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Teoria dos sentimentos morais
Adam Smith

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Content
PRIMEIRA PARTE. DA CONVENIÊNCIA DA AÇÃO
SEÇÃO I Do senso de conveniência
CAPÍTULO I Da simpatia
CAPÍTULO II Do prazer da simpatia mútua
CAPÍTULO III Da maneira pela qual julgamos a conveniência ou inconveniência dos afetos alheios, por sua consonância ou dissonância em relação aos nossos
CAPÍTULO IV Continuação do mesmo assunto
CAPÍTULO V Das virtudes amáveis e respeitáveis
EÇÃO II Dos graus das diversas paixões compatíveis com a conveniência
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO I Das paixões que se originam do corpo
CAPÍTULO II Das paixões que se originam de um pendor ou hábito particular da imaginação
CAPÍTULO III Das paixões insociáveis
CAPÍTULO IV Das paixões sociáveis
CAPÍTULO V Das paixões egoístas
SEÇÃO III Dos efeitos da prosperidade e da adversidade sobre o julgamento dos homens quanto à conveniência da ação; e por que é mais ƒácil obter sua aprovação numa situação mais que em outra
CAPÍTULO I Que embora nossa simpatia pelo sofrimento seja geralmente uma sensação mais viva que nossa simpatia pela alegria, é em geral muito menos intensa que a naturalmente sentida pela pessoa diretamente atingida
CAPÍTULO II Da origem da ambição e da distinção social
CAPÍTULO III Da corrupção de nossos sentimentos morais, provocada por essa disposição de admirar os ricos e grandes, e desprezar ou negligenciar os de condição pobre ou mesquinha
SEGUNDA PARTE. DO MÉRITO E DO DEMÉRITO OU DOS OBJETOS DE RECOMPENSA E DE CASTIGO
SEÇÃO I Do senso de mérito e demérito
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO I O que parece objeto próprio de gratidão parece merecer recompensa; e, do mesmo modo, o que parece objeto próprio de ressentimento parece merecer punição
CAPÍTULO II Dos objetos apropriados de gratidão e ressentimento
CAPÍTULO III Quando não há aprovação da conduta da pessoa que confere o benefício, há pouca simpatia pela gratidão daquele que o recebe; e, inversamente, quando há desaprovação dos motivos da pessoa que comete o dano, não há nenhuma espécie de simpatia pelo ressentimento de quem o sofre
CAPÍTULO IV Recapitulação dos capítulos anteriores
CAPÍTULO V A análise do senso de mérito e demérito
SEÇÃO II Da justiça e da beneficência
CAPÍTULO I Comparação entre aquelas duas virtudes
CAPÍTULO II Do senso de justiça, de remorso, e da consciência do mérito
CAPÍTULO III Da utilidade dessa constituição da natureza
SEÇÃO III Da influência da fortuna sobre os sentimentos da humanidade quanto ao mérito ou demérito das ações
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO I Das causas dessa influência da fortuna
CAPÍTULO II Dos limites dessa influência da fortuna
CAPÍTULO III Da causa final dessa irregularidade dos sentimentos
TERCEIRA PARTE DO FUNDAMENTO DE NOSSOS JUÍZOS QUANTO A NOSSOS PRÓPRIOS SENTIMENTOS E CONDUTA, E DO SENSO DE DEVER
CAPÍTULO I Do princípio da aprovação e de desaprovação de si mesmo
CAPÍTULO II Do amor ao louvor, e do amor ao que é louvável; e do horror à censura, e ao que é censurável
CAPÍTULO III Da influência e autoridade da consciência
CAPÍTULO IV Da natureza do auto-engano, e da origem e utilidade de regras gerais
CAPÍTULO V Da influência e da autoridade de regras gerais da moralidade, que são justamente consideradas como as leis da Divindade
CAPÍTULO VI Em que casos o senso do dever deveria ser o único princípio de nossa conduta; e em que casos deveria coincidir com outros motivos
QUARTA PARTE DO EFEITO DA UTILIDADE SOBRE O SENTIMENTO DE APROVAÇÃO
CAPÍTULO I Da beleza que a aparência de utilidade confere a todos os produtos de arte, e da ampla influência dessa espécie de beleza
CAPÍTULO II Da beleza que a aparência de utilidade confere aos caracteres e ações dos homens; e em que medida a percepção dessa beleza pode ser considerada como um dos princípios de aprovação originais
QUINTA PARTE DA INFLUÊNCIA DOS USOS E COSTUMES SOBRE OS SENTIMENTOS DE APROVAÇÃO E DESAPROVAÇÃO MORAL
CAPÍTULO I Da influência dos usos e costumes sobre nossas noções de beleza e deformidade
CAPÍTULO II Da influência dos usos e costumes sobre os sentimentos morais
SEXTA PARTE DO CARÁTER DA VIRTUDE
INTRODUÇÃO
SEÇÃO I Do caráter do indivíduo, na medida em que afeta sua própria felicidade; ou da prudência
SEÇÃO II Do caráter do indivíduo na medida em que pode afetar a felicidade de outras pessoas
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO I Da ordem em que indivíduos são recomendados por natureza aos nossos cuidados e atenção
CAPÍTULO II Da ordem em que as sociedades são por natureza recomendadas à nossa beneficência
CAPÍTULO III Da benevolência universal
SEÇÃO III Do autodomínio
CONCLUSÃO DA SEXTA PARTE
SÉTIMA PARTE DOS SISTEMAS DE FILOSOFIA MORAL
SEÇÃO I Das questões que deveriam ser examinadas numa teoria dos sentimentos morais
SEÇÃO II Das diferentes descrições quanto à natureza da virtude
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO I Dos sistemas que fazem a virtude consistir na conveniência
CAPÍTULO II Dos sistemas que fazem a virtude consistir na prudência
CAPÍTULO III Dos sistemas que fazem a virtude consistir na benevolência
CAPÍTULO IV Dos sistemas licenciosos
SEÇÃO III Dos diferentes sistemas que se formaram quanto ao princípio da aprovação
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO I Dos sistemas que deduzem do amor de si o princípio da aprovação
CAPÍTULO II Dos sistemas que fazem da razão o princípio da aprovação
CAPÍTULO III Dos sistemas que fazem do sentimento o princípio da aprovação
SEÇÃO IV Da maneira como diferentes autores trataram as regras práticas da moralidade
 

 
PRIMEIRA PARTE. DA CONVENIÊNCIA DA AÇÃO

 
SEÇÃO I Do senso de conveniência

 
CAPÍTULO I Da simpatia
Por mais egoísta que se suponha o homem, evidentemente há alguns princípios em sua natureza que o fazem interessar-se pela sorte de outros, e considerar a felicidade deles necessária para si mesmo, embora nada extraia disso senão o prazer de assistir a ela. Dessa espécie é a piedade, ou compaixão, emoção que sentimos ante a desgraça dos outros, quer quando a vemos, quer quando somos levados a imaginá-la de modo muito vivo. É fato óbvio demais para precisar ser comprovado, que freqüentemente ficamos tristes com a tristeza alheia; pois esse sentimento, bem como todas as outras paixões originais da natureza humana, de modo algum se limita aos virtuosos e humanitários, embora estes talvez a sintam com uma sensibilidade mais delicada. O maior rufião, o mais empedernido infrator das leis da sociedade, não é totalmente desprovido desse sentimento.

Como não temos experiência imediata do que outros homens sentem, somente podemos formar uma idéia da maneira como são afetados se imaginarmos o que nós mesmos sentiríamos numa situação semelhante. Embora nosso irmão esteja sendo torturado, enquanto nós mesmos estamos tranqüilos, nossos sentidos jamais nos informarão sobre o que ele sofre. Pois não podem, e jamais poderão, levar-nos para além de nossa própria pessoa, e apenas pela imaginação nos é possível conceber em parte quais as suas sensações. Tampouco essa faculdade nos pode ajudar senão representando para nós as próprias sensações se nos encontrássemos em seu lugar. Nossa imaginação apenas reproduz as impressões de nossos sentidos, e não as alheias. Por intermédio da imaginação podemos nos colocar no lugar do outro, concebemo-nos sofrendo os mesmos tormentos, é como se entrássemos no corpo dele e de certa forma nos tornássemos a mesma pessoa, formando, assim, alguma idéia das suas sensações, e até sentindo algo que, embora em menor grau, não é inteiramente diferente delas. Assim incorporadas em nós mesmos, adotadas e tornadas nossas, suas agonias começam finalmente a nos afetar, e então trememos, e sentimos calafrios, apenas à imagem do que ele está sentindo. Pois, assim como sentir uma dor ou uma aflição qualquer provoca a maior tristeza, do mesmo modo conceber ou imaginar que a estamos sofrendo provoca certo grau da mesma emoção, na medida da vivacidade ou embotamento dessa concepção.

Que essa é a fonte de nossa solidariedade para com a desgraça alheia, que é trocando de lugar, na imaginação, com o sofredor, que podemos ou conceber o que ele sente ou ser afetados por isso, poder-se-ia demonstrar por muitas observações óbvias, caso se julgue que não é bastante evidente por si. Quando vemos que um golpe está prestes a ser desferido sobre a perna ou o braço de outra pessoa naturalmente encolhemos e retiramos nossa própria perna ou braço; e, quando o golpe finalmente é desferido, de algum modo o sentimos e somos por ele tão atingidos quanto quem de fato o sofreu. Ao admirar um bailarino na corda bamba, as pessoas da multidão naturalmente contorcem, meneiam e balançam seus corpos como o vêem fazer, e como sentem que teriam de fazer se estivessem na mesma situação. Pessoas de fibras delicadas e constituição física frágil queixam-se de que, olhando as feridas e úlceras expostas pelos mendigos nas ruas, com facilidade sentem desconforto ou coceira na parte correspondente de seus próprios corpos. O horror que concebem vendo o infortúnio desses desgraçados afeta mais aquela parte específica do que qualquer outra, porque aquele horror se origina de se conceber o que elas próprias sofreriam se realmente fossem os desgraçados a quem contemplam, e se aquela parte específica de seu corpo fosse de fato afetada da mesma forma miserável. Basta apenas a força dessa concepção para produzir, em suas estruturas frágeis, aquela sensação de coceira ou desconforto de que se queixam. Homens de constituição bastante saudável comentam que, ao verem olhos feridos, freqüentemente sentem uma considerável irritação em seus próprios olhos, o que se origina do mesmo motivo; pois mesmo em homens vigorosos esse órgão é mais delicado do que qualquer outra parte do corpo do homem mais frágil.

Essas circunstâncias que produzem tristeza ou dor não são as únicas que provocam nossa solidariedade. Seja qual for a paixão que proceda de um objeto qualquer na pessoa primeiramente atingida, uma emoção análoga brota no peito de todo espectador atento ao pensar na situação das outras. Nossa alegria pela salvação dos heróis que nos interessam nas tragédias ou romances é tão sincera quanto nossa dor pela sua aflição, e nossa solidariedade para com seu infortúnio não é mais real do que para com sua felicidade. Partilhamos da sua gratidão para com aqueles amigos fiéis que não os desampararam em suas tribulações; e de boa vontade participamos de seu ressentimento contra aqueles pérfidos traidores que os ofenderam, abandonaram ou enganaram. Em todas as paixões de que é suscetível o espírito do homem, as emoções do espectador sempre correspondem àquilo que, atribuindo-se o caso, imagina seriam os sentimentos do sofredor.

Piedade e compaixão são palavras que com propriedade denotam nossa solidariedade pelo sofrimento alheio. Simpatia, embora talvez originalmente sua significação fosse a mesma, pode agora ser usada, sem grande impropriedade, para denotar nossa solidariedade com qualquer paixão.

Em algumas ocasiões, a simpatia parece surgir da mera visão de certa emoção em outra pessoa. Em algumas ocasiões, as paixões parecerão transfundidas de um homem a outro instantaneamente, previamente a qualquer conhecimento do que as estimulou na pessoa primeiramente atingida. Dor e alegria, por exemplo, intensamente expressas no olhar ou gestos de qualquer pessoa, imediatamente afetam o espectador com uma semelhante emoção dolorosa ou agradável. Um rosto sorridente, para os que o vêem, é um objeto que alegra; um semblante sofredor, de outro lado, é melancólico.

Todavia, isso não é universalmente válido, ou válido para todas as paixões. Existem algumas cujas expressões não provocam nenhum tipo de simpatia, mas, antes de nos inteirarmos do que as ocasionou, servem mais para nos provocar aversão e incitar contra elas. O comportamento furioso de um homem irado provavelmente tende a nos exasperar mais contra ele do que contra seus inimigos. Como não estamos a par dos motivos que o provocaram, não podemos fazer nosso o seu caso, nem conceber nada parecido com as paixões que esses motivos excitam. Mas vemos claramente qual a situação daqueles com os quais está irado, e a que violência eles podem estar expostos, de parte de um adversário tão enfurecido. Por isso, prontamente simpatizamos com o medo ou ressentimento deles, e imediatamente nos dispomos a tomar partido contra o homem que aparentemente os põe em perigo.

Se a mera aparência de dor e alegria bastam para nos inspirar algum grau de emoções semelhantes, é porque nos sugere a idéia geral de alguma boa ou má sorte que sucedeu à pessoa em quem as observamos, e, tratando-se dessas paixões, isso é suficiente para exercer alguma influência sobre nós. Os efeitos de dor e alegria se esgotam na pessoa que experimenta essas emoções, cujas expressões não nos sugerem, como as de ressentimento, a idéia de nenhuma outra pessoa com a qual nos importamos, e cujos interesses sejam opostos aos desta. A idéia geral de boa ou má sorte cria, portanto, certa preocupação com a pessoa que as experimentou; mas a idéia geral de insulto não suscita simpatia para com a ira do homem que foi insultado. Parece que a natureza nos ensina a sermos mais avessos a partilhar dessa paixão, e, até sermos informados de sua causa, a preferir, antes, tomar partido contra ela.

Até mesmo nossa simpatia pela dor ou alegria de outrem, antes de sermos informados das causas de uma ou outra é sempre muito imperfeita. Lamentações genéricas, que nada expressam senão a angústia do sofredor, criam mais curiosidade de investigar sua situação, junto com alguma disposição de simpatizar com ele, do que uma verdadeira simpatia bastante perceptível. A primeira pergunta que fazemos é: O que lhe aconteceu? Até que obtenhamos a resposta, nossa solidariedade não será de muita monta, a despeito da inquietação que sentimos pela vaga idéia de seu infortúnio e, sobretudo, por nos torturarmos com conjeturas sobre o que poderia ser.

Por conseguinte, a simpatia não surge tanto de contemplar a paixão, como da situação que a provoca. Às vezes sentimos por outra pessoa uma paixão da qual ela parece totalmente incapaz; porque, quando nos colocamos em seu lugar, essa paixão que brota em nosso peito se origina da imaginação, embora no dele não se origine da realidade. Coramos pelo despudor e rudeza de outra pessoa, embora ela mesma pareça nem suspeitar da impropriedade de seu comportamento, uma vez que não podemos evitar de sentir que constrangimento nos invadiria se nos portássemos de maneira tão indigna.

De todas as calamidades às quais a condição de mortalidade expõe a espécie humana, a perda da razão de longe parece a mais terrível, mesmo para os que possuem a menor fagulha de humanidade, e contemplam esse último estágio de desgraça humana com comiseração mais profunda do que qualquer outro. Mas o pobre desgraçado que dela padece talvez ria e cante, e esteja totalmente inconsciente de seu próprio infortúnio. A angústia que a humanidade sente à vista de tal objeto não pode, pois, ser reflexo de nenhum sentimento do sofredor. A compaixão do espectador tem de surgir da consideração do que ele próprio sentiria se fosse reduzido à mesma infeliz situação, e, o que talvez seja impossível, se pudesse, ao mesmo tempo, analisá-la com sua atual razão e julgamento.

Quais as dores de uma mãe quando ouve os gemidos de seu filhinho que, na agonia da enfermidade, não consegue expressar o que sente? Na sua idéia do que a criança está sofrendo, ela soma ao real desamparo da criança sua própria consciência desse desamparo, e seu próprio terror das conseqüências desconhecidas dessa perturbação; e de tudo isso forma, para sua própria dor, a mais completa imagem da desgraça e da aflição. O bebê, entretanto, sente apenas o desconforto do momento presente, que nunca pode ser muito grande. Quanto ao futuro, ele está perfeitamente seguro, e em sua despreocupação e falta de previsão possui um antídoto contra o medo e a ansiedade, grandes atormentadores do peito humano, dos quais a razão e a filosofia tentarão, em vão, defendê-lo quando se tornar um homem.

Simpatizamos até mesmo com os mortos, e contemplando o que é de real importância em sua situação – esse terrível futuro que os aguarda –, principalmente nos afetam aquelas circunstâncias que chocam nossos sentidos, mas que em nada podem influenciar sua felicidade. Pensamos que é uma desgraça ser privado da luz do sol; ser afastado da vida e do convívio; jazer numa fria sepultura, presa da corrupção e dos répteis da terra; não ser mais lembrado neste mundo, mas, ao contrário, em pouco tempo ser apagado das afeições e quase da memória dos mais amados amigos e parentes. Certamente, imaginamos, jamais será excessivo lamentar por aqueles que sofreram uma tão terrível calamidade. O tributo de nossa solidariedade parece ser-lhes duplamente devido, agora que estão em perigo de ser esquecidos por todos, e, com as vãs honrarias que prestamos à sua memória, tentamos, para nossa própria infelicidade, manter viva, artificialmente, nossa melancólica lembrança de seu infortúnio. O fato de nossa solidariedade não lhes dar nenhum consolo parece agravar essa calamidade; e pensar que tudo o que podemos fazer é inútil, e que aquilo que alivia todas as demais aflições – o remorso, o amor, e os lamentos de seus amigos – já não os pode confortar, serve apenas para intensificar nossa sensação e sua desgraça. Porém, a felicidade dos mortos certamente não é afetada por nenhuma dessas circunstâncias; nem o pensamento dessas coisas poderá jamais perturbar a profunda segurança de seu descanso. A idéia dessa terrível e interminável melancolia, que a imaginação naturalmente atribui à sua condição, origina-se de associarmos, à mudança que se produziu sobre eles, nossa própria consciência dessa mudança; origina-se de nos colocarmos em seu lugar, e, se me permitem a expressão, de alojarmos nossas almas vivas em seus corpos inanimados, concebendo, assim, quais seriam nossas emoções nesse caso. É por essa verdadeira ilusão da imaginação que se torna tão terrível para nós a previsão de nossa própria morte, e que a idéia dessas circunstâncias, que sem dúvida não podem nos causar dor quando estivermos mortos, nos torna desgraçados enquanto vivemos. E daí nasce um dos mais importantes princípios da natureza humana, o terror da morte – grande veneno da felicidade, mas grande freio da injustiça humana; que, se de um lado aflige e mortifica o indivíduo, guarda e protege a sociedade.


 
CAPÍTULO II Do prazer da simpatia mútua
Mas, seja qual for a causa da simpatia, ou do que a provoca, nada nos agrada mais do que observar em outros homens uma solidariedade com todas as emoções de nosso próprio peito; e nada nos choca mais do que a aparência do contrário. Aqueles que se comprazem em deduzir todos os nossos sentimentos de certas sutilezas do amor de si julgam que não se equivocam, segundo seus próprios princípios, ao responsabilizarem-no tanto por esse prazer como por essa dor.

O homem, dizem, consciente de sua própria fraqueza e da necessidade que tem da ajuda de outros, regozija-se ao observar que adotam suas próprias paixões, porque isso o assegura dessa ajuda; mas sente-se triste sempre que observa o contrário, porque isso o certifica de sua oposição. Todavia, tanto o prazer quanto a dor são sempre sentidos tão instantaneamente, e com freqüência por motivos tão frívolos, que parece evidente que não poderiam resultar de nenhuma consideração egoísta desse tipo. Um homem se sente mortificado quando, depois de se ter esforçado para divertir a reunião, olha em torno e vê que ninguém, senão ele próprio, ri de suas graças. Ao contrário, a jovialidade do grupo lhe agrada muitíssimo, e considera essa reciprocidade entre os seus sentimentos e os deles como o mais caloroso aplauso.

