sobre o facto da sua dominação unificada. Não compreendiam que, se cada uma das suas fracções, considerada isoladamente, era realista o produto da sua combinação química tinha de ser necessariamente republicano e que a monarquia branca e a azul tinham forçosamente de se neutralizar na república tricolor. Obrigadas, pela sua oposição ao proletariado revolucionário e às classes de transição, que convergiam cada vez mais para aquele como centro, a recorrer a todas as suas forças unidas e a conservar a organização dessa força unida, cada uma das fracções do partido da ordem teve de fazer valer, perante os apetites de restauração e a arrogância da outra, a dominação comum, isto é, a forma republicana da dominação burguesa. Assim, vemos estes realistas acreditar a princípio numa restauração imediata; mais tarde conservar, espumando de raiva, a forma republicana com invectivas de morte contra ela e, finalmente, confessar que só na república se podem suportar e que adiam a restauração por tempo indefinido. O gozo da própria dominação unificada reforçou cada uma das duas fracções e tornou-as ainda mais incapazes e renitentes a subordinarem-se uma à outra, isto é, a restaurar a monarquia.

No seu programa eleitoral, o partido da ordem proclamava abertamente a dominação da classe burguesa, isto é a manutenção das condições de vida da sua dominação, da propriedade, da família, da religião, da ordeml Apresentava a sua dominação de classe e as condições da sua dominação de classe naturalmente como a dominação da civilização e como as condições necessárias da produção material e das relações sociais de intercâmbio daí decorrentes. Dispondo de imensos meios financeiros, o partido da ordem organizou as suas sucursais na França inteira, tinha ao seu serviço todos os ideólogos da velha sociedade, dispunha da influência do poder do governo vigente, possuía um exército gratuito de vassalos em toda a massa dos pequenos burgueses e dos camponeses que, estando ainda distantes do movimento revolucionário, viam nos grandes dignitários da propriedade os defensores naturais da sua pequena propriedade e dos seus pequenos preconceitos; representado em todo o país por um sem-número de reizinhos, podia castigar como insurreição a rejeição dos seus candidatos, despedir os operários rebeldes, os moços de lavoura, os criados, os caixeiros, os funcionários dos caminhos-de-ferro, os escriturários que se lhe opunham, numa palavra, todos os funcionários a ele civilmente (bürgerlich) subordinados. Finalmente, podia alimentar aqui e ali, a ilusão de que fora a Constituinte republicana que impedira o Bonaparte do 10 de Dezembro de revelar as suas forças miraculosas. Mas ao referir o partido da ordem não considerámos os bonapartistas. Estes não constituíam uma fracção séria da classe burguesa, mas uma colecção de velhos e supersticiosos inválidos e de jovens e cépticos aventureiros. O partido da ordem venceu nas eleições, enviando assim para a Assembleia Legislativa uma grande maioria.

Face à classe burguesa contra-revolucionária coligada, as partes da pequena burguesia e da classe camponesa já revolucionadas tinham naturalmente de se unir aos grandes dignitários dos interesses revolucionários, ao proletário revolucionário. Vimos como as derrotas parlamentares empurraram os porta-vozes democráticos da pequena burguesia no parlamento, isto é, a Montagne, para os porta-vozes socialistas do proletariado e como a verdadeira pequena burguesia fora do Parlamento foi igualmente empurrada para os verdadeiros proletários pelos concordais à l'amiable, pela imposição brutal dos interesses burgueses e pela bancarrota. Em 27 de Janeiro a Montagne e os socialistas haviam festejado a sua reconciliação. No grande banquete de Fevereiro de 1849 repetiram esse acto de união. O partido social e o democrático, o partido dos operários e o dos pequenos burgueses, uniram-se no partido social-democrático, isto é, no partido vermelho.

Momentaneamente paralisada pela agonia que se seguiu às jornadas de Junho, a República Francesa vivera desde o levantamento do estado de sítio, isto é, desde o 19 de Outubro, uma série contínua de excitações febris. Primeiro a luta pela presidência; depois a luta do presidente com a Constituinte; a luta pelos clubes; o processo de Bourges[75], o qual, por contraste com as pequenas figuras do presidente, dos realistas coligados, dos republicanos honestos, da Montagne democrática e dos doutrinários socialistas do proletariado, fez aparecer os verdadeiros revolucionários deste como monstros do princípio do mundo só explicáveis por algum dilúvio que os tivesse deixado na superfície da sociedade ou por precederem algum dilúvio social; a agitação eleitoral; a execução dos assassinos de Bréa[76]; os contínuos processos à imprensa; a violenta ingerência policial do governo nos banquetes; as descaradas provocações realistas; a exibição dos retratos de Louis Blanc e Caussidière no pelourinho; a luta sem quartel entre a república constituída e a Constituinte que a cada momento fazia recuar a revolução para o seu ponto de partida, que a cada momento tornava o vencedor em vencido, o vencido em vencedor e num abrir e fechar de olhos trocava as posições dos partidos e das classes, os seus divórcios e as suas ligações; a rápida marcha da contra-revolução europeia; a gloriosa luta dos húngaros; os levantamentos armados alemães; a expedição romana; a ignominiosa derrota do exército francês às portas de Roma — neste torvelinho, neste tormento de histórico desassossego, neste dramático fluxo e refluxo de paixões revolucionárias, esperanças, desilusões, as diferentes classes da sociedade francesa tinham de contar por semanas as suas épocas de desenvolvimento, tal como anteriormente as tinham contado por meios séculos. Uma parte considerável dos camponeses e das províncias estava revolucionada. Não estavam só desiludidos com Napoleão; o partido vermelho oferecia-lhes em vez de um nome, o conteúdo, em vez de uma ilusória isenção de impostos, o reembolso dos milhares de milhões pagos aos legitimistas, a regulamentação das hipotecas e a abolição da usura.

O próprio exército estava contagiado pela febre da revolução. Votara em Bonaparte pela vitória e ele dava-lhe a derrota. Nele votara pelo pequeno cabo, por trás de quem se encontra o grande general revolucionário, e ele devolvia-lhe os grandes generais, por trás de quem se oculta o cabo de parada. Não havia dúvida que o partido vermelho, isto é, o partido democrático coligado, tinha de festejar, se não a vitória, pelo menos grandes triunfos: que Paris, que o exército, que uma grande parte das províncias votaria por ele. Ledru-Rollin, o chefe da Montagne foi eleito por cinco departamentos. Nenhum chefe do partido da ordem conseguiu uma tal vitória, nenhum nome do partido proletário propriamente dito. Estas eleições revelam-nos o segredo do partido democrático-socialista. Se a Montagne, o paladino parlamentar da pequena burguesia democrática, por um lado, se vira forçada a unir-se aos doutrinários socialistas do proletariado, o proletariado, por seu turno, obrigado pela terrível derrota material de Junho a erguer-se de novo por meio de vitórias intelectuais, ainda incapaz, dado o desenvolvimento das restantes classes, de lançar mão da ditadura revolucionária, teve de se lançar nos braços dos doutrinários da sua emancipação, dos fundadores de seitas socialistas —, por outro lado, os camponeses revolucionários, o exército e as províncias colocaram-se por trás da Montagne que, deste modo, se transformou em chefe do campo revolucionário e que, pelo seu entendimento com os socialistas, tinha eliminado todos os antagonismos no partido revolucionário. Na última metade da vida da Constituinte, ela representou o pathos republicano desta e fez esquecer os seus pecados cometidos durante o Governo provisório, durante a Comissão Executiva, durante as jornadas de Junho. Na mesma medida em que o partido do National, de acordo com a sua natureza vacilante, se deixava esmagar pelo ministério monárquico, o partido da Montanha, afastado durante o todo-poder do National, crescia e impunha-se como o representante parlamentar da revolução. De facto, o partido do National apenas dispunha de umas personalidades ambiciosas e de umas mentirolas idealistas para opor às outras fracções, às realistas. O partido da Montanha, pelo contrário, representava uma massa flutuante entre a burguesia e o proletariado, cujos interesses materiais exigiam instituições democráticas. Comparados com os Cavaignac e os Marrast, Ledru-Rollin e a Montagne encontravam-se, por isso, na verdade da revolução e da consciência desta importante situação retiravam uma coragem tanto maior quanto mais a expressão da energia revolucionária se limitava a invectivas parlamentares, à apresentação de acusações, a ameaças, ao levantar da voz, a trovejantes discursos e extremismos verbais que não iam além de frases. Os camponeses encontravam-se numa situação semelhante à dos pequenos burgueses e tinham praticamente as mesmas reivindicações sociais a apresentar. Todas as camadas médias da sociedade, na medida em que eram arrastadas para o movimento revolucionário, tinham necessariamente de encontrar em Ledru-Rollin o seu herói. Ledru-Rollin era a personagem da pequena burguesia democrática. Frente ao partido da ordem, os reformadores desta ordem, meio conservadores, meio revolucionários e utopistas por inteiro, tiveram a princípio de ser empurrados para a vanguarda.

O partido do National, os "amigos da Constituição quand même[77]", os républicains purs et simples[78] foram totalmente derrotados nas eleições. Apenas uma insignificante minoria deles foi enviada à Câmara Legislativa, os seus chefes mais notórios, incluindo Marrast, o redactor en chef e o Orfeu da república honesta, desapareceram da cena.

Em 28 de Maio, reuniu-se a Assembleia Legislativa; em 11 renovou-se a colisão de 8 de Maio; em nome da Montagne, Ledru-Rollin apresentou uma acusação contra o presidente e o ministério por violação da Constituição devido ao bombardeamento de Roma. Em 12 de Junho, a Assembleia Legislativa rejeitou a acusação tal como a Assembleia Constituinte o havia feito em 11 de Maio. Desta vez, porém, o proletariado arrastou a Montagne para a rua, não ainda para a luta de rua, mas apenas para uma procissão de rua. Basta dizer que a Montagne se encontrava à cabeça deste movimento para se saber que o movimento foi derrotado e que o Junho de 1849 foi uma caricatura, tão ridícula quanto indigna, do Junho de 1848. A grande retirada de 13 de Junho só foi ofuscada pelo ainda maior relatório da batalha de Changarnier, o grande homem que o partido da ordem tinha arranjado à pressa. Cada época social precisa dos seus grandes homens e, quando não os encontra, inventa-os, como diz Helvétius.

Em 20 de Dezembro, existia apenas uma das metades da república burguesa constituída: o presidente; em 28 de Maio, foi completada pela outra metade, pela Assembleia Legislativa. O Junho de 1848 inscrevera a república burguesa em constituição no registo de nascimento da História com uma indescritível batalha contra o proletariado; o Junho de 1849 fez outro tanto com a república burguesa constituída por meio de uma comédia inqualificável com a pequena burguesia. Junho de 1849 foi a Némesis de Junho de 1848. Em Junho de 1849 não foram derrotados os operários, mas derrubados os pequenos burgueses que se encontravam entre eles e a revolução. Junho de 1849 não foi a tragédia sangrenta entre o trabalho assalariado e o capital, mas uma peça cheia de prisões e lamentável entre o devedor e o credor. O partido da ordem tinha vencido, era todo-poderoso, tinha agora de mostrar o que era.


 
III — Consequências do 13 de Junho de 1849
Em 20 de Dezembro, a cabeça de Jano da república constitucional tinha mostrado apenas um rosto, o rosto executivo com os traços esbatidos e vulgares de L. Bonaparte. Em 28 de Maio de 1849, mostrou o seu segundo rosto, o legislativo, coberto das cicatrizes que as orgias da Restauração e da monarquia de Julho nele haviam deixado. Com a Assembleia Nacional Legislativa estava completo o fenómeno da república constitucional, isto é, a forma republicana de Estado em que está constituída a dominação da classe burguesa, portanto a dominação comum das duas grandes fracções realistas que formam a burguesia francesa, os legitimistas e orleanístas coligados, o partido da ordem. Enquanto a república francesa se tornava assim propriedade da coligação dos partidos realistas, a coligação europeia das potências contra-revolucionárias empreendia ao mesmo tempo uma cruzada geral contra os últimos redutos das revoluções de Março. A Rússia invadiu a Hungria; a Prússia marchou contra o exército que lutava pela Constituição imperial e Oudinot bombardeou Roma. A crise europeia aproximava-se abertamente de um ponto de viragem decisivo; os olhos da Europa inteira dirigiam-se para Paris e os olhos de Paris inteira para a Assembleia Legislativa.

Em 11 de Junho, Ledru-Rollin subiu à tribuna. Não discursou; formulou apenas um requisitório contra os ministros, seco, sóbrio, factual, conciso, violento.

O ataque contra Roma é um ataque contra a Constituição. O ataque contra a República Romana é um ataque contra a República Francesa. O artigo V da Constituição diz: "A República Francesa nunca utilizará as suas forças armadas contra a liberdade de qualquer povo" — e o presidente utiliza o exército francês contra a liberdade de Roma. O artigo 54 da Constituição proíbe ao poder executivo declarar qualquer guerra sem a aprovação da Assembleia Nacional[79]. A decisão de 8 de Maio da Constituinte ordena expressamente aos ministros que adequem a expedição romana o mais rapidamente possível à sua determinação original. Proíbe-lhes, pois, do mesmo modo expressamente a guerra contra Roma — e Oudinot bombardeia Roma. Deste modo, Ledru-Rollin apresentou a própria Constituição como testemunha de acusação contra Bonaparte e os seus ministros. À maioria realista da Assembleia Nacional lançou ele, o tribuno da Constituição, a ameaçadora declaração: "Os republicanos saberão fazer respeitar a Constituição por todos os meios, até mesmo pela força das armas!" "Pela força das armas!", repetiu o eco cêntuplo da Montagne. A maioria respondeu com um tumulto terrível; o presidente da Assembleia Nacional chamou Ledru-Rollin à ordem; Ledru-Rollin repetiu a sua desafiadora declaração e, por fim, colocou na mesa do presidente a proposta de acusação a Bonaparte e aos seus ministros. A Assembleia Nacional decidiu por 361 votos contra 203 passar do bombardeamento de Roma à simples ordem do dia.

Acreditaria Ledru-Rollin poder derrotar a Assembleia Nacional por meio da Constituição e o presidente por meio da Assembleia Nacional?

Na verdade, a Constituição proibia qualquer ataque à liberdade dos outros povos, mas o que o exército francês atacava em Roma não era, segundo o ministério, a "liberdade" mas sim o "despotismo da anarquia". Não tinha ainda a Montagne compreendido, apesar de todas as experiências na Assembleia Constituinte, que a interpretação da Constituição não pertencia àqueles que a tinham escrito mas apenas aos que a tinham aceite? Que a sua letra devia ser interpretada dentro da sua viabilidade e que o significado que a burguesia lhe atribuía era o único sentido viável? Que Bonaparte e a maioria realista da Assembleia Nacional eram os intérpretes autênticos da Constituição, tal como o padre é o intérprete autêntico da Bíblia e o juiz o intérprete autêntico da lei? Devia a Assembleia Nacional, acabada de sair das eleições gerais, sentir-se vinculada por disposição testamentária da defunta Constituinte, cuja vontade, enquanto vivera, fora quebrada por um Odilon Barrot? Ao remeter-se à decisão da Constituinte de 8 de Maio, esquecera-se Ledru-Rollin que essa mesma Constituinte rejeitara em 11 de Maio a sua primeira proposta de acusação contra Bonaparte e os seus ministros, que absolvera o presidente e os ministros, que sancionara assim como "constitucional" o ataque a Roma, que apenas apelava de uma sentença já proferida, que. finalmente, apelava da Constituinte republicana para a Legislativa realista? A própria Constituição chama em seu auxílio a insurreição ao exortar num artigo especial todos os cidadãos a defendê-la. Ledru-Rollin apoiava-se nesse artigo. Mas, ao mesmo tempo, os poderes públicos não estão organizados para a defesa da Constituição? E a violação da Constituição não começa apenas no momento em que um dos poderes públicos constitucionais se rebela contra o outro? Ora o presidente da República, os ministros da República e a Assembleia Nacional da República encontravam-se no mais harmonioso dos entendimentos.

O que em 11 de Junho a Montagne tentou foi "uma insurreição no interior das fronteiras da razão pura", isto é, uma insurreição puramente parlamentar. Intimidada pela perspectiva de um levantamento armado das massas populares, a maioria da Assembleia devia quebrar em Bonaparte e nos ministros o seu próprio poder e o significado da sua própria eleição. Não tinha já a Constituição tentado, de modo semelhante, declarar nula a eleição de Bonaparte ao insistir tão obstinadamente na demissão do ministério Barrot—Falloux?

Nem lhe faltavam modelos de insurreições parlamentares do tempo da Convenção, que tinham modificado de repente e radicalmente as relações entre a maioria e a minoria — e não conseguiria a jovem Montagne aquilo que a nova conseguira? —, nem as condições do momento pareciam desfavoráveis a tal empreendimento. Em Paris a agitação popular tinha alcançado um ponto alto considerável; a julgar pelas suas votações, o exército não parecia estar muito inclinado para o governo, a própria maioria legislativa era ainda muito recente para se ter consolidado e, além disso, era composta por velhos senhores. Se a Montagne tivesse êxito na insurreição parlamentar, o leme do Estado passar-lhe-ia imediatamente para as mãos. Por seu lado, a pequena burguesia democrática, o que, como sempre, mais ardentemente desejava era ver a luta travar-se por cima da sua cabeça, nas nuvens, entre os espíritos do além-túmulo do Parlamento. Finalmente, por meio de uma insurreição parlamentar, a pequena burguesia democrática e os seus representantes, a Montagne, alcançariam o seu grande objectivo: quebrar o poder da burguesia sem tirar as cadeias ao proletariado ou sem deixar que este aparecesse mais do que em perspectiva; o proletariado teria sido assim utilizado sem se tornar perigoso.

Depois do voto da Assembleia Nacional de 11 de Junho realizou-se uma reunião entre alguns membros da Montagne e delegados das sociedades secretas de operários. Estes últimos insistiram em atacar nessa mesma noite. A Montagne recusou decididamente este plano. De modo nenhum queria que a chefia lhe escapasse das mãos; de facto, desconfiava tanto dos aliados como dos seus adversários, e com razão. A recordação do Junho de 1848 agitava mais vivas do que nunca as fileiras do proletariado parisiense. No entanto, ele estava amarrado à aliança com a Montagne. Esta representava a maioria dos departamentos, exagerava a sua influência no exército, dispunha do sector democrático da Guarda Nacional e tinha atrás de si a força moral da boutique. Iniciar nesse momento contra a vontade dela o movimento insurreccional significava para o proletariado — além disso dizimado pela cólera e expulso em quantidade significativa de Paris pelo desemprego - repetir inutilmente as jornadas de Junho de 1848, sem a situação que o arrastara à luta desesperada. Os delegados proletários fizeram a única coisa racional. Obrigaram a Montagne a comprometer-se, isto é, a sair dos limites da luta parlamentar no caso da sua acusação ser rejeitada. Durante todo o dia 13 de Junho o proletariado manteve esta mesma céptica atitude de observação e aguardou uma refrega a sério e definitiva entre a Guarda Nacional democrática e o exército para então se lançar na luta e levar a revolução para lá do objectivo pequeno-burguês que lhe tinha sido imposto. No caso de vitória, estava já formada a Comuna proletária que iria aparecer ao lado do governo oficial. Os operários de Paris tinha aprendido na sangrenta escola de Junho de 1848.