Tampouco seu prazer parece originar-se inteiramente da vivacidade com que sua jovialidade se vê aumentada pela simpatia dos outros, nem sua dor brota da decepção quando lhe falta esse prazer, embora sem dúvida um e outro sejam em alguma medida relevantes. Quando lemos um livro ou poema tantas vezes que já não nos divertimos mais nem um pouco lendo-o sozinhos, sua leitura ainda pode nos divertir em companhia de um outro. Para este, terá todas as graças da novidade; partilharemos da surpresa e admiração que naturalmente desperta nessa pessoa, mas que nós somos incapazes de sentir; apreciamos todas as idéias que vão surgindo, mais sob a luz em que aparecem a ele do que sob aquela em que aparecem para nós, e nos divertimos por simpatia para com a sua diversão, que então anima a nossa. Ao contrário, ficaríamos vexados se ele não parecesse entretido com isso, e não retiraríamos mais nenhum prazer da leitura. Trata-se de um caso semelhante. A jovialidade da reunião sem dúvida anima a nossa própria; e, sem dúvida também, seu silêncio nos decepciona. Mas, embora isso possa contribuir tanto para o prazer que tiramos de uma como para a dor que experimentamos pela outra, não é, em absoluto, a única causa de um e outro; e essa reciprocidade dos sentimentos alheios com os nossos parece ser a causa do prazer, e sua ausência, a causa de dor, o que não pode ser explicado dessa maneira. A simpatia que meus amigos expressam pela minha alegria pode de fato proporcionar-me prazer, reanimando essa alegria; mas a que expressam com relação à minha dor não pode me causar nenhum, se serviu apenas para reavivar essa dor. Porém, a simpatia reaviva a alegria e alivia a dor. Reaviva a alegria apresentando outra fonte de satisfação; e alivia a dor insinuando, no coração, quase a única sensação agradável que nesse momento é capaz de receber.

Deve-se observar, com efeito, que desejamos muito mais comunicar aos amigos nossas paixões desagradáveis do que as agradáveis; que extraímos muito mais satisfação de sua simpatia para com as primeiras do que com as últimas, e que a ausência desta nos choca mais que a daquelas.

Como ficam aliviados os infelizes quando encontram uma pessoa a quem podem comunicar a causa de sua dor! Com essa simpatia parecem livrar-se de parte de sua aflição; e não sem razão se diz que essa pessoa partilha dela. Não apenas sente uma dor da mesma espécie que ele sente, mas é como se houvesse transposto parte dela para si própria; o que ela experimenta parece aliviar o peso do que eles sentem. Não obstante, ao relatarem seus infortúnios, renovam em alguma medida sua dor. Desperta na memória a lembrança das circunstâncias que provocam sua aflição. De modo que suas lágrimas correm mais rápidas que antes, e com facilidade se abandonam aos excessos do sofrimento. Mas em tudo isso têm algum gosto, e é evidente que ficam sensivelmente aliviados; porque a doçura da simpatia dessa pessoa mais do que compensa a amargura dessa dor que, a fim de provocar essa simpatia, tiveram de reavivar e renovar. Ao contrário, o mais cruel insulto com que se pode ofender os infelizes é parecer desdenhar suas calamidades. Aparentar indiferença ante a alegria de nossos companheiros nada mais é que falta de educação; mas não mostrar um semblante grave quando nos contam suas aflições é verdadeira e grosseira desumanidade.

O amor é uma paixão agradável e o ressentimento, desagradável: e, por isso, não desejamos tanto que nossos amigos aceitem nossa amizade mas que partilhem de nossos ressentimentos. Podemos perdoar os que demonstrem pouco interesse pelos favores que possamos ter recebido, mas perdemos toda a paciência se permanecem indiferentes quanto às ofensas que alguém possa ter-nos causado e não ficamos tão zangados com eles por não partilharem de nossa gratidão quanto por não se solidarizarem com nosso ressentimento. Podem facilmente evitar de ser amigos de nossos amigos, mas dificilmente podem evitar de ser inimigos daqueles de quem estamos afastados. Raramente nos ressentimos porque são inimigos dos primeiros, ainda que quanto a isso por vezes possamos simular desgosto; mas brigamos energicamente se vivem em amizade com os últimos. As paixões agradáveis do amor e felicidade podem satisfazer e amparar o coração sem qualquer prazer auxiliar. As amargas e dolorosas emoções da dor e do ressentimento exigem mais fortemente o consolo saudável da simpatia.

Assim como a pessoa a quem mais interessa certo acontecimento fica satisfeita com nossa simpatia, e magoada quando esta falta, assim também nós parecemos satisfeitos quando somos capazes de simpatizar com ela, e ficamos magoados quando incapazes disso. Não apenas nos precipitamos para parabenizar os bem sucedidos mas também para confortar os aflitos; e o prazer que encontramos na conversa com alguém, com cujas paixões do coração podemos simpatizar inteiramente, parece fazer mais do que compensar a dor daquela infelicidade com que nos afeta a vista da sua situação. Ao contrário, é sempre desagradável perceber que não podemos simpatizar com ela; e, em vez de ficarmos contentes com essa isenção de uma dor solidária, machuca-nos ver que não conseguimos partilhar do seu desconforto. Se ouvimos uma pessoa lamentar em altas vozes seus infortúnios, que, entretanto, não produzem em nós um efeito tão violento ao pensarmos que essa situação poderia ser a nossa, sua dor nos é ofensiva; e, como não conseguimos experimentá-la, chamamo-la de pusilanimidade e fraqueza. Por outro lado, impacienta-nos ver outra pessoa feliz ou, por assim dizer, eufórica demais, por qualquer bocadinho de boa sorte. Ficamos até mesmo desobrigados em relação à sua felicidade; e, como não conseguimos partilhar dela, chamamo-la de veleidade e desatino. Perdemos o humor se nossos companheiros riem de uma piada mais alto ou por mais tempo do que julgamos que ela mereça; quer dizer, mais do que sentimos que nós seríamos capazes de rir dela.


 
CAPÍTULO III Da maneira pela qual julgamos a conveniência ou inconveniência dos afetos alheios, por sua consonância ou dissonância em relação aos nossos
Quando as paixões da pessoa a quem principalmente concernem estão em perfeita consonância com as emoções solidárias do espectador, necessariamente parecem a este último justas e próprias, adequadas aos seus objetos; e, ao contrário, quando, colocando-se no lugar dele, descobre que não coincidem com o que sente, necessariamente lhe parecem injustas e impróprias, inadequadas às causas que as suscitam. Portanto, aprovar as paixões de um outro como adequadas a seus objetos é o mesmo que observar que simpatizamos inteiramente com elas; e não aprová-las como tal é o mesmo que observar que não simpatizamos inteiramente com elas. O homem que se ressente das ofensas que me infligiram, e nota que me ressinto exatamente da mesma maneira que ele, necessariamente aprova meu ressentimento. O homem cuja simpatia tem o mesmo ritmo da minha dor só pode admitir que minha infelicidade é sensata. Quem admira o mesmo poema ou mesmo quadro, e os admira exatamente como eu faço, certamente tem de admitir que minha admiração é justa. Quem ri da mesma piada, e ri comigo, não poderá negar que meu riso é adequado. Ao contrário, a pessoa que, nessas diferentes ocasiões, ou não sente a mesma emoção que experimento ou não sente nada proporcional com o que experimento, não pode evitar de desaprovar meus sentimentos, por sua dissonância com os seus. Se meu rancor exceder àquilo a que pode corresponder a indignação de meu amigo; se minha dor exceder àquilo de que é capaz sua mais terna compaixão; se minha admiração for ou demasiado viva, ou demasiado fria para corresponder à dele; se rir alto e animadamente quando ele apenas sorri, ou, ao contrário, apenas sorrir quando ele rir alto e animadamente; em todos esses casos, assim que, tendo considerado o objeto, ele passe a observar como me afeta, segundo houver maior ou menos desproporção entre os sentimentos dele e os meus, incorrerei em grau maior ou menor na sua desaprovação; e, em todas essas ocasiões, seus próprios sentimentos são os critérios e medidas pelos quais julga os meus.

Aprovar as opiniões de outro homem é adotar essas opiniões, e adotá-las é aprová-las. Se os mesmos argumentos que te convencem também me convencem, necessariamente aprovo a tua convicção; e se não o fazem, necessariamente a reprovo; nem posso conceber que faça uma coisa sem a outra. Portanto, todos admitem que aprovar ou desaprovar as opiniões de outros significa apenas observar sua concordância ou discordância com nossas próprias. Contudo, o mesmo caso ocorre com relação a nossa aprovação ou desaprovação dos sentimentos ou paixões dos outros.

Há, com efeito, alguns casos em que parecemos aprovar, sem nenhuma simpatia ou correspondência de sentimentos; e nos quais, conseqüentemente, o sentimento de aprovação pareceria diferente da percepção dessa coincidência. Não obstante, um pouco de atenção nos convencerá de que, mesmo nesses casos, nossa aprovação se funda, em última instância, sobre uma simpatia ou correspondência desse tipo. Darei um exemplo baseado em coisas muito frívolas, porque nelas os juízos dos homens correm menos o risco de se perverter por sistemas errôneos. Freqüentemente aprovamos uma piada, e admitimos que o riso do outro é bastante justo e adequado, embora nós próprios não estejamos rindo, talvez por estarmos de mau humor, ou por estarmos distraídos com outros objetos. A experiência nos ensinou, entretanto, que tipo de diversão é normalmente mais capaz de nos fazer rir, e observamos que essa é uma delas. Por isso, aprovamos o riso do outro, e sentimos que é natural e adequado ao seu objeto; porque, embora em nosso presente estado de espírito não possamos facilmente partilhar dele, percebemos que na maioria das vezes o faríamos, entusiasticamente.

O mesmo ocorre freqüentemente com todas as outras paixões. Um estranho passa por nós na rua, com todos os sinais da mais profunda aflição, e imediatamente dizem-nos que ele acaba de receber a notícia da morte do pai. É impossível, neste caso, não aprovarmos sua dor. Contudo, pode acontecer, não raro, sem que isso indique desumanidade de nossa parte, que, impossibilitados de participar da violência de sua dor, mal pudéssemos conceber os primeiros movimentos de preocupação que o acompanham. Tanto ele quanto seu pai talvez nos sejam inteiramente desconhecidos, ou quem sabe estamos ocupados com outras coisas e não tenhamos tempo de representar em nossa imaginação as diferentes circunstâncias dolorosas por que necessariamente passa. A experiência nos ensinou, contudo, que um tal infortúnio naturalmente provoca tal grau de sofrimento; além disso, sabemos que, se nos detivéssemos em refletir plenamente, em todos os seus aspectos, sobre a situação do outro, sem dúvida simpatizaríamos sinceramente com ele. É sobre a consciência dessa simpatia condicional que se baseia nossa aprovação de seu pesar, até mesmo nos casos em que essa simpatia não chega a ocorrer de fato. Assim, as regras gerais deduzidas de nossa experiência anterior daquilo a que nossos sentimentos habitualmente corresponderiam corrigem, nessa e em muitas outras ocasiões, a inconveniência de nossas emoções momentâneas.

O sentimento ou afeto do coração, do qual procede qualquer ação, e do qual depende em última análise toda a sua virtude ou vício, pode ser analisado sob dois diferentes aspectos, ou segundo duas diferentes relações: primeiro, em relação às causas que o provocam, ou o motivo que o ocasiona; e, em segundo lugar, em relação ao fim que propõe, ou o efeito que tende a produzir.

Na adequação ou inadequação, na proporção ou desproporção que o afeto parece manter com relação à causa ou objeto que o suscita, consiste a conveniência ou inconveniência, a decência ou deselegância da ação conseqüente.

Na natureza benéfica ou prejudicial dos efeitos que esse afeto persegue ou tende a produzir consistem o mérito ou demérito da ação, qualidades pelas quais ela merece recompensa ou castigo.

Nos últimos anos os filósofos têm considerado principalmente a finalidade dos afetos, dando pouca atenção à relação que mantêm com a causa que os suscita. Mas na vida comum, quando julgamos a conduta de qualquer pessoa e os sentimentos que a orientaram, consideramo-los constantemente sob esses dois aspectos. Quando censuramos em outro homem os excessos do amor, da dor, do ressentimento, não apenas levamos em conta os ruinosos efeitos que tendem a produzir, mas o pequeno motivo que havia para eles. Dizemos que o mérito da pessoa favorecida não era assim tão grande, seu infortúnio não é tão terrível, a provocação de que foi objeto não é tão extraordinária a ponto de justificar alguma paixão violenta. Dizemos que talvez devêssemos ser indulgentes, aprovando a violência da sua emoção, se a causa fosse, em algum aspecto, proporcional a ela.

Quando julgamos desta maneira qualquer afeto, para saber se é proporcional ou desproporcional à causa que o provoca, é pouco provável que usemos qualquer regra ou norma que não seja o afeto correspondente em nós próprios. Se, analisando o caso em nosso próprio peito, descobrimos que os sentimentos por ele ocasionados coincidem e concordam com os nossos, necessariamente os aprovamos como proporcionais e adequados a seus objetos; mas, caso contrário, necessariamente os reprovaremos como extravagantes e desproporcionais.

Toda faculdade de um homem é a medida pela qual ele julga a mesma faculdade em outro. Julgo sua visão por minha visão, seu ouvido por meu ouvido, sua razão por minha razão, seu ressentimento por meu ressentimento, seu amor por meu amor. Não possuo nem posso possuir nenhum outro modo de julgá-las.


 
CAPÍTULO IV Continuação do mesmo assunto
Podemos julgar a conveniência e inconveniência dos sentimentos de outra pessoa pela sua correspondência ou discordância com os nossos em duas ocasiões diferentes: ou, primeiro, quando os objetos que os provocam são considerados sem nenhuma relação particular conosco ou com a pessoa cujos sentimentos estamos julgando; ou, segundo, quando são considerados como afetando peculiarmente um ou outro de nós.

1. Quanto aos objetos considerados sem nenhuma relação particular conosco ou com a pessoa cujos sentimentos estamos julgando, sempre que seus sentimentos corresponderem inteiramente aos nossos, atribuiremo-lhe qualidades de bom gosto e discernimento. A beleza de uma planície, a grandiosidade de uma montanha, os ornamentos de um edifício, a expressão de uma pintura, a composição de um discurso, a conduta de uma terceira pessoa, a proporção entre distintas quantidades e números, as várias aparências que a grande máquina do universo exibe perpetuamente, com as secretas rodas e molas que as produzem; todos os assuntos gerais que ocupam a ciência e o bom gosto, são o que nós e nossos companheiros consideramos como desprovidos de uma relação peculiar com qualquer um de nós. Ambos os vemos segundo o mesmo ponto de vista, e não temos motivo para simpatia, ou para aquela mudança imaginária de situações da qual ela brota, a fim de produzir, com respeito a eles, a mais perfeita harmonia de sentimentos e afetos. Se, não obstante, com freqüência somos diferentemente afetados, isso se deve aos diversos graus de atenção que nossos diferentes hábitos de vida nos permitem conceder facilmente às distintas partes daqueles objetos complexos, ou dos diferentes graus da perspicácia natural na faculdade do espírito à qual esses objetos se dirigem.

Quando os sentimentos de nosso companheiro coincidem com nossos em coisas desse tipo, que são óbvias e fáceis, e nas quais talvez nunca encontremos uma só pessoa que divirja de nós, ainda que, sem dúvida, tenhamos de aprová-los, contudo não parece merecer elogio ou admiração por causa disso. Mas quando não apenas coincidem com os nossos, mas ainda os orientam e dirigem; quando, formando-os, demonstra ter considerado muitas coisas que nós tínhamos ignorado, e ajustado a todas as várias circunstâncias de seus objetos, então não apenas os aprovamos, sua incomum e inesperada agudeza e abrangência, mas nos espanta e surpreende, e ele nos parece merecer enorme admiração e aplauso. Pois a aprovação, intensificada pelo espanto e pela surpresa, constitui o sentimento propriamente chamado de admiração, cuja expressão natural é o aplauso. O critério de um homem que julga a extraordinária beleza preferível à mais grosseira deformidade, ou que admite que duas vezes dois é igual a quatro, certamente merece aprovação de todos, mas certamente não será muito admirado. É a sutileza e delicado discernimento do homem de bom gosto, que distingue as minuciosas e quase imperceptíveis diferenças de beleza e deformidade; e a abrangente precisão do matemático experiente, que sem dificuldade desvenda as mais intrincadas e enigmáticas proporções; é o grande líder em ciência e bom gosto, o homem que orienta e conduz nossos próprios sentimentos, cujos talentos nos deixam atônitos de admiração e surpresa pela extensão e superior justeza, que desperta nossa admiração e parece merecer nosso aplauso; e sobre esse alicerce funda-se a maior parte do louvor que se dirige àquelas que chamamos virtudes intelectuais.

Pode-se pensar que a utilidade dessas qualidades é o que primeiro as recomenda a nós, e, sem dúvida, tal consideração, quando atentamos para ela, recobre-as de novo valor. Porém, originalmente, aprovamos o julgamento de outro homem não como algo útil, mas como algo certo, acurado, conforme à verdade e à realidade; e é evidente que se lhe atribuímos essas qualidades é porque descobrimos que concorda com o nosso próprio julgamento. Da mesma maneira, o bom gosto recebe aprovação originalmente não por ser útil, mas justo, delicado, e precisamente adequado ao seu objeto. A idéia da utilidade de todas as qualidades desse tipo é apenas uma reflexão posterior, não aquilo que primeiro as recomenda à nossa aprovação.

2. Com relação aos objetos que afetam de maneira particular ou a nós próprios ou à pessoa cujos sentimentos estamos julgando, é mais difícil preservar essa harmonia e correspondência e, ao mesmo tempo, imensamente mais importante. Meu companheiro não encara naturalmente o infortúnio que me sobreveio ou a ofensa de que fui vítima do mesmo ponto de vista sob o qual as considero eu. Afetam-me muito mais de perto. Não os vemos pelo mesmo prisma, como vemos um quadro, um poema, ou um sistema filosófico; e por isso, podem nos afetar de maneiras muito diferentes. Mas posso muito mais facilmente ignorar a ausência dessa correspondência de sentimentos quanto a objetos tão indiferentes, que não importam nem a mim nem a meu companheiro, do que em algo que me interessa tanto quanto o infortúnio que me sobreveio, ou a ofensa de que fui vítima. Embora desprezes aquele quadro ou poema, ou até esse sistema filosófico que eu admiro, há pouco perigo de brigarmos por causa disso. Tampouco um de nós pode, razoavelmente, ter muito interesse neles. Deviam ser, todos, objeto de grande indiferença para nós dois; de modo que, embora tenhamos opiniões opostas, nossos afetos permanecem muito parecidos. Mas o caso é outro quando se trata dos objetos que nos afetam particularmente, ou a ti ou a mim. Apesar de tuas opiniões em questões especulativas, apesar de teus sentimentos em questões de gosto serem bastante contrários aos meus, posso facilmente ignorar essa oposição; e, se tenho alguma temperança, posso até mesmo apreciar a sua conversa, ainda que sobre esses mesmos temas. Mas se não tens nenhuma solidariedade para com o meu infortúnio, ou nenhuma que seja proporcional à dor que me assola; ou se não sentes nenhuma indignação pelas ofensas que sofri, ou nada que seja proporcional com o ressentimento que me arrebata, já não poderemos conversar sobre esses temas. Tornamo-nos insuportáveis um ao outro. Não posso tolerar tua companhia, nem tu a minha. Ficarás confuso ante minha violência e paixão, e eu, irado com tua fria insensibilidade e falta de sentimentos.

Em todos esses casos, para que haja alguma correspondência de sentimentos entre o espectador e a pessoa atingida, o espectador deverá, antes de tudo, esforçar-se tanto quanto possível para colocar-se na situação do outro, e tornar sua cada pequena circunstância de aborrecimento que provavelmente ocorre ao sofredor. Deverá adotar todo o caso do seu companheiro com os mínimos incidentes; e empenhar-se por interpretar da maneira mais perfeita possível a mudança imaginária de situação sobre a qual se baseia sua simpatia.

Mas depois de tudo isso as emoções do espectador muito provavelmente ainda não alcançarão toda a violência do que o sofredor sente. Embora naturalmente solidário, o homem nunca concebe o que sobreveio a alguém com aquele grau de paixão que naturalmente anima a pessoa atingida. Essa mudança imaginária de situação, sobre a qual se baseia sua simpatia, é apenas momentânea. O pensamento de sua própria segurança, o pensamento de que não é ele próprio o verdadeiro sofredor, constantemente se faz presente; e embora não o impeça de conceber uma paixão de certa forma análoga à que experimenta o sofredor, impede-o de concebê-la com o mesmo grau de intensidade. A pessoa diretamente atingida sente isso, mas ao mesmo tempo deseja, apaixonadamente, uma solidariedade mais completa. Anseia por aquele alívio que nada, senão a concordância total dos afetos dos espectadores com os seus, pode lhe dar. Ver as emoções de seus corações pulsarem ao mesmo ritmo que o dele em paixões violentas e desagradáveis constitui seu único consolo. Mas só pode esperar obter isso se rebaixar sua paixão até aquele limite em que os espectadores são capazes de o acompanhar. Precisa, se me permitem dizer assim, abrandar a intensidade do seu tom natural, reduzindo-o à harmonia e concordância com as emoções dos que estão ao seu redor. De fato, o que estes sentem sempre será, em alguns aspectos, diferente do que ele sente, e compaixão jamais será exatamente idêntica à dor original, uma vez que a consciência secreta de que a mudança de situações, da qual se origina o sentimento solidário, é apenas imaginária, não apenas a reduz em grau, mas, em certa medida, altera seu gênero, dandolhe uma modificação bastante diferente. Porém, é evidente que esses dois sentimentos podem manter uma correspondência mútua, suficiente para a harmonia da sociedade. Embora jamais sejam uníssonos, podem ser concordes, e isso é tudo o que se exige ou de que se carece.

A fim de produzir essa concordância, do mesmo modo como a natureza ensina o espectador a assumir as circunstâncias da pessoa diretamente envolvida, também ensina, a esta última, a assumir, em certa medida, as dos espectadores. Assim como estes estão continuamente colocando-se na situação do sofredor para conceber emoções similares às que ele sente, da mesma forma ele está-se colocando constantemente na posição deles, para conceber certa frieza com que olham a sua própria sorte. Assim como eles estão constantemente considerando o que sentiriam em seu lugar se realmente fossem os sofredores também ele é constantemente levado a imaginar de que maneira seria afetado se fosse mero espectador de sua própria situação. Assim como a solidariedade destes os faz ver tal situação em certa medida com os olhos do sofredor, também sua solidariedade o faz considerá-la em certa medida com os olhos deles, especialmente quando em sua presença e agindo sob sua observação. E, como a paixão refletida que ele assim concebe é muito mais débil do que a original, necessariamente reduz a violência do que sentia antes de estar em presença dos espectadores, antes de começar a lembrar de que maneira seriam afetados, e antes de considerar sua própria situação sob essa luz franca e imparcial.

Raras vezes, portanto, o espírito fica tão perturbado que a companhia de um amigo não lhe restaure algum grau de tranqüilidade e calma. Em alguma medida o peito fica composto e calmo no momento em que estamos em sua presença. Somos imediatamente lembrados da maneira em que verá nossa situação, e de nossa parte começamos a vê-la também da mesma maneira, pois o efeito da solidariedade é instantâneo. Esperamos menos simpatia de um mero conhecido do que de um amigo; não podemos expor ao primeiro todas as pequenas circunstâncias que podemos revelar ao segundo; por isso, fingimos mais tranqüilidade diante do conhecido, e esforçamo-nos por nossos pensamentos naquelas linhas gerais de nossa situação que ele estiver inclinado a analisar. Esperamos menos simpatia ainda de um grupo de estranhos, e por essa razão fingimos uma tranqüilidade ainda maior diante deles, e sempre tentamos reduzir nossa paixão àquele nível que as pessoas com as quais estamos poderão acompanhar. Mas não se trata apenas de uma aparência fingida, pois, se formos inteiramente donos de nós mesmos, a presença de um mero conhecido realmente nos deixará com-postos, mais ainda do que a de um amigo; e a de um grupo de estranhos mais ainda do que a presença de um conhecido.

Por isso, a companhia e conversa são os mais poderosos remédios para restituir ao espírito sua tranqüilidade, caso em algum momento, por infortúnio, a tenha perdido, e também os melhores preservadores desse caráter feliz e equilibrado, tão necessário para a auto-satisfação e alegria. Homens retraídos e especulativos que tendem a se fechar em casa refletindo sobre sua dor ou ressentimento, ainda que tenham freqüentemente maior humanidade, mais generosidade e um senso de honra melhor, raramente possuem aquele equilíbrio de temperamento tão comum entre os homens do mundo.


 
CAPÍTULO V Das virtudes amáveis e respeitáveis
Sobre esses dois diferentes esforços, do espectador para fazer seus os sentimentos da pessoa diretamente afetada, e o desta para rebaixar suas emoções até o limite em que o espectador é capaz de acompanhá-la, fundam-se dois grupos diferentes de virtudes. As virtudes ternas, gentis, amáveis, as virtudes da franca condescendência e indulgente humanidade, fundam-se sobre um deles; as grandes, as terríveis e respeitáveis, as virtudes da abnegação, do autocontrole, do domínio das paixões que submete todos os movimentos de nossa natureza àquilo que exigem nossa dignidade e honra, e a propriedade de nossa conduta, originam-se do outro grupo.

Como se nos revela amável aquele cujo coração solidário parece fazer eco a todos os sentimentos daqueles com quem conversa, que sofre com as suas calamidades, que se ressente com as ofensas de que foram vítimas, e se alegra com sua boa fortuna! Quando nos colocamos na situação de seus companheiros, partilhamos da gratidão que experimentam e percebemos que consolo necessariamente retiram da terna simpatia de um amigo tão afetuoso. E, pelo motivo oposto, como nos parece desagradável aquele cujo coração duro e obstinado sente apenas com relação a si mesmo, e é totalmente insensível à felicidade ou desgraça dos outros! Nesse caso também, partilhamos da dor que sua presença deve causar a todo mortal com quem conversa, especialmente aqueles com quem somos mais capazes de simpatizar, os infelizes e os ofendidos.

De outro lado, que nobre propriedade e graça sentimos no comportamento dos que, em seu próprio caso, manifestam a serenidade e o autodomínio que constituem a dignidade de toda paixão, e que a reduzem àquilo de que os demais podem partilhar! Sentimos repulsa pela dor clamorosa que, sem nenhuma delicadeza, reclama nossa compaixão com suspiros e lágrimas, e lamentos importunos. Mas reverenciamos a dor reservada, silenciosa e majestática, que só se expõe pelos olhos inchados, o tremor de lábios e faces, e na distante mas comovente frieza de toda a sua conduta. Impõenos um silêncio semelhante. Observamo-la com respeitosa atenção, e vigiamos com ansiosa preocupação nossa própria conduta, para não perturbarmos, com nenhuma impropriedade, a tranqüilidade planejada que tanto esforço exige para se manter.

Da mesma maneira, a insolência e a brutalidade da ira quando permitimos sua fúria sem controlar ou restringi-la, é o mais detestável dos objetos. Mas admiramos aquele ressentimento nobre e generoso, que governa a reparação das grandes ofensas, não pela raiva que podem despertar no peito dos sofredores, mas pela indignação que naturalmente provocam no espectador imparcial; que não permite que nenhuma palavra ou gesto lhe escape para além do que esse sentimento mais eqüitativo ditaria; que nunca, nem mesmo em pensamento, intenta maior vingança, nem deseja infligir nenhum castigo maior do que aquele cuja execução qualquer pessoa indiferente veria com agrado.

E daí resulta que sentir muito pelos outros e pouco por nós mesmos, restringir nossos afetos egoístas e cultivar os benevolentes, constitui a perfeição da natureza humana; e somente assim se pode produzir entre os homens a harmonia de sentimentos e paixões em que consiste toda a sua graça e propriedade. E assim como amar a nosso próximo do mesmo modo que amamos a nós mesmos constitui a grande lei do Cristianismo, também é o grande preceito da natureza amarmos a nós mesmos apenas como amamos a nosso próximo, ou, o que é o mesmo, como nosso próximo é capaz de nos amar.

Do mesmo modo como bom-gosto e bom julgamento, quando considerados como qualidades que merecem elogio e admiração, implicam, supostamente, uma delicadeza do sentimento e uma perspicácia do entendimento incomuns, as virtudes da sensibilidade e do autodomínio não parecem consistir nos graus ordinários daquelas qualidades, mas nos incomuns. A amável virtude da humanidade certamente exige uma sensibilidade muito superior à que possuem as pessoas rudes e vulgares. A grande e eminente virtude da magnanimidade sem dúvida exige muito mais do que as gradações de autodomínio de que é capaz o mais fraco dos mortais. Do mesmo modo como no grau comum das qualidades intelectuais não há talentos, no grau comum da moral não há virtudes. A virtude é excelência, algo excepcionalmente grande e belo, que se eleva muito acima do que é vulgar e ordinário. As virtudes amáveis consistem no grau de sensibilidade que surpreende pela sua refinada e inesperada delicadeza e ternura. As veneráveis e respeitáveis, no grau de autodomínio que surpreende pela espantosa superioridade em relação às mais ingovernáveis paixões da natureza humana.

Nesse aspecto existe uma considerável diferença entre a virtude e a mera conveniência; entre as qualidades e ações que são dignas de admiração e aplauso, e as que simplesmente merecem aprovação. Em muitas ocasiões, agir com toda conveniência não exige mais do que o grau comum e ordinário de sensibilidade ou autodomínio que possuem os mais indignos dos homens, e às vezes nem mesmo esse grau é necessário. Assim, para dar um exemplo muito modesto, comer quando temos fome é, certamente, em ocasiões comuns, algo perfeitamente correto e adequado, e não pode deixar de ser aprovado como tal por todos. Mas nada poderia ser mais absurdo do que afirmar que é virtuoso.

Ao contrário, pode freqüentemente haver considerável grau de virtude nessas ações que estão longe da mais perfeita conveniência; porque ainda assim é possível que se aproximem mais da perfeição do que se esperaria em ocasiões em que fosse tão extremamente difícil adquiri-la; e isso é muito freqüente nas ocasiões que exigem um imenso esforço de autodomínio. Há algumas situações que pesam tanto sobre a natureza humana, que o maior grau de autodomínio a que pode ambicionar uma criatura tão imperfeita quanto o homem não basta para sufocar inteiramente a voz da fragilidade humana, nem abrandar a violência das paixões até aquele tom de moderação em que o espectador imparcial possa compartilhá-las totalmente. Portanto, embora nesses casos o comportamento do sofredor não alcance a mais perfeita conveniência, pode de todo o modo ser digno de aplauso e até, em certa medida, ser chamado de virtuoso. Pode ainda manifestar um esforço de generosidade e magnanimidade do qual a maioria dos homens é incapaz; e ainda que não alcance a perfeição absoluta, aproxima-se muito mais da perfeição do que, em tais ocasiões tão difíceis, é comum encontrar ou esperar.

Em casos assim, quando determinamos o grau de censura ou aplauso que parece devido a qualquer ação, é muito freqüente usarmos dois padrões diferentes. O primeiro é a idéia de completa conveniência e perfeição que, nessas situações difíceis, nenhuma conduta humana jamais pôde ou poderá alcançar; e em comparação com a qual as ações de todos os homens sempre parecerão censuráveis e imperfeitas. O segundo é a idéia daquele grau de aproximação ou distanciamento dessa completa perfeição, usualmente alcançada pelas ações da maioria dos homens. Tudo o que exceda esse grau, a despeito de toda a distância que possa estar da perfeição absoluta, parece digno de aplauso, e o que ficar aquém, digno de censura.

Dessa mesma maneira julgamos os produtos de todos artes que se dirigem à imaginação. Quando um crítico examina a obra de qualquer dos grandes mestres da poesia ou pintura, por vezes pode examiná-la segundo uma idéia de perfeição que formou em seu próprio espírito, à qual nem essa nem qualquer outra obra humana jamais poderá alcançar; e enquanto a comparar com esse padrão, nada poderá ver senão imperfeições e faltas. Mas se passar a considerar a posição que a obra deveria ter entre outras da mesma espécie, necessariamente a comparará com um padrão muito diferente, cujo grau de excelência é comumente alcançado nessa arte específica, e se a julgar segundo essa nova medida, poderá parecer merecedora do maior aplauso, na medida em que se aproxima muito mais da perfeição do que a maioria das obras com as quais pode competir.


 
EÇÃO II Dos graus das diversas paixões compatíveis com a conveniência

 
INTRODUÇÃO
A conveniência de toda a paixão suscitada por objetos que guardam uma peculiar relação conosco, o grau em que o espectador consegue nos acompanhar, deve residir, evidentemente, numa certa mediania (mediocrity). Se a paixão for elevada demais, ou excessivamente baixa, não poderá partilhar dela. Dor e ressentimento por infortúnios e ofensas pessoais, por exemplo, podem facilmente ser intensos demais, e para a maioria dos homens é isso o que ocorre. Podem, também, ainda que mais raramente, ser baixos demais. Ao excesso chamamos fraqueza ou fúria; à falta, estupidez, insensibilidade e carência de espírito. De nenhum dos dois podemos tomar parte, mas ao vê-los ficamos atônitos e confusos.

Porém, essa mediania em que consiste a conveniência é diferente em diferentes paixões. Em algumas é intensa, baixa em outras. Há algumas paixões cuja expressão muito intensa é indecente, mesmo nas ocasiões em que se admite que não podemos deixar de senti-las com grande intensidade. E há outras cujas mais fortes manifestações são, muitas vezes, extremamente graciosas, ainda que as paixões em si talvez não sejam necessariamente tão intensas. As primeiras são as paixões pelas quais, por algum motivo, há pouca ou nenhuma simpatia; as outras são as que por outras razões, inspiram-na enormemente. E se analisarmos todas as diferentes paixões da natureza humana, descobriremos que são consideradas decentes ou indecentes na proporção exata da maior ou menor disposição da humanidade a simpatizar com elas.


 
CAPÍTULO I Das paixões que se originam do corpo
1. É indecente expressar com intensidade as paixões que se originam de certa situação ou disposição do corpo, pois não se pode esperar que quem está conosco, não possuindo a mesma disposição, simpatize com elas. Fome intensa, por exemplo, embora em muitas ocasiões seja não apenas natural, mas inevitável, é sempre indecente; e comer vorazmente é universalmente visto como demonstração de maus modos. Há, entretanto, certo grau de simpatia até mesmo com fome. É agradável ver nossos companheiros comerem com bom apetite, e todas as expressões de repulsa são ofensivas. A disposição do corpo que é comum num homem saudável faz seu estômago facilmente se ajustar, se me permitem uma expressão tão grosseira, com um e não com outro. Podemos simpatizar com a aflição que a fome excessiva provoca, ao lermos sua descrição nos diários de um local sitiado ou viagem marítima. Imaginamo-nos na situação dos sofredores, e com isso prontamente concebemos a dor, o medo, a consternação, que necessariamente os assaltam. Nós mesmos sentimos certo grau dessas paixões, e portanto simpatizamos com elas; mas como ler essa descrição não nos faz sentir fome, nem mesmo nesse caso pode-se dizer propriamente que nos solidarizamos com a fome deles.

O caso é semelhante quando se trata da paixão pela qual a natureza une os dois sexos. Embora naturalmente seja a mais impetuosa de todas as paixões, todas as suas intensas manifestações são sempre indecentes, mesmo entre as pessoas para as quais todas as leis, humanas e divinas, reconhecem ser perfeitamente inocente o seu mais completo gozo; embora pareça haver um certo grau de simpatia até mesmo para com essa paixão. Falar com uma mulher como faríamos com um homem é inconveniente; espera-se que a companhia nos inspire mais alegria, mais cortesia e mais atenção; e uma total insensibilidade para com o belo sexo torna um homem desprezível até mesmo para outros homens.

Tamanha é nossa aversão por todos os apetites originados do corpo, que todas as suas mais fortes expressões são repulsivas e desagradáveis. Segundo alguns filósofos antigos, essas são as paixões que temos em comum com os animais, e, não tendo ligação com as qualidades próprias da natureza humana, estão, por essa razão, abaixo da dignidade humana. Mas há muitas outras paixões que dividimos com os animais, como ressentimento, afeto natural, até mesmo gratidão, que, por essa razão, não parecem tão bestiais. A verdadeira causa da repulsa característica que concebemos em relação aos apetites do corpo quando os vemos em outros homens se deve a não podermos partilhá-las. Para a pessoa que as experimenta, assim que forem satisfeitas, o objeto que as suscitou deixa de ser agradável; não raro, até sua presença se torna abjeta: olha em torno e não vê razão para o encantamento que o arrebatou um momento atrás, e agora partilha de sua própria paixão tão pouco quanto qualquer outra pessoa. Depois do jantar, ordenamos que retirem as travessas; deveríamos, pois, tratar da mesma forma os objetos de nossos mais ardentes e apaixonados desejos, ou seja, os objetos de paixões que se originam do corpo.

No domínio dos apetites do corpo consiste a virtude adequadamente chamada temperança. Mantê-los dentro dos limites prescritos pelos cuidados com saúde e fortuna é a parte que cabe à prudência. Mas confiná-los dentro dos limites exigidos pela graça, conveniência, delicadeza e modéstia, é ofício da temperança.

2. Pelo mesmo motivo, gritar de dor física, por mais insuportável que seja, parece sempre pouco viril e adequado. Mas existe bastante solidariedade mesmo pela dor física. Se, como já comentei, vejo que um golpe está prestes a ser desferido sobre a perna ou o braço de outra pessoa, naturalmente encolho e retiro minha própria perna ou braço; e, quando o golpe finalmente é desferido, de algum modo o sinto e ele me fere tanto quanto quem de fato o sofreu. Porém minha ferida é extremamente leve, e por essa razão se o outro gritar violentamente na medida em que não posso segui-lo, nunca deixarei de desprezá-lo. Isso sucede a todas as paixões que se originam do corpo: não inspiram nenhuma simpatia, ou apenas a inspiram num grau completamente desproporcional à violência experimentada pelo sofredor.

Algo bem diferente ocorre com as paixões que se originam da imaginação. A estrutura de meu corpo é pouco afetada pelas alterações provocadas na de meu companheiro; mas minha imaginação é mais maleável, e assume mais prontamente, se posso dizer assim, a forma e configuração da imaginação daqueles que me são familiares. Desse modo, uma decepção amorosa, ou nos negócios, provocará mais simpatia do que o maior dos males físicos. Aquelas paixões se originam inteiramente da imaginação. A pessoa que perdeu toda a sua fortuna, se tiver saúde, nada sentirá no corpo. O que sofre vem só da imaginação, que lhe representa a perda de sua dignidade, o esquecimento por parte dos amigos, o desprezo de seus inimigos, a dependência, a carência, a miséria que se aproximam rapidamente. Isso nos faz simpatizar mais intensamente com ele, porque nossa imaginação molda-se mais rapidamente à dele do que nossos corpos se moldam ao corpo dele.

A perda de uma perna pode ser considerada, de modo geral, como uma calamidade mais real do que a perda de uma amante. Seria uma tragédia ridícula, entretanto, aquela cuja catástrofe dissesse respeito a uma perda desse tipo. Um infortúnio como o segundo, por mais frívolo que possa parecer, já foi motivo de várias tragédias excelentes.

Nada se esquece tão depressa quanto a dor. No momento em que se vai, toda a agonia termina, e sua lembrança já não pode nos causar nenhuma perturbação. Então nós mesmos não podemos mais participar da ansiedade e angústia que antes havíamos concebido. Uma palavra descuidada de um amigo ocasionará um desconforto mais duradouro. A agonia que isso cria não termina com a palavra. O que inicialmente nos perturba não é o objeto dos sentidos, mas a idéia da imaginação. Por ser uma idéia, portanto, o que ocasiona nosso desconforto, até que o tempo e o acaso em alguma medida a apaguem de nossa memória, esse pensamento continua a corroer e ferir por dentro a imaginação.

A dor nunca provoca nenhuma simpatia muito viva, salvo se for acompanhada de perigo. Simpatizamos com o medo, embora não com a agonia daquele que sofre. Porém, o medo é uma paixão que resulta inteiramente da imaginação, a qual representa, com uma incerteza e flutuação que aumentam nossa ansiedade, não o que realmente sentimos, mas o que doravante possivelmente sofreremos. A gota ou a dor de dentes, embora peculiarmente dolorosas, inspiram pouca solidariedade; doenças mais perigosas, embora causem muito pouca dor, inspiram a maior solidariedade.

Algumas pessoas desmaiam e sentem náuseas ao verem uma cirurgia; e a dor física que é causada pela dilaceração da carne parece-lhes inspirar imensa solidariedade. Concebemos de maneira muito mais viva e distinta a dor que procede de uma causa externa do que aquela que se origina de uma desordem interna. Quase não posso formar uma idéia das agonias de meu próximo quando é torturado pela gota ou cálculos renais, mas tenho a mais clara concepção do que deve sofrer por causa de uma incisão, um ferimento ou fratura. Porém, a principal causa de tais objetos produzirem efeitos tão intensos sobre nós é a sua novidade. Quem testemunhou uma dúzia de dissecações e igual número de amputações assiste a todas as operações desse tipo com grande indiferença, muitas vezes com total insensibilidade. Embora tenhamos lido, ou visto representadas, mais de quinhentas tragédias, raramente sentiremos tamanha diminuição de nossa sensibilidade diante dos objetos que elas nos apresentam.

Em algumas das tragédias gregas há uma tentativa de inspirar piedade por meio da representação das agonias da dor física. Os extremos do sofrimento fazem Filoctetes gritar e desmaiar. Apresentam-nos Hipólito e Hércules expirando sob torturas tão intensas, que nem mesmo a coragem de Hércules parece capaz de suportar. Todavia, em todos esses casos não é a dor que nos interessa, mas alguma outra circunstância. Não é o pé doente, mas a solidão de Filoctetes que nos afeta e espalha, por toda esta encantadora tragédia, aquele romântico desvario, que tanto agrada à nossa imaginação. As agonias de Hércules e Hipólito são interessantes apenas porque antevemos que terão como conseqüência a morte. Se os heróis pudessem se recuperar, julgaríamos perfeitamente ridícula a representação de seus sofrimentos. Que tragédia seria aquela cuja catástrofe consistisse apenas de uma cólica! No entanto, nenhuma dor é mais aguda. Essas tentativas de suscitar a piedade por meio da representação da dor física podem ser consideradas entre as maiores quebras no decoro de que o teatro grego deu exemplo.