Em 12 de Junho, o próprio ministro Lacrosse apresentou na Assembleia Legislativa a proposta de se passar imediatamente à discussão da acusação. Durante a noite, o governo tinha tomado todas as precauções quer de defesa quer de ataque. A maioria da Assembleia Nacional estava decidida a expulsar a minoria rebelde, a qual, por seu turno, já não podia recuar. Os dados estavam lançados. Por 377 votos contra 8, a acusação foi rejeitada. A Montanha, que se tinha abstido, precipitou-se cheia de rancor para os centros de propaganda da "democracia pacífica", para a redacção do jornal Démocratie pacifique[80].

O afastamento do edifício do parlamento quebrou-lhe a força, tal como o afastamento da Terra quebrou a força de Anteu, o seu filho gigante. Os Sansões nas salas da Assembleia Legislativa não passavam de filisteus nas salas da "democracia pacífica". Travou-se então um longo, ruidoso e inconsistente debate. A Montagne estava decidida a impor por todos os meios "excepto pela força das armas" o respeito pela Constituição. Foi apoiada nessa resolução por um manifesto[81] e por uma deputação dos "Amigos da Constituição". "Amigos da Constituição" se denominavam as ruínas da camarilha do National, o partido burguês-republicano. Enquanto do resto dos seus representantes parlamentares seis tinham votado contra e os outros todos a favor da rejeição da acusação; enquanto Cavaignac punha o seu sabre à disposição do partido da ordem, a maior parte extraparlamentar da camarilha agarrou avidamente a oportunidade para sair da sua situação de pária político e enfiou-se nas fileiras do partido democrático. Não apareciam eles como os escudeiros naturais deste partido que se escondia por detrás do seu escudo, por detrás do seu princípio, por detrás da Constituição!

A "Montanha" esteve em trabalho de parto até ao romper do dia. Pariu "uma proclamação ao povo" que na manhã de 13 de Junho ocupou em dois jornais socialistas[82] um espaço mais ou menos envergonhado. Declarava o presidente, os ministros e a maioria da Assembleia Legislativa fora da Constituição" (hors la constitution) e exortava a Guarda Nacional, o exército e por fim também o povo a "levantar-se". "Viva a Constituição!" foi a palavra de ordem que ela lançou, palavra de ordem que não significava senão: "Abaixo a Revolução!"

À proclamação constitucional da Montanha correspondeu no dia 13 de Junho uma chamada manifestação pacífica dos pequenos burgueses, isto é, uma procissão de rua que partiu do Château d'Eau e percorreu os boulevards: 30 000 homens, a maior parte guardas nacionais, desarmados, à mistura com membros das secções secretas operárias, deslocando-se ao grito de: "Viva a Constituição!", grito mecânico, gelado, lançado com má consciência pelos próprios membros do cortejo, devolvido ironicamente pelo eco do povo que ondeava nos passeios, em vez de o engrossar num trovão. Àquele coro de tantas vozes faltava-lhe a voz que vem do peito. E quando o cortejo passou em frente da sede dos "Amigos da Constituição" e um vacilante arauto da Constituição contratado, agitando furiosamente o seu claque[83], lá no alto da frontaria do prédio, soltou duns formidáveis pulmões, por cima da cabeça dos peregrinos, como uma saraivada, a palavra de ordem "Viva a Constituição!", aqueles próprios pareceram durante um momento dominados pelo ridículo da situação. É conhecido como o cortejo, chegado ao ponto onde a Rue de la Paix desemboca nos boulevards, foi recebido pelos Dragões e pelos Caçadores de Changarnier de um modo nada parlamentar, e se dispersou num abrir e fechar de olhos em todas as direcções, deixando ainda atrás de si um escasso grito de "às armas" para que o apelo às armas parlamentar de 11 de Junho se cumprisse.

A maior parte da Montagne reunida na Rue du Hasard dispersou-se em todos os sentidos quando esta violenta dissolução da procissão pacífica, os boatos surdos de assassínios de cidadãos desarmados nos boulevards e os crescentes tumultos nas ruas pareceram anunciar a aproximação de um motim. Ledru-Rollin à frente de um pequeno grupo de deputados salvou a honra da Montanha. Sob a protecção da artilharia de Paris, que se concentrara no Palais National, dirigiram-se ao Conservatoire des arts et métiers[84] onde haviam de chegar a 5.ª e a 6.ª legiões da Guarda Nacional. Mas os montagnards[85] esperaram a 5.ª e a 6.ª legiões em vão. Esses prudentes Guardas Nacionais abandonaram os seus representantes, a própria artilharia de Paris impediu o povo de erguer barricadas, uma confusão verdadeiramente caótica tornou impossível qualquer decisão, as tropas de linha intervieram de baioneta calada, uma parte dos representantes foi presa, outra fugiu. Assim acabou o 13 de Junho.

Se o 23 de Junho de 1848 foi a insurreição do proletariado revolucionário, o 13 de Junho de 1849 foi a insurreição dos pequenos burgueses democráticos, sendo cada uma destas insurreições a expressão clássica pura da classe que tinha sido o seu suporte.

Apenas em Lyon chegou a haver um conflito sangrento e encarniçado. Nesta cidade em que a burguesia industrial e o proletariado industrial se defrontam directamente, em que, ao contrário de Paris, o movimento operário não é enquadrado nem determinado pelo movimento geral, o 13 de Junho perdeu, nas suas repercussões, o seu carácter original. Nas outras partes da província onde caiu não ateou fogo — era um raio frio (kalter Blitz).

O 13 de Junho encerra o primeiro período da vida da república constitucional, a qual em 28 de Maio de 1849 alcançara a sua existência normal com a reunião da Assembleia Legislativa. Toda a duração deste prólogo é preenchida pela ruidosa luta entre o partido da ordem e a Montagne, entre a burguesia e a pequena burguesia, que se opõe em vão ao estabelecimento da república burguesa em favor da qual ela própria havia incessantemente conspirado no Governo provisório e na Comissão Executiva e pela qual, durante as jornadas de Junho, se havia fanaticamente batido contra o proletariado. O 13 de Junho quebra a sua resistência e torna a ditadura legislativa dos realistas coligados um fait accompli[86]. A partir deste momento a Assembleia Nacional é apenas um Comité de Salvação Pública do Partido da Ordem.

Paris tinha colocado o presidente, os ministros e a maioria da Assembleia Nacional em "estado de acusação"; estes puseram Paris em "estado de sítio". A Montanha tinha declarado "fora da Constituição" a maioria da Assembleia Legislativa; por violação da Constituição a maioria entregou a Montanha à haute-cour e proscreveu tudo quanto nela ainda possuía vitalidade. Foi mutilada até dela não restar senão um tronco sem cabeça nem coração. A minoria tinha ido até à tentativa de uma insurreição parlamentar, a maioria erigiu em lei o seu despotismo parlamentar. Decretou um novo regimento que anula a liberdade da tribuna e autoriza o presidente da Assembleia Nacional a punir os representantes por violação da ordem com a censura, com multas, com a privação de subsídios, com a expulsão temporária, com o cárcere. Sobre o tronco da Montanha suspendeu a vergasta, em vez da espada. O resto dos deputados da Montanha devia à sua honra o retirar-se em massa. Uma tal atitude aceleraria a dissolução do partido da ordem. Este tinha necessariamente de se decompor nas suas partes constitutivas originais a partir do momento em que já nem a aparência de uma oposição o mantinha coeso.

Com a dissolução da artilharia de Paris e, bem assim, da 8.ª, 9.ª e 12.ª legiões da Guarda Nacional, a pequena burguesia democrática viu-se ao mesmo tempo despojada do seu poder parlamentar e armado. Pelo contrário, a legião da alta finança que no dia 13 de Junho tinha assaltado as tipografias de Boulé e Roux, destruído os prelos, saqueado as redacções dos jornais republicanos, prendido arbitrariamente redactores, tipógrafos, impressores, expedidores e moços de recados, recebeu do alto da tribuna da Assembleia Nacional palavras encorajadoras. Em todo o território da França se repetiu a dissolução das Guardas Nacionais suspeitas de republicanismo.

Nova lei de imprensa, nova lei de associação, nova lei de estado de sítio, as prisões de Paris a transbordar, os refugiados políticos expulsos, todos os jornais que ultrapassavam os limites do National suspensos, Lyon e os cinco departamentos circunvizinhos entregues às chicanas brutais do despotismo militar, os tribunais presentes em toda a parte, o exército dos funcionários públicos, tanta vez saneado, mais uma vez saneado: foram estes os lugares-comuns que inevitavelmente se repetem sempre que a reacção alcança uma vitória e mencionámo-los aqui, depois dos massacres e das deportações de Junho, unicamente porque desta vez não se dirigiram só contra Paris, mas contra os departamentos; não tiveram em mira apenas o proletariado, mas sobretudo as classes médias.

As leis de repressão, com as quais se deixava ao bel-prazer do governo a declaração do estado de sítio, se amordaçava ainda mais a imprensa e se aniquilava o direito de associação, absorveram toda a actividade legislativa da Assembleia Nacional durante os meses de Junho, Julho e Agosto.

Todavia esta época é caracterizada não pela exploração da vitória no campo dos factos, mas no dos princípios; não pelas decisões da Assembleia Nacional, mas pela motivação dessas decisões; não pelos factos, mas pela frase; não pela frase, mas pelo acento e pelos gestos que animam a frase. A expressão descarada e brutal das convicções realistas (royalistischen), o insulto desdenhosamente distinto contra a república; a indiscrição coquete e frívola acerca dos objectivos de restauração, numa palavra, a violação fanfarrona do decoro republicano dão a este período um tom e um colorido peculiares. Viva a Constituição! era o grito de guerra dos vencidos do 13 de Junho. Os vencedores estavam, pois, dispensados da hipocrisia da linguagem constitucional, isto é, da linguagem republicana. A contra-revolução subjugou a Hungria, a Itália e a Alemanha, e eles acreditavam que a restauração estava já às portas da França. Desencadeou-se então uma verdadeira competição entre os chefes de fila das fracções da ordem, documentando cada um deles o seu monarquismo através do Moniteur e confessando os seus eventuais pecados liberais cometidos durante a monarquia, mostrando o seu arrependimento e pedindo perdão a Deus e aos homens. Não se passou um único dia sem que na tribuna da Assembleia Nacional não se declarasse que a revolução de Fevereiro tinha sido uma desgraça nacional, sem que qualquer fidalgote legitimista da província não proclamasse solenemente nunca ter reconhecido a república, sem que qualquer dos cobardes desertores e traidores da monarquia de Julho não viesse contar agora feitos heróicos que apenas não pudera realizar porque a filantropia de Louis-Philippe ou outra incompreensão qualquer o tinha impedido. O que nas jornadas de Fevereiro era de admirar não era a generosidade do povo vitorioso, mas a abnegação e a moderação dos realistas que lhe haviam permitido a vitória. Um deputado sugeriu que se atribuísse aos guardas municipais uma parte dos fundos destinados aos feridos de Fevereiro, pois naqueles dias só eles se haviam tornado merecedores da gratidão da pátria. Um outro queria que se decretasse a construção de uma estátua equestre ao duque de Orléans na praça do Carrossel. Thiers chamou à Constituição um bocado de papel sujo. Uns após outros, vinham à tribuna orleanistas mostrarem o seu arrependimento por terem conspirado contra a monarquia legítima; legitimistas que se censuravam por terem acelerado a queda da monarquia em geral ao rebelarem-se contra a monarquia ilegítima; Thiers, arrependido por ter conspirado contra Mole; Mole, arrependido por ter conspirado contra Guizot; Barrot, arrependido por ter intrigado contra todos os três. O grito "Viva a república social-democrata!" foi declarado inconstitucional; o grito "Viva a república!" perseguido como social-democrata. No aniversário da batalha de Waterloo[87] um deputado declarou: "Receio menos a invasão dos prussianos do que a entrada em França dos refugiados revolucionários." Respondendo às queixas segundo as quais o terrorismo estava organizado em Lyon e nos departamentos circunvizinhos, Baraguay d'Hilliers afirmou: "Prefiro o terror branco ao terror vermelho." (J'aime mieux la terreur blanche que la terreur rouge.) E a Assembleia aplaudia freneticamente todas as vezes que qualquer orador lançava um epigrama contra a república, contra a revolução, contra a Constituição e a favor da monarquia ou da Santa Aliança. Toda e qualquer violação das mais pequenas formalidades republicanas, por exemplo, tratar os deputados por "citoyens", entusiasmava os cavaleiros da ordem.

As eleições complementares em Paris a 8 de Julho — realizadas sob a influência do estado de sítio e a abstenção de uma grande parte do proletariado —, a tomada de Roma pelo exército francês, a entrada em Roma das eminências purpuradas[88], trazendo no seu séquito a Inquisição e o terrorismo monacal, acrescentaram novas vitórias à vitória de Junho e aumentaram a embriaguez do partido da ordem.

Por fim, em meados de Agosto, em parte para assistirem aos conselhos departamentais que acabavam de reunir-se, em parte fatigados pela orgia de tendências de muitos meses, os realistas decretaram um adiamento de dois meses da Assembleia Nacional. Com transparente ironia deixaram ficar como representantes da Assembleia Nacional e como guardiões da república uma comissão de 25 representantes, a nata dos legitimistas e orleanistas, um Mole, um Changarnier. A ironia era mais profunda do que suspeitavam. Condenados pela história a contribuir para o derrube da monarquia que amavam, estavam também destinados por ela a conservar a república que odiavam.

Com o adiamento da Assembleia Legislativa encerra-se o segundo período da vida da república constitucional, o seu desajeitado período realista.

Em Paris o estado de sítio fora de novo levantado, a acção da imprensa tinha começado de novo. Durante a suspensão dos jornais sociais-democratas, durante o período da legislação repressiva e das algazarras realistas, o Siècle[89], o velho representante literário dos pequenos burgueses monarco-constitucionais, republicanizou-se; a Presse[90], a velha expressão literária dos reformadores burgueses, democratizou-se; e o National, o velho órgão clássico dos burgueses republicanos, socializou-se.

As sociedades secretas aumentavam em extensão e actividade à medida que os clubes públicos se tornavam impossíveis. As associações operárias industriais, toleradas como puras companhias comerciais, economicamente nulas, tornaram-se politicamente noutros tantos meios aglutinadores do proletariado. O 13 de Junho tinha cortado as cabeças oficiais aos diferentes partidos semi-revolucionários; as massas, que ficaram, adquiriram a sua própria cabeça. Os cavaleiros da ordem tinham intimidado com profecias dos terrores da república vermelha. Porém, os vis excessos, os horrores hiperbóreos da contra-revolução triunfante na Hungria, em Baden e em Roma caiaram de branco a "república vermelha". E as classes intermédias da sociedade francesa, descontentes, começaram a preferir as promessas da república vermelha, com os seus problemáticos terrores aos terrores da monarquia vermelha com a sua desesperança efectiva. Nenhum socialista fez em França mais propaganda revolucionária do que Haynau. A chaque capacite selon ses oeuvres.[91]

Entretanto, Louis Bonaparte explorou as férias da Assembleia Nacional para fazer principescas viagens pelas províncias; os legitimistas mais fogosos iam em peregrinação ao neto de São Luís[92] a Ems, e a massa'dos representantes ordeiros do povo intrigava nos conselhos dos departamentos que acabavam de reunir-se. Tratava-se de os fazer pronunciar o que a maioria da Assembleia Nacional ainda não ousava pronunciar: o pedido de urgência para a imediata revisão da Constituição. De acordo com a Constituição, o texto constitucional só em 1852 podia ser revisto por meio de uma Assembleia Nacional expressamente convocada para esse fim. Mas se a maioria dos conselhos dos departamentos se pronunciava nesse sentido, não devia a Assembleia Nacional sacrificar a virgindade da Constituição à voz da França? A Assembleia Nacional acalentava as mesmas esperanças nestas assembleias provinciais que as freiras da Henriade de Voltaire nos Panduros. Contudo, os Putifares da Assembleia Nacional, salvo algumas excepções, tinham de se haver com outros tantos Josés das províncias. A imensa maioria não quis compreender a importuna insinuação. A revisão da Constituição foi frustrada pelos próprios instrumentos que deveriam tê-la chamado à vida, isto é, os votos dos conselhos dos departamentos. A voz da França, e precisamente a da França burguesa, tinha falado e tinha falado contra a revisão.

No princípio de Outubro a Assembleia Nacional Legislativa reuniu-se de novo — tantum mutatus ab illo![93] A sua fisionomia estava totalmente mudada. A inesperada rejeição da revisão por parte dos conselhos dos departamentos tinha-a remetido de novo para os limites da Constituição e chamado a atenção para os limites da sua duração. Os orleanistas tinham ficado desconfiados com as peregrinações a Ems dos legitimistas; os legitimistas tinham criado suspeitas com as negociações dos orleanistas com Londres[94]; os jornais de ambas as fracções tinham atiçado o fogo e pesado as exigências recíprocas dos seus pretendentes; orleanistas e legitimistas unidos viam com rancor as maquinações dos bonapartistas, que se manifestavam nas viagens principescas, nas tentativas mais ou menos transparentes de emancipação do presidente e na linguagem ambiciosa dos jornais bonapartistas; Louis Bonaparte encarava com rancor uma Assembleia Nacional que apenas considerava legítima a conspiração legitimista-orleanista, um ministério que constantemente o atraiçoava a favor dessa Assembleia Nacional. Finalmente, o ministério estava dividido em si mesmo quanto à política romana, e quanto ao imposto sobre o rendimento proposto pelo ministro Passy e que os conservadores desacreditavam como socialista.

Um dos primeiros projectos do ministério Barrot enviado à Legislativa, de novo reunida, foi um pedido de crédito de 300 000 francos para pagamento da pensão de viuvez da duquesa de Orléans. A Assembleia Nacional concedeu-o e juntou ao registo de dívidas da nação francesa uma soma de 7 milhões de francos. Enquanto, deste modo, Louis-Philippe continuava a desempenhar com êxito o papel de "pauvre honteux", de pobre envergonhado, nem o ministério ousava requerer aumento de remuneração para Bonaparte nem a Assembleia parecia disposta a dá-lo. E Louis Bonaparte, como sçmpre, debatia-se ante o dilema: Aut Caesar aut Clichy![95]

O segundo pedido de crédito, de 9 milhões, do ministro para custear a expedição romana aumentou a tensão entre Bonaparte, por um lado, e os ministros e a Assembleia Nacional, por outro. Louis Bonaparte tinha publicado no Moniteur uma carta ao seu oficial ajudante Edgar Ney, na qual vinculava o governo papal a garantias constitucionais. O papa, por seu lado, tinha feito uma alocução "motu próprio"[96] em que rejeitava qualquer limitação da sua dominação restaurada. A carta de Bonaparte levantava com propositada indiscrição a cortina do seu gabinete para se expor aos olhares da galeria como um génio benévolo, mas incompreendido e cativo na sua própria casa. Não era a primeira vez que coqueteava com os "adejos furtivos de uma alma livre"[97]. Thiers, o relator da comissão, ignorou por completo os adejos de Bonaparte e contentou-se com traduzir para fracês a alocução papal. Não foi o ministério, mas sim Victor Hugo quem procurou salvar o presidente por meio de uma ordem do dia em que a Assembleia Nacional devia declarar o seu acordo com a carta de Napoleão. Allons donc! Allons donc![98] Com esta desrespeitosa e frívola interjeição a maioria enterrou a proposta de Hugo. A política do presidente? A carta do presidente? O próprio presidente? Allons donc! Allons donc! Pois que diabo toma au sérieux[99] Monsieur Bonaparte? Acredita, Monsieur Victor Hugo, que nós acreditamos que o senhor acredita no presidente? Allons donc! Allons donc!

Finalmente, a rotura entre Bonaparte e a Assembleia Nacional acelerou-se com a discussão sobre o regresso dos Orléans e dos Bourbons. Substituindo-se ao ministério, o primo do presidente, o filho do ex-rei da Vestefália[100] tinha apresentado esta proposta que apenas visava rebaixar os pretendentes legitimistas e orleanistas ao mesmo nível, ou de preferência abaixo do do pretendente bonapartista o qual pelo menos se encontrava, de facto, no topo do Estado.

Napoleão Bonaparte era suficientemente irreverente para fazer do regresso das famílias reais expulsas e da amnistia dos insurrectos de Junho elos de uma mesma proposta. A indignação da maioria obrigou-o imediatamente a pedir desculpa por esta sacrílega ligação do sagrado com o ímpio, das estirpes reais com a ninhada proletária, das estrelas fixas da sociedade com os fogos-fátuos desta, a dar a cada uma das duas propostas o lugar que lhe cabia. A maioria rejeitou energicamente o regresso das famílias reais, e Berryer, o Demóstenes dos legitimistas, não deixou margem para dúvidas quanto ao sentido desta votação. A degradação burguesa dos pretendentes, é isso o que se tem em vista! Pretende-se despojá-los da sua auréola, da última majestade que lhes resta, a majestade do exílio! Que se pensaria entre os pretendentes, exclamou Berryer, daquele que, esquecendo-se do seu augusto nascimento, regressasse para viver aqui como um simples particular! Não se podia dizer com mais clareza a Louis Bonaparte que não havia ganho nada com a sua presença, que se os realistas coligados precisavam dele aqui em França como um homem neutral na cadeira presidencial, os pretendentes sérios à coroa tinham de ficar ocultos aos olhos profanos atrás da névoa do exílio.

Em 1 de Novembro, Louis Bonaparte respondeu à Assembleia Legislativa com uma mensagem na qual em palavras bastante duras anunciava a demissão do ministério Barrot e a formação de um novo ministério. O ministério Barrot—Falloux era o ministério da coligação realista; o ministério d'Hautpoul era o ministério de Bonaparte, o órgão do presidente frente à Assembleia Legislativa, o ministério dos amanuenses.

Bonaparte já não era o simples homem neutral do 10 de Dezembro de 1848. A posse do poder executivo tinha agrupado à sua volta um certo número de interesses; a luta contra a anarquia obrigou o próprio partido da ordem a aumentar a sua influência, e se o presidente já não era popular, o partido da ordem era impopular. Não poderia ele alimentar a esperança de obrigar os orleanistas e os legitimistas, pela sua rivalidade como pela necessidade de uma qualquer restauração monárquica, ao reconhecimento do pretendente neutral?

O terceiro período de vida da república constitucional data de 1 de Novembro de 1849, período esse que tem o seu termo com o 10 de Março de 1850. Não começa só o jogo regular das instituições constitucionais, tão admirado por Guizot, as disputas entre o poder executivo e o legislativo. Frente aos apetites de restauração dos orleanistas e legitimistas coligados, Bonaparte defende o título do seu poder efectivo, a república; frente aos apetites de restauração de Bonaparte, o partido da ordem defende o título da sua dominação comum, a república; frente aos orleanistas, os legitimistas defendem, como frente aos legitimistas os orleanistas, o statu quo, a república. Todas estas fracções do partido da ordem, cada uma delas com o seu próprio rei e a sua própria restauração in petto[101], fazem valer alternadamente, frente aos apetites de usurpação e sublevação dos seus rivais, a dominação comum da burguesia, a forma na qual ficam neutralizadas e reservadas as pretensões particulares — a república.

Assim como Kant faz da república, como única forma racional do Estado, um postulado da razão prática, cuja realização nunca é alcançada, mas terá sempre de ser perseguida e tida em mente como objectivo, assim fazem estes realistas da monarquia (Königtum).

Deste modo, a república constitucional, que saiu das mãos dos republicanos burgueses como fórmula ideológica vazia, tornou-se nas mãos dos realistas coligados uma forma viva e cheia de conteúdo. E Thiers falava mais verdade do que suspeitava quando dizia: "Nós, os realistas, somos os verdadeiros pilares da república constitucional."

A queda do ministério da coligação e o surgimento do ministério dos amanuenses tem um segundo significado. O seu ministro das Finanças chamava-se Fould. Fould, ministro das Finanças, é o abandono oficial da riqueza nacional francesa à Bolsa, a administração do património do Estado pela Bolsa no interesse da Bolsa. Com a nomeação de Fould, a aristocracia financeira anunciava a sua restauração no Moniteur. Esta restauração completava necessariamente as restantes restaurações, que formavam outros tantos elos na cadeia da república constitucional.

Louis-Philippe nunca tinha ousado fazer de um verdadeiro loup-cervier (lobo da Bolsa) ministro das Finanças. Como a sua monarquia era o nome ideal para a dominação da alta burguesia, os interesses privilegiados tinham de ter nos seus ministérios nomes ideologicamente desinteressados. Em toda a parte a república burguesa trouxe para primeiro plano aquilo que as diferentes monarquias, tanto a legitimista como a orleanista, mantinham escondido no fundo da cena. Tornou terreno o que aquelas tinham feito celestial. No lugar dos nomes sagrados colocou os nomes próprios burgueses dos interesses de classe dominantes.

Toda a nossa exposição tem mostrado como, desde o primeiro dia da sua existência, a república não derrubou mas consolidou a aristocracia financeira. Mas as concessões que lhe foram feitas eram uma fatalidade a que houve que submeter-se sem a querer provocar. Com Fould, a iniciativa governamental caía de novo nas mãos da aristocracia financeira.

Perguntar-se-á: como podia a burguesia coligada aguentar e suportar a dominação da finança que, sob Louis-Philippe, se apoiava na exclusão ou subordinação das restantes fracções burguesas?

A resposta é simples.

Em primeiro lugar, a própria burguesia financeira constitui uma parte de importância decisiva da coligação realista, cujo poder governamental conjunto se chama república. Os porta-vozes e as competências dos orleanistas não são os velhos aliados e cúmplices da aristocracia financeira? Não é ela própria a falange dourada do orleanismo? No que se refere aos legitimistas, já sob Louis-Philippe tinham participado em praticamente todas as orgias das especulações da Bolsa, das minas e dos caminhos-de-ferro. A ligação da grande propriedade fundiária com a alta finança é, de um modo geral, um facto normal. Prova: Inglaterra. Prova: a própria Áustria.

Num país como a França onde o volume da produção nacional é desproporcionadamente inferior ao volume da dívida nacional; onde o rendimento do Estado constitui o objecto mais importante da especulação e a Bolsa o mercado principal para o investimento do capital que se quer valorizar de um modo improdutivo; num tal país, uma massa incontável de pessoas de todas as classes burguesas ou semiburguesas tem de tomar parte na dívida pública, no jogo da Bolsa, na finança. Não encontram todos estes participantes subalternos os seus apoios e comandantes naturais na fracção que representa este interesse nas suas mais colossais proporções, que o representa por inteiro?

O que é que condiciona a entrega dos bens do Estado à alta finança? O crescente endividamento do Estado. E o endividamento do Estado? O constante excesso das despesas em relação às receitas, uma desproporção que é ao mesmo tempo a causa e o efeito do sistema dos empréstimos públicos.

Para escapar a esse endividamento, o Estado tem ou de restringir as despesas, isto é, simplificar e diminuir o aparelho governamental, governar o menos possível, utilizar o menor número possível de pessoal, intervir o menos possível nos assuntos da sociedade burguesa. Este caminho era impossível para o partido da ordem, cujos meios de repressão, cuja ingerência oficial por parte do Estado e cuja omnipresença através dos órgãos do Estado tinham de aumentar na mesma medida em que a sua dominação e as condições de vida da sua classe eram ameaçadas de toda a parte. Não se pode reduzir a gendarmerie[102] na proporção em que aumentam os ataques contra as pessoas e a propriedade.

Ou então o Estado tem de procurar evitar as suas dívidas e estabelecer um equilíbrio imediato, embora passageiro, no orçamento, lançando impostos extraordinários sobre as classes mais ricas. Para subtrair a riqueza nacional à exploração da Bolsa iria o partido da ordem sacrificar a sua própria riqueza no altar da pátria? Pas si bete![103]

Portanto, sem transformação completa do Estado francês não há transformação do orçamento do Estado francês. Com o orçamento do Estado há necessariamente a dívida pública e com a dívida pública necessariamente a dominação do comércio com as dívidas do Estado, dos credores do Estado, dos banqueiros, dos usurários, dos tubarões da Bolsa. Apenas uma fracção do partido da ordem, os fabricantes, participara directamente na queda da aristocracia financeira. Não nos referimos aos médios, aos pequenos industriais; referimo-nos aos regentes do interesse fabril que sob Louis-Philippe haviam constituído a ampla base da oposição dinástica. O seu interesse é indubitavelmente a diminuição dos custos de produção, portanto a diminuição dos impostos que entram na produção, portanto a diminuição da dívida pública cujos juros entram nos impostos, portanto a queda da aristocracia financeira.

Em Inglaterra — e os maiores fabricantes franceses são pequenos burgueses comparados com os seus rivais ingleses — encontramos efectivamente os industriais, um Cobden, um Bright, à frente da cruzada contra a Banca e a aristocracia da Bolsa. Porque não em França? Em Inglaterra predomina a indústria; em França a agricultura. Em Inglaterra a indústria necessita do free trade[104]; em França, da protecção alfandegária do monopólio nacional ao lado dos outros monopólios. A indústria francesa não domina a produção francesa; por conseguinte, os industriais franceses não dominam a burguesia francesa. Para fazer valer os seus interesses sobre as restantes fracções da burguesia, não podem, como os ingleses, pôr-se à cabeça do movimento e ao mesmo tempo colocar em primeiro lugar os seus interesses de classe; têm pois de entrar no séquito da revolução e servir interesses que se opõem aos interesses globais da sua classe. Em Fevereiro tinham compreendido mal a sua posição, mas Fevereiro fê-los avisados. E quem está mais directamente ameaçado pelos operários do que o empresário, o capitalista industrial? Por conseguinte, em França o industrial tornou-se necessariamente o membro mais fanático do partido da ordem. A diminuição do seu lucro pela finança o que é isto em comparação com a abolição do lucro pelo proletariado?

Em França, o pequeno burguês faz aquilo que normalmente o burguês industrial devia fazer; o operário faz o que, normalmente, seria tarefa do pequeno burguês; e a tarefa do operário, quem a executa? Ninguém. Em França, ela não é executada, em França ela é proclamada. Em parte nenhuma ela é executada dentro dos muros nacionais[105], a guerra das classes no seio da sociedade francesa converte-se numa guerra mundial em que as nações se contrapõem. A sua execução só desponta no momento em que, devido à guerra mundial, o proletariado é posto à cabeça do povo que domina o mercado mundial: a Inglaterra. A revolução, que aqui encontra não o seu fim mas o seu começo organizativo, não é uma revolução de curto fôlego. A actual geração assemelha-se aos judeus que Moisés conduz através do deserto. Não tem apenas que conquistar um mundo novo, tem de soçobrar para dar lugar aos homens que estejam à altura de um mundo novo.

Voltemos a Fould.

A 14 de Novembro de 1848 Fould subiu à tribuna da Assembleia Nacional e expôs o seu sistema financeiro: apologia do velho sistema fiscal! Manutenção do imposto sobre o vinho! Abandono do imposto sobre o rendimento de Passy!

Também Passy não era um revolucionário, era um antigo ministro de Louis-Philippe. Fazia parte dos puritanos da envergadura de um Dufaure e era um dos mais íntimos de Teste, o bode expiatório da monarquia de Julho[106]. Passy tinha também elogiado o velho sistema fiscal, recomendado a manutenção do imposto sobre o vinho mas, ao mesmo tempo, rasgado o véu do défice do Estado. Tinha declarado a necessidade de um novo imposto, o imposto sobre o rendimento, se se não quisesse a bancarrota do Estado. Fould, que recomendou a Ledru-Rollin a bancarrota do Estado, aconselhou à Legislativa o défice do Estado. Prometeu poupanças. Mais tarde, porém, veio a descobrir-se que, por exemplo, as despesas diminuíram 60 milhões e a dívida flutuante aumentou 200 milhões — truques de prestidigitador em juntar cifras e na apresentação dos apuramentos de contas que, no fim, foram dar a novos empréstimos.

Naturalmente que sob Fould a aristocracia financeira, no meio das restantes fracções burguesas desconfiadas, não aparecia tão despudoradamente corrupta como sob Louis-Philippe. O sistema, porém, era o mesmo: um contínuo aumento das dívidas e uma dissimulação do défice. E, com o tempo, as velhas fraudes da Bolsa voltaram a manifestar-se mais abertamente. Prova? A lei sobre o caminho-de-ferro de Avignon, as oscilações misteriosas dos títulos do Estado, por um momento a conversa diária de Paris inteira, e, finalmente, as mal sucedidas especulações de Fould e Bonaparte sobre as eleições de 10 de Março.

Com a restauração oficial da aristocracia financeira, o povo francês tinha de chegar de novo em breve diante de um novo 24 de Fevereiro.

A Constituinte, num ataque de misantropia contra a sua herdeira, tinha abolido o imposto sobre o vinho a partir do ano da graça de 1850. Com a abolição de velhos impostos não podiam ser pagas novas dívidas. Creton, um cretino do partido da ordem, já tinha proposto a manutenção do imposto sobre o vinho antes do adiamento da Assembleia Legislativa. Fould aceitou esta proposta em nome do ministério bonapartista e, a 20 de Dezembro de 1849, no aniversário da proclamação de Bonaparte como presidente, a Assembleia Nacional decretou a restauração do imposto sobre o vinho.

O advogado desta restauração não foi um financeiro. Foi, sim, o chefe dos jesuítas Montalembert. A sua dedução era de uma simplicidade impressionante: o imposto é o seio materno que amamenta o governo. O governo — são os instrumentos da repressão, são os órgãos da autoridade, é o exército, é a polícia, são os funcionários, os juizes, os ministros, são os padres. O ataque ao imposto é o ataque dos anarquistas às sentinelas da ordem, que protegem a produção material e espiritual da sociedade burguesa das incursões dos vândalos proletários. O imposto é o quinto deus ao lado da propriedade, da família, da ordem e da religião. E o imposto sobre o vinho é indiscutivelmente um imposto: e mais, não é um imposto qualquer mas um imposto de velha tradição, um imposto respeitável, de espírito monárquico. Vive l'impôt des boissons![107] Three cheers and one cheer more![108]

O camponês francês, quando pensa no diabo, pensa-o sempre sob a forma do executor de impostos. A partir do momento em que Montalembert elevou o imposto a um deus, o camponês perdeu o deus, tornou-se ateu e lançou-se nos braços do diabo, do socialismo. A religião da ordem tinha feito pouco dele. Os Jesuítas tinham feito pouco dele. Bonaparte tinha feito pouco dele. O 20 de Dezembro de 1849 comprometera irremediavelmente o 20 de Dezembro de 1848. O "sobrinho do seu tio" não era o primeiro da sua família que o imposto sobre o vinho abatia, esse imposto que, segundo a expressão de Montalembert, prenuncia a tormenta da revolução. O verdadeiro, o grande Napoleão, declarou em St. Helena que a reintrodução do imposto sobre o vinho, tendo alienado de si (entfremdet) os camponeses do Sul da França, contribuíra mais para a sua queda do que tudo o resto. Já sob Louis XIV alvo favorito do ódio popular (ver as obras de Boisguillebert e Vauban), abolido pela primeira revolução, Napoleão tinha-o reintroduzido em 1808 numa forma modificada. Quando a Restauração fez a sua entrada em França, foi precedida não só pelo trote dos cossacos mas também pelas promessas da abolição do imposto sobre o vinho. A gentilhommerie[109] não precisava naturalmente de manter a palavra dada à gent taillable à merci et miséricorde[110]. 1830 prometeu a abolição do imposto sobre o vinho. Não era seu hábito fazer o que dizia nem dizer o que fazia. 1848 prometeu a abolição do imposto sobre o vinho, como prometeu tudo. Finalmente, a Constituinte, que nada prometeu, fez, como se disse, uma disposição testamentária segundo a qual o imposto sobre o vinho devia desaparecer no dia 1 de Janeiro de 1850. E, precisamente dez dias antes de 1 de Janeiro de 1850, a Legislativa voltou a introduzi-lo. Assim, o povo francês perseguiu constantemente este imposto e, quando o expulsava pela porta, via-o, pouco depois, regressar pela janela.