A pouca simpatia que sentimos pela dor física é o fundamento da propriedade da constância e paciência ao suportá-la. O homem que, sob as mais intensas torturas, não se permite nenhuma fraqueza, nega-se a gemer, não manifesta nenhuma paixão que não possamos compartilhar inteiramente, impõe-nos grande admiração. Sua firmeza lhe permite seguir altivo ante nossa indiferença e insensibilidade. Admiramos, acompanhando de par, o esforço magnânimo que faz com esse propósito. Aprovamos sua conduta e, por nossa experiência da fraqueza comum à natureza humana, surpreende-nos e causa-nos espanto sua capacidade de agir de modo a merecer aprovação. Quando à aprovação vem se somar e infundir espanto e surpresa, temos o sentimento adequadamente chamado de admiração, cuja expressão natural é o aplauso, como já observamos.


 
CAPÍTULO II Das paixões que se originam de um pendor ou hábito particular da imaginação
Mesmo as paixões derivadas da imaginação, as que se originam de um pendor ou hábito peculiar que ela tenha adquirido, ainda que se possa admitir que são perfeitamente naturais, suscitam pouca simpatia. Pois a imaginação dos homens, não tendo adquirido aquele pendor particular, não consegue compartilhá-las; e tais paixões, embora se admita que são quase inevitáveis em algum momento da vida, são sempre em certa medida ridículas. Esse é o caso daquela forte ligação que naturalmente se desenvolve entre duas pessoas de sexos diferentes que há muito fixaram seus pensamentos uma sobre a outra. Como nossa imaginação não correu pelo mesmo canal que a do apaixonado, não podemos compartilhar da ansiedade de suas emoções. Se nosso amigo foi ofendido, simpatizamos prontamente com seu ressentimento, e ficamos irados com a mesma pessoa com que está irado. Se recebeu um benefício, compartilhamos prontamente a sua gratidão, e temos em alta conta o mérito do seu benfeitor. Mas se ele está apaixonado, embora possamos julgar sua paixão tão razoável quanto qualquer outra, nunca nos sentimos obrigados a conceber uma paixão do mesmo tipo, e pela mesma pessoa pela qual ele a concebeu. A paixão parece a todos, menos para o homem que a sente, inteiramente desproporcional com o valor do objeto; e, embora se perdoe o amor em certa idade, porque o sabemos natural, é sempre risível, já que não partilhamos dele. Todas as suas graves e intensas expressões parecem ridículas para uma terceira pessoa; e, embora um apaixonado possa ser boa companhia para sua amante, não o é para ninguém mais. Ele próprio sabe disso e, na medida em que permanecer sóbrio, tratará sua própria paixão como algo ridículo e fará troça dela. É o único estilo que nos interessa ouvir, porque é o único estilo de que estamos dispostos a falar. Entedia-nos o grave, pedante e prolixo amor de Cowley e Petrarca, que jamais se livraram dos exageros da intensidade de suas relações; mas a alegria de Ovídio e a galanteria de Horácio são sempre agradáveis.

Embora não sintamos propriamente simpatia por uma ligação desse tipo, embora nem mesmo na imaginação possamos conceber uma paixão por aquela pessoa em especial, contudo, uma vez que já concebemos ou podemos estar predispostos a conceber paixões do mesmo tipo, prontamente partilhamos das elevadas esperanças de felicidade que a satisfação dessa paixão nos acena, bem como daquela intensa aflição que a decepção nos faz temer. Interessa-nos não como paixão, mas como uma situação que proporciona novas paixões que nos interessam, a saber, esperança, medo e aflições de todos os tipos – do mesmo modo como, numa descrição de viagem marítima, não é a fome que nos interessa, mas a aflição causada por essa fome. Embora não participemos propriamente do relacionamento do apaixonado, prontamente acompanhamos as expectativas de felicidade romântica por que ele se deixa levar. Sentimos como para o espírito é natural, em certa situação, quando a indolência o afrouxa e a violência do desejo o fatiga, aspirar à serenidade e quietude, esperar encontrá-las na satisfação daquela paixão que o distrai, e compor para si mesmo a idéia daquela vida de tranqüilidade e retiro bucólicos que o elegante, terno e apaixonado Tíbulo tanto gosta de descrever; uma vida como a que o poeta descreve nas Ilhas da Fortuna, uma vida de amizade, liberdade e repouso; livre de trabalho, de cuidados, e de todas as turbulentas paixões que os acompanham. Até cenas dessa espécie nos interessam mais quando pintadas como algo que se espera do que como algo de que se goza. A rudeza dessa paixão, que talvez se misture com o amor ou seja o fundamento dele, desaparece quando sua satisfação é remota e distante; mas torna o todo ofensivo quando descrito como algo que de imediato se possui. Por esse motivo, a paixão feliz nos interessa muito menos do que a temerosa e a melancólica. Estremecemos ante tudo o que possa decepcionar esperanças tão naturais e agradáveis; e assim partilhamos de toda a ansiedade, preocupação e aflições do apaixonado.

Daí que, em algumas tragédias e romances modernos, essa paixão pareça tão maravilhosamente interessante. Não é tanto o amor de Castália e Monímia que nos atrai no Órfão, mas a aflição que esse amor provoca. O autor que apresentasse dois amantes numa cena de perfeita segurança, expressando seu carinho mútuo, despertaria risos, não simpatia. Se porventura uma cena desse tipo é aceita numa tragédia, é sempre, em certa medida, imprópria, e toleram-na não por simpatia para com a paixão que expressa, mas para que a platéia anteveja, preocupada, os perigos e dificuldades que provavelmente cercam tal amor.

A reserva que as leis da sociedade impõem ao belo sexo, levando em conta sua fragilidade, apresenta-o como peculiarmente sofredor, e, por isso mesmo, mais profundamente interessante. Ficamos encantados com o amor de Fedra, tal como se manifesta na tragédia francesa do mesmo nome, apesar de toda extravagância e culpa que o cercam. Pode-se dizer que essa mesma extravagância e culpa em certa medida recomendam-nos a peça. O medo de Fedra, sua vergonha, seu remorso, seu horror, seu desespero, tornam-se com isso mais naturais e interessantes. Todas as paixões secundárias – se me permitem chamá-las assim –, que surgem da situação de amor, tornam-se necessariamente mais intensas e violentas; e é apenas com essas paixões secundárias que podemos propriamente simpatizar.

De todas as paixões que guardam uma extravagante desproporção em relação a seus objetos, o amor é, entretanto, a única que parece, até para os espíritos mais frágeis, ter em si algo de gracioso e agradável. Antes de tudo, embora possa ser em si mesmo ridículo, não é naturalmente odioso; e embora suas conseqüências sejam freqüentemente fatais e terríveis, raramente suas intenções são malévolas. Ademais, embora na paixão em si haja pouca propriedade, há muita em algumas das que sempre a acompanham. Há no amor uma forte mistura de humanidade, generosidade, bondade, amizade, estima: paixões com as quais, entre todas as outras, por razões que serão explicadas imediatamente, temos a maior propensão a simpatizar, a despeito de sabermos que são em certa medida excessivas. A simpatia que sentimos por elas torna menos desagradável a paixão que as acompanha, e nos faz aprová-la em nossa imaginação, apesar de todos os vícios que habitualmente dela se seguem; embora num sexo necessariamente conduza à derradeira ruína e infâmia, e no outro, no qual se julga seja menos funesta, quase sempre resulte em incapacidade para o trabalho, negligência do dever, desprezo pela fama e até pela reputação comum. Apesar de tudo isso, o grau de sensibilidade e generosidade com que se supõe venha acompanhada torna-a, para muitos, objeto de vaidade; e gostam de se mostrar capazes de sentir algo que não os honraria, caso realmente o sentissem.

Por essa razão, certa reserva é necessária quando falamos de nossos próprios amigos, nossos estudos e nossas profissões. Não podemos esperar que todos esses objetos interessem nossos companheiros no mesmo grau em que interessam a nós. E é por carecer dessa reserva que metade da humanidade é má companhia para a outra metade. Um filósofo só é boa companhia para outro filósofo; o membro de um clube, apenas para seu pequeno grupo de companheiros.


 
CAPÍTULO III Das paixões insociáveis
Há outro conjunto de paixões que, embora derivadas da imaginação, antes de podermos delas compartilhar ou considerá-las graciosas e adequadas, devem sempre ser reduzidas a um tom muito mais baixo do que aquele para onde a natureza indisciplinada as gostaria de elevar. São elas o ódio e o ressentimento, com todas as suas diferentes modificações. Com relação a todas essas paixões, nossa simpatia divide-se entre a pessoa que as sente, e a pessoa que é objeto delas. Os interesses dessas duas são diretamente opostos. O que nossa simpatia pela pessoa que as sente nos faria desejar, nossa solidariedade pela outra nos faria temer. Como ambos são homens, ambos nos interessam; e nosso medo pelo que um deles possa sofrer abafa nosso ressentimento por aquilo que o outro sofreu. Portanto, nossa simpatia pelo homem que recebeu o insulto necessariamente carece da paixão que naturalmente o anima, não apenas por essas causas gerais que tornam inferiores às originais todas as paixões solidárias, mas por aquela causa particular, a saber, nossa simpatia oposta por outra pessoa. Portanto, mais do que qualquer outra paixão, para fazer do ressentimento algo agradável e gracioso, é preciso humilhálo e fazê-lo cair aquém do tom a que naturalmente se elevaria.

Ao mesmo tempo, os homens têm um fortíssimo senso das ofensas feitas a outrem. O vilão de uma tragédia ou romance é tanto objeto de nossa indignação quanto o herói é de nosso afeto e simpatia. Detestamos Iago tanto quanto estimamos Otelo; e nos deliciamos tanto com a punição de um, quanto sofremos com a desgraça do outro. Mas embora os homens tenham uma tão intensa solidariedade para com as ofensas feitas a seus irmãos, nem sempre se ressentem delas mais do que o sofredor parece fazê-lo. Na maioria das vezes, tanto superior a sua paciência, sua brandura, sua humanidade – desde que não pareça lhe faltar inteligência, ou que a razão de sua indulgência não tenha sido o medo –, tanto mais intenso será o ressentimento com relação à pessoa que o ofendeu. A amabilidade do caráter exaspera o sentido de atrocidade da ofensa.

Mas essas paixões são consideradas partes necessárias do caráter da natureza humana. Uma pessoa que permaneça quieta, submetendo-se a insultos, sem tentar repelir ou vingá-los, parecerá desprezível. Não podemos partilhar de sua indiferença e insensibilidade: chamamos seu comportamento de mesquinho, e ela nos irrita tanto quanto a insolência de seu adversário. Mesmo o povo fica indignado vendo qualquer homem submeter-se pacientemente a afrontas e exploração. Deseja ver essa insolência provocar ressentimento, e que a pessoa que a sofreu fique ressentida. Enfurecido, gritalhe que se defenda ou se vingue. Se finalmente consegue despertar-lhe a indignação, aplaude-a com entusiasmo, simpatizando com tal conduta. Isso reforça sua própria indignação contra o inimigo, a quem se regozija de ver atacado na seqüência, e fica tão verdadeiramente reconhecido pela vingança – desde que não seja excessiva –, quanto se fosse ele a vítima da ofensa.

Mas embora se admita a utilidade dessas paixões para o indivíduo, pois tornam arriscado insultá-lo ou ofendê-lo; e embora sua utilidade para o público, como guardiãs da justiça e da eqüidade de sua administração, não seja menos considerável, como se mostrará depois, ainda assim há algo de desagradável nas paixões em si mesmas, que torna sua manifestação em outros homens objeto natural de nossa aversão. A expressão de ira contra qualquer pessoa presente, se exceder a mera insinuação de que percebemos seu mau trato, é considerada não apenas insulto a essa pessoa em particular, mas uma grosseria para com todas as demais. O respeito por elas deveria ter-nos impedido de manifestar uma emoção tão impetuosa e ofensiva. São os efeitos remotos dessas paixões os agradáveis; os efeitos imediatos são um mal contra a pessoa a quem se dirigem. Mas é o efeito imediato dos objetos, não o remoto, que os torna agradáveis ou desagradáveis à imaginação. Uma prisão certamente é mais útil para o público do que um palácio; e a pessoa que a institui é geralmente movida por um espírito muito mais justo de patriotismo do que aquela que constrói o palácio. Mas os efeitos imediatos de uma prisão, o confinamento dos desgraçados aí trancafiados, são desagradáveis; e a imaginação, ou não se dedica a buscar os remotos, ou os enxerga a uma demasiada distância para ser por eles afetada. Portanto, uma prisão sempre será um objeto desagradável; e quanto mais adequada for ao propósito a que se destina, mais desagradável será. Um palácio, ao contrário, sempre será agradável; mas seus efeitos remotos podem muitas vezes incomodar o público. Pode servir para promover a ostentação e dar exemplo de dissolução de costumes. Todavia, uma vez que seus efeitos imediatos, o conforto, o prazer e a alegria das pessoas que nele vivem, são todos agradáveis e sugerem à imaginação mil idéias agradáveis, essa faculdade comumente repousa neles, e raramente vai além disso para procurar suas conseqüências mais remotas. Instrumentos musicais ou de agricultura, imitados em pintura ou estuque, constituem enfeites comuns e agradáveis em nossos vestíbulos e salões de jantar. Um ornato do mesmo tipo, composto de instrumentos cirúrgicos, facas para dissecação e amputação, serras para cortar ossos, ou instrumentos de trepanação etc., seria absurdo e ofensivo. Porém, instrumentos cirúrgicos são sempre mais finamente burilados e geralmente mais bem adaptados aos propósitos para os quais se destinam do que ferramentas de agricultura. Além disso, seus efeitos remotos, a saúde do paciente, são agradáveis; mas, como seu efeito imediato é dor e sofrimento, sua visão sempre nos desagrada. Instrumentos de guerra são agradáveis, embora seu efeito imediato também revele sofrimento e dor. Mas neste caso se trata da dor e sofrimento de nossos inimigos, pelos quais não temos simpatia. Quanto a nós, estão imediatamente relacionados às idéias agradáveis de coragem, vitória e honra. Supõe-se, por conseguinte, que formem uma das partes mais nobres da indumentária e, suas imitações, um dos mais finos enfeites da arquitetura. O mesmo ocorre com as qualidades do espírito. Os antigos estóicos pensavam que, como o mundo era governado pela providência onipotente de um Deus sábio, poderoso e bom, cada evento isolado deveria ser considerado como parte necessária do plano do universo, e tendendo a promover a ordem e felicidade geral do todo; que os vícios e a insensatez dos homens, portanto, eram parte tão necessária desse plano quanto sua sabedoria ou virtude; e por essa arte eterna que deduz o bem do mal, deveriam tender igualmente para a prosperidade e perfeição do grande sistema da natureza. Porém, nenhuma especulação desse tipo, por mais profundamente enraizada que esteja no espírito, poderia diminuir nosso natural horror ao vício, cujos efeitos imediatos são demasiado destrutivos, e os remotos demasiado distantes para que a imaginação os encontre.

Acontece o mesmo com as paixões que estamos examinando. Seus efeitos imediatos são tão desagradáveis que, mesmo quando justa a sua causa, ainda assim há neles algo que nos repele. Portanto, estas são as únicas paixões cujas expressões, como comentei antes, não nos predispõem nem preparam para com elas simpatizar, antes de sermos informados da causa que as suscita. A queixosa voz da miséria, quando ouvida à distância, não permitirá que fiquemos indiferentes quanto à pessoa de quem ela procede. Assim que chega a nossos ouvidos, interessamo-nos pela sorte dessa pessoa, e, se for continuada, há de nos forçar, quase involuntariamente, a correr em seu auxílio. A visão de um semblante sorridente, da mesma maneira, eleva até os homens pensativos para um estado de espírito alegre e leve que o predispõe a simpatizar com a alegria que manifesta, compartilhando-o; e sente seu coração, antes abatido e encolhido com pensamentos e preocupações, expandir e alvoroçar-se instantaneamente. Mas é bem diferente com as expressões de ódio e de ressentimento. A voz rouca, áspera e dissonante da ira, quando ouvida à distância, inspira-nos medo ou aversão. Não corremos ao seu encontro, como para junto de alguém que grita de agonia ou dor. Mulheres e homens de nervos fracos tremem e são dominados pelo medo e, embora saibam que não são eles próprios objeto da ira, concebem o medo colocando-se no lugar da pessoa que é. Mesmo os de coração mais resoluto ficam perturbados, não ainda o bastante para temerem, mas o suficiente para encolerizarem-se; pois a cólera é a paixão que sentiriam no lugar da outra pessoa. O mesmo acontece com o ódio. Meras expressões de rancor não instigam ninguém senão o homem que as utiliza. Essas duas paixões são por natureza objetos de nossa aversão. Sua aparência desagradável e inquieta nunca suscita, nunca prepara, e muitas vezes impede a nossa simpatia. A dor não tem mais poder para comprometer-nos com a pessoa em que a observamos do que ódio e medo, pois haverão de nos repelir e afastar dela enquanto ignorarmos suas causas. A natureza parece ter pretendido que as emoções mais rudes e hostis, as quais afastam os homens uns dos outros, fossem mais difícil e raramente comunicadas.

Quando a música imita as modulações de dor ou alegria, ou de fato nos inspira essas paixões, ou pelo menos nos põe no estado de espírito que nos predispõe a concebê-las. Mas quando imita as notas da ira, inspira-nos medo. Alegria, dor, amor, admiração, devoção, são todas paixões naturalmente musicais. Suas harmonias naturais são sempre doces, claras e melodiosas; e expressam-se naturalmente em períodos separados por pausas regulares, que por esse motivo facilmente se adaptam aos retornos regulares das árias correspondentes de uma melodia. Ao contrário, a voz da ira e a de todas as paixões da mesma família são ásperas e dissonantes. Também seus períodos são todos irregulares, por vezes muito longos, e por vezes muito curtos, sem se separarem por pausas regulares. Portanto, a música pode imitar qualquer uma dessas paixões com dificuldade; e a música que realmente as imita não é a mais agradável. Uma diversão inteira pode consistir, sem qualquer inconveniência, na imitação das paixões sociáveis e agradáveis. Seria uma estranha diversão a que consistisse inteiramente em imitações de ódio e ressentimento.

Se essas paixões são desagradáveis ao espectador, não o são menos para a pessoa que as sente. Ódio e ira são o mais poderoso veneno contra a felicidade de uma boa alma. No próprio sentir dessas paixões existe algo de rude, desafinado e convulsivo, algo que dilacera e aflige o peito, e é inteiramente destrutivo para a compostura e tranqüilidade do espírito tão necessária à felicidade, a qual as paixões contrárias, de gratidão e amor, muito mais fazem para promover. Os bondosos e generosos não lamentam tanto o valor que perdem com a perfídia e ingratidão daqueles com quem convivem. Seja o que for que tenham perdido, em geral podem ser muito felizes sem isso. O que mais os perturba é a idéia de perfídia e ingratidão dirigidas contra eles próprios; e as paixões dissonantes e desagradáveis que isso suscita constituem, em sua própria opinião, a parte principal da ofensa que sofrem.

Quantas coisas são necessárias para tornar inteiramente agradável a recompensa do ressentimento, e fazer o espectador simpatizar totalmente com nossa vingança? Antes de tudo, a provocação precisa ser tal que pudéssemos tornar desprezíveis, expostos a perpétuos insultos, caso não nos ressentíssemos dela em certa medida. Ofensas menores são sempre mais fáceis de negligenciar; nem existe nada mais desprezível do que o humor intransigente e capcioso que se incendeia a qualquer mínima ocasião de briga. Deveríamos nos ressentir mais por um senso de conveniência do ressentimento, por um senso que os homens requerem e esperam de nós, do que por sentirmos em nós as fúrias dessa desagradável paixão. Nenhuma outra paixão de que o espírito humano é capaz suscita tanta dúvida quanto à sua justeza, e cuja indulgência nos leva a consultar tão cuidadosamente nosso natural senso de conveniência, e a analisar tão diligentemente quais serão os sentimentos do espectador frio e imparcial. Magnanimidade, ou a consideração por mantermos nossa própria posição e dignidade na sociedade, é o único motivo capaz de enobrecer as expressões dessa desagradável paixão. Esse motivo deve caracterizar todo o nosso estilo e conduta. Estes devem ser claros, abertos e francos; determinados sem serem obstinados, elevados sem serem insolentes; não apenas livres de petulância e vulgar obscenidade, mas generosos, francos, plenos de todas as considerações próprias até mesmo para com a pessoa que nos ofendeu. Devem transparecer, em resumo, em todos os nossos hábitos, sem que tenhamos de demandar um afetado esforço para manifestar que a paixão não extinguiu nossa humanidade; e que será com relutância, por necessidade, por causa das imensas e repetidas provocações que cederemos aos ditames da vingança. Quando o ressentimento é guardado e considerado dessa maneira, pode-se admitir que é até nobre e generoso.