O ódio popular contra o imposto sobre o vinho explica-se pelo facto de reunir em si todo o odioso do sistema de impostos francês. O modo de cobrança é odioso; o modo da sua repartição é aristocrático, pois as percentagens do imposto são as mesmas para os vinhos mais vulgares e para os mais preciosos. Aumenta, pois, em progressão geométrica, na medida em que as posses do consumidor diminuem, é um verdadeiro imposto progressivo ao contrário. Provoca por isso directamente o envenenamento das classes trabalhadoras como prémio para vinhos falsificados e imitados. Reduz o consumo ao erguer octrois[111] às portas de todas as cidades com mais de 4 000 habitantes e ao transformar cada cidade num território estrangeiro com direitos proteccionistas contra os vinhos franceses. Os grandes comerciantes de vinho e ainda mais os pequenos, os marcharias de viris, os taberneiros, cujos proventos dependem directamente do consumo de vinho, são outros tantos declarados adversários do imposto sobre o vinho. E, finalmente, ao fazer diminuir o consumo, o imposto sobre o vinho corta o mercado à produção. Enquanto torna os operários das cidades incapazes de pagar o vinho torna os viticultores incapazes de o vender. E a França tem uma população viticultora de cerca de 12 milhões. Compreende-se por isso o ódio do povo em geral, compreende-se nomeadamente o fanatismo dos camponeses contra o imposto sobre o vinho. Além disso, não viam de modo nenhum na sua restauração um acontecimento isolado, mais ou menos ocasional. Os camponeses têm uma espécie de tradição histórica, herdada de pais para filhos, e nesta escola histórica corre que todos os governos, quando querem enganar os camponeses, prometem a abolição do imposto do vinho mas, depois de os terem enganado, mantêm ou reintroduzem o imposto sobre o vinho. É no imposto sobre o vinho que o camponês prova o bouquet do governo, a sua tendência. A restauração do imposto sobre o vinho em 20 de Dezembro queria dizer: Louis Bonaparte é como os outros; mas não era como os outros, era uma invenção dos camponeses, e nas petições contra o imposto sobre o vinho, que contavam milhões de assinaturas, eles retiravam os votos que um ano antes tinham dado ao "sobrinho do seu tio".

A população rural, mais de dois terços de toda a população francesa, é constituída na sua maior parte pelo chamados proprietários fundiários livres. A primeira geração, libertada gratuitamente das cargas feudais pela Revolução de 1789, não tinha pago preço algum pela terra. As gerações seguintes, contudo, pagavam sob a forma de preço da terra o que os seus antepassados semi-servos tinham pago sob a forma de renda, dízima, jeira, etc. Por um lado, quanto mais a população aumentava, quanto maior era, por outro lado, a divisão da terra — tanto mais caro ficava o preço da parcela, pois com a sua pequenez aumentava o volume da sua procura. Todavia, a dívida do camponês, isto é, a hipoteca, aumentava necessariamente na mesma proporção em que subia o preço que o camponês pagava pela parcela, quer a comprasse directamente quer os seus co-herdeiros lha debitassem em conta como capital. O título de dívida ligado à terra chama-se nomeadamente hipoteca; é, pois, a cautela de penhor sobre a terra. Tal como sobre as courelas medievais se acumulavam os privilégios, assim sobre a parcela moderna as hipotecas. Por outro lado, no regime de parcelamento a terra é para os seus proprietários um puro instrumento de produção. A sua fertilidade diminui na medida em que a terra é dividida. A aplicação da maquinaria à terra, a divisão do trabalho, os grandes meios de benfeitoria da terra, tais como a instalação de canais de drenagem e de irrigação e obras-semelhantes, tornam-se cada vez mais impossíveis enquanto os gastos improdutivos do cultivo aumentam na mesma proporção que a divisão do próprio instrumento de produção. Tudo isto quer o proprietário da parcela possua capital ou não. Porém, quanto mais a divisão aumenta, tanto mais a terra com o seu mísero inventário constitui a totalidade do capital do camponês das parcelas, tanto mais o investimento de capital na terra diminui, tanto mais o pequeno camponês (kotsass) carece de terra, de dinheiro e conhecimentos para aplicar os progressos da agronomia, e tanto mais retrocede o cultivo da terra. Finalmente, o produto líquido diminui na mesma proporção em que aumenta o consumo bruto, em que toda a família do camponês se vê impossibilitada para outras ocupações pela sua posse da terra e, contudo, não fica em condições de viver dela.

Por conseguinte, na mesma medida em que a população e, com ela, a divisão da terra aumenta, torna-se mais caro o instrumento de produção, a terra, e a sua fertilidade diminui, e na mesma medida a agricultura decai e o camponês endivida-se. E o que era efeito torna-se, por sua vez, causa. Cada geração deixa atrás de si outra mais endividada; cada nova geração arranca em condições mais desfavoráveis e mais gravosas; a hipoteca gera a hipoteca e quando se torna impossível ao camponês encontrar na sua parcela um penhor para novas dívidas, isto é, sobrecarregada com novas hipotecas, fica directamente à mercê da usura e os juros usurários mais descomunais se tornam.

E deste modo, sob a forma de juros pelas hipotecas sobre a terra, sob a forma de juros pelos adiantamentos não hipotecados do usurário, o camponês de França cede aos capitalistas não só uma renda da terra, não só o lucro industrial, numa palavra, não só todo o ganho líquido, mas também uma parte do salário; isto é, desceu ao nível do rendeiro irlandês — e tudo isto com o pretexto de ser proprietário privado.

Este processo foi em França acelerado pela carga fiscal sempre crescente e pelos custos judiciais, em parte directamente provocados pelos mesmos formalismos com que a legislação francesa rodeia a propriedade fundiária, em parte devido aos inúmeros conflitos entre as parcelas que por toda a parte confinam ou se entrecruzam, e em parte pela fúria litigiosa dos camponeses cujo usufruto da propriedade se limita ao fazer valer fanaticamente a propriedade imaginária, o direito de propriedade.

De acordo com um levantamento estatístico datado de 1840 o produto bruto francês da terra ascendia a 5 237 178 000 francos. Destes há que deduzir 3 552 000 000 de francos para gastos de cultivo, incluindo o consumo das pessoas que trabalham. Resta um produto líquido de 1 685 178 000 francos, dos quais se devem deduzir 550 milhões para juros hipotecários, 100 milhões para funcionários da justiça, 350 milhões para impostos e 107 milhões para despesas com registos, selos, taxas de hipoteca, etc. Fica a terceira parte do produto líquido, ou seja 538 milhões; distribuídos pela população não chega a 25 francos de produto líquido por cabeça[112]. Nestes cálculos não se menciona naturalmente nem a usura extra-hipotecária, nem as custas de advogados, etc.

Compreende-se a situação dos camponeses franceses quando a república aos seus velhos fardos acrescentou ainda novos. Como se vê, a sua exploração só na forma se distingue da exploração do proletariado industrial. O explorador é o mesmo: o capital. Através da hipoteca e da usura os capitalistas individuais exploram os camponeses individuais; através do imposto de Estado a classe capitalista explora a classe camponesa. O título de propriedade dos camponeses é o talismã com que o capital até aqui o fascinava, o pretexto com que o atiçava contra o proletariado industrial. Só a queda do capital pode fazer subir o camponês, só um governo anticapitalista, proletário, pode quebrar a sua miséria económica, a sua degradação social. A república constitucional é a ditadura dos seus exploradores unidos; a república social-democrata, vermelha, é a ditadura dos seus aliados. E a balança sobe ou desce segundo os votos que o camponês lança na urna. É ele próprio que tem de decidir sobre o seu destino. Era isto que diziam os socialistas em folhetos, almanaques, calendários e prospectos de toda a espécie. Esta linguagem tornava-se-lhe mais compreensível através das réplicas do partido da ordem que, por seu lado, se dirigia a ele, e por meio do exagero grosseiro, pela concepção e apresentação brutal das intenções e ideias dos socialistas, tocava o verdadeiro tom camponês e sobrestimulava o seu apetite pelo fruto proibido. Mas a linguagem mais compreensível era a das experiências que a classe camponesa tinha colhido com a utilização do direito de voto e a das desilusões que, no ímpeto revolucionário, golpe após golpe se abateram sobre ele. As revoluções são as locomotivas da história.

A transformação gradual dos camponeses manifestou-se através de diversos sintomas. Já se tinha revelado nas eleições para a Assembleia Legislativa; revelou-se no estado de sítio nos cinco departamentos limítrofes de Lyon; revelou-se alguns meses depois de 13 de Junho na eleição de um montagnard em vez do antigo presidente da Chambre introuvable[113] no departamento da Gironda; revelou-se no dia 20 de Dezembro de 1849 na eleição de um vermelho para o lugar de um deputado legitimista falecido, no departamento du Gard[114], essa terra prometida dos legitimistas, cenário das infâmias mais horríveis contra os republicanos em 1794 e 1795, a sede central do terreur blanche[115] de 1815, onde liberais e protestantes foram assassinados publicamente. Este revolucionamento da classe mais estacionária manifestou-se da maneira mais visível depois da reintrodução do imposto sobre o vinho. As medidas do governo e as leis de Janeiro e Fevereiro de 1850 dirigiram-se quase exclusivamente contra os departamentos e os camponeses. É a prova mais concludente do progresso destes.

A circular Hautpoul que fez do gendarme inquisidor do prefeito, do subprefeito e, sobretudo, do maire[116], e que organiza a espionagem até aos cantos mais recônditos da aldeia mais remota; a lei contra os mestres-escolas, que submete ao arbítrio dos prefeitos as competências, os porta-vozes, os educadores e os intérpretes da classe camponesa, vendo-se assim os professores, esses proletários da classe culta, perseguidos de freguesia em freguesia como se fossem caça acossada; a proposta de lei contra os maires, que suspende sobre a cabeça destes a espada de Dâmocles da demissão e que a todo o momento os opõe, eles, os presidentes das freguesias camponesas, ao presidente da república e ao partido da ordem; a ordenança que transformou as 17 divisões militares da França em quatro paxaliques[117] e que impôs aos franceses a caserna e o bivaque como salão nacional; a lei do ensino, com a qual o partido da ordem proclamou a falta de consciência e a estupidificação violenta da França como a sua condição de existência sob o regime do sufrágio universal — o que eram todas estas leis e medidas? Tentativas desesperadas para conquistar de novo para o partido da ordem os departamentos e os camponeses dos departamentos.

Considerados como repressão, estes meios eram deploráveis, torciam o pescoço ao seu próprio fim. As grandes medidas, como a manutenção do imposto sobre o vinho, o imposto dos 45 cêntimos, a desdenhosa rejeição das petições dos camponeses de reembolso dos milhares de milhões, etc, todos esses raios legislativos, vindos da sede central, atingiram em cheio de uma só vez a classe camponesa; as leis e medidas mencionadas tornaram geral o ataque e a resistência, tornaram-nos na conversa diária em todas as choupanas; inocularam a revolução em todas as aldeias, localizaram e tornaram camponesa a revolução.

Não provam, por outro lado, estas propostas de Bonaparte e a sua aceitação por parte da Assembleia Nacional a unanimidade de ambos os poderes da república constitucional no que toca à repressão da anarquia, isto é, de todas as classes que se insurgem contra a ditadura burguesa? Não tinha Soulouque, logo a seguir à sua brusca mensagem[118], assegurado à Legislativa o seu dévoue-ment[119] à ordem por meio da mensagem que imediatamente seguiu de Carlier[120], essa caricatura ordinária e suja de Fouché, tal como o próprio Louis Bonaparte era a caricatura vulgar de Napoleão?

A lei do ensino revela-nos a aliança dos jovens católicos com os velhos voltairianos. Podia a dominação dos burgueses coligados ser outra coisa senão o despotismo coligado da restauração amiga dos jesuítas e da monarquia de Julho que se fazia passar por livre-pensadora? As armas que uma fracção burguesa repartira pelo povo contra a outra, na luta entre si pelo predomínio, não tinham agora de ser de novo retiradas ao povo desde que este se contrapunha à sua ditadura unificada? Nada, nem mesmo a rejeição dos concordats à l'amiable, tinha indignado mais a boutique parisiense do que esta coquete étalage[121] às jesuitismo.

Entretanto, prosseguiam as colisões tanto entre as diferentes fracções do partido da ordem como entre a Assembleia Nacional e Bonaparte. Agradou pouco à Assembleia Nacional que Bonaparte, logo a seguir ao seu coup d'état, depois da sua criação de um ministério bonapartista próprio, mandasse vir à sua presença os inválidos da monarquia recentemente nomeados prefeitos e lhes impusesse como condição do exercício do seu cargo que fizessem agitação anticonstitucional em favor da sua reeleição para presidente; que Carlier festejasse a sua tomada de posse com a supressão de um clube legitimista; que Bonaparte fundasse um jornal próprio, Le Napoléon[122], que revelava ao público os apetites secretos do presidente enquanto os seus ministros tinham de os desmentir no palco da Legislativa; agradou-lhe pouco a obstinada manutenção do ministério a despeito das sucessivas moções de desconfiança; agradou-lhe pouco a tentativa de ganhar as boas-graças dos sargentos por meio da atribuição de um suplemento diário de quatro sous e as boas-graças do proletariado com um plágio tirado dos Mystères de Eugène Sue, por meio de um banco de empréstimos de honra; agradou pouco, finalmente, o descaramento com que se requereu através dos ministros a deportação para Argélia dos restantes insurrectos de Junho a fim de atirar en gros[123] para a Legislativa a impopularidade de uma tal medida enquanto o presidente reservava para si en détail[124] a popularidade por meio de perdões individuais. Thiers falou ameaçadoramente de "coups detat" e "coups de tête"[125] e a Legislativa vingou-se de Bonaparte rejeitando todas as propostas de lei que ele apresentava no seu próprio interesse, investigando com alarido e desconfiança as que ele apresentava no interesse comum, para saber se através do aumento do poder executivo ele não aspirava a tirar proveito do poder pessoal de Bonaparte. Numa palavra, vingou-se com a conspiração do desprezo.

O partido legitimista, por seu lado, via com desagrado os orleanistas mais qualificados apoderarem-se de novo de quase todos os lugares e aumentar a centralização enquanto ele, em princípio, procurava a sua salvação na descentralização. E procurava-a realmente. A contra-revolução centralizava violentamente, isto é, preparava o mecanismo da revolução. Centralizava até, por meio da circulação forçada de papel-moeda, o ouro e a prata da França no Banco de Paris, criando deste modo o tesouro de guerra da revolução já pronto.

Finalmente, os orleanistas viam com desagrado o emergente princípio da legitimidade opor-se ao seu princípio de bastardia e eles próprios serem a todo o momento marginalizados e maltratados como a mésalliance[126] burguesa de um esposo aristocrata.

Vimos os camponeses, os pequenos burgueses e as classes médias em geral porem-se, pouco a pouco, ao lado do proletariado, empurrados para a oposição aberta contra a república oficial, tratados por ela como inimigos. Sublevação contra a ditadura burguesa, necessidade de uma transformação da sociedade, manutenção das instituições democrático-republicanas como órgãos do seu movimento, agrupamento em torno do proletariado como poder revolucionário decisivo — tudo isto são os traços característicos comuns do chamado partido da social-democracia, do partido da república vermelha. Este partido da anarquia, como os adversários o baptizam, não é menos uma coligação de diversos interesses do que o partido da ordem. Da mais pequena reforma da velha desordem social até à transformação da velha ordem social, do liberalismo burguês até ao terrorismo revolucionário, tão distantes estão entre si os extremos que formam o ponto de partida e o ponto final do partido da "anarquia".

Abolição das barreiras proteccionistas — socialismo! pois ataca o monopólio da fracção industrial do partido da ordem. Regulamentação do orçamento do Estado — socialismo! pois ataca o monopólio da fracção financeira do partido da ordem. Livre importação de carne e cereais estrangeiros — socialismo! pois ataca o monopólio da terceira fracção do partido da ordem, a grande propriedade fundiária. As exigências do partido dos free-traders[127], isto é, o partido burguês inglês mais progressita, surgem na França como outras tantas reivindicações socialistas. Voltairianismo — socialismo! pois ele ataca uma quarta fracção do partido da ordem, a católica. Liberdade de imprensa, direito de associação, ensino popular universal — socialismo, socialismo! Atacam todo o monopólio do partido da ordem.

O curso da revolução amadurecera tão depressa que os amigos de reformas de todos os matizes, que as mais modestas reivindicações das classes médias, eram obrigados a agrupar-se em torno da bandeira do partido subversivo mais extremo, em torno da bandeira vermelha.

Todavia, por mais variado que fosse o socialismo dos diversos grandes membros do partido da anarquia — o que estava dependente das condições económicas e das necessidades globais revolucionárias da sua classe ou fracção de classe delas decorrentes — num ponto ele estava de acordo: proclamar-se como meio de emancipação do proletariado e proclamar a emancipação deste como seu fim. Engano intencional de uns, auto-engano de outros, que apresentam o mundo transformado segundo as suas necessidades como o melhor dos mundos para todos, como a realização de todas as reivindicações revolucionárias e a superação de todas as colisões revolucionárias.

Sob as frases socialistas gerais do "partido da anarquia" que soavam de modo razoavelmente uniforme oculta-se o socialismo do National, da Presse e do Siècle, que mais ou menos consequentemente quer derrubar a dominação da aristocracia financeira e libertar a indústria e o comércio das peias a que até então tinham estado sujeitos. Este é o socialismo da indústria, do comércio e da agricultura, cujos chefes no partido da ordem negam estes interesses na medida em que já não coincidem com os seus monopólios privados. Deste socialismo burguês, que, naturalmente, como todas as variantes do socialismo, congrega uma parte dos operários e dos pequenos burgueses, demarca-se o socialismo pequeno-burguês propriamente dito, o socialismo par excellence[128]. O capital persegue esta classe principalmente como credor; por isso ela exige instituições de crédito. Esmaga-a pela concorrência; por isso ela exige associações apoiadas pelo Estado. Subjuga-a pela concentração; por isso ela exige impostos progressivos, limitações sobre as heranças, que o Estado se encarregue das obras de vulto e outras medidas que detenham pela força o crescimento do capital. Uma vez que ela sonha com a realização pacífica do seu socialismo — à excepção porventura de uma segunda revolução de Fevereiro com a duração de alguns dias — parece-lhe naturalmente que o processo histórico vindouro é a aplicação de sistemas que os pensadores da sociedade, colectiva ou isoladamente, inventam ou inventaram. Deste modo convertem-se em ecléticos ou em adeptos dos sistemas socialistas existentes, do socialismo doutrinário que só foi expressão teórica do proletariado até este se ter desenvolvido num movimento histórico livre e autónomo.

Enquanto a utopia, o socialismo doutrinário, que submete a totalidade do seu movimento a um dos aspectos daquela; que coloca no lugar da produção comum, da produção social, a actividade cerebral de um qualquer pedante e sobretudo elimina fantasiosamente a luta revolucionária das classes com as suas necessidades através de pequenos passes de mágica ou de grandes sentimentalismos; enquanto este socialismo doutrinário, que no fundo apenas idealiza a sociedade actual, dela recolhe uma imagem sem sombras e pretende impor o seu ideal contra a realidade dela, enquanto este socialismo é cedido pelo proletariado à pequena-burguesia; enquanto a luta dos diversos chefes socialistas entre si mesmos põe em evidência que cada um dos chamados sistemas se apega afincadamente a um dos pontos de trânsito da revolução social contrapondo-o aos outros, o proletariado agrupa-se cada vez mais em torno do socialismo revolucionário, em torno do comunismo, para o qual a própria burguesia tinha inventado o nome Blanqui. Este socialismo é a declaração da permanência da revolução, a ditadura de classe do proletariado como ponto de trânsito necessário para a abolição das diferenças de classes em geral, para a abolição de todas as relações de produção em que aquelas se apoiam, para a abolição de todas as relações sociais que correspondem a essas relações de produção, para a revolução de todas as ideias que decorrem destas relações sociais.

O espaço desta exposição não me permite tratar este assunto mais pormenorizadamente.

Já vimos como a aristocracia financeira necessariamente se pôs à frente do partido da ordem, o mesmo acontecendo com o proletariado no partido da "anarquia". Enquanto as diferentes classes unidas numa ligue[129] revolucionária se agrupavam em torno do proletariado; enquanto os departamentos se tornavam cada vez mais inseguros e a própria Assembleia Legislativa se mostrava cada vez mais rabujenta em relação às pretensões do Soulouque francês[130], aproximavam-se as eleições complementares — há tanto tempo adiadas — para preencher os lugares dos montagnards proscritos em consequência do 13 de Junho.

O governo, desprezado pelos seus inimigos, maltratado e diariamente humilhado pelos seus pretensos amigos, viu apenas um meio de sair da situação desagradável e insustentável em que se encontrava: o motim. Um motim em Paris teria permitido impor o estado de sítio a Paris e aos departamentos e, desse modo, pôr e dispor nas eleições. Por outro lado, perante um governo que tinha conseguido uma vitória sobre a anarquia, os amigos da ordem seriam obrigados a concessões se não quisessem, eles próprios, aparecer como anarquistas.

O governo pôs mão à obra. Princípio de Fevereiro de 1850: provocações ao povo com a destruição das árvores da liberdade[131]. Em vão. Quando as árvores da liberdade foram arrancadas, o próprio governo perdeu a cabeça e recuou perante a sua própria provocação. Contudo, a Assembleia Nacional recebeu com uma desconfiança gelada esta tentativa canhestra de emancipação de Bonaparte. Não teve maior êxito a remoção das coroas de sempre vivas da coluna de Julho[132]. Isto deu motivo a uma parte do exército para manifestações revolucionárias e à Assembleia Nacional para um voto de desconfiança mais ou menos disfarçado contra o ministério. Em vão a ameaça da imprensa do governo da abolição do sufrágio universal e da invasão dos cossacos. Em vão o desafio directo de d'Hautpoul lançado à esquerda, em plena Assembleia Legislativa, para vir para a rua, e a sua declaração de que o governo estava preparado para recebê-la. Hautpoul não recebeu senão uma chamada à ordem do presidente e o partido da ordem deixou com tranquila malícia que um deputado da esquerda troçasse dos apetites de usurpação de Bonaparte. Em vão finalmente a profecia de uma revolução para o dia 24 de Fevereiro. O governo conseguiu que o 24 de Fevereiro fosse ignorado pelo povo.

O proletariado não se deixou provocar para um motim porque estava prestes a fazer uma revolução.

Sem se deixar desviar pelas provocações do governo que unicamente aumentavam a irritação geral contra o estado de coisas existente, o comité eleitoral totalmente influenciado por operários apresentou três candidatos por Paris: de Flotte, Vidal e Carnot. De Flotte era um deportado de Junho, amnistiado por uma das decisões de Bonaparte em busca de popularidade; era amigo de Blanqui e tinha participado no atentado de 15 de Maio. Vidal, conhecido como escritor comunista devido ao seu livro Sobre a Repartição da Riqueza, antigo secretário de Louis Blanc na Comissão do Palácio do Luxemburgo; Carnot, filho do homem da Convenção que organizara a vitória, o membro menos comprometido do partido nacional, ministro da Educação no Governo provisório e na Comissão Executiva, um protesto vivo contra as leis do ensino dos jesuítas devido ao seu projecto de lei democrático sobre a instrução pública. Estes três candidatos representavam as três classes aliadas: à frente um insurrecto de Junho, o representante do proletariado revolucionário; ao seu lado o socialista doutrinário, o representante da pequena burguesia socialista; por fim, o terceiro, o representante do partido republicano burguês cujas fórmulas democráticas tinham ganho um sentido socialista em relação ao partido da ordem e perdido há muito tempo o seu significado próprio. Era, como em Fevereiro, uma coligação geral contra a burguesia e o governo. Mas desta vez o proletariado era a cabeça da ligue revolucionária.

A despeito de todos os esforços contra, os candidatos socialistas venceram. O próprio exército votou nos insurrectos de Junho contra La Hitte, o seu próprio ministro da Guerra. O partido da ordem ficou como que fulminado por um raio. As eleições departamentais não o consolaram pois deram uma maioria aos montagnards.

As eleições de 10 de Março de 1850! Era a revogação do Junho de 1848: massacradores e deportadores dos insurrectos de Junho regressaram à Assembleia Nacional mas de cabeça baixa, atrás dos deportados e com os princípios destes nos lábios. Era a revogação do 13 de Junho de 1849: a Montagne proscrita pela Assembleia Nacional regressou à Assembleia Nacional mas desta vez como clarim avançado da revolução e já não como seu comandante. Era a revogação do 10 de Dezembro: Napoleão tinha sido derrotado juntamente com o seu ministro La Hitte. A história parlamentar da França conhece apenas um caso análogo: o fracasso d'Haussez, ministro de Carlos X em 1830. As eleições de 10 de Março de 1850 foram finalmente a declaração da nulidade da eleição de 13 de Maio que tinha dado a maioria ao partido da ordem. As eleições de 10 de Março protestaram contra a maioria do 13 de Maio. O 10 de Março foi uma revolução. Por detrás dos boletins de voto estão as pedras das calçadas.

"A votação do 10 de Março é a guerra", exclamou Ségur d'Aguesseau, um dos membros mais progressistas do partido da ordem.

Com o 10 de Março de 1850 a república constitucional entrou numa nova fase, a fase da sua dissolução. As diferentes fracções da maioria estão de novo unidas entre si e com Bonaparte, são de novo as salvadoras da ordem, ele novamente o seu homem neutral. Quando elas se lembram de que são realistas só o fazem por desesperarem das possibilidades da república burguesa; quando ele se lembra de que é um pretendente é só porque desespera de permanecer presidente.

À eleição de de Flotte, o insurrecto de Junho, responde Bonaparte, sob comando do partido da ordem, com a nomeação de Baroche para ministro do Interior. Baroche o acusador de Blanqui e de Barbes, de Ledru-Rollin e Guinard. À eleição de Carnot responde a Legislativa com a aceitação da lei sobre o ensino; à eleição de Vidal com a repressão da imprensa socialista. Com o trombetear da sua imprensa o partido da ordem procura dissipar o seu próprio medo. "A espada é sagrada", exclama um dos seus órgãos; "os defensores da ordem têm de tomar a ofensiva contra o partido vermelho", proclama um outro; "entre o socialismo e a sociedade trava-se um duelo de morte, uma guerra desapiedada e sem quartel; neste duelo desesperado um deles tem de perecer; se a sociedade não aniquilar o socialismo, o socialismo aniquila a sociedade", canta um terceiro galo da ordem. Erguei as barricadas da ordem, as barricadas da religião, as barricadas da família! Tem de se acabar com os 127 000 eleitores de Paris![133] Uma noite de São Bartolomeu para os socialistas! E, por momentos, o partido da ordem está seguro de que a vitória será sua.

Os seus órgãos mostram-se mais fanáticos contra os "boutiquiers de Paris". O insurrecto de Junho eleito representante pelos boutiquiers de Paris! Isto significa que é impossível um segundo Junho de 1848; isto significa que é impossível um segundo 13 de Junho de 1849; isto significa que a influência moral do capital está quebrada; isto significa que a Assembleia burguesa representa apenas a burguesia; isto significa que a grande propriedade está perdida porque o seu vassalo, a pequena propriedade, procura a sua salvação no campo dos sem propriedade.

O partido da ordem regressa naturalmente ao seu inevitável lugar-comum. "Mais repressão!" exclama, "Dez vezes mais repressão!", mas a força da sua repressão diminuiu dez vezes, enquanto a resistência centuplicou. O próprio instrumento principal da repressão, o exército, não deverá também ele ser reprimido? E o partido da ordem diz a sua última palavra: "Tem de se romper o anel de ferro de uma legalidade asfixiante. A república constitucional é impossível. Temos de lutar com as nossas verdadeiras armas; desde Fevereiro de 1848 que combatemos a revolução com as suas armas e no seu terreno. Aceitámos as suas instituições; a Constituição é uma fortaleza que protege unicamente os sitiantes, não os sitiados! Ao introduzirmo-nos na sagrada Ílion dentro do bojo do cavalo de Tróia, não só não conquistámos a cidade inimiga — ao contrário do que os nossos antepassados, os grecs[134], tinham feito — como nos tornámos prisioneiros."

A base da Constituição porém é o sufrágio universal. O aniquilamento do sufrágio universal é a última palavra do partido da ordem, da ditadura burguesa.

O sufrágio universal deu-lhes razão no dia 4 de Maio de 1848, no dia 20 de Dezembro de 1848, no dia 13 de Maio de 1849 e no dia 8 de Julho de 1849. Porém, no dia 10 de Março de 1850 o sufrágio universal não deu razão a si próprio. O sentido da Constituição burguesa é a dominação da burguesia como produto e resultado do sufrágio universal, como acto inequívoco da vontade soberana do povo. Mas a partir do momento em que o conteúdo deste sufrágio, desta vontade soberana já não é a dominação da burguesia, terá a Constituição ainda sentido? Não será dever da burguesia regulamentar o direito de voto de maneira a que se queira o que é razoável, isto é, a sua dominação? Ao suprimir de novo continuamente o poder de Estado existente e ao criá-lo de novo a partir de si mesmo, não suprime o sufrágio universal toda a estabilidade, não põe em questão a todo o momento os poderes existentes, não reduz a nada a autoridade. não ameaça elevar a própria anarquia a autoridade? Quem poderia duvidar de tal depois do 10 de Março de 1850?

Ao repudiar o sufrágio universal com o qual até essa altura se havia coberto e do qual havia retirado toda a sua omnipotência, a burguesia confessa sem rebuço: "A nossa ditadura tem até agora existido pela vontade do povo; agora tem de ser consolidada contra a vontade do povo." E consequentemente já não procura os seus apoios na França, mas sim no exterior, no estrangeiro, na invasão.

Ela, uma segunda Coblença[135] que abrira sua sede na própria França, com a invasão despertara contra si todas as paixões nacionais. Com o ataque ao sufrágio universal dá à nova revolução um pretexto geral, e a revolução precisava de semelhante pretexto, cada pretexto especial separaria as fracções da ligue revolucionária e poria em evidência as suas diferenças. O pretexto geral atordoa as classes meio revolucionárias e permite-lhes iludirem-se sobre o carácter definido da revolução futura, sobre as consequências da sua própria acção. Cada revolução precisa de uma questão de banquete. O sufrágio universal é a questão de banquete da nova revolução.

As fracções burguesas coligadas, todavia, estão já condenadas ao abandonarem a única forma possível do seu poder unificado, a forma mais violenta e completa da sua dominação de classe, a república constitucional, para voltarem a refugiar-se na forma subalterna, incompleta e mais fraca, a monarquia. Assemelhavam-se a um ancião que, para voltar a ter a força da sua juventude, vá buscar a roupa de criança e procure à força enfiar nela os seus murchos membros. A sua república teve apenas um mérito: o ser a estufa da revolução.

O 10 de Março de 1850 exibe a seguinte inscrição:

Après moi le déluge[136], depois de mim o dilúvio!


 
IV — A abolição do sufrágio universal em 1850
(A continuação dos três capítulos precedentes encontra-se na Revue do último volume duplo, quinto e sexto, da Neue Rheinische Zeitung[137]. Depois de aqui ter sido retratado a grande crise comercial que rebentou em Inglaterra em 1847 e explicado como ela se repercutiu no continente europeu agudizando as complicações políticas aqui existentes e que culminaram nas revoluções de Fevereiro e Março de 1848, ver-se-á agora como no decorrer de 1848 a prosperidade do comércio e da indústria de novo regressada e, em 1849 ainda mais elevada, estorvou o impulso revolucionário e tornou possível as vitórias simultâneas da reacção. Em especial sobre a França lê-se então:)[138]

Desde 1849 e, sobretudo desde o princípio de 1850 para cá, manifestam-se em França os mesmos sintomas. As indústrias de Paris estão em plena laboração e as fabricas de algodão em Rouen e Mulhausen vão também bastante bem, embora aqui os elevados preços da matéria-prima, tal como em Inglaterra, tenham uma acção retardadora. Além disso, a prosperidade em França foi especialmente fomentada devido à ampla reforma aduaneira em Espanha e à baixa dos direitos alfandegários sobre diversos artigos de luxo do México. A exportação de mercadorias francesas para estes dois mercados aumentou consideravelmente. O aumento de capitais em França levou a uma série de especulações para as quais serviu de pretexto a exploração em grande escala das minas de ouro da Califórnia. Surgiu uma multidão de sociedades cujo baixo valor das acções e as tintas socialistas dos prospectos apelam directamente às bolsas dos pequenos burgueses e dos operários, mas que, ao fim e ao cabo, acabam naquela vigarice pura que é peculiar dos franceses e dos chineses. Uma destas sociedades chega mesmo a ser protegida directamente pelo governo. Os direitos alfandegários sobre as importações atingiram em França nos primeiros nove meses de 1848, 63 milhões de francos; em 1849, 95 milhões de francos e, em 1850, 93 milhões de francos. No mês de Setembro de 1850 voltaram a subir mais de 1 milhão em comparação com o mesmo mês de 1849. As exportações aumentaram de igual modo em 1849 e ainda mais em 1850.

A prova mais concludente do restabelecimento da prosperidade é a reintrodução dos pagamentos a dinheiro da Banca pela lei de 6 de Agosto de 1850. No dia 15 de Março de 1848 a Banca tinha recebido plenos poderes para suspender os pagamentos a dinheiro. A circulação de notas, incluindo os Bancos da província, ascendia nessa altura a 373 milhões de francos (14 920 000 libras esterlinas). No dia 2 de Novembro de 1849 esta circulação ascendia a 482 milhões de francos ou seja 19 280 000 libras esterlinas, o que correspondia a um aumento de 4 360 000 libras. No dia 2 de Setembro de 1850 — 496 milhões de francos ou seja 19 840 000 libras esterlinas. Por conseguinte, um aumento de cerca de 5 milhões de libras. Não se registou nenhuma desvalorização das notas. O aumento da circulação das notas foi, antes, acompanhado de um acumular continuamente crescente de ouro e prata nas caves da Banca, de modo que no Verão de 1850 a reserva metálica elevava-se a cerca de 14 milhões de libras esterlinas, uma soma inaudita em França. O facto de à Banca ter sido possível elevar a sua circulação e assim o seu capital activo em 123 milhões de francos, ou seja 5 milhões de libras, demonstra concludentemente a justeza da nossa afirmação num caderno anterior[139] segundo a qual a aristocracia financeira não só não fora derrubada com a revolução como até ficara fortalecida. Um relance geral sobre a legislação bancária francesa dos últimos dez anos torna este resultado ainda mais evidente. No dia 10 de Junho de 1847, a Banca recebeu plenos poderes para emitir notas de 200 francos. Até então a nota de menor valor era de 500 francos. Um decreto de 15 de Março de 1848 declarava as notas do Banco de França moeda legal e desobrigava a Banca de as trocar por dinheiro. A emissão de notas foi limitada a 350 milhões de francos. Ao mesmo tempo recebeu plenos poderes para emitir notas de 100 francos. Um decreto de 27 de Abril ordenou a fusão dos bancos departamentais com o Banco de França; um outro decreto de 2 de Maio de 1848 aumentou a sua emissão de notas para 452 milhões de francos. Um decreto de 22 de Dezembro de 1849 passou o máximo da emissão de notas para 525 milhões de francos. Finalmente a lei de 6 de Agosto de 1850 introduziu de novo a possibilidade de trocar as notas por dinheiro. Estes factos, o contínuo aumento da circulação, a concentração de todo o crédito francês nas mãos da Banca e a acumulação de todo o ouro e prata franceses nas caves dos bancos, levaram o Sr. Proudhon à conclusão de que a Banca devia agora largar a sua velha pele de cobra e metamorfosear-se num Banco do Povo à Proudhon. Ele nem sequer precisava de conhecer a história das restrições bancárias ocorridas em Inglaterra de 1797 a 1819[140]; bastava que tivesse lançado os olhos para o outro lado do Canal para compreender que este facto inaudito na história da sociedade burguesa não passava, afinal, de um acontecimento burguês absolutamente normal, que só agora, pela primeira vez, se manifestava em França. Vê-se assim que os teóricos pretensamente revolucionários que. depois do Governo provisório, davam o tom em Paris, sabiam tão pouco da natureza e dos resultados das medidas tomadas como os senhores do próprio Governo provisório.

Apesar da prosperidade industrial e comercial de que por momentos a França gozou, a massa da população, os 25 milhões de camponeses, sofrem uma grande depressão. As boas colheitas dos últimos anos tinham feito baixar os preços dos cereais ainda mais em França do que na Inglaterra; por conseguinte, a situação dos camponeses, cheios de dívidas, sugados pela usura e carregados de impostos pouco podia ter de brilhante. A história dos últimos três anos, no entanto, já mostrou suficientemente que esta classe da população de modo nenhum é capaz de qualquer iniciativa revolucionária.

Tal como o período de crise surgiu mais tarde no Continente do que na Inglaterra, assim também o da prosperidade. Em Inglaterra ocorre sempre o processo original; ela é o demiurgo do cosmos burguês. No Continente, as diferentes fases do ciclo que a sociedade burguesa sempre percorre de novo surgem numa forma secundária e terciária. Em primeiro lugar, o Continente exporta para Inglaterra incomparavelmente mais do que para qualquer outro país. Todavia, estas exportações para Inglaterra dependem por sua vez da situação da Inglaterra, em especial no respeitante ao mercado ultramarino. De facto, a Inglaterra exporta incomparavelmente mais para os países ultramarinos do que todo o continente europeu. Deste modo, a quantidade das exportações continentais para esses países está sempre dependente das exportações ultramarinas da Inglaterra a cada momento. Por conseguinte, embora as crises dêem primeiro origem a revoluções no Continente, as razões das mesmas encontram-se sempre na Inglaterra. As manifestações violentas têm naturalmente de surgir mais cedo nas extremidades do corpo burguês do que no coração uma vez que aqui a possibilidade do equilíbrio é maior do que ali. Por outro lado, o grau em que as revoluções continentais se repercutem sobre a Inglaterra é ao mesmo tempo o termómetro em que se lê até que ponto essas revoluções põem realmente em causa as relações da vida burguesa, ou até que ponto só atingem as suas formações políticas.