 
CAPÍTULO IV Das paixões sociáveis
Assim como uma paixão dividida é o que torna na maioria das ocasiões todo o conjunto de paixões recém-mencionadas tão desgraciosas e desagradáveis, há outro conjunto oposto a estas, que uma simpatia dobrada torna quase sempre peculiarmente agradáveis e adequadas. Generosidade, humanidade, bondade, compaixão, amizade e estima recíproca, todos os afetos sociáveis e benevolentes, quando expressos no semblante ou comportamento, até mesmo para com aqueles com quem não temos um relacionamento especial, quase sempre agradam ao espectador indiferente. Sua simpatia com a pessoa que experimenta essas paixões coincide exatamente com sua preocupação pela pessoa que é objeto delas. O interesse que o homem deve ter pela felicidade desta última anima sua simpatia com os sentimentos da outra, cujas emoções se ocupam do mesmo objeto. Sempre temos, portanto, a mais forte disposição de simpatizar com os afetos benevolentes. Sob todos os aspectos nos parecem agradáveis. Compartilhamos tanto a satisfação da pessoa que os experimenta, quanto da que é objeto deles. Pois, assim como ser objeto de ódio e indignação causa mais dor do que todo o mal que um homem corajoso receie de seus inimigos, há uma satisfação em saberse amado, o que, para uma pessoa delicada e sensível, é mais importante para a felicidade do que todas as vantagens que pode esperar disso. Haverá, por acaso, um caráter tão detestável como o de quem sente prazer em semear discórdia entre seus amigos, e converter seu mais terno amor em ódio mortal? E, contudo, em que consiste a atrocidade desse insulto tão detestável? Acaso em privá-los dos frívolos bons ofícios que poderiam ter esperado um do outro, se a amizade prosseguisse? Consiste em privá-los daquela amizade mesma, em roubar-lhes seus mútuos afetos que lhes davam tanta satisfação; em perturbar a harmonia de seus corações, pondo termo ao intercâmbio feliz que até então subsistia entre eles. Esses afetos, aquela harmonia, esse intercâmbio, são percebidos não apenas pelos homens ternos e delicados, mas também pelos rudes e vulgares, como algo mais importante para a felicidade do que todos os pequenos favores que se esperava fluíssem deles.

O sentimento do amor é em si agradável à pessoa que o experimenta. Alivia e sossega o peito, parece favorecer os movimentos vitais, e estimular a saudável condição da constituição humana; e torna-se ainda mais delicioso pela consciência da gratidão e satisfação que deve provocar naquele que é seu objeto. A afeição mútua deixa ambos felizes um com o outro, e a simpatia com essa afeição mútua torna-os agradáveis para todos os demais. Com que prazer olhamos uma família em que reinam amor e estima mútuos, em que pais e filhos são companheiros uns dos outros, sem qualquer outra diferença senão a que existe pela respeitosa afeição de um lado, e bondosa indulgência do outro; em que liberdade e afeto, mútuas brincadeiras e bondade, mostram que nenhum conflito de interesses divide os irmãos, nenhuma rivalidade de favores faz divergir as irmãs, e em que tudo nos oferece a idéia de paz, alegria, harmonia e contentamento! Ao contrário, como nos faz mal entrar numa casa em que a contenda hostil lança uma metade dos que nela vivem contra a outra; onde, entre uma brandura e complacência afetadas, olhares suspeitos e súbitos rompantes de paixão traem ciúmes recíprocos que ardem dentro deles, e que estão prontos, a cada momento, a irromper através de todos os freios impostos pela companhia de outros!

As paixões amáveis, mesmo quando admitimos que são excessivas, nunca são vistas com aversão. Há algo agradável mesmo na fraqueza da amizade e da humanidade. Dada a brandura de suas naturezas, talvez às vezes se contemple a mãe terna demais, o pai demasiado indulgente, o amigo excessivamente generoso e afetuoso com uma espécie de piedade, na qual, porém, se mescla amor. Mas jamais serão vistos com ódio ou aversão, exceto pelo ser humano mais brutal e indigno. É sempre com preocupação, com simpatia e bondade, que os censuramos pela extravagância de seu apego. Há um desamparo no caráter da extrema humanidade, que interessa mais do que tudo a nossa piedade. Nada há nesse caráter que o faça desgracioso ou desagradável. Apenas, lamentamos que seja inadequado para o mundo, pois o mundo é indigno dele, e porque deve expor o homem que o possui como vítima da perfídia e ingratidão da sutil falsidade, e a mil dores e desconfortos, dos quais ele, entre todos os homens, é o menos merecedor, e que também, entre todos os homens, geralmente é o menos capaz de suportar. Algo bem diferente ocorre com ódio e ressentimento. Uma tendência muito forte para essas detestáveis paixões torna a pessoa objeto de horror e desgosto universais, e julgamos que deveria ser banido de toda a sociedade civil, como um animal selvagem.


 
CAPÍTULO V Das paixões egoístas
Além desses dois grupos opostos de paixões, as sociáveis e as insociáveis, existe outro que ocupa uma espécie de posição intermediária entre eles; nunca é tão gracioso quanto às vezes é o primeiro grupo, nem tão odioso quanto às vezes é o segundo. Dor e alegria, quando concebidas de acordo com a nossa boa ou má fortuna particular, constituem esse terceiro grupo de paixões. Mesmo quando excessivas, nunca são tão desagradáveis quanto o excessivo ressentimento, porque nenhuma simpatia oposta jamais pode suscitar um interesse contrário a elas; e mesmo quando mais adequadas a seus objetos, essas paixões nunca são tão agradáveis quanto a humanidade imparcial e a justa benevolência; porque nenhuma dupla simpatia pode jamais suscitar um interesse favorável a elas. Existe, porém, essa diferença entre dor e alegria, pois geralmente estamos mais predispostos a simpatizar com pequenas alegrias e grandes sofrimentos. O homem que, por uma súbita revolução da fortuna, é alçado imediatamente a uma condição de vida muito acima da anterior, pode estar certo de que nem todas as congratulações de seus melhores amigos são inteiramente sinceras. Uma ascensão, ainda que pelos maiores méritos, é geralmente desagradável, e comumente um sentimento de inveja nos impede de simpatizar sinceramente com a alegria desse homem. Se ele tiver qualquer discernimento, saberá disso e, em vez de se mostrar eufórico com sua boa fortuna, esforçar-se-á tanto quanto puder para abafar a sua alegria e conter a grandeza de espírito que naturalmente lhe inspirou sua nova situação. Afetará a mesma simplicidade no vestir, a mesma modéstia de comportamento de sua situação anterior. Redobrará as atenções para com velhos amigos, e tentará, mais do que nunca, ser humilde, diligente e cortês. E este será o comportamento que na sua situação mais aprovaremos; porque talvez esperemos que ele deva simpatizar mais com nossa inveja e nossa aversão pela sua felicidade, do que nós simpatizamos com sua felicidade. É raro que esse esforço obtenha êxito. Suspeitaremos da sinceridade de sua humildade, e esse embaraço há de enfim cansá-lo. Então, em pouco tempo esquecerá seus velhos amigos, com exceção dos mais mesquinhos, que talvez aceitem se tornar seus dependentes: e nunca mais conquistará novos amigos; suas novas relações ficarão com o orgulho ferido por verem-no como seu igual, assim como acontecerá com seus velhos conhecidos ao verem que se tornou superior a eles; e é preciso a mais obstinada e perseverante modéstia para expiar essa dupla mortificação. Como é de hábito, em muito pouco tempo ficará aborrecido e se sentirá provocado, pelo orgulho sombrio e desconfiado de uns, pelo desdém insolente de outros, a tratar os primeiros com negligência, e os últimos com petulância, até que por fim também ele se torne habitualmente insolente, perdendo a estima de todos. Se, conforme acredito, a maior parte da felicidade humana surge da consciência de ser amado, essas súbitas mudanças na fortuna raramente contribuem muito para a felicidade. O mais feliz é aquele que avança gradualmente até a grandeza, cujos passos para a promoção o público antevê muito antes de ele a atingir, e em quem, por isso, quando alcançá-la, não despertará nenhuma alegria extravagante, e com relação ao qual não possa criar, razoavelmente, nem ciúme naqueles a quem supera, nem inveja naqueles a quem deixou para trás.

Os homens, contudo, simpatizam mais prontamente com as alegrias menores que procedem de causas menos importantes. É decente ser humilde entre grande prosperidade; mas, por outro lado, não convém exprimir demasiada satisfação por todas as pequenas ocorrências da vida comum – pelos amigos com que passamos a noite passada, pela diversão que nos foi proporcionada, pelo que foi proferido ou realizado, por todos os pequenos episódios da conversa atual, e todos aqueles frívolos nadas que preenchem o vazio da vida humana. Nada é mais gracioso do que o contentamento habitual, sempre fundado sobre um encanto peculiar por todos os pequenos prazeres que os acontecimentos comuns proporcionam. Simpatizamos prontamente com isso: inspira-nos a mesma alegria, e faz cada ninharia revelar-se a nós com o mesmo aspecto agradável com que se apresenta para a pessoa dotada dessa feliz disposição. Donde a juventude, estação da jovialidade, tão facilmente atrair nossos afetos. A disposição para a alegria, que parece animar os que florescem, e cintilar nos olhos da juventude e da beleza, ainda que numa pessoa do mesmo sexo, exalta até mesmo os idosos a um estado de ânimo mais alegre do que o ordinário. Por um tempo, esquecem de suas fraquezas, entregando-se às agradáveis idéias e emoções das quais há muito estão desacostumados, mas que, quando na presença de tanta felicidade, retornam ao peito e aí se instalam, como um velho conhecido de quem lamentam ter estado separados, e abraçam mais afetuosamente por causa dessa longa separação.

Algo bem diverso ocorre com a dor. Pequenas vexações não suscitam simpatia, ao passo que profundas aflições provocam-na imensamente. O homem que se aborrece por qualquer pequeno incidente desagradável; que se magoa quando a cozinheira ou o mordomo descumpriram um mínimo artigo de seu dever; que só percebe defeito na mais formal polidez, seja apresentado a si mesmo ou a qualquer outra pessoa; que se ofende porque seu amigo íntimo não lhe deu bomdia quando se encontraram pela manhã, e seu irmão cantarolou uma melodia quando ele próprio estava contando alguma história; que perde o bom humor porque faz mau tempo quando está no campo, ou pelo mau estado das estradas quando em viagem, pela falta de companhia, e monotonia de todas diversões públicas quando na cidade; tal pessoa, digo, embora possa ter alguma razão, raramente encontrará muita simpatia. Alegria é uma emoção agradável, e com prazer nos entregamos a ela na menor ocasião. Portanto, simpatizamos prontamente com a alegria de outras pessoas, sempre que a inveja não nos prejudique. Mas o sofrimento é doloroso e, ainda quando se trata de nosso próprio infortúnio, o espírito naturalmente resiste e afasta-se dele. Esforçar-nos-íamos para sequer concebê-lo, ou para nos esquivarmos dele assim que o concebêssemos. Nossa aversão à dor, com efeito, nem sempre nos impedirá de a experimentarmos por motivos muito triviais, mas nos impede constantemente de simpatizar com a dor de outras pessoas, quando causada pelos mesmos motivos fúteis. Pois resistimos menos às paixões originais que às solidárias. Além disso, há nos homens uma malícia que não apenas impede toda a simpatia por pequenos desconfortos, mas de certa maneira o faz divertir-se com eles. Daí o deleite que todos sentimos pela troça, e a pequena vexação que observamos em nosso companheiro quando de todos os lados recebe empurrões, apertões e zombarias. Mesmo os homens que primam pela boa educação disfarçam a dor que qualquer pequeno incidente pode lhes causar; e os mais preparados para a vida social, voluntariamente, transformam todos esses incidentes em troça, pois sabem que seus companheiros farão o mesmo. O hábito que um homem do mundo adquiriu, de considerar como os outros observarão tudo o que lhe diz respeito, faz essas calamidades frívolas parecerem para si mesmo tão ridículas como sabe que certamente parecerão aos outros.

Ao contrário, nossa simpatia com a aflição profunda é muito forte e muito sincera. É desnecessário dar um exemplo. Choramos até com a representação fingida de uma tragédia. Por conseguinte, se sofreres por causa de qualquer prenúncio de calamidade; se por algum extraordinário infortúnio empobreceste, adoeceste, caíste em desgraça ou decepcionaste; mesmo que em parte a culpa seja tua, ainda assim, em geral podes depender da mais sincera simpatia de todos os teus amigos, e, na medida em que o permitirem os interesses da honra, também poderás contar com sua mais bondosa ajuda. Mas se o teu infortúnio não for assim tão terrível, se apenas tiveste tua ambição um pouco frustrada, se apenas foste repudiado pela tua amante, ou se tua esposa manda em ti, aguarda a troça de todos os teus conhecidos.


 
SEÇÃO III Dos efeitos da prosperidade e da adversidade sobre o julgamento dos homens quanto à conveniência da ação; e por que é mais ƒácil obter sua aprovação numa situação mais que em outra

 
CAPÍTULO I Que embora nossa simpatia pelo sofrimento seja geralmente uma sensação mais viva que nossa simpatia pela alegria, é em geral muito menos intensa que a naturalmente sentida pela pessoa diretamente atingida
Mais atenção se tem dedicado a nossa simpatia pelo sofrimento, embora não seja mais real que nossa simpatia pela alegria. A palavra simpatia, em seu significado mais apropriado e original, denota nossa solidariedade (fellow-feeling) para com os sofrimentos, e não para com as alegrias de outros. Um falecido filósofo, talentoso e sutil, considerou necessário provar por argumentos que sentíamos uma real simpatia para com a alegria, e que a congratulação era um princípio da natureza humana. Ninguém, segundo creio, jamais considerou necessário provar que a compaixão também o era.

Primeiro de tudo, nossa simpatia pelo sofrimento é em certo sentido mais universal do que a simpatia pela alegria. Embora o sofrimento seja excessivo, ainda podemos sentir por ele alguma solidariedade. Na verdade, o que sentimos nesse caso não equivale a uma completa simpatia, àquela perfeita harmonia e reciprocidade de sentimentos que constitui a aprovação. Não soluçamos com o sofredor, nem exclamamos ou lamentamos sua sorte. Ao contrário, somos sensíveis à sua debilidade e à extravagância da sua paixão, mas ao mesmo tempo experimentamos uma preocupação muito sensata para com ele. Porém, se não participamos inteiramente da alegria de um outro, se nem mesmo somos capazes de acompanhá-la, não sentimos por ela aquela espécie de consideração e de solidariedade. O homem que salta e dança aqui e ali com aquela alegria destemperada e insensata que não podemos acompanhar é objeto de nosso desprezo e indignação.

Ademais, seja do espírito ou do corpo, a dor é uma sensação mais pungente do que o prazer, e nossa solidariedade com a dor, embora seja inferior ao que naturalmente o sofredor sente, é em geral uma percepção mais viva e distinta do que a nossa simpatia pelo prazer, embora, como passarei a demonstrar em seguida, esta última se aproxime mais da natural vivacidade da paixão original.

Acima de tudo, freqüentemente lutamos para inibir nossa simpatia pelo sofrimento alheio. Sempre que não estamos sob o olhar do sofredor, tentamos para nosso próprio bem suprimi-la o mais possível, e nem sempre somos bem-sucedidos. A oposição que fazemos a essa simpatia, e a relutância com que nos rendemos a ela, necessariamente nos obrigam a prestar-lhe uma atenção mais particular. Mas nunca temos oportunidade de exercer essa oposição sobre a solidariedade pela alegria. Se o caso dá ensejo a inveja, nunca sentimos a menor tendência para a solidariedade; do contrário, cedemos a ela sem qualquer relutância. Inversamente, já que sempre nos envergonha nossa própria inveja, freqüentemente pretendemos, e por vezes realmente desejamos, simpatizar com a alegria de outros, quando então esse sentimento desagradável vem nos inabilitar. Dizemos que ficamos contentes por causa da boa sorte do nosso próximo, quando talvez em nossos corações estejamos de fato tristes. Seguidamente sentimos simpatia com o sofrimento, quando desejaríamos nos livrar dele, e muitas vezes não a sentimos pela alegria quando gostaríamos de tê-la. Logo, ocorre-nos naturalmente, como observação óbvia, que nossa tendência a simpatizar com o sofrimento deve ser muito forte, e nossa inclinação para simpatizar com a alegria, muito fraca.

Apesar desse preconceito, porém, atrevo-me a afirmar que, quando o caso não inspira inveja, nossa tendência a simpatizar com a alegria é muito mais forte do que a simpatizar com o sofrimento; e que nossa solidariedade pela emoção agradável se aproxima muito mais da vivacidade do que naturalmente sentem as pessoas diretamente atingidas, do que a que concebemos pela dolorosa.

Temos alguma tolerância pela dor excessiva de que não conseguimos compartilhar inteiramente. Sabemos que um prodigioso esforço é necessário antes de o sofredor harmonizar suas emoções às do espectador. Embora fracasse, portanto, facilmente lhe perdoamos. Mas não temos tal indulgência para com a intemperança da alegria, pois não temos consciência de serem necessários quaisquer vastos esforços para o trazerem a um nível em que possamos compartilhá-la. O homem que, diante das maiores calamidades, é capaz de controlar seu sofrimento parece digno da mais elevada admiração; mas quem, na plenitude da prosperidade, também é capaz de dominar sua alegria dificilmente parecerá digno de louvor. Percebemos que num caso o intervalo entre o que naturalmente sente a pessoa diretamente atingida e o que o espectador pode acompanhar inteiramente é muito maior.

O que falta à felicidade do homem saudável, que não possui dívidas, e tem a consciência limpa? Pode-se dizer adequadamente que para alguém nessas condições todo acréscimo de fortuna é supérfluo; e se graças a esse acréscimo um homem vier a se distinguir muito dos demais isso se deverá à mais frívola leviandade. Porém, esta situação pode muito bem ser considerada o estado natural e comum da humanidade. Não obstante a miséria e depravação do mundo atual, tão justamente lamentada, este é realmente o estado da maioria dos homens. Por conseguinte, a maioria deles não encontra dificuldade alguma em ascender a toda a alegria que qualquer acréscimo a essa situação pode muito bem provocar em seus companheiros.

Mas, embora pouco se possa acrescentar a esse estado, muito dele se pode subtrair. Embora entre essa condição e o ápice da prosperidade humana o intervalo seja apenas uma ninharia, entre isso e o mais baixo nível de miséria a distância é imensa e prodigiosa. Por essa razão, a adversidade necessariamente lança o espírito do sofredor para muito mais baixo do seu estado natural, do que a prosperidade é capaz de elevá-lo acima desse estado. O espectador deve, pois, julgar muito mais difícil simpatizar inteiramente com a sua infelicidade, e acompanhar sua cadência, do que partilhar completamente de sua alegria, e deve afastar-se de seu natural e comum estado de espírito mais num caso do que em outro. Daí porque, embora nossa simpatia com a infelicidade seja muitas vezes uma sensação mais pungente do que a simpatia com a alegria, sempre lhe falta a intensidade do que naturalmente sente a pessoa diretamente atingida.

É agradável simpatizar com a alegria; e sempre que a inveja não se oponha a isso, nosso coração entrega-se com satisfação aos mais elevados transportes dessa emoção encantadora. Mas é doloroso acompanhar a dor, e sempre dela partilhamos com relutância. Quando assistimos à representação de uma tragédia, lutamos o quanto podemos contra esse sofrimento solidário que a diversão inspira e cedemos a ele, finalmente, apenas quando já não é mais possível evitálo. Mesmo então, tentamos esconder dos companheiros nossa inquietação. Se derramamos algumas lágrimas, ocultamolas cuidadosamente, e tememos que os espectadores, não partilhando dessa excessiva ternura, atribuam-nas à efeminação e fraqueza. O desgraçado cujos infortúnios provocam nossa compaixão sente com que relutância provavelmente partilharemos de seu sofrimento, e por isso apresenta-nos sua dor com medo e hesitação: até dissimula parte dela e, por ser tão duro o coração dos homens, envergonha-se de dar vazão à plenitude de seu sofrimento. O inverso ocorre com o homem que esbanja alegria e sucesso. Sempre que a inveja não nos impele contra ele, espera de nós a mais completa simpatia. Não teme, portanto, anunciar a alegria com gritos de exultação, inteiramente confiante de estarmos sinceramente dispostos a acompanhá-lo.

Por que nos envergonharia mais chorar do que rir diante dos outros? Freqüentemente nos vemos numa situação real em que somos capazes tanto de um quanto de outro; mas sempre percebemos que os espectadores mais provavelmente nos acompanharão na emoção agradável do que na dolorosa. É sempre deplorável queixar-se, mesmo quando nos oprimem as mais terríveis calamidades. Mas o triunfo da vitória nem sempre é desgracioso. Na verdade, a prudência freqüentemente nos aconselharia a ostentar com mais moderação nossa prosperidade, porque a prudência nos ensinaria a evitar a inveja que, mais do que tudo, esse mesmo triunfo tende a suscitar.