Nesta prosperidade geral em que as forças produtivas da sociedade burguesa se desenvolvem tão exuberantemente quanto é possível no seio das relações burguesas, não se pode falar de uma verdadeira revolução. Uma tal revolução só é possível nos períodos em que ambos estes factores, as modernas forças produtivas e as formas burguesas de produção entrem em contradição entre si. As diversas disputas em que agora os representantes das diferentes fracções do partido da ordem continental se envolvem e mutuamente se comprometem, muito longe de darem ensejo a novas revoluções, são, pelo contrário, apenas possíveis porque a base das relações é de momento muito segura e — o que a reacção não sabe — muito burguesa. É contra ela que vêm chocar, pois, todas as tentativas da reacção para conter o desenvolvimento burguês assim como toda a indignação moral e todas as inflamadas proclamações dos democratas. Uma nova revolução só é possível na sequência de uma nova crise. É, porém, tão certa como esta.

Passemos agora à França.

A vitória que o povo, em conjugação com os pequenos burgueses, tinha alcançado nas eleições de 10 de Março foi por ele próprio anulada ao provocar as novas eleições de 28 de Abril. Vidal fora eleito não só em Paris mas também no Baixo-Reno. O comité de Paris no qual a Montagne e a pequena burguesia estavam fortemente representadas levou-o a aceitar o Baixo-Reno. A vitória do 10 de Março deixou assim de ser decisiva. O prazo da decisão foi novamente prolongado, a energia do povo foi afrouxada, este foi habituado a triunfos legais em vez de revolucionários. O sentido revolucionário do 10 de Março, a reabilitação da insurreição de Junho ficaram por fim destruídos devido à candidatura de Eugène Sue, esse social-fantasista pequeno-burguês sentimental, candidatura que o proletariado quando muito podia aceitar como piada, para agradar às grisettes[141]. A esta candidatura bem intencionada contrapôs o partido da ordem, agora mais audaz devido à política hesitante dos seus adversários, um candidato que representaria a vitória de Junho. Este cómico candidato era Leclerc, um espartano pai de família ao qual, contudo a imprensa arrancou, peça por peça, a heróica armadura e que acabou por sofrer uma estrondosa derrota nas eleições. A nova vitória eleitoral do 28 de Abril embriagou a Montagne e a pequena burguesia. Ela regozijou-se já com a ideia de poder chegar ao objectivo dos seus desejos por uma via puramente legal e sem empurrar para uma nova revolução o proletariado de novo para o primeiro plano. Contava já firmemente levar nas novas eleições de 1852, pelo sufrágio universal, o Sr. Ledru-Rollin à cadeira presidencial e uma maioria de montagnards à Assembleia. O partido da ordem, perfeitamente seguro pela renovação das eleições, pela candidatura de Sue e pelo estado de espírito da Montagne e da pequena burguesia, de que estas estavam decididas a permanecer tranquilas em todas as circunstâncias, respondeu às duas vitórias eleitorais com a lei eleitoral que abolia o sufrágio universal.

Cautelosamente, o governo teve o cuidado de não apresentar esta proposta de lei como da sua própria responsabilidade. Fez à maioria uma concessão aparente ao encarregar da sua elaboração os dignitários desta maioria, os dezassete burgraves[142]. Por conseguinte, não foi o governo que porpôs à Assembleia a abolição do sufrágio universal, foi a maioria da Assembleia que o propôs a si própria.

Em 8 de Maio o projecto foi levado à Câmara. Toda a imprensa social-democrata se levantou como um só homem para pregar ao povo uma atitude digna, uma calme majestueux[143], passividade e confiança nos seus representantes. Cada artigo destes jornais era uma confissão de que uma revolução tinha, antes de mais, de aniquilar a chamada imprensa revolucionária e de que agora do que se tratava era portanto da sua própria conservação. A imprensa pretensamente revolucionária traiu totalmente o seu segredo. Assinou assim a sua própria sentença de morte.

Em 21 de Maio, a Montagne trouxe a debate a questão preliminar e propôs a rejeição de todo o projecto porque violava a Constituição. O partido da ordem respondeu que se violaria a Constituição sempre que tal fosse necessário. No entanto, no caso vertente isso não seria necessário porque a Constituição era susceptível de todas as interpretações e porque só a maioria era competente para decidir da interpretação correcta. Aos ataques desenfreados e selvagens de Thiers e Montalembert opôs a Montagne um humanismo decente e educado. Invocou o terreno do direito; o partido da ordem remeteu-a para o terreno em que esse direito assenta, a propriedade burguesa. A Montagne gemeu: não se iria realmente provocar revoluções a toda a força? O partido da ordem replicou: esperar-se-ia por elas.

Em 22 de Maio por 462 votos contra 227 a questão preliminar ficou resolvida. Os mesmos homens que tinham demonstrado com uma profundidade tão solene que a Assembleia Nacional e cada um dos deputados renunciariam ao seu mandato se renunciassem ao povo, que lhes conferiu o poder, persistiam teimosamente nos seus lugares, procurando agora repentinamente fazer o país agir em vez deles, por meio de petições, e ainda continuavam impavidamente sentados quando a 31 de Maio a lei brilhantemente passou. Procuraram vingar-se por meio de um protesto no qual deram para a acta a sua inocência na violação da Constituição, protesto esse que nem sequer apresentaram abertamente mas sim enfiaram à socapa no bolso do presidente.

Um exército de 150 000 homens, o longo arrastar da decisão, o apaziguamento da imprensa, a pusilanimidade da Montagne e dos representantes recém-eleitos, a calma majestática dos pequenos burgueses, mas sobretudo a prosperidade comercial e industrial, impediram toda e qualquer tentativa de revolução da parte do proletariado.

O sufrágio universal tinha cumprido a sua missão. A maioria do povo tinha passado pela escola de desenvolvimento, que é a única coisa para que pode servir o sufrágio universal numa época revolucionária. Tinha de ser eliminado por uma revolução ou pela reacção.

Numa ocasião que cedo se seguiu, a Montagne desenvolveu um dispêndio de energia ainda maior. Do alto da sua tribuna o ministro da Guerra, d'Hautpoul, tinha classificado a revolução de Fevereiro como uma funesta catástrofe. Os oradores da Montagne que, como sempre, se distinguiam pelo barulho com que exprimiam a sua indignação moral, foram impedidos pelo presidente Dupin de usar da palavra. Girardin propôs à Montagne uma imediata retirada em massa. Resultado: a Montagne ficou sentada, enquanto Girardin foi expulso do seu seio por indigno.

A lei eleitoral precisava ainda de um complemento, de uma nova lei de imprensa. Esta não se fez esperar muito. Um projecto do governo bastante agravado por emendas do partido da ordem, elevou as cauções, impôs uma taxa suplementar sobre os romances em folhetins (resposta à eleição de Eugène Sue), lançou um imposto sobre todas as publicações semanais ou mensais até um determinado número de páginas e dispôs, por fim, que todos os artigos de um jornal teriam de apresentar a assinatura do autor. As determinações sobre a caução mataram a chamada imprensa revolucionária; o povo considerou a sua queda como uma satisfação pela abolição do sufrágio universal. Todavia, nem a tendência nem os efeitos da nova lei se faziam sentir apenas sobre este sector da imprensa. Enquanto a imprensa periódica foi anónima, aparecia como um órgão de uma opinião pública numerosa e anónima. Era o terceiro poder dentro do Estado. Com a assinatura dos artigos, cada jornal tornou-se uma simples colecção de contribuições literárias de um número de indivíduos mais ou menos conhecidos. Todos os artigos desceram ao nível de anúncios. Até então os jornais tinham circulado como papel-moeda da opinião pública. Agora dissolviam-se em letras de câmbio mais ou menos mas cuja qualidade e circulação não dependiam apenas do crédito do sacador mas também do endossante. A imprensa do partido da ordem, tal como para a abolição do sufrágio universal, tinha incitado também às medidas mais extremas contra a má imprensa. Contudo, a própria boa imprensa, no seu sinistro anonimato, não deixava de incomodar o partido da ordem e ainda mais cada um dos seus representantes provinciais. No seu caso ele só exigia o nome, o domicílio e dados pessoais ao escritor pago. A boa imprensa lamentava-se em vão da ingratidão com que se recompensava os seus bons serviços. A lei passou. A determinação da indicação dos nomes atingiu-a sobretudo a ela. Os nomes dos jornalistas republicanos eram bastante conhecidos. Contudo as respeitáveis firmas do Journal des Débats, da Assemblée Nationale[144], do Constitutionnel[145], etc, etc, fizeram uma tristíssima figura com a sua tão apregoada sabedoria estatal, quando a misteriosa companhia de repente se desfez em venais penny-a-liners[146] de longa prática que por dinheiro tinham defendido todas as causas possíveis, como Granier de Cassagnac, ou em velhos trastes que a si próprios se chamavam estadistas, como Capefigue, ou ainda em petulantes armados em coquetes, como o Sr. Lemoinne do Débats.

No debate sobre a lei de imprensa a Montagne tinha já descido a um tal grau de degenerescência moral que teve de se limitar a aplaudir as brilhantes tiradas de uma velha notabilidade do tempo de Louis-Philippe, o senhor Victor Hugo.

Com a lei eleitoral e a lei de imprensa o partido revolucionário democrático retirava-se da ribalta oficial. Antes de partirem para casa, pouco depois do fecho da sessão, ambas as fracções da Montagne, os democratas socialistas e os socialistas democráticos apresentaram dois manifestos, dois testimonia paupertatis[147] em que afirmavam que, embora nunca o poder e o êxito tivessem estado do seu lado, eles, contudo, tinham estado sempre do lado do direito eterno e das demais verdades eternas.

Vejamos agora o partido da ordem. A N. Rh. Z. dizia no seu número 3, pág. 16: "Frente aos apetites de restauração dos orleanistas e legitimistas coligados, Bonaparte defende o título do seu poder efectivo, a república; frente aos apetites de restauração de Bonaparte, o partido da ordem defende o título da sua dominação comum, a república; frente aos orleanistas, os legitimistas defendem, como frente aos legitimistas os orleanistas, o statu quo, a república. Todas estas fracções do partido da ordem, cada uma delas com o seu próprio rei e a sua própria restauração in petto, fazem valer alternadamente, frente aos apetites de usurpação e sublevação dos seus rivais, a dominação comum da burguesia, a forma na qual ficam neutralizadas e reservadas as pretensões particulares — a república... E Thiers falava mais verdade do que suspeitava quando dizia: "Nós, os realistas, somos os verdadeiros pilares da república constitucional."[148]

Esta comédia dos républicains malgré eux[149], a antipatia do statu quo e o constante fortalecimento do mesmo; os incessantes atritos entre Bonaparte e a Assembleia Nacional; a ameaça do partido da ordem constantemente renovada de se cindir nas suas diversas partes constitutivas e a junção constantemente repetida das suas fracções; a tentativa de cada fracção de transformar a vitória contra o inimigo comum numa derrota dos aliados temporários; a ciumeira, as intrigas, os rancores, as perseguições recíprocas, o desembainhar das espadas que terminava sempre com um baiser-Lamourette[150] — toda esta pouco edificante comédia de enganos nunca se desenvolveu de maneira mais clássica do que durante os últimos seis meses.

O partido da ordem encarava a lei eleitoral como se fosse ao mesmo tempo uma vitória sobre Bonaparte. Não tinha o governo abdicado ao entregar à comissão dos dezassete a redacção e a responsabilidade da sua própria proposta? Não residia a maior força de Bonaparte perante a Assembleia no facto de ser o eleito de seis milhões? Por seu lado Bonaparte tratava a lei eleitoral como uma concessão à Assembleia com a qual comprara a harmonia do poder legislativo com o executivo. Em pagamento, esse vulgar aventureiro exigia um aumento de três milhões da sua lista civil. Podia a Assembleia Nacional entrar em conflito com o executivo num momento em que ela excomungava a grande maioria dos franceses? Encolerizou-se, pareceu querer levar as coisas ao extremo; a sua comissão rejeitou a proposta, a imprensa bonapartista ameaçou, apontou o povo deserdado e despojado do seu direito de voto; realizaram-se inúmeras e ruidosas tentativas de entendimento e. por fim, a Assembleia cedeu na matéria, mas ao mesmo tempo, vingou-se no princípio. Em vez do aumento anual por princípio da lista civil de 3 milhões concedeu-lhe uma ajuda de 2 160 000 francos. Não contente com isso, só fez esta concessão depois de a ter apoiado Changarnier, o general do partido da ordem, protector imposto a Bonaparte. Por conseguinte não foi a Bonaparte que ela realmente concedeu os 2 milhões, mas sim a Changarnier.

Este presente lançado assim de mauvaise grâce[151], foi acolhido por Bonaparte inteiramente no sentido de quem lho deu. A imprensa bonapartista voltou a fazer barulho contra a Assembleia Nacional. Assim, quando no debate da lei de imprensa se fez a emenda sobre a indicação dos nomes, emenda essa que era dirigida muito especialmente contra os jornais subalternos, defensores dos interesses privados de Bonaparte, o principal jornal bonapartista, o Pouvoir[152], desferiu um ataque aberto e violento contra a Assembleia Nacional. Os ministros tiveram de desmentir o jornal perante a Assembleia; o gérant[153] do Pouvoir compareceu na Assembleia Nacional e apanhou a multa máxima, 5 000 francos. No dia seguinte, o Pouvoir publicava um artigo ainda mais insolente contra a Assembleia e, como vingança do governo, o ministério público processou imediatamente diversos jornais legitimistas por violação da Constituição.

Por fim, chegou-se à questão do adiamento da Câmara. Bonaparte desejava-o para poder manobrar à vontade sem intromissão da Assembleia. O partido da ordem desejava-o, em parte para levar a cabo as intrigas das suas fracções, em parte para que os diferentes deputados pudessem tratar dos seus interesses privados. Ambos precisavam dele para consolidarem e levarem por diante nas províncias as vitórias da reacção. Por conseguinte, a Assembleia interrompeu os seus trabalhos de 11 de Agosto até 11 de Novembro. Como, porém, Bonaparte de modo algum dissimulava que apenas lhe interessava ver-se livre da importuna fiscalização da Assembleia Nacional, esta imprimiu ao próprio voto de confiança a marca da desconfiança contra o presidente. Todos os bonapartistas foram afastados da Comissão permanente de 28 membros que, como guardiões da virtude da república, se mantiveram nos seus postos durante as férias[154]. Em vez deles foram até escolhidos alguns republicanos do Siècle e do National a fim de mostrar ao presidente a adesão da maioria à república constitucional.

Pouco tempo antes e sobretudo logo a seguir ao adiamento da Câmara pareceu que ambas as grandes fracções do partido da ordem, os orleanistas e os legitimistas, queriam reconciliar-se, unindo para isso as duas casas reais sob cuja bandeira combatiam. Os jornais andavam cheios de propostas de reconciliação que se dizia terem sido discutidas à cabeceira da cama de enfermo de Louis-Philippe, em St. Leonards quando, subitamente, a morte de Louis-Philippe veio simplificar a situação. Louis-Philippe era o usurpador, Henrique V o despojado. Em compensação, visto Henrique V não ter filhos, o conde de Paris era o seu herdeiro legítimo. Agora, desaparecera todo o pretexto para a fusão dos dois interesses dinásticos. Todavia, precisamente agora é que as duas fracções da burguesia descobriram que não as separava a paixão por uma determinada casa real mas sim que interesses de classe separados afastavam as duas dinastias. Os legitimistas tinham feito uma peregrinação à residência real de Henrique V em Wiesbaden, tal como os seus rivais a St. Leonards, receberam aí a notícia da morte de Louis-Philippe. Formaram imediatamente um ministério[155] in partibus infidelium[156], que na sua maioria era composto por membros daquela comissão de guardiões da virtude da república e que, por ocasião de uma discórdia surgida no seio do partido, apareceu com a proclamação o mais aberta do direito pela graça de Deus. Os orleanistas rejubilaram com o comprometedor escândalo que este manifesto[157] provocou na imprensa e nem por um momento ocultaram a sua franca hostilidade contra os legitimistas.

As representações dos departamentos reuniram durante o adiamento da Assembleia Nacional. A maioria declarou-se a favor de uma revisão da Constituição mais ou menos clausulada, isto é, pronunciou-se por uma restauração monárquica não definida com mais pormenor, por uma "solução", e ao mesmo tempo confessava que era demasiado incompetente e demasiado cobarde para encontrar essa solução. A fracção bonapartista interpretou logo este desejo de revisão no sentido de uma prorrogação da presidência de Bonaparte.

A solução constitucional: a demissão de Bonaparte em Maio de 1852, a eleição simultânea de um novo presidente por todos os eleitores do país, a revisão da Constituição por uma Câmara de revisão nos primeiros meses do novo mandato presidencial, era completamente inadmissível para a classe dominante. O dia da eleição do novo presidente seria o dia do rendez-vous[158] de todos os partidos inimigos, dos legitimistas, dos orleanistas, dos republicanos burgueses, dos revolucionários. Teria de se chegar a uma decisão violenta entre as diferentes fracções. Mesmo que o partido da ordem tivesse conseguido unir-se em torno da candidatura de um homem neutral fora das famílias dinásticas, surgir-lhe-ia de novo pela frente Bonaparte. Na sua luta com o povo o partido da ordem é obrigado a aumentar constantemente o poder do executivo. Cada aumento do poder executivo aumenta o poder do seu titular, Bonaparte. Por conseguinte, na mesma medida em que o partido da ordem reforça a sua dominação comum reforça os meios de luta das pretensões dinásticas de Bonaparte e reforça a sua possibilidade de, no dia da decisão, fazer malograr pela força a solução constitucional. Então, face ao partido da ordem, Bonaparte não se deterá perante um dos pilares da Constituição, tal como esse partido, face ao povo, não se deteve perante o outro no caso da lei eleitoral. Aparentemente seria até capaz de fazer um apelo ao sufrágio universal face à Assembleia. Numa palavra, a solução constitucional põe em questão todo o statu quo político e, por detrás da ameaça ao statu quo o burguês vê o caos, a anarquia, a guerra civil. Vê as suas compras e vendas, as trocas, os casamentos, os seus contratos notariais, as hipotecas, os rendimentos, as rendas, os lucros, todos os seus contratos e fontes de lucro postos em causa no primeiro domingo de Maio de 1852 e não pode expor-se a esse risco. Por detrás da ameaça ao statu quo político oculta-se o perigo do colapso de toda a sociedade burguesa. A única solução possível no sentido da burguesia é o adiamento da solução. Só pode salvar a república constitucional violando a Constituição, prorrogando o poder do presidente. Esta é também a última palavra da imprensa da ordem após demorados e profundos debates sobre as "soluções" a que se entregou depois da sessão dos conselhos gerais. O poderoso partido da ordem vê-se assim obrigado, para sua vergonha, a tomar a sério a pessoa ridícula, ordinária e que lhe era odiosa do pseudo-Bonaparte.