Quão entusiásticas, num triunfo ou solenidade pública, as aclamações da multidão, que jamais demonstra inveja pelos superiores! E como é, habitualmente, calma e moderada sua dor diante de uma execução! Nosso sofrimento num funeral geralmente não passa de gravidade afetada; mas nossa felicidade num batizado ou casamento vem sempre do coração, e sem afetação alguma. Nessas e em todas as ocasiões alegres, nossa satisfação, embora não tão duradoura, é freqüentemente tão viva quanto a das pessoas diretamente envolvidas. Sempre que congratulamos cordialmente nossos amigos, o que, para desgraça da natureza humana, raramente fazemos, a alegria deles literalmente se torna nossa. Nesse momento estamos tão felizes quanto eles; nosso coração incha e transborda de prazer real; alegria e complacência cintilam em nossos olhos, animando cada traço de nosso semblante e cada gesto de nosso corpo.

Ao contrário, porém, quando nos compadecemos de nossos amigos em suas aflições, quão pouco sentimos em comparação ao que eles sentem! Sentamo-nos ao seu lado, olhamos para eles, e enquanto nos relatam as circunstâncias de seu infortúnio, escutamos com gravidade e atenção. Mas, enquanto as explosões naturais da paixão, que freqüentemente parecem sufocá-los, interrompem sua narrativa a todo momento, as lânguidas emoções de nossos corações estão longe de seguir a mesma direção de tais transportes! Ao mesmo tempo, somos capazes de perceber que sua paixão é natural, não maior do que aquela que nós mesmos sentiríamos em ocasião semelhante. Podemos censurar-nos internamente por falta de sensibilidade, e talvez, por essa razão, consigamos com esforço manifestar uma solidariedade artificial, que, porém, quando trazida à luz, é sempre a menos intensa e duradoura que se possa imaginar; e, geralmente, assim que saímos do quarto, desaparece e se vai para sempre. Parece que a natureza, quando nos sobrecarregou de nossas próprias dores, julgou-as suficientes e por conseguinte não nos ordenou que tomássemos parte nas alheias mais do que o necessário para nos incitar a serená-las.

É por causa desse embotamento da sensibilidade para com as aflições alheias que a magnanimidade em meio a grandes catástrofes parece sempre tão divinamente graciosa. É gentil e agradável a postura de quem consegue manter-se alegre em meio a uma série de desastres frívolos. Mas parece mais do que mortal quem consegue suportar da mesma maneira as mais terríveis calamidades. Sentimos que um imenso esforço é necessário para silenciar as violentas emoções que naturalmente agitam e perturbam quem se encontra nessa situação. Admira-nos que esse homem tenha sobre si tamanho domínio. Ao mesmo tempo, sua firmeza coincide perfeitamente com nossa insensibilidade. Não exige de nós aquele extraordinário grau de sensibilidade que descobrimos, e ficamos mortificados ao descobrir, não possuir. Existe a mais perfeita correspondência entre os seus sentimentos e os nossos e, por isso, a mais perfeita conveniência em seu comportamento. Ademais, trata-se de uma conveniência que, por nossa experiência da usual fraqueza da natureza humana, não poderíamos esperar, sensatamente, que mantivesse. Imaginamos, atônitos e surpresos, a força de espírito capaz de um esforço tão nobre e generoso. Quando ao sentimento de solidariedade e aprovação completas vem se somar e infundir surpresa e assombro, temos o que se denomina propriamente admiração, como já se observou mais de uma vez. Rodeado de inimigos por todos os lados, incapaz de resistir, mas ao mesmo tempo desdenhando submeter-se a eles, Catão mantém-se irredutível, graças às orgulhosas máximas daquele tempo, à necessidade de destruir a si mesmo; porém, jamais se retrai diante dos infortúnios, jamais suplica com a lamentável voz da desgraça as lágrimas miserandas de simpatia que sempre estamos tão pouco dispostos a conceder, ao contrário, arma-se de fortaleza viril e, no momento antes de executar sua decisão fatal, dá com a sua tranqüilidade habitual todas as ordens necessárias para segurança de seus amigos: assim se revela a Sêneca, este grande pregador da insensibilidade, um espetáculo que até os próprios deuses contemplariam com prazer e admiração.

Sempre que encontramos, na vida comum, exemplos de tão heróica magnanimidade ficamos extremamente afetados. Estamos mais do que inclinados a chorar e derramar lágrimas pelos que, dessa maneira, parecem sentir tanto por si mesmos quanto pelos que dão vazão a toda a fraqueza do sofrimento; e nesse caso particular, a dor solidária do espectador parece ir além da paixão original na pessoa diretamente atingida. Todos os amigos de Sócrates choraram quando ele bebia a poção derradeira, embora ele próprio expressasse a mais alegre e contente tranqüilidade. Em todas essas ocasiões nenhum esforço faz o espectador, nem tem ocasião de fazer, para controlar seu solidário sofrimento. Não teme ser levado a fazer algo extravagante ou impróprio; está, antes, contente com a sensibilidade de seu coração, e demonstra isso com complacência e auto-aprovação. Com prazer permite-se, portanto, as mais melancólicas visões que podem lhe ocorrer naturalmente quanto à calamidade de seu amigo, pelo qual talvez nunca tenha sentido com tanta intensidade a terna e chorosa paixão do amor. Mas algo bem diverso sucede à pessoa diretamente atingida. Esta é obrigada o mais possível a afastar seu olho de tudo que seja naturalmente terrível ou desagradável em sua situação. Receia que um cuidado demasiado sério com essas circunstâncias poderia lhe causar uma impressão tão violenta que já não conseguiria manter-se dentro dos limites da moderação, ou tornar-se objeto da completa simpatia e aprovação dos espectadores. Fixa, pois, seus pensamentos nas circunstâncias agradáveis, o aplauso e admiração de que será digno pela heróica grandeza de seu comportamento. Sentir que é capaz de esforço tão nobre e generoso, sentir que em sua terrível situação ainda pode agir como desejaria, anima e arrebata-o de alegria, tornando-o capaz de suportar a triunfante alegria que parece exultar pela vitória que assim obtém sobre seus infortúnios. Ao contrário, sempre parece em certa medida mesquinho e desprezível aquele que mergulha em sofrimento e depressão por qualquer calamidade pessoal. Somos incapazes de sentir por ele o que ele sente por si próprio, e que talvez sentíssemos por nós, se estivéssemos na sua situação. Portanto o desprezamos injustamente, talvez, se for possível considerar injusto qualquer sentimento para o qual a natureza nos determinou de modo irresistível. A fraqueza do sofrimento nunca parece agradável sob nenhum aspecto, exceto quando se origina do que sentimos por outros mais do que por nós próprios. Um filho, diante da morte de um pai indulgente e respeitável, pode dar vazão à dor sem haver muito do que se envergonhar. Seu sofrimento fundamenta-se profundamente numa espécie de solidariedade pelo pai falecido; e partilhamos prontamente dessa emoção humana. Mas, se ele se permitisse a mesma fraqueza por qualquer infortúnio que tão-somente o afetasse, já não encontraria tal indulgência. Se fosse reduzido à mendicância e ruína, ficasse exposto aos mais terríveis perigos, ainda que fosse levado à execução pública e lá derramasse uma só lágrima no cadafalso, ficaria desgraçado para sempre na opinião da parte generosa e galante da humanidade. Embora a compaixão desta fosse intensa e muito sincera, ainda assim se ressentiria dessa excessiva fraqueza, e por isso não perdoaria o homem que se expusesse dessa maneira aos olhos do mundo. O comportamento dele afetaria os outros mais pela vergonha que pela dor; e a desonra que assim lançava sobre si mesmo lhes pareceria a circunstância mais lamentável em seu infortúnio. Como ficou desgraçada a memória do intrépido Duque de Biron, que tantas vezes desafiara a morte no campo de batalha, mas chorou no cadafalso ao ver o quanto sucumbira, e ao recordar os favores e glória dos quais tão infortunadamente sua própria imprudência o arrancara!


 
CAPÍTULO II Da origem da ambição e da distinção social
É porque os homens estão dispostos a simpatizar mais completamente com nossa alegria do que com nossa dor, que exibimos nossa riqueza e escondemos nossa pobreza. Nada mortifica mais do que sermos obrigados a expor nossa aflição aos olhos do público, e a sentir que, embora nossa situação esteja exposta aos olhos de toda a humanidade, nenhum mortal é capaz de conceber um pouco que seja de nosso sofrimento. Mais ainda, é sobretudo por considerarmos os sentimentos da humanidade que perseguimos a riqueza e evitamos a pobreza. Pois qual o propósito de toda a faina e todo o torvelinho deste mundo? Qual a finalidade da avareza e ambição, da busca de fortuna, poder e preeminência? Será para suprir as necessidades da natureza? Os salários do mais humilde trabalhador podem supri-las. Vemos que lhe proporcionam comida e roupa, o conforto de uma casa e de uma família. Se examinarmos sua economia com rigor, descobriremos que gasta grande parte desses salários com confortos que podem ser considerados supérfluos, e que, em ocasiões extraordinárias, pode até permitir-se vaidade e distinção. Qual então a causa de nossa aversão por sua situação, e por que os que foram educados nas ordens mais altas da vida consideram pior do que a morte ser reduzido a viver, mesmo sem trabalhar, do mesmo simples modo dele, morar sob o mesmo teto rebaixado, vestir-se com os mesmos trajes humildes? Imaginam que num palácio seu estômago é melhor, seu sonho mais calmo, que numa choupana? Observouse muitas vezes o contrário, e na verdade é tão óbvio que, mesmo se nunca fosse observado, ninguém o ignoraria. Pois de onde, então, origina-se essa emulação que perpassa todas as diferentes ordens de homens, e a que benefícios aspiramos com esse grande propósito da vida humana a que chamamos melhorar nossa condição? Ser notado, servido, tratado com simpatia, complacência e aprovação, são todos os benefícios a que podemos aspirar. É a vaidade, não o bemestar ou prazer que nos interessa. Mas a vaidade sempre se funda sobre a crença de que somos objeto de atenção e aprovação. O homem rico jacta-se de sua riqueza, porque sente que naturalmente isso dirige sobre si a atenção do mundo, e que os homens estão dispostos a aceder a todas as emoções agradáveis com que os benefícios de sua situação o cobrem tão prontamente. Ao mero pensamento disso, seu coração parece inchar e dilatar-se, e, por esta razão, aprecia ainda mais sua riqueza do que por todos os demais benefícios que lhe proporciona. O homem pobre, ao contrário, envergonha-se de sua pobreza. Sente que ou essa situação o coloca fora da vista das pessoas, ou que, se o percebem, têm quase nenhuma solidariedade para com a miséria e aflição de que é vítima. Sente-se mortificado pelos dois motivos, pois, embora ser negligenciado e desaprovado seja inteiramente distinto, do mesmo modo como a obscuridade nos oculta da luz diurna das honras e aprovação, sentir que não somos notados necessariamente sufoca a mais agradável das esperanças e decepciona o mais ardente desejo da natureza humana. O homem pobre sai e entra desacautelado, e quando no meio de uma multidão permanece tão obscuro como se estivesse fechado em sua choupana. Esses humildes cuidados e dolorosas atenções de que se ocupam os que estão na sua situação não oferecem divertimento aos dissipados ou alegres. Desviam dele os olhos, ou, se a sua extrema aflição os força a olhar para ele, é apenas para expulsar de seu meio um objeto tão desagradável. Os afortunados e altivos espantam-se com a insolência desse farrapo humano, que se atreve a apresentar-se perante eles, e com o odioso aspecto de sua miséria que, presumem, irá perturbar sua serena felicidade. O homem de honra e distinção, ao contrário, é notado por todos. Todos anseiam por contemplá-lo, e conceber, pelo menos por simpatia, a alegria e exultação que suas condições naturalmente inspiram. Suas ações são objeto de atenção pública. Dificilmente lhe escapem um gesto ou uma palavra que passem despercebidos. Numa grande reunião, é a pessoa para a qual todos dirigem seus olhares; todas as paixões alheias parecem esperar por ele com expectativa, a fim de receberem o movimento e direção que ele lhes imprimirá; e caso seu comportamento não seja inteiramente absurdo, terá a cada momento a ocasião de interessar os demais, e tornar-se objeto da observação e solidariedade de todos que o cercam. É isso que, não obstante as restrições a ele impostas, não obstante a conseqüente perda de liberdade, confere grandeza ao objeto de inveja, e compensa na opinião dos homens todas as fainas, todas as ansiedades, todas essas mortificações a que deve se submeter quem busca a atenção geral. E, o que é ainda mais grave, essa aquisição o faz perder o direito a todo o ócio, toda a tranqüilidade, toda a despreocupada segurança.

Ao examinarmos a condição dos homens eminentes segundo as enganosas cores em que a imaginação a pinta, parece-nos quase a idéia abstrata de uma condição perfeita e feliz. É a condição que, quando sonhamos despertos ou devaneamos à toa, entrevemos como o propósito final de todos os nossos desejos. Por conseguinte, sentimos uma peculiar simpatia pela satisfação daqueles que nela se encontram. Corroboramos todas as suas inclinações, e estimulamos todos os seus desejos. Que lamentável, pensamos, se algo viesse a estragar e corromper uma situação tão agradável! Poderíamos até desejar que fossem imortais; e parece-nos difícil acreditar que a morte por fim venha rematar tão perfeito prazer. É cruel, pensamos, que a natureza os expulse de suas louváveis posições para aquela morada humilde, porém hospitaleira, que providenciou para todos os seus filhos. Vida eterna ao grande rei! é a saudação que gostaríamos de lhes fazer, à maneira das adulações orientais, se a experiência não nos ensinasse como isso é absurdo. Toda calamidade que se abate sobre eles, toda ofensa que lhes é feita, suscita no peito do espectador muito mais compaixão e ressentimento do que sentiria se o mesmo sucedesse a outros homens. São apenas os infortúnios dos reis que fornecem os assuntos próprios das tragédias. A esse respeito, assemelham-se aos infortúnios dos amantes. Essas duas situações são o que mais interessa no teatro, porque, apesar de tudo o que a razão e a experiência nos digam em contrário, os preconceitos da imaginação associam a essas duas condições uma felicidade superior a qualquer outra. Estorvar, pôr fim a alegrias tão perfeitas, parece a mais atroz das ofensas. Dentre todos os assassinos, o mais monstruoso é o traidor que conspira contra a vida de seu monarca. Todo o sangue inocente derramado nas guerras civis causou menos indignação do que a morte de Carlos I. Quem não conhecesse a natureza humana, examinando a indiferença dos homens para com a miséria de seus inferiores, e a mágoa e indignação destes pelos infortúnios e sofrimentos dos que estão acima deles, seria capaz de imaginar que a dor deve ser mais agônica, e mais terrível a convulsão da morte, em pessoas de elevada distinção do que em pessoas de posições mais baixas.

Sobre essa disposição da humanidade a partilhar de todas as paixões dos ricos e poderosos fundamenta-se a distinção social e a ordem da sociedade. Nossa obsequiosidade para com nossos superiores se origina mais freqüentemente de nossa admiração pelas vantagens de sua situação do que de qualquer expectativa pessoal de benefício advindo de sua boa vontade. Seus benefícios podem estender-se apenas a uns poucos; mas seus destinos interessam a quase todos. Ansiamos por ajudá-los a completar um sistema de felicidade que mais se aproxime da perfeição; e desejamos servi-los pelo seu próprio bem, sem nenhuma recompensa senão a vaidade ou a honra de lhes agradar. Tampouco nossa deferência com suas inclinações se funda principal ou inteiramente numa consideração da utilidade dessa submissão e da ordem da sociedade, a qual essa deferência contribui para confirmar. Mesmo quando a ordem da sociedade parece exigir que nos oponhamos aos ricos, dificilmente somos capazes disso. Que os reis são servos do povo, a quem se deve obedecer, resistir, depor ou punir conforme exija o bem-estar público, é doutrina da razão e da filosofia, mas não da natureza. A natureza nos ensinaria a submetermo-nos a eles pelo seu próprio bem, a tremer e nos curvarmos perante suas sublimes posições, a considerar seu sorriso como recompensa suficiente de qualquer serviço, e recear seu desprazer, embora nenhum outro mal dele resultasse, como a mais dura das mortificações. Tratá-los em alguma medida como homens, argumentar e discutir com eles em ocasiões comuns, exige tamanha determinação, que há poucos homens cuja grandeza possa sustentar tais atitudes, salvo se estiverem do mesmo modo amparados pela familiaridade e parentesco. Os mais fortes motivos, as mais violentas paixões – medo, ódio e ressentimento –, dificilmente bastarão para equilibrar essa disposição natural a respeitá-los; e sua conduta, justa ou injustamente, deve ter provocado, no mais alto grau, todas aquelas paixões antes de a maioria do povo ser conduzido a opor-se a eles com violência, ou a desejar vê-los punidos ou depostos. Mesmo quando o povo é conduzido a esse extremo, é capaz de desistir a qualquer momento, e recair facilmente em seu habitual estado de deferência para com aqueles para quem se habituaram a erguer os olhos como seus superiores naturais. Não conseguem suportar a mortificação de seu monarca. A compaixão logo toma o lugar do ressentimento, e então esquecem todas as provocações passadas, seus velhos princípios de lealdade revivem, e se apressam para reestabelecer a autoridade arruinada de seus velhos senhores, com a mesma violência com que se tinham oposto a ela. A morte de Carlos I provocou a restauração da família real. A compaixão por Jaime II, capturado pelo populacho ao escapar a bordo do navio, quase impediu a Revolução, e a fez prosseguir mais lenta que antes.

Parecem os grandes insensíveis ao preço fácil pelo qual podem obter a admiração pública; ou imaginam que para eles, como para outros homens, isso deve ser comprado com suor ou sangue? Por que importantes capacidades é o jovem nobre instruído a sustentar a dignidade de sua posição, e tornar-se digno dessa superioridade sobre seus concidadãos, para a qual a virtude de seus ancestrais os incitou? É pelo conhecimento, pela indústria, pela paciência, pela abnegação, ou por virtudes de qualquer espécie? Como todas as suas palavras, todos os seus movimentos, são assistidos, ele aprende a habitualmente observar qualquer circunstância do comportamento comum, e estuda para cumprir todos os pequenos deveres com a mais exata propriedade. Como está consciente do quanto é observado, e o quanto os homens se dispõem a estimular todas as suas inclinações, age nas mais indiferentes oportunidades com a liberdade e elevação que o pensamento disso naturalmente lhe inspira. Suas feições, seus modos, sua postura, tudo marca o elegante e gracioso senso de sua própria superioridade, que os nascidos para posições inferiores dificilmente alcançarão. Essas são as artes pelas quais se propõe a fazer os homens se submeterem mais facilmente à sua autoridade, e a governar as inclinações deles a seu belprazer; e nisso raramente fica desapontado. Essas artes, sustentadas pela distinção e preeminência, são suficientes, em ocasiões comuns, para governar o mundo. Luís XIV, durante a maior parte de seu reinado, era considerado, não apenas na França mas em toda a Europa, como o mais perfeito modelo de príncipe. Mas por meio de que talentos e virtudes adquiriu essa grande reputação? Pela escrupulosa e flexível justiça de todos os seus empreendimentos, os imensos perigos e dificuldades com que foram realizados, ou pela aplicação infatigável e incansável com que os perseguiu? Por seu extraordinário conhecimento, seu sutil julgamento, ou seu heróico valor? Por nenhuma dessas qualidades. Mas, antes de tudo, era o mais poderoso príncipe da Europa, e conseqüentemente ocupava a mais alta posição entre os reis; então, diz seu historiador, “superava todos os Cortesãos na graça de sua forma, e majestosa beleza de seus traços. O som de sua voz, nobre e comovente, conquistava os corações que sua presença intimidava. Tinha um andar e uma postura que apenas poderiam combinar com ele e sua posição, e pareceriam ridículos em qualquer outra pessoa. O embaraço que causava nos que a ele se dirigiam adulava a secreta satisfação com a qual percebia sua própria superioridade. O velho oficial que se equivocou e não conseguiu pedir-lhe um favor, incapaz de concluir seu discurso, disse-lhe: ‘Senhor, espero que Vossa Majestade acredite que não tremo assim diante de seus inimigos’. Assim, não teve dificuldade em obter o que pedia”. Esses frívolos dons, ancorados em sua posição e, claro, também em algum grau de outros talentos e virtudes, os quais não pareciam, contudo, estar muito acima da mediania, estabeleceram esse príncipe na estima de sua própria época, suscitaram, mesmo à posteridade, muito respeito pela sua memória. Comparadas a essas, no seu tempo e em sua presença, parece, nenhuma outra virtude revelava mérito. Conhecimento, indústria, bravura e benemerência tremiam, eram esmagados e perdiam toda a dignidade diante delas.

Mas não é por dons dessa espécie que o homem de posição inferior deve esperar distinguir-se. A cortesia tanto é a virtude dos grandes, que conferirá honra a ninguém mais senão eles próprios. O janota, que imita suas maneiras e afeta eminência por causa da superior conveniência de seu comportamento habitual, é recompensado com dupla dose de desdém por sua presunção e loucura. Por que o homem, que ninguém se interessa por olhar, importar-se-ia com a maneira como ergue a cabeça ou dispõe os braços, enquanto atravessa um aposento? Certamente, preocupa-se com uma atenção muito superficial, e uma atenção que também indica um senso de sua própria importância, com a qual mortal algum pode concordar. A mais perfeita modéstia e simplicidade, associada a toda a negligência que for consistente com o devido respeito à companhia, deveriam ser as características principais do comportamento de um homem privado. Se porventura espera distinguir-se, deverá ser por virtudes mais importantes. Deve adquirir dependentes para contrabalançar os serviçais dos grandes, e não tem outros recursos para pagá-los senão o labor do seu corpo e a atividade de seu espírito. Portanto, será necessário se cultivar: deverá adquirir um conhecimento superior em sua profissão, e uma superior indústria no exercício dela. Deverá ser paciente no trabalho, resoluto no perigo, firme nas aflições. Precisará trazer tais talentos à vista do público, pela dificuldade, importância e ao mesmo tempo discernimento de seus empreendimentos, e pela severa e incansável aplicação com que os persegue. Probidade e prudência, generosidade e franqueza deverão caracterizar seu comportamento em todas as ocasiões comuns; e ao mesmo tempo, deverá mostrar-se solícito em todas as situações em que agir com propriedade requer os maiores talentos e virtudes, mas em que o maior aplauso deve ser obtido pelos que conseguem conduzir-se com honra. Com que impaciência o homem de espírito e ambição, abatido por sua situação, olha em torno buscando alguma grande oportunidade para se distinguir! Nenhuma circunstância que lhe possa proporcionar isso parece-lhe indesejável. Até aguarda com satisfação a perspectiva de uma guerra no estrangeiro, ou uma dissensão civil, e com secreto entusiasmo e deleite divisa, em toda a confusão e derramamento de sangue que as acompanham, a probabilidade de se apresentarem as tão esperadas ocasiões em que poderá chamar sobre si a atenção e admiração dos homens. O homem de posição e distinção, ao contrário, cuja glória consiste inteiramente na conveniência de seu comportamento habitual, não se contentando com o humilde renome que isso pode lhe proporcionar, mas não tendo talento para adquirir nenhum outro, não deseja embaraçar-se com o que pode resultar em dificuldade ou aflição. Figurar num baile é seu grande triunfo, e obter êxito numa intriga ou galanteria, sua maior façanha. Tem aversão a todas as confusões públicas, não por amor à humanidade, pois os grandes nunca consideram seus inferiores como criaturas iguais; tampouco por falta de bravura, pois isso raramente lhe falta; mas pela consciência de que não possui nenhuma das virtudes necessárias para tais situações, e de que certamente outros homens afastarão de si a atenção pública. Pode desejar expor-se a um pequeno perigo, e a participar de uma campanha se isso for a voga, todavia treme de horror à idéia de qualquer situação que exija o longo e contínuo exercício da paciência, da indústria, da força e aplicação de raciocínio. Essas virtudes raramente serão encontradas em homens nascidos para esses altos postos. Assim, em todos os governos, até nas monarquias, os mais altos cargos são geralmente ocupados, e toda a administração conduzida, por homens educados nas posições média e inferior da vida, que ascenderam por sua própria indústria e habilidades, embora oprimidos pelo ciúme e confrontados pelo ressentimento de todos os que nasceram seus superiores; e a quem os grandes, depois de os contemplar primeiro com desdém, em seguida com inveja, finalmente se contentam em se sujeitar com a mesma abjeta sordidez com que desejariam que o resto da humanidade deveria se portar com relação a eles próprios.

É a perda desse fácil domínio sobre os afetos dos homens que torna tão insuportável a queda da grandeza. Segundo dizem, quando a família do rei da Macedônia foi levada em triunfo por Paulo Emílio, seus infortúnios os fizeram dividir a atenção do povo romano com seu conquistador. A visão das crianças reais, cuja tenra idade os fazia ignorar sua situação, impressionava os espectadores, entre júbilo e prosperidade públicos, causando a mais terna dor e compaixão. O rei era o seguinte na procissão; parecia confuso e atônito, despido de qualquer emoção pela magnitude de suas calamidades. Seus amigos e ministros vinham logo atrás. Quando se moviam, muitas vezes olhavam seu decaído soberano, sempre rompendo em pranto a essa vista; todo o seu comportamento demonstrava que não pensavam em seu próprio infortúnio, pois estavam inteiramente tomados pela grandeza superior da desgraça do rei. Os generosos romanos, ao contrário, tratavam-no com desdém e indignação, considerando não merecer nenhuma compaixão o homem cujo espírito era tão miserável que suportava viver sob tais calamidades. Mas que calamidades eram essas? Segundo a maior parte dos historiadores, o rei deveria passar o resto de seus dias sob a proteção de um povo poderoso e humano, uma condição que por si só pareceria digna de inveja, uma condição de abundância, conforto, ócio e segurança, a qual nem por sua própria insensatez ele poderia perder. Mas não mais seria rodeado pela multidão admirada dos tolos, bajuladores e dependentes que antes costumavam assistir a todos os seus movimentos. Não mais seria contemplado pelas multidões, nem estaria em seu poder fazer-se objeto do seu respeito, sua gratidão, amor, sua admiração. As paixões das nações não mais seriam influenciadas por sua irresolução. Essa era a mais insuportável calamidade que ceifava ao rei todo sentimento; que fazia seus amigos esquecerem seus próprios infortúnios; e à qual a magnanimidade romana mal poderia conceber que um homem fosse sórdido a ponto de sobreviver.

“Do amor”, diz milorde La Rochefoucault, “sempre segue a ambição, mas da ambição dificilmente se segue o amor.” Quando aquela paixão tomar inteiramente posse do peito, não admitirá nem rival nem sucessora. Para os que se habituaram a tal posse ou até à esperança da admiração pública, todos os demais prazeres repugnam e se arruínam. De todos os estadistas depostos que, para seu próprio conforto, estudaram como bater a ambição, e desprezar as honras que já não poderiam mais alcançar, quão poucos conseguiram ter êxito! A grande maioria passou seu tempo na mais apática e insípida indolência, vexada pela idéia de sua própria insignificância, incapaz de se interessar pelas ocupações da vida privada, sem alegria, senão quando falava de sua antiga grandeza, e sem satisfação, exceto quando se dedicava a algum vão projeto de recuperá-la. Estás seriamente resolvido a nunca permutar tua liberdade pela servidão senhorial de uma Corte, mas viver livre, sem medo, e independente? Parece haver um caminho para continuar nessa virtuosa resolução; e talvez somente um. Nunca entres no lugar de onde tão poucos foram capazes de retornar; nunca entres no círculo da ambição; nem jamais compara-te àqueles donos da Terra que antes de tu já chamaram a atenção de meia humanidade.

Parece de imensa importância, na imaginação dos homens, permanecer na situação que mais os coloca à vista da simpatia e atenção gerais. E assim, a posição, aquele grande objeto que separa as esposas dos edis (aldermen), é a finalidade de metade dos esforços da vida humana; e é a causa de todo o tumulto e torvelinho, toda a rapinagem e injustiça, que a avareza e a ambição introduziram neste mundo. Dizem que pessoas de bom-senso na verdade desprezam a posição, isto é, desprezam sentar-se na cabeceira da mesa, e são indiferentes a quem essa frívola circunstância, que a menor vantagem é capaz de desequilibrar, indica como companhia. Mas hierarquia, distinção, preeminência, homem algum despreza, salvo se houver se elevado muito acima, ou caído muito abaixo do padrão comum da natureza humana; salvo se ou for tão imbuído de sabedoria e verdadeira filosofia que, embora a conveniência de sua conduta o torne justo objeto de aprovação, é-lhe de somenos importância ser notado ou não, aprovado ou não; ou esteja tão habituado à idéia de sua própria mediocridade, tão mergulhado em indolente e embrutecida indiferença, que se tenha esquecido inteiramente do desejo e de quase toda a vontade de superioridade.

Dessa maneira, assim como tornar-se o objeto natural das alegres congratulações e solidárias atenções da humanidade é a circunstância que confere à prosperidade todo esse ofuscante esplendor, nada anuvia tanto o desalento da adversidade quanto sentir que nossos infortúnios são objetos, não da solidariedade mas do desdém e aversão de nossos irmãos. É por essa razão que as mais terríveis calamidades nem sempre são as mais difíceis de suportar. Muitas vezes é mais mortificante aparecer em público por ocasião de pequenos desastres do que de grandes infortúnios. Os primeiros não despertam simpatia; mas os últimos, embora nada possam suscitar que se aproxime da angústia do sofredor, provocam uma compaixão muito viva. Os sentimentos dos espectadores estão, neste último caso, menos apartados dos sentimentos do sofredor, e sua imperfeita solidariedade oferece-lhe algum amparo para suportar sua desgraça. Um cavalheiro ficaria mais mortificado por aparecer diante de uma animada reunião coberto de sujeira e farrapos, do que de sangue e feridas. Essa última situação atrairia piedade deles; a outra provocaria seu riso. O juiz que ordena que um criminoso seja colocado no pelourinho desonra-o mais do que se o tivesse condenado ao cadafalso. O grande príncipe que há alguns anos vergastou um general diante de seu exército desgraçouo irrecuperavelmente. O castigo teria sido muito menor se houvesse crivado todo o seu corpo de balas. Pelas leis da honra, vergastar com a vara desonra, golpear com a espada não, por uma razão óbvia. Os castigos mais leves, quando infligidos a um cavalheiro para quem a desonra é o maior de todos os males, são considerados entre os humanitários e generosos como os mais terríveis. No que concerne às pessoas daquela posição, pois, tais castigos são universalmente deixados de lado, e a lei, embora em muitas ocasiões lhes tire a vida, respeita sua honra acima de tudo. Chicotear uma pessoa honrada ou prendê-la ao pelourinho, seja por que crime for, é uma brutalidade da qual nenhum governo europeu é capaz, exceto a Rússia.

Um homem valoroso não se torna desprezível sendo levado ao cadafalso; mas se for preso ao pelourinho, sim. Seu comportamento na primeira situação pode lhe granjear estima e admiração universal. Nenhum comportamento na outra pode torná-lo agradável. A simpatia dos espectadores apoia-o num caso, e salva-o da vergonha, da consciência de que sua desgraça é percebida apenas por ele mesmo, que de todos os sentimentos é o mais insuportável de todos. Não há simpatia no outro caso; ou, se houver alguma, não é pela sua dor, que é insignificante, mas pela sua consciência da falta de simpatia que cerca sua dor. É por sua vergonha, não por sua dor. Os que têm piedade dele coram e baixam as cabeças por sua causa. Ele baixa a sua da mesma maneira, e sente-se irrecuperavelmente degradado pelo castigo, ainda que não pelo crime. Ao contrário, o homem que morre com determinação, uma vez que é naturalmente considerado com o respeito ereto da estima e da aprovação, ostenta o mesmo semblante destemido; e, se crime não lhe roubar o respeito alheio, o castigo nunca o fará. Não suspeita de que sua situação seja objeto de desprezo ou riso para ninguém, e pode, com propriedade, assumir não apenas um ar de perfeita serenidade, mas de triunfo e exultação.

“Grandes perigos”, diz o Cardeal de Retz, “têm seus encantos, porque há alguma glória a ser alcançada, mesmo quando fracassamos. Mas perigos moderados nada têm senão o que é horrível, porque a perda de reputação sempre acompanha a falta de êxito.” Sua máxima tem o mesmo fundamento daquilo que acabamos de observar quanto ao castigo.

A virtude humana é superior à dor, à pobreza, ao perigo, e à morte; nem ao menos requer seus maiores esforços desprezá-los. Mas ter sua desgraça exposta ao insulto e ridículo, ser conduzido em triunfo para ser exposto à mão em riste do escárnio, é a situação na qual sua constância tende mais a falhar. Comparados com o desprezo dos homens, todos os outros males externos são facilmente suportados.


 
CAPÍTULO III Da corrupção de nossos sentimentos morais, provocada por essa disposição de admirar os ricos e grandes, e desprezar ou negligenciar os de condição pobre ou mesquinha
Essa disposição de admirar, quase de adorar os ricos e poderosos, e desprezar ou pelo menos negligenciar pessoas de condição pobre ou mesquinha, embora necessária tanto para estabelecer quanto para manter a distinção de hierarquias e a ordem da sociedade, é ao mesmo tempo a grande e mais universal causa de corrupção de nossos sentimentos morais. Que riqueza e grandeza seguidamente sejam consideradas com o respeito e admiração devidos apenas à sabedoria e virtude; e que o desprezo, do qual vício e loucura são os únicos objetos apropriados, é muitas vezes injustamente dirigido à pobreza e debilidade, tem sido queixa de moralistas de todos os tempos.

Desejamos ser tão respeitáveis quanto respeitados. Apavora-nos ser tão desprezíveis quanto desprezados. Mas, em seguida à entrada no mundo, logo descobrimos que a sabedoria e a virtude não são de modo algum os únicos objetos de respeito; nem o vício e a insensatez são únicos objetos de desprezo. Freqüentemente vemos as atenções respeitosas do mundo dirigirem-se mais fortemente para os ricos e grandes do que para os sábios e virtuosos. Freqüentemente vemos os vícios e as loucuras dos poderosos bem menos desprezados do que a pobreza e a fraqueza dos inocentes. Merecer, obter, saborear o respeito e admiração dos homens são os grandes objetos da ambição e emulação. Dois diferentes caminhos nos são apresentados, levando igualmente à obtenção desse tão desejado objeto; um, pelo estudo da sabedoria e pela prática da virtude; outro, pela aquisição de fortuna e grandeza. Dois diferentes caracteres são apresentados à nossa emulação: um, o da orgulhosa ambição e ostentosa avidez; o outro, o da humilde modéstia e justiça eqüitativa. Dois modelos diferentes, dois retratos diferentes oferecem-se a nós, segundo os quais podemos desenhar nosso próprio caráter e comportamento; um, mais vistoso e brilhante em suas cores; outro, mais correto e mais sutilmente belo em seu contorno; um, impondo-se a todo olho errante; outro, atraindo a atenção de quase ninguém, senão do observador mais atento e cuidadoso. São principalmente os sábios e os virtuosos, grupo seleto mas, receio, pequeno, os verdadeiros e constantes admiradores da sabedoria e virtude. A grande multidão de homens é constituída de admiradores e veneradores – e, o que talvez pareça mais extraordinário, freqüentemente os mais desinteressados admiradores e veneradores – da fortuna e da grandeza.

O respeito que sentimos pela sabedoria e virtude é sem dúvida diferente do que concebemos pela fortuna e grandeza; e não é preciso um discernimento muito apurado para distinguir a diferença. Mas, não obstante essa diferença, aqueles sentimentos guardam uma notável semelhança entre si. Sem dúvida, em alguns traços particulares são diferentes, mas no aspecto geral do semblante parecem quase tão iguais, que observadores desatentos muito possivelmente confundem um com o outro.

Considerando idênticos graus de méritos, quase não há homem que não respeite mais os ricos e grandes do que os pobres e humildes. A maioria dos homens admira muito mais a presunção e vaidade dos primeiros do que o real e sólido mérito dos últimos. Talvez raramente seja agradável à boa moral, ou mesmo à boa linguagem, afirmar que a mera riqueza e grandeza, abstraídas de mérito e virtude, merecem nosso respeito. Devemos admitir, contudo, que quase sempre o conquistam; e podem, por conseguinte, ser consideradas em alguns aspectos seus objetos naturais. Essas louváveis posições podem, sem dúvida, deixar-se degradar inteiramente pelo vício e a loucura. Mas o vício e a loucura devem ser muito grandes, antes de poderem operar essa completa degradação. A devassidão de um homem da moda é vista com muito menos desprezo e aversão do que a de um homem de condição mais mesquinha. Comumente, ressente-se muito mais uma simples transgressão das regras de temperança e conveniência que porventura pratique o último do que o desprezo constante e confesso dessas mesmas regras por parte do primeiro.

Nas camadas média e inferior da vida, a estrada para a virtude e a estrada para a fortuna, pelo menos a que homens em tais posições podem razoavelmente esperar obter, são felizmente, na maioria dos casos, quase a mesma. Em todas as profissões médias e inferiores, habilidades profissionais reais e sólidas, associadas à conduta firme, prudente, justa e moderada, raramente deixam de trazer êxito. Às vezes, as habilidades prevalecerão mesmo quando a conduta não é nada correta. Porém, uma habitual imprudência, ou injustiça, ou fraqueza, ou devassidão, sempre nublarão e por vezes debilitarão inteiramente as mais esplêndidas habilidades profissionais. Além disso, os homens das classes inferior e média da vida jamais serão suficientemente grandes a ponto de estar acima da lei, a qual deve, geralmente, subjugá-los a alguma espécie de temeroso respeito, ao menos pelas mais importantes regras da justiça. O êxito de tais pessoas, ademais, quase sempre depende do favor e boa opinião de seus vizinhos e iguais; e, sem uma conduta regular tolerável, estes raramente podem ser alcançados. Assim, o bom e velho provérbio, de que a honestidade é a melhor política, permanece nesses casos quase sempre perfeitamente verdadeiro. Por isso em tais casos geralmente podem esperar considerável grau de virtude, e, felizmente para a boa moral da sociedade, essa é a situação da maior parte dos homens.

Infelizmente, nas camadas superiores da vida o caso nem sempre se passa assim. Nas cortes de príncipes, nos salões dos grandes, onde sucesso e privilégios dependem, não da estima de inteligentes e bem informados iguais, mas do favor fantasioso e tolo de presunçosos e arrogantes superiores ignorantes; a adulação e falsidade muito freqüentemente prevalecem sobre mérito e habilidades. Em tais círculos sociais, as habilidades em agradar são mais consideradas do que as habilidades em servir. Em tempos calmos e pacíficos, quando a tempestade está longe, o príncipe ou grande homem deseja apenas distrair-se, e até consegue fantasiar que tem pouca oportunidade para servir a alguém, ou que os que o distraem são suficientemente capazes de o servir. As graças exteriores, as realizações frívolas dessa coisa impertinente e tola chamada homem da moda, são comumente mais admiradas do que as virtudes sólidas e viris de um guerreiro, um estadista, um filósofo ou um legislador. Todas as grandes e veneráveis virtudes, todas as virtudes que podem servir tanto para o conselho, o senado ou o campo de batalha, são concebidas com extremo desprezo e riso pelos aduladores insolentes e insignificantes que habitualmente mais figuram nessas sociedades corruptas. Quando o Duque de Sully foi convocado por Luís XIII para aconselhá-lo em alguma grande emergência, observou os cortesãos e favoritos sussurrando uns aos outros, e sorrindo, por causa de sua aparência fora de moda. “Sempre que o pai de Vossa Majestade”, disse o velho guerreiro e estadista, “fazia-me a honra de consultar-me, ordenava aos bufões da Corte que se retirassem para a antecâmara.”

Essa disposição para admirar e, conseqüentemente, para imitar os ricos e os grandes, é que os torna capazes de estabelecer ou conduzir o que se chama a moda. Seu traje é o traje da moda; a linguagem de sua conversa é o estilo da moda, seu ar e postura são o comportamento da moda. Mesmo seus vícios e loucuras são moda; e a maioria dos homens orgulha-se de imitá-los e parecer-se com eles nessas mesmas qualidades que os desonram e degradam. Muitas vezes homens fúteis dão-se ares de moderna devassidão, embora em seus corações não a aprovem e da qual talvez nem sejam realmente culpados. Desejam ser louvados pelo que eles próprios não julgam digno de louvor, e envergonham-se de virtudes fora-de-moda, que por vezes praticam em segredo, e pelas quais, secretamente, têm alguma real veneração. Há hipócritas ricos e poderosos, bem como religiosos e virtuosos; de uma parte, um homem fútil é tão capaz de fingir ser o que não é quanto, de outra, o é um homem astuto. Assume o luxo e a vida pomposa de seus superiores, sem considerar, entretanto, que tudo o que neles possa ser digno de louvor deriva de sua conformidade com aquela posição e tortura todo mérito e conveniência que estes exigem, e assim facilmente podem prover as despesas. Muito homem pobre coloca sua glória em ser julgado rico, sem levar em conta que os deveres (se podemos chamar essas loucuras de um nome tão venerável) que tal reputação lhe impõe muito em breve o reduzirão à mendicância, e tornarão sua posição ainda mais desigual à dos que admira e imita, do que originalmente era.