Esta suja figura igualmente se iludia sobre as causas que cada vez mais a revestiam do carácter de homem necessário. Enquanto o seu partido teve discernimento bastante para atribuir às circunstâncias a crescente importância de Bonaparte, este supunha que essa importância era unicamente devida à magia do seu nome e à sua incessante caricatura de Napoleão. De dia para dia ele tornava-se cada vez mais empreendedor. Às peregrinações a St. Leonards e a Wiesbaden opôs ele as suas digressões através da França. Os bonapartistas tinham tão pouca confiança no efeito mágico da sua personalidade que enviaram por toda a parte como claque, despachada em massa por comboios e diligências, gente da Sociedade do 10 de Dezembro[159], essa organização do lumpenproletariado de Paris. Puseram discursos na boca da sua marionette, os quais proclamavam, segundo a recepção nas diferentes cidades, ora a resignação republicana ora a tenacidade perseverante como lema eleitoral da política presidencial. Apesar de todas as manobras, estas viagens tinham muito pouco de cortejos triunfais.

Depois de, segundo cria, ter assim entusiasmado o povo, Bonaparte pôs-se em movimento para ganhar o exército. Na planície de Satory perto de Versalhes mandou realizar grandes revistas no decurso das quais tentou comprar os soldados com salsichão, champanhe e charutos. Se o verdadeiro Napoleão sabia animar os seus soldados esgotados nas fadigas das suas campanhas de conquista por meio de uma momentânea intimidade patriarcal, o pseudo-Napoleão julgava que as tropas lhe agradeciam ao gritar: Vive Napoléon, vive le saucisson![160], isto é: Viva a salsicha, viva o arlequim!

Estas revistas fizeram eclodir a dissensão longo tempo contida entre Bonaparte e o seu ministro da Guerra, d'Hautpoul, por um lado, e Changarnier, por outro. Em Changarnier tinha o partido da ordem encontrado o seu verdadeiro homem neutral, a respeito do qual não podia falar-se em quaisquer pretensões dinásticas pessoais. Assim, tinha-o destinado para sucessor de Bonaparte. Além disso, com a sua actuação em 29 de Janeiro e em 13 de Junho de 1849, Changarnier tornara-se o grande general do partido da ordem, o Alexandre moderno, cuja intervenção brutal tinha, aos olhos do burguês tímido, cortado o nó górdio da revolução. No fundo, tão ridículo como Bonaparte, ele tinha-se tornado de um modo extremamente barato um poder e contraposto pela Assembleia Nacional ao presidente para o vigiar. Ele próprio coqueteava, por exemplo, no caso da questão da dotação, com a protecção que oferecia a Bonaparte e apresentava-se sempre mais arrogante contra ele e os ministros. Quando, por ocasião da lei eleitoral, se esperava uma insurreição, proibiu os seus oficiais de receberem quaisquer ordens, quer do ministro da Guerra quer do presidente. A imprensa contribuía também para engrandecer a figura de Changarnier. Na completa falta de grandes personalidades, o partido da ordem via-se naturalmente obrigado a concentrar num só indivíduo toda a força que faltava à sua classe e a dar-lhe dimensões gigantescas. Foi assim que nasceu o mito de Changarnier, o "baluarte da sociedade". A petulante charlatanaria, a secreta presunção com que Changarnier condescendeu em carregar o mundo aos ombros, constitui o mais ridículo dos contrastes com os acontecimentos durante e depois da revista de Satory, os quais demonstraram irrefutavelmente que apenas era necessário um rabisco da pena de Bonaparte, o infinitamente pequeno, para reduzir esse fantástico produto do medo burguês, o colosso Changarnier, às dimensões da mediocridade e para o transformar de herói salvador da sociedade num general reformado.

Já há muito que Bonaparte se tinha vingado de Changarnier ao incitar o ministro da Guerra a conflitos disciplinares com o incómodo protector. A última revista em Satory fez finalmente explodir o velho rancor. A indignação constitucional de Changarnier deixou de ter limites quando viu desfilar os regimentos de Cavalaria com o grito anticonstitucional: Vive l'Empereur![161]. Bonaparte, para se antecipar a todos os desagradáveis debates sobre esse grito na sessão da Câmara que se avizinhava, afastou o ministro da Guerra. d'Hautpoul, nomeando-o governador da Argélia. No seu lugar colocou um velho general de confiança do tempo do império que não ficava a dever nada em brutalidade a Changarnier. Mas para que a demissão de d'Hautpoul não parecesse uma concessão a Changarnier, transferiu ao mesmo tempo de Paris para Nantes o braço direito do grande salvador da sociedade, o general Neumayer. Fora Neumayer quem, na última revista, levara toda a infantaria a desfilar num silêncio glacial perante o sucessor de Napoleão. Changarnier, atingido ele próprio em Neumayer, protestou e ameaçou. Em vão. Após dois dias de negociações o decreto da transferência de Neumayer era publicado no Moniteur, não tendo o herói da ordem outro remédio senão submeter-se à disciplina ou demitir-se.

A luta de Bonaparte com Changarnier é a continuação da sua luta com o partido da ordem. A reabertura da Assembleia Nacional em 11 de Novembro ocorria, por isso, sob ameaçadores auspícios. Será contudo a tempestade num copo de água. No essencial, a velha comédia tem de continuar. Entretanto, a maioria do partido da ordem será obrigada, apesar da gritaria dos paladinos de princípios das suas diferentes fracções, a prolongar o poder do presidente. Do mesmo modo, aceitará, apesar de todos os protestos, já obrigado pela falta de dinheiro, o prolongamento do poder como uma simples delegação das mãos da Assembleia Nacional. Deste modo a solução é adiada, o statu quo mantido, uma fracção do partido da ordem comprometida, enfraquecida, tornada impossível pela outra, a repressão contra o inimigo comum, a massa da nação, ampliada e esgotada até as próprias relações económicas terem de novo alcançado o ponto de desenvolvimento em que uma explosão faça ir pelos ares todos esses litigiosos partidos juntamente com a sua república constitucional.

Para tranquilidade do burguês tem, de resto, de dizer-se que o escândalo entre Bonaparte e o partido da ordem tem como resultado a ruína na Bolsa de uma multidão de pequenos capitalistas e a transferência das suas fortunas para as algibeiras dos grandes tubarões da Bolsa.


 