Para alcançar essa invejada situação, os candidatos à fortuna abandonam com excessiva freqüência as trilhas da virtude; pois infelizmente a estrada que leva a uma e a que leva à outra se estendem, às vezes, por direções bem opostas. Mas o homem ambicioso se engana ao pensar que, na esplêndida situação para a qual avança, deterá inúmeros meios para governar o respeito e admiração dos homens, e se permitirá agir com tão superior conveniência e graça, que o lustre de sua futura conduta encobrirá ou apagará inteiramente a podridão dos passos pelos quais chegou até esse cume. Em muitos governos, os candidatos aos mais altos cargos estão acima da lei; e, se podem conquistar o objeto de sua ambição, não receiam prestar contas dos meios pelos quais os adquiriram. Portanto, freqüentemente se esforçam, não apenas valendo-se de fraude e falsidade – as ordinárias e vulgares artes da intriga e conspiração –, mas às vezes perpetrando os piores crimes, assassinato e morte, rebelião e guerra civil, para superar e destruir os que impedem ou fecham o caminho para a sua grandeza. Mais freqüentemente alcançam fracassos do que êxitos; comumente nada obtêm senão a ominosa punição que é devida a seus crimes. Mas, embora possam ter a sorte de alcançar a desejada grandeza, sempre se decepcionam miseravelmente com a felicidade que acreditam saborear nela. Não é ócio ou prazer, mas sempre honra de um tipo ou outro, embora seguidamente uma honra mal compreendida, o que o homem ambicioso realmente persegue. Todavia, a honra de sua elevada posição aparece tanto a seus próprios olhos quanto aos das outras pessoas, corrompida e maculada pela baixeza dos meios pelos quais ascendeu até ela. Seja pela profusão dos gastos pródigos (liberal); seja pela excessiva indulgência com todos os prazeres devassos, infame mas habitual recurso dos caracteres arruinados; seja pela pressa dos assuntos públicos ou pelo tumulto mais arrogante e ofuscante da guerra, ainda que procure apagar de sua memória e da de outras pessoas a lembrança do que fez, essa lembrança nunca deixará de persegui-lo. Em vão invoca os obscuros e lúgubres poderes do esquecimento e olvido. Lembra-se do que fez, e essa lembrança lhe diz que outras pessoas hão de lembrar também. No meio de toda a luxuosa pompa da grandiosa ostentação; no meio da venal e vil adulação dos grandes e eruditos; no meio das mais inocentes, ainda que mais tolas, aclamações da gente comum; no meio de todo o orgulho pela conquista e do triunfo pela guerra bem sucedida, ainda é secretamente perseguido pelas vingativas fúrias da vergonha e do remorso; e, enquanto a glória o parece rodear por todos os lados, ele próprio, em sua imaginação, vê a negra e podre infâmia vindo rápida em sua perseguição, pronta a atacá-lo pelas costas, a qualquer momento. Até o grande César, conquanto tivesse a magnanimidade de dispensar seus guardas, não pôde igualmente se desfazer de suas suspeitas. A lembrança de Farsália ainda o assombrava e perseguia. Quando, a pedido do senado, teve a generosidade de perdoar Marcelo, disse àquela assembléia que não ignorava os desígnios que atentavam contra sua vida; mas que, assim como vivera o suficiente para a natureza e para a glória, estava contente de morrer, e portanto desprezava todas as conspirações. Talvez para a natureza já tivesse vivido tempo suficiente; mas o homem que se sentia objeto de tão mortais ressentimentos da parte daqueles cujo favor desejava obter, e a quem ainda desejava considerar como seus amigos, para a verdadeira glória, ou para toda a felicidade que poderia jamais esperar gozar no amor e estima de seus iguais, vivera tempo demais.


 
SEGUNDA PARTE. DO MÉRITO E DO DEMÉRITO OU DOS OBJETOS DE RECOMPENSA E DE CASTIGO

 
SEÇÃO I Do senso de mérito e demérito

 
INTRODUÇÃO
Existe um outro grupo de qualidades atribuídas às ações e conduta dos homens, distintas de sua conveniência ou inconveniência, decência ou deselegância, que são objetos de uma espécie diferente de aprovação e desaprovação. São Mérito e Demérito, qualidades de recompensa merecida, e merecida punição.

Já se observou que o sentimento ou afeto do coração do qual procede toda a ação, e do qual depende toda a sua virtude ou vício, pode ser considerado sob dois diferentes aspectos, ou segundo duas diferentes relações; primeiro, em relação com a causa ou objeto que o suscita; segundo, em relação ao fim que se propõe, ou o efeito que tende a produzir: da adequação ou inadequação, da proporção ou desproporção que o afeto parece guardar com a causa ou objeto que o desperta, depende a conveniência ou inconveniência, a decência ou deselegância da ação conseqüente; dos efeitos benéficos ou dolorosos que o afeto propõe ou tende a produzir depende o mérito ou demérito, o bom ou mau merecimento da ação que tal afeto provoca. Em que consiste nosso senso de conveniência ou inconveniência das ações já se explicou na parte anterior deste discurso. Devemos agora examinar em que consiste o senso de seu bom ou mau merecimento.


 
CAPÍTULO I O que parece objeto próprio de gratidão parece merecer recompensa; e, do mesmo modo, o que parece objeto próprio de ressentimento parece merecer punição
A nós parecerá, pois, merecedora de recompensa a ação que se ofereça como o objeto próprio e aprovado desse sentimento que mais imediata e diretamente nos incita à recompensa, ou a fazer o bem a outro. E, do mesmo modo, parecerá merecedora de punição a ação que se ofereça como objeto próprio e aprovado desse sentimento que mais imediata e diretamente nos incita ao castigo, ou a infligir mal a outro.

O sentimento que mais imediata e diretamente nos incita à recompensa é a gratidão; o que mais imediata e diretamente nos incita ao castigo é o ressentimento.

A nós parecerá, pois, merecedora de recompensa a ação que se ofereça como o objeto próprio e aprovado da gratidão; assim como, de outro lado, parecerá merecedora de punição a ação que se ofereça como o objeto próprio e aprovado de ressentimento.

Recompensar é remunerar, devolver o bem pelo bem que se recebeu. Castigar é, também, recompensar, remunerar, ainda que de maneira diversa: é devolver o mal pelo mal que se fez.

Há outras paixões, além de gratidão e ressentimento, que nos fazem interessar pela felicidade ou miséria dos outros; mas não há nenhuma que, de um modo tão distinto, nos leva a convertermo-nos em instrumento de uma ou outra. O amor e estima produzidos pela convivência e habitual aprovação mútua necessariamente nos levam a regozijarmonos com a boa sorte de quem é objeto de tão agradáveis emoções, e, conseqüentemente, a voluntariamente estendermos a mão para promovê-la. Nosso amor, porém, está plenamente satisfeito, ainda que a boa sorte lhe venha sem a nossa ajuda. Tudo o que esta paixão mais deseja é vê-lo feliz, independentemente do autor de sua prosperidade. Todavia, a gratidão não se satisfaz dessa maneira. Se a pessoa a quem devemos muitas obrigações fica feliz sem nossa intervenção, embora isso agrade ao nosso amor, não contenta nossa gratidão. Até que o tenhamos recompensado, até que tenhamos sido os instrumentos de promoção da sua felicidade, sentimo-nos ainda sobrecarregados com essa dívida que seus serviços passados nos impuseram.

E, do mesmo modo, o ódio e a aversão produzidos pela habitual reprovação, freqüentemente podem nos conduzir a sentir um maligno regozijo pela desgraça desse homem cujo comportamento e caráter produzem em nós uma paixão tão dolorosa. Mas, embora a aversão e o ódio nos impeçam toda a simpatia, e por vezes até nos predisponham a nos regozijarmos com a aflição do outro, mesmo assim, se não houver ressentimento – se nem nós nem nossos amigos tenhamos sido pessoalmente insultados –, essas paixões não nos levariam naturalmente a desejar convertermo-nos em instrumentos dessa aflição. Embora não pudéssemos temer castigo por termos colaborado de certa forma para isso, preferiríamos que tivesse acontecido por outros meios. Para alguém sob domínio de um ódio violento, talvez fosse agradável saber que a pessoa a quem execra e detesta foi morta em algum acidente. Mas se tivesse a menor fagulha de justiça, que, embora sua paixão não seja muito favorável à virtude, ainda poderia existir, seria uma dor excessiva para ele, ter sido, ainda que sem intenção, a causa do infortúnio desse outro. A simples idéia de ter contribuído voluntariamente para a morte o impressionaria de maneira desmedida. Rejeitaria com horror até imaginar tão execrável intenção; e se pudesse imaginar-se capaz de tamanha enormidade, começaria a ver-se com o mesmo ódio com que vira a pessoa que fora o objeto de sua aversão. Mas com o ressentimento ocorre exatamente o oposto: se a pessoa que nos infligiu uma grande ofensa, porque, por exemplo, assassinou nosso pai ou nosso irmão, pouco depois morresse de febre, ou fosse levada ao cadafalso por algum outro crime, ainda que isso pudesse abrandar nosso ódio, não satisfaria inteiramente nosso ressentimento. O ressentimento nos incitaria a desejar não apenas o castigo, mas que o castigo resultasse de nós mesmos, e por conta precisamente da ofensa de que fomos vítimas. O ressentimento não se satisfaz plenamente, a não ser que o ofensor não apenas padeça por sua vez, mas que padeça por causa desse mal específico que nos fez sofrer. É necessário que se arrependa e se lamente precisamente daquela ação, de modo que outros, por medo de merecerem castigo semelhante, se aterrorizem de incorrer em igual culpa. A natural satisfação dessa paixão tende a produzir por si mesma todas as finalidades políticas da punição: a regeneração do criminoso e o exemplo para o público.

Gratidão e ressentimento são, portanto, os sentimentos que mais imediata e diretamente nos incitam a recompensar e a punir. A nós, pois, parecerá merecedor de recompensa quem pareça objeto próprio e aprovado de gratidão; e como merecedor de castigo, quem o seja de ressentimento.


 
CAPÍTULO II Dos objetos apropriados de gratidão e ressentimento
Ser o objeto próprio e aprovado de gratidão, bem como de ressentimento, não pode significar nada senão ser objeto daquela gratidão e daquele ressentimento que, naturalmente, parece apropriado e aprovado.

Mas estas, como todas as demais paixões da natureza humana, parecem apropriadas e aprovadas quando o coração de cada espectador imparcial simpatizar inteiramente com elas, quando cada observador indiferente delas participa e partilha inteiramente.

Portanto, parecerá merecedor de recompensa quem, para alguma pessoa ou pessoas, é o objeto natural de uma gratidão que todo coração humano esteja disposto a experimentar, e, por essa razão, a aplaudir; e, de outro lado, parecerá merecedor de punição quem, da mesma maneira, é o objeto natural, para uma pessoa ou pessoas, de um ressentimento que o peito de todo homem sensato está pronto a adotar, solidarizando-se com ele. A nós, sem dúvida, parecerá merecedora de recompensa a ação que todos os que conhecem desejariam recompensar, e por isso se alegram em ver recompensada; e com a mesma segurança parecerá merecedora de punição a ação com que se zangam com todos os que dela têm conhecimento, e, por tal motivo lhes regozija vê-la punida.

1. Assim como simpatizamos com a alegria de nossos companheiros quando prosperam, também nos reunimos a eles na complacência e satisfação com que, naturalmente, julgam o que é a causa de sua boa sorte. Partilhamos do amor e afeição que por ela concebem, e também começamos a amá-la. Lamentaríamos por seu bem se fosse destruída, ou mesmo se estivesse muito distante e fora do alcance de seus cuidados e proteção, ainda que nada perdessem com sua ausência, senão o prazer de contemplá-la. Se é um homem que assim se tornou o afortunado instrumento da felicidade de seus irmãos, o caso é ainda mais peculiar. Quando vemos que um homem é socorrido, protegido, tranqüilizado por outro, nossa simpatia com a felicidade da pessoa assim beneficiada serve unicamente para animar nossa solidariedade para com a gratidão que experimenta pelo benfeitor. Quando fitamos a pessoa que é causa desse prazer com os olhos com os quais imaginamos deve fitar o outro, seu benfeitor se nos apresenta sob a mais encantadora e amável das luzes. Portanto, simpatizamos prontamente com o afeto grato que concebe por essa pessoa à qual tanto deve, e, em conseqüência, aplaudimos as retribuições que está disposto a conceder pelos bons serviços que lhe foram prestados. Quando compartilhamos sem reserva do afeto que origina essas retribuições, forçosamente nos figuram muito apropriadas e adequadas ao seu objeto.

2. Do mesmo modo, assim como simpatizamos com a dor de nosso próximo sempre que presenciamos sua aflição, também partilhamos de seu horror e aversão por tudo o que a motivar. Nosso coração, assim como adota sua dor, palpitando na mesma cadência em que ela, também se sente animado com esse espírito com que se esforça para afastar ou destruir a causa dessa dor. A solidariedade indolente e passiva com que o acompanhamos em seus sofrimentos prontamente torna-se esse sentimento mais vigoroso e ativo com o qual participamos de seus esforços para os repelir, ou para satisfazer sua aversão ao que os ocasionou. O caso é ainda mais intenso quando é um ser humano a causa dos sofrimentos. Quando vemos um homem oprimido ou ofendido por outro, a simpatia que experimentamos pela aflição do sofredor parece servir apenas para animar nossa solidariedade com seu ressentimento contra o ofensor. Regozija-nos vê-lo atacar por sua vez seu adversário, e ficamos ansiosos e dispostos a ajudá-lo, sempre que tentar defesa, ou, em certo grau, até mesmo vingança. Se o ofendido perecesse na luta, não apenas simpatizaríamos com o real ressentimento de seus amigos e parentes, mas com o imaginário ressentimento que em nossa imaginação emprestamos ao morto, que já não é capaz de sentir nenhuma outra emoção humana. Mas na medida em que nos colocamos na sua situação, na medida em que entramos, por assim dizer, no seu corpo, e em nossas fantasias, de certo modo, animamos novamente a disforme e decomposta carcaça do morto, quando dessa maneira mostramos seu caso para nosso próprio peito, nessa ocasião, como em muitas outras, experimentamos uma emoção que a pessoa diretamente atingida é incapaz de experimentar, a qual, contudo, experimentamos por uma ilusória solidariedade para com ele. As lágrimas compassivas que derramamos pela imensa e irreparável perda, que em nossa fantasia o morto parece ter sofrido, não são senão uma pequena parte de nosso dever para com ele. A ofensa de que foi vítima exige, pensamos nós, uma parte considerável de nossa atenção. Experimentamos o ressentimento que imaginamos ele deveria experimentar, e que experimentaria se, em seu corpo frio e inerte, restasse qualquer consciência do que se passa na Terra. Julgamos que seu sangue clama por vingança. As próprias cinzas do morto parecem perturbadas à idéia de que as ofensas sofridas passem sem vingança. Os horrores que supostamente assombram a cama do assassino, os fantasmas que, imagina a superstição, erguem-se de seus túmulos para exigir vingança contra os que os levaram a um fim prematuro, tudo isso obedece à natural simpatia para com o imaginário ressentimento das vítimas. E pelo menos com relação a esse, o mais execrável de todos os crimes, a natureza, antecipando-se a todas as reflexões sobre a utilidade da punição, à sua maneira marcou no coração humano, com letras fortíssimas e indeléveis, uma aprovação imediata e instintiva da sagrada e necessária lei da retaliação.


 
CAPÍTULO III Quando não há aprovação da conduta da pessoa que confere o benefício, há pouca simpatia pela gratidão daquele que o recebe; e, inversamente, quando há desaprovação dos motivos da pessoa que comete o dano, não há nenhuma espécie de simpatia pelo ressentimento de quem o sofre
Deve-se advertir, entretanto, que por mais benéficas, de um lado, ou por mais danosas, por outro, que possam ser as ações da pessoa que age para a outra pessoa sobre quem (se me permitem a expressão) se atua, se, no primeiro caso, parece não haver propriedade nos motivos do agente, se não pudermos compartilhar dos afetos que influenciaram sua conduta, teremos pouca simpatia com a gratidão da pessoa que recebe o benefício. Ou se, no outro caso, parece não haver impropriedade nos motivos do agente, e se, o contrário, os afetos que influenciaram sua conduta são tais que necessariamente deles compartilhamos, não teremos nenhuma simpatia com o ressentimento do sofredor. No primeiro caso, parece pouca a gratidão devida, e todo o tipo de ressentimento parece injusto no outro. Uma das ações parece merecer pouca recompensa, a outra, não merecer nenhum castigo.

1. Primeiro, digo que sempre que não pudermos simpatizar com os afetos do agente, sempre que parece não haver propriedade nos motivos que influenciaram sua conduta, ficamos menos dispostos a partilhar da gratidão da pessoa que recebeu o benefício de suas ações. Parece-nos que uma retribuição muito pequena se deve a essa tola e pródiga generosidade, que confere os maiores benefícios pelos motivos mais triviais, e concede uma posição a um homem apenas porque seu nome e sobrenome por acaso são os mesmos que os do doador. Tais favores não parecem exigir uma recompensa proporcional. Nosso desprezo pela insensatez do agente impede-nos de partilhar realmente da gratidão da pessoa que recebeu o bom ofício. Seu benfeitor nos parece indigno desse sentimento. Como ao nos colocarmos no lugar da pessoa devedora sentimos que não poderíamos conceber grande reverência por tal benfeitor, facilmente a absolvemos de grande parte dessa submissa veneração e estima que nos pareciam devidas a alguma personalidade mais respeitável; e desde que sempre trate seu amigo mais frágil com bondade e humanidade, estamos dispostos a perdoar-lhe a falta de atenção e cuidado que exigiríamos de um protetor mais digno. Os príncipes que amontoaram profusamente fortuna, poder e honrarias de seus favoritos, raramente suscitaram esse grau de assentimento às suas pessoas, de que muitas vezes desfrutaram os mais frugais em seus favores. A bem-intencionada, mas pouco judiciosa, prodigalidade de Jaime I da Grã-Bretanha parece não ter atraído ninguém para a sua pessoa; e esse príncipe, apesar de sua disposição social e inofensiva, parece ter vivido e morrido sem um só amigo. Toda a fidalguia (gentry) e a nobreza (nobility) da Inglaterra expôs suas vidas e fortunas na causa de seu filho, bem mais moderado e célebre, não obstante a frieza e distante gravidade de seu comportamento habitual.

2. Segundo, digo que sempre que a conduta do agente parece obedecer inteiramente a motivos e afetos que compreendemos e aprovamos de todo, não temos nenhuma espécie de simpatia com o ressentimento do sofredor, por maior que possa ter sido o dano a ele feito. Quando duas pessoas brigam, se tomamos partido e adotamos inteiramente o ressentimento de uma delas, é impossível compartilharmos do da outra. Nossa simpatia pela pessoa com cujos motivos simpatizamos, e a quem portanto julgamos estar com a razão, só pode nos endurecer contra toda a solidariedade para com a outra, a quem necessariamente julgamos estar errada. Por isso, tudo o que esta última tenha sofrido, enquanto não exceder o que nós próprios teríamos desejado que ela sofresse, enquanto não exceder o que nossa solidária indignação nos incitaria a infligir a ela, não pode nem desagradar nem nos provocar. Quando um assassino desumano é levado ao cadafalso, ainda que sintamos alguma compaixão por sua desgraça, não podemos ter nenhuma simpatia por seu ressentimento, se cometesse o absurdo de expressar algo assim contra seu perseguidor ou seu juiz. A tendência natural da justa indignação destes contra tão vil criminoso é, com efeito, a mais fatal e ruinosa para ele. Mas é impossível que nos desagradasse a tendência de um sentimento que, se aplicarmos o caso a nós mesmos, sentimos que não poderíamos evitar de adotar.


 
CAPÍTULO IV Recapitulação dos capítulos anteriores
1. Não simpatizamos, pois, inteira e sinceramente com a gratidão de um homem para com outro simplesmente porque esse outro foi causa de sua boa sorte, a não ser que concordemos inteiramente com os motivos que o impulsionaram para isso. Nosso coração deve adotar os princípios do agente, e concordar com todos os afetos que influenciaram sua conduta, antes de poder simpatizar inteiramente com ele, e acompanhar a gratidão da pessoa beneficiada por suas ações. Se a conduta do benfeitor não parece apropriada, por mais benéficos que sejam seus efeitos, não exige, nem parece forçoso requerer, uma recompensa proporcional.

Mas quando à tendência benéfica da ação vem se somar a propriedade do afeto do qual procede, quando simpatizamos inteiramente e partilhamos dos motivos do agente, o amor que concebemos por ele enquanto tal estimula e vivifica nossa solidariedade com a gratidão dos que devem a sua prosperidade à sua boa conduta. Suas ações parecem então exigir e, se me permitem dizer, clamar por uma recompensa proporcional. Então partilhamos inteiramente a gratidão que a outorga. Assim, ao simpatizarmos com o sentimento que promove a recompensa, ao aprovarmo-lo, o benfeitor nos parece objeto apropriado de recompensa. Ao aprovarmos e compartilharmos o afeto do qual procede a ação, necessariamente aprovamos a ação e consideramos a pessoa para quem tal ação se dirige como seu objeto próprio e adequado.

2. Da mesma maneira, não podemos simpatizar em absoluto com o ressentimento de um homem contra outro meramente porque este outro foi a causa de seu infortúnio, a não ser que o tenha causado por motivos que não conseguimos compreender. Antes de podermos adotar o ressentimento do sofredor, devemos desaprovar os motivos do agente, e perceber que nosso coração renuncia a toda a simpatia para com os afetos que influenciaram sua conduta. Se estes não parecem inadequados, por mais funesta que seja para aqueles contra quem é dirigida a tendência da ação que procede