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1. Trata-se da revolução burguesa de 1830, em resultado da qual foi derrubada a dinastia dos Bourbons.
2. Em francês no texto: edifício da Câmara Municipal. (Nota da edição Portuguesa.)
3. Em francês no texto: compadre, cúmplice.. (Nota da edição portuguesa.)
4. O duque de Orleães ocupou o trono francês com o nome de Luís Filipe.
5. Em 5 e 6 de Junho de 1832 teve lugar em Paris uma insurreição. Os operários que nela participaram ergueram uma série de barricadas e defenderam-se com grande coragem e firmeza. Em Abril de 1834 teve lugar uma insurreição de operários em Lião, uma das primeiras acções de massas do proletariado francês. A insurreição, apoiada pelos republicanos numa série de outras cidades, particularmente em Paris, foi cruelmente esmagada. A insurreição de 12 de Maio de 1839 em Paris, na qual os operários revolucionários desempenharam também um papel principal, foi preparada pela Sociedade das Estações do Ano, sociedade secreta republicano-socialista, sob a direcção de A. Blanqui e A. Barbes; foi reprimida pelas tropas e pela Guarda Nacional.
6. Em francês no texto: país legal, isto é: aqueles que tinham direito de voto. (Nota da edição portuguesa.)
7. Monarquia de Julho: reinado de Luís Filipe (1830-1848), que recebeu a sua designação da revolução de Julho.
8. Em francês no texto: designação para cafés e tabernas de má nota em Paris.
9. Em francês no texto: crapuloso. (Nota da edição portuguesa.)
10. Em francês no texto: Abaixo os grandes ladrões! Abaixo os assassinos! (Nota da edição portuguesa.)
11. * Em francês no texto: A dinastia Rothschild, Os judeus reis da época. (Nota da edição portuguesa.)
12. Em francês no texto: Nada em troco da glória! (Nota da edição portuguesa.)
13. Em francês no texto: A paz em toda a parte e sempre! (Nota da edição portuguesa.)
14. Em Fevereiro de 1846 foi preparada a insurreição nas terras polacas com vista à libertação nacional da Polónia. Os principais iniciadores da insurreição foram os democratas revolucionários polacos (Dembowski e outros). No entanto, em resultado da traição dos elementos da nobreza e da prisão dos dirigentes da insurreição pela policia prussiana, a insurreição geral não se realizou e verificaram-se apenas explosões revolucionárias isoladas. Só em Cracóvia, submetida desde 1815 ao controlo conjunto da Áustria, da Rússia e da Prússia, os insurrectos conseguiram alcançar a vitória em 22 de Fevereiro e criar um Governo Nacional, que publicou um manifesto sobre a abolição das cargas feudais. A insurreição em Cracóvia foi esmagada no começo de Março de 1846. Em Novembro de 1846 a Áustria, a Prússia e a Rússia subscreveram um tratado sobre a integração de Cracóvia no Império Austríaco.
15. Sonderbund: aliança separada dos sete cantões católicos da Suíça, atrasados do ponto de vista económico; foi concluída em 1843 com o objectivo de se opor às transformações burguesas progressivas na Suíça e para defender os privilégios da Igreja e os jesuítas. A resolução da dieta suíça de Juiho de 1847 sobre a dissolução do Sonderbund serviu de pretexto para que este iniciasse, no começo de Novembro, acções armadas contra os restantes cantões. Em 23 de Novembro de 1847 o exército do Sonderbund foi derrotado pelas tropas do governo federal. Durante a guerra do Sonderbund, as potências reaccionárias da Europa ocidental, que dantes faziam parte da Santa Aliança — a Áustria e a Prússia — tentaram imiscuir-se nos assuntos suíços em benefício do Sonderbund. Guizot adoptou de facto uma posição de apoio a estas potências, tomando sob a sua defesa o Sonderbund.
16. Santa Aliança: agrupamento reaccionário dos monarcas europeus, fundada em 1815 pela Rússia tsarista, pela Áustria e pela Prússía para esmagar os movimentos revolucionários de alguns países e manter neles regimes monarco-feudais.
17. Anexação de Cracóvia pela Áustria, de acordo com a Rússia e a Prússia, 11 de Novembro de 1846. Guerra suíça do Sonderbund, 4/28 de Novembro de 1847. Insurreição de Palermo, 12 de Janeiro de 1848. Fim de Janeiro, bombardeamento da cidade durante nove dias pelos napolitanos. (Nota de Engels à edição de 1895.)
18. Em Buzançais (departamento de Indre), na Primavera de 1847, por iniciativa dos operários famintos e dos habitantes das aldeias vizinhas, foram assaltados armazéns de víveres pertencentes a especuladores; isto deu lugar a um sangrento choque da população com a tropa. Os acontecimentos de Buzançais provocaram uma cruel repressão governamental: quatro participantes directos nos acontecimentos foram executados em 16 de Abril de 1847, e muitos outros foram condenados a trabalhos forçados.
19. Em francês no texto: escroques. (Nota da edição portuguesa.
20. Em francês no texto: merceeiros. (Nota da edição portuguesa.)
21. Em francês no texto: lojistas. (Nota da edição portuguesa.)
22. Guarda Nacional: milícia voluntária civil armada, com comandos eleitos, que existiu em França e em alguns outros Estados da Europa ocidental. Foi criada pela primeira vez em França em 1789, no início da revolução burguesa; existiu com intervalos até 1871. Em 1870-1871, a Guarda Nacional de Paris, para a qual entraram, nas condições da guerra franco-prussiana, amplas massas democratas, desempenhou um grande papel revolucionário. Criado em Fevereiro de 1871, o Comité Central da Guarda Nacional encabeçou a insurreição proletária de 18 de Março de 1871 e no período inicial da Comuna de Paris de 1871 exerceu (até 28 de Março) as funções de primeiro governo proletário da história. Depois do esmagamento da Comuna de Paris a Guarda Nacional foi dissolvida.
23. Le National (O Nacional): jornal francês que se publicou em Paris de 1830 a 1851; órgão dos republicanos burgueses moderados. Os mais destacados representantes desta corrente no Governo Provisório eram Marrast, Bastide e Garnier-Pagès.
24. Em francês no texto: República Francesa! Liberdade, Igualdade, Fraternidade! (Nota da edição portuguesa.)
25. Legitímistas: partidários da dinastia «legítima» dos Bourbons, derrubada em 1830, que representava os interesses dos detentores de grandes propriedades fundiárias hereditárias. Na luta contra a dinastia reinante dos Orleães (1830-1848), que se apoiava na aristocracia financeira e na grande burguesia, uma parte dos legitimistas recorria frequentemente à demagogia liberal, apresentando-se como defensores dos trabalhadores contra os exploradores burgueses.
26. La Gazette de France (A Gazeta de França): jornal que se publicou em Paris desde 1631 até aos anos 40 do século XIX; órgão dos legitimistas, partidários da restauração da dinastia dos Bourbons.
27. Nos primeiros dias de existência da República Francesa colocou-se a questão da escolha da bandeira nacional. Os operários revolucionários de Paris exigiram que se declarasse insígnia nacional a bandeira vermelha, que foi arvorada nos subúrbios operários de Paris durante a insurreição de Junho de 1832. Os representantes da burguesia insistiram na bandeira tricolor (azul, branco e vermelho), que foi a bandeira da França no período da revolução burguesa de fins do século XVIII e do Império de Napoleão I. Já antes da revolução de 1848 esta bandeira tinha sido o emblema dos republicanos burgueses, agrupados em torno do jornal Le National. Os representantes dos operários viram-se obrigados a aceder que a bandeira tricolor fosse declarada a bandeira nacional da República Francesa. No entanto, à haste da bandeira foi acrescentada uma roseta vermelha.
28. Insurreição de Junho: heróica insurreição dos operários de Paris em 23-26 de Junho de 1848, esmagada com excepcional crueldade pela burguesia francesa. Esta insurreição foi a primeira grande guerra civil da história entre o proletariado e a burguesia.
29. Le Moniteur universel (O Mensageiro Universal): jornal francês, órgão oficial do governo, publicou-se em Paris de 1789 a 1901. Nas páginas do Moniteur eram obrigatoriamente publicadas as disposições do governo, informações parlamentares e outros materiais oficiais; em 1848 publicavam-se também neste jornal informações sobre as reuniões da Comissão do Luxemburgo.
30. Em francês no texto: "um governo que acaba com esse mal-entendido terrível que existe entre as diferentes classes". (Nota da edição portuguesa.)
31. A primeira república existiu em França de 1792 a 1804.
32. Em francês no texto: questão de honra. (Nota da edição portuguesa.)
33. Em francês no texto: os que possuem ou vivem de rendimentos. (Nota da edição portuguesa.)
34. Em francês no texto: Jacques o simples, nome depreciativo com que os nobres designavam os camponeses em França. (Nota da edição portuguesa.
35. Lazzaroni: alcunha dada em Itália aos lumpenproletários, aos elementos desclassificados; os lazzaroni eram frequentemente utilizados pelos círculos monárquico-reaccionários na luta contra o movimento democrático e liberal.
36. Segundo a "lei sobre os pobres" inglesa, só era admitida uma forma de ajuda aos pobres: o seu alojamento em casas de trabalho (workhouses), com um regime prisional; os operários realizavam aí trabalhos improdutivos, monótonos e extenuantes; estas casas de trabalho foram designadas pelo povo de "bastilhas para os pobres".
37. Em francês no texto: Abaixo Ledru-Rollin! (Nota da edição portuguesa.)
38. Aqui e até à p. 257 entende-se por Assembleia Nacional a Assembleia Nacional Constituinte que funcionou de 4 de Maio de 1848 até Maio de 1849.
39. Em francês no texto: cidadãos. (Nota da edição portuguesa.)
40. Trata-se dos dois partidos monárquicos da burguesia francesa na primeira metade do século XIX: os legitimistas e os orleanistas. Orleanisías: partidários dos duques de Orleães, ramo secundário da dinastia dos Bourbons, que se mantiveram no poder desde a revolução de Julho de 1830 até serem derrubados pela revolução de 1848; representavam os interesses da aristocracia financeira e da grande burguesia.
41. Em 15 de Maio de 1848, durante uma manifestação popular, os operários e artesãos de Paris penetraram na sala de sessões da Assembleia Constituinte, declararam-na dissolvida e formaram um governo revolucionário. No entanto, os manifestantes foram rapidamente dispersos pela Guarda Nacional e pela tropa. Os dirigentes dos operários (Blanqui, Barbes, Albert, Raspail, Sobrier e outros) foram presos.
42. Ver o artigo de Karl Marx «A Revolução de Junho».
43. Em francês no texto: Montanha. A par do nome francês, Marx usa também no original a palavra alemã (Berg). Neste último caso traduzimos directamente no texto por Montanha. (Nota da edição portuguesa.)
44. Trata-se dos democratas republicanos pequeno-burgueses e dos socialistas pequeno-burgueses, partidários do jornal francês La Reforme (A Reforma), publicado em Paris entre 1843 e 1850. Defendiam a instauração da república e a realização de reformas democráticas e sociais.
45. Em 16 de Abril de 1848 em Paris uma manifestação pacífica de operários que iam entregar uma petição ao Governo Provisório sobre a "organização do trabalho" e a "abolição da exploração do homem peio homem" foi detida pela Guarda Nacional burguesa, especialmente mobilizada para este fim.
46. No original: Haupt-und Staatsaktion. Esta expressão pode ter dois sentidos principais. Como se refere na nota 83 das Collected Works. Karl Marx/Frederik Engels, volume 10. Progress Publishers, Moscow 1978: "Primeiro, no século XVII e na primeira metade do século XVIII designava peças representadas por companhias alemãs ambulantes. As peças eram tragédias históricas, bastante informes, bombásticas e ao mesmo tempo grosseiras e burlescas. Segundo, este termo pode designar acontecimentos políticos de primeiro plano. Foi usado neste sentido por uma corrente da ciência histórica alemã, conhecida por 'historiografia objectiva'. Leopold Ranke foi um dos seus principais representantes. Considerava Haupt-und Staatsakion como o assunto principal." (Nota da edição portuguesa.)
47. Em francês no texto: a nulidade circunspecta. (Nota da edição Portuguesa.)
48. Trata-se do editorial do Journal des débats, de 28 de Agosto de 1848. Journal des débats politiques et littéraires (Jornal dos Debates Políticos e Literários): jornal burguês francês fundado em Paris em 1789. Durante a monarquia de Julho foi um jornal governamental, órgão da burguesia orleanista. Durante a revolução de 1848 o jornal exprimia as opiniões da burguesia contra-revolucionária, o chamado "partido da ordem".
49. Em francês no texto: taberneiros. (Nota da edição portuguesa.)
50. Em francês no texto: loja, isto é, os lojistas. (Nota da edição portuguesa.)
51. Em francês no texto: inquérito. (Nota da edição portuguesa.)
52. Em francês no texto: concordatas amigáveis. (Nota da edição portuguesa.)
53. Janízaros: infantaria regular dos sultões turcos, criada no século XIV, e que se distinguia pela sua extraordinária crueldade.
54. Em francês no texto: gentil-homem, cavalheiro. (Nota da edição portuguesa.)
55. Em latim no texto: Cartago tem de ser destruída. (Nota da edição portuguesa.)
56. Em francês no texto: glória. (Nota da edição portuguesa.)
57. Em francês no texto: terceiro-estado. (Nota da edição portuguesa.)
58. Em francês no texto: sem frase, sem rodeios. (Nota da edição portuguesa.)
59. O primeiro projecto de Constituição foi apresentado à Assembleia Nacional em 19 de Junho de 1848.
60. Segundo a lenda bíblica, Saul, primeiro rei hebreu, abateu na luta contra os filisteus milhares de inimigos, e o seu escudeiro David, protegido de Saul, dezenas de milhares. Depois da morte de Saul, David tornou-se rei dos hebreus.
61. Em francês no texto: golpe de Estado. (Nota da edição portuguesa.)
62. Flor-de-lis: emblema heráldico da monarquia dos Bourbons; violeta: emblema dos bonapartistas.
63. Marx refere-se ao comunicado de Paris de 18 de Dezembro, assinado com o sinal do correspondente Ferdinand Wolff, na Neue Rheinische Zeitung, n.° 174, de 21 de Dezembro de 1848. Possivelmente as palavras indicadas pertencem ao próprio Marx, que submeteu todo o material da revista a uma redacção cuidadosa.
64. Em francês no texto: em bloco. (Nota da edição portuguesa.)
65. Em francês no texto: Câmara Municipal. (Nota da edição portuguesa.)
66. Em francês no texto: cartas de amor. (Nota da edição portuguesa.)
67. Ver o presente tomo, p. 224. (Nota da edição portuguesa.)
68. Ver o presente tomo, p. 225. (Nota da edição portuguesa.)
69. Em francês no texto: salvação pública. (Nota da edição portuguesa.)
70. Pio IX.
71. Em francês no texto: as aparências. (Nota da edição portuguesa.)
72. Comité de Salvação Pública: órgão central do governo revolucionário da República Francesa, fundado em Abril de 1793. O Comité desempenhou um papel excepcionalmente importante na luta contra a contra-revolução interna e externa. Convenção: assembleia nacionaí da França no período da revolução burguesa francesa do século XVIII.
73. Partido da ordem: partido que surgiu em 1848 como partido da grande burguesia conservadora, constituía uma coligação das duas fracções monárquicas da França: os legitimistas e os orleanistas; de 1849 até ao golpe de Estado de 1851 ocupou uma posição dirigente na Assembleia Legislativa da Segunda República.
74. Restauração de 1814-1830: período do segundo reinado da dinastia dos Bourbons em França. O regime reaccionário dos Bourbons, que representava os interesses da corte e dos clericais, foi derrubado pela revolução de Julho de 1830.
75. Em Bourges realizou-se entre 7 de Março e 3 de Abril o julgamento dos participantes nos acontecimentos de 15 de Maio de 1848 (ver a nota 120). Barbes foi condenado a prisão perpétua, e Blanqui a 10 anos de prisão. Albert, De Flotte, Sobrier, Raspail e os restantes foram condenados a diversas penas de prisão e à deportação nas colónias.
76. O general Bréa, que comandava uma parte das tropas no esmagamento da insurreição de Junho do proletariado de Paris, foi morto pelos insurrectos junto das portas de Fontainebleau em 25 de Junho de 1848. Em relação com isto foram executados dois participantes na insurreição.
77. Em francês no texto: apesar de tudo. (Nota da edição portuguesa.)
78. Em francês no texto: republicanos puros e simples. (Nota da edição portuguesa.)
79. Daqui em diante até ao final desta obra entende-se por Assembleia Nacional a Assembleia Nacional Legislativa, que funcionou de 28 de Maio de 1849 a Dezembro de 1851.
80. La Démocratie pacifique (A Democracia Pacífica), jornal dos fourieristas, publicado em Paris entre 1843 e 1851 sob a direcção de V. Consideram. Na tarde de 12 de Junho de 1849 realizou-se nas instalações da redacção do jornal uma reunião dos deputados do partido da Montanha. Os participantes na reunião recusaram-se a recorrer à força das armas e decidiram limitar-se a uma manifestação pacífica.
81. No manifesto publicado no jornal Le Peuple (O Povo), n.° 206, de 13 de Junho de 1849, a Associação Democrática dos Amigos da Constituição apelava para os cidadãos de Paris para participarem numa manifestação pacífica de protesto contra as "atrevidas pretensões" do poder executivo.
82. A proclamação da Montanha foi publicada em La Reformee em La Démocratie pacifique, e também no jornal de Proudhon Le Peuple, em 13 de Junho de 1849.
83. No original: Claqueurhut, chapéu alto de molas. (Nota da edição portuguesa.)
84. Em francês no texto: Conservatório das Artes e Ofícios. (Nota da edição portuguesa.)
85. Em francês no texto: montanheses, membros ou deputados do partido da Montanha. (Nota da edição portuguesa.)
86. Em francês no texto: facto consumado. (Nota da edição portuguesa.)
87. A batalha de Waterloo (Bélgica) teve lugar em 18 de Junho de 1815. O exército de Napoleão foi derrotado. A batalha de Waterloo desempenhou um papel decisivo na campanha de 1815, determinando a vitória definitiva da coligação antinapoleónica das potências europeias e a queda do império de Napoleão I.
88. Marx refere-se à comissão do Papa Pio IX, composta por três cardeais, a qual, com o apoio do exército francês, depois do esmagamento da República Romana, restaurou em Roma um regime reaccionário. Os cardeais usavam paramentos de cor púrpura.
89. Le Siècle (O Século): jornal francês que se publicou em Paris entre 1836 e 1839; nos anos 40 do século XIX reflectia as opiniões da parte da pequena burguesia que se limitava a reivindicar reformas constitucionais moderadas; nos anos 50 foi o jornal dos republicanos moderados.
90. La Presse (A Imprensa): jornal que se publicou em Paris a partir de 1836; durante a monarquia de Julho tinha um carácter oposicionista; em 1848-1849 foi órgão dos republicanos burgueses; depois foi um órgão bonapartista.
91. Em francês no texto: A cada capacidade segundo as suas obras. (Alusão irónica a uma conhecida fórmula de Saint-Simon.) (Nota da edição portuguesa.)
92. Trata-se do conde de Chambord (que se denominava a si próprio Henrique V), do ramo principal da dinastia dos Bourbons, pretendente ao trono francês. Uma das residências permanentes de Chambord na Alemanha ocidental era, para além da cidade de Wiesbaden, a cidade de Ems.
93. Em latim no texto: Quanto as coisas tinham mudado! (Nota da edição portuguesa.)
94. Nos arredores de Londres, em Claremont, vivia Luís Filipe, que fugiu de França depois da revolução de Fevereiro de 1848.
95. Em latim no texto: Ou César ou Clichy! (Clichy: prisão para devedores em Paris.) (Nota da edição portuguesa.)
96. Motu próprio (por sua própria iniciativa): palavras iniciais de certas mensagens papais adoptadas sem o acordo dos cardeais, geralmente relacionadas com assuntos administrativos e de política interna dos domínios do Papa. Neste caso trata-se da mensagem do Papa Pio IX de 12 de Setembro de 1849.
97. Georg Herwegh, Aus den Bergen (Das Montanhas).
98. Em francês no texto: Vamos pois! Vamos pois! (Nota da edição portuguesa.)
99. Em francês no texto: a sério. (Nota da edição portuguesa.)
100. Napoleão José Bonaparte, filho de Jerónimo Bonaparte.
101. Em italiano no texto: no peito, isto é, no íntimo. (Nota da edição portuguesa.)
102. Em francês no texto: gendarmaria. (Nota da edição portuguesa.)
103. Em francês no texto: Não era assim tão estúpido! (Nota da edição portuguesa.)
104. Em inglês no texto: livre câmbio. (Nota da edição portuguesa.)
105. Esta conclusão da possibilidade da vitória da revolução proletária apenas em simultâneo nos países capitalistas avançados e, consequentemente, a impossibilidade da vitória da revolução num só país, que recebeu a sua formulação mais completa no trabalho de Engels Princípios Básicos do Comunismo (1847), era justa para o período do capitalismo pré-monopolista. Nas novas condições históricas, no período do capitalismo monopolista, V. I. Lénine, partindo da lei por ele descoberta do desenvolvimento político e económico desigual do capitalismo na época do imperialismo, chegou a uma nova conclusão: a da possibilidade da vitória da revolução socialista inicialmente nalguns ou num só pais, individualmente considerado, e da impossibilidade da vitória simultânea da revolução em todos os países ou na maioria deles. A formulação desta nova conclusão surge pela primeira vez no trabalho de Lénine Sobre a Palavra de Ordem dos Estados Unidos da Europa (1915).
106. A 8 de Julho de 1847 começou na Câmara dos Pares de Paris o processo contra Parmentier e o general Cubières acusados de suborno de funcionários para obtenção de uma concessão de sal-gema, e contra o então ministro das Obras Públicas, Teste, pela aceitação de tais subornos. Durante o processo, este último tentou suicidar-se. Todos eles foram condenados a pesadas multas. Teste, além disso, ainda a três anos de prisão. (Nota de Engels à edição de 1895.)
107. Em francês no texto: Viva o imposto sobre as bebidas (isto é, sobre o vinho)! (Nota da edição portuguesa.)
108. Em inglês no texto: Três vivas e mais um! (Nota da edição portuguesa.)
109. Em francês no texto: nobreza. (Nota da edição portuguesa.)
110. Em francês no texto: gente sobre quem se pode lançar impostos indiscriminadamente.
111. Em francês no texto: repartições alfandegárias locais. (Nota da edição portuguesa.)
112. O resultado não coincide: deve ser 578 178 000, e não 538 000 000; aparentemente, nos números referidos há uma gralha. Isto, no entanto, não tem influência na conclusão geral: tanto num caso como noutro os rendimentos líquidos por habitante são inferiores a 25 francos.
113. É este o nome que a história deu à Câmara de Deputados fanaticamente ultra-realista e reaccionária eleita em 1815, imediatamente a seguir à segunda queda de Napoleão. (Nota de Engels à edição de 1895.)
114. No departamento de Gard, em resultado da morte do deputado legitimista De Beaune, realizaram-se eleições parciais. Foi eleito Favaune, candidato dos partidários da Montanha, por uma maioria de 20 000 votos num total de 36 000.
115. Em francês no texto: terror branco. (Nota da edição portuguesa.)
116. Em francês no texto: presidente da Câmara Municipal. (Nota da edição portuguesa.)
117. Em 1850 o governo dividiu o território da França em cinco grandes regiões militares, em resultado do que Paris e os departamentos vizinhos ficaram cercados pelas restantes quatro regiões, à cabeça das quais foram colocados os reaccionários mais declarados. Ao sublinhar a semelhança entre o poder ilimitado destes generais reaccionários e o poder despótico dos paxás turcos, a imprensa republicana chamou a estas regiões paxaliques.
118. Trata-se da mensagem do presidente Luís Bonaparte à Assembleia Legislativa, enviada em 31 de Outubro de 1849, na qual informava que aceitava a demissão do governo de Barrot e formava um novo governo.
119. Em francês no texto: dedicação. (Nota da edição portuguesa.)
120. Na mensagem de 10 de Novembro de 1849, Carlier, recém-nomeado prefeito da polícia de Paris, apelava para a criação de uma "liga social contra o socialismo", para a defesa "da religião, do trabalho, da família, da propriedade, da lealdade".
121. Em francês no texto: ostentação. (Nota da edição portuguesa.)
122. Le Napoléon (O Napoleão): jornal que se publicou em Paris de 6 de Janeiro a 19 de Maio de 1850.
123. Em francês no texto: por junto. (Nota da edição portuguesa.)
124. Em francês no texto: a retalho. (Nota da edição portuguesa.)
125. Jogo de palavras com as expressões francesas coup detat (golpe de Estado) e coup de tête (acto arriscado, arrogante). (Nota da edição portuguesa.)
126. Em francês no texto: casamento desigual. (Nota da edição portuguesa.)
127. Free-traders (livre-cambistas): partidários da liberdade de comércio e da não intervenção do Estado na vida económica. Nos anos 40-50 do século XIX os livre-cambistas constituíram um agrupamento político à parte, que posteriormente entrou para o Partido Liberal.
128. Em francês no texto: por excelência. (Nota da edição portuguesa.)
129. Em francês no texto: liga. (Nota da edição portuguesa.)
130. Napoleão III.
131. As árvores da Liberdade foram plantadas nas ruas de Paris depois da vitória da revolução de Fevereiro de 1848. A plantação das árvores da liberdade — geralmente carvalhos e álamos — tornou-se uma tradição em França já no período da revolução burguesa francesa de fins do século XVIII e foi introduzida nessa altura por uma disposição da Convenção.
132. A coluna de Julho, erigida em Paris de 1840 na Praça da Bastilha em memória dos mortos da revolução de Julho de 1830, estava adornada com coroas de sempre-vivas desde os tempos da revolução de Fevereiro de 1848.
133. De Flotte, partidário de Blanqui e representante do proletariado revolucionário de Paris, obteve 126 643 votos nas eleições de 15 de Março de 1850.
134. Jogo de palavras: gregos, mas também: trapaceiros profissionais. (Nota de Engeh à edição de 1895.)
135. Coblença: cidade da Alemanha Ocidental; durante a revolução burguesa francesa de fins do século XVIII foi o centro da emigração contra-revolucionária.
136. Palavras atribuídas a Luís XV.
137. Neue Rheinische Zeitung. Politisch-ökonomische Revue (Nova Gazeta Renana. Revista Político-Económica): revista fundada por Marx e Engels em 1849 e por ele editada até Novembro de 1850; órgão teórico e político da Liga dos Comunistas. Imprimia-se em Hamburgo. Saíram seis números. Deixou de existir devido às perseguições policiais na Alemanha e à falta de meios materiais.
138. Este parágrafo de introdução foi escrito por Engels para a edição de 1895.
139. Ver o presente tomo, pp 276-281. (Nota da edição portuguesa)
140. Em 1797 o governo inglês promulgou uma lei especial sobre a restrição (limitação) bancária que estabelecia o curso forçado das notas e abolia a troca de notas por ouro. A troca de notas por ouro só foi restabelecida em 1819.
141. Em francês no texto: costureiras. (Nota da edição portuguesa.)
142. Burgraves foi a alcunha dada aos dezassete dirigentes orleanistas e legitimistas que faziam parte da comissão da Assembleia Legislativa para a elaboração do projecto de nova lei eleitoral. A alcunha ficou a dever-se às suas injustificadas pretensões ao poder e às suas aspirações reaccionárias. A alcunha foi retirada do drama histórico homónimo de Victor Hugo sobre a vida da Alemanha medieval. Na Alemanha, os burgraves eram os governadores das cidades e províncias nomeados pelo imperador.
143. Em francês no texto: calma majestosa. (Nota da edição portuguesa.)
144. L’Assemblée nationale (A Assembleia Nacional): jornal francês de orientação monárquico-legitimista publcado em Paris de 1848 a 1857. Em 1848-1851 exprimia as opiniões dos partidários da fusão de ambos os partidos dinásticos — os legitimistas e os orleanistas.
145. Le Conslitutionnel (O Constitucional): jornal burguês francês; publicou-se em Paris de 1815 a 1870; nos anos 40 foi o órgão da ala moderada dos orleanistas; durante a revolução de 1848 exprimiu as opiniões da burguesia contra-revolucionária, agrupada em torno de Thiers; depois do golpe de Estado de Dezembro de 1851 tornou-se um jornal bonapartista.
146. Em inglês no texto. Escritores pagos a um penny por linha. (Nota da edição portuguesa.)
147. Em latim no texto: atestados de pobreza. (Nota da edição portuguesa.)
148. Ver o presente tomo, p. 276. (Nota da edição portuguesa.)
149. Em francês no texto: republicanos à força. Alusão à comédia de Molière Le médecin malgré lui (O Médico à Força). (Nota da edição portuguesa.)
150. Baiser-Lamourette (beijo-Lamourette): alusão a um conhecido episódio do tempo da revolução burguesa francesa de fins do século XVIII. Em 7 de Juiho de 1792 o deputado à Assembleia Legislativa Lamourette propôs que se acabasse com todas as divergências partidárias através de um beijo fraternal. Seguindo o seu apelo, os representantes de partidos hostis abraçaram-se mutuamente, mas, como era de esperar, logo no dia seguinte este hipócrita "beijo fraternal" foi esquecido.
151. Em francês no texto: de má vontade. (Nota da edição portuguesa.)
152. Le Pouvoir (O Poder): jornal bonapartista fundado em Paris de 1849; com este título publicou-se entre Junho de 1850 e Janeiro de 1851.
153. Em francês no texto: gerente. (Nota da edição portuguesa.)
154. Segundo o artigo 32 da Constituição da República Francesa devia ser criada, durante a interrupção das sessões da Assembleia Legislativa, uma comissão permanente composta por 25 membros eleitos e pela Mesa da Assembleia. A comissão tinha o direito de convocar, se necessário, a Assembleia Legislativa. Em 1850 esta comissão era composta de facto por 39 membros: 11 membros da Mesa, 3 questores e 25 membros eleitos.
155. Trata-se do gabinete de ministros projectado pelos legitimistas e composto por de Lévis, Saint-Priest, Berryer, Pastoret e d'Escars, para o caso de o conde de Chambord subir ao poder.
156. In partibus infidelium (literalmente: no país dos infiéis): adição ao título dos bispos católicos designados para cargos puramente nominais em países não cristãos. Esta expressão encontra-se frequentemente em Marx e Engels aplicada a diferentes governos emigrados, formados no estrangeiro sem ter minimamente em conta a situação real no pais.
157. Trata-se do chamado "manifesto de Wiesbaden", circular redigida em 30 de Agosto de 1850 em Wiesbaden pelo secretário da fracção legitimista na Assembleia Legislativa, De Barthélemy, por encargo do conde de Chambord. Nesta circular era definida a política dos legitimistas no caso de subirem ao poder; o conde de Chambord declarava que "rejeitava oficial e categoricamente qualquer apelo ao povo, pois tal apelo significava a renúncia ao grande princípio nacional de uma monarquia hereditária". Esta declaração provocou uma polémica na imprensa em relação com o protesto de uma série de monárquicos chefiados pelo deputado La Rochejaquelein.
158. Em francês no texto: encontro. (Nota da edição portuguesa.)
159. Ver o presente tomo, pp. 464-466. (Nota da edição portuguesa.)
160. Em francês no texto: Viva Napoleão, viva o salsichão! Na versão alemã, traduzida a seguir, joga-se com as palavras Wurst e Hanswurst. (Nota da edição portuguesa.)@ [161] Em francês no texto: Viva o Imperador! (Nota da edição portuguesa.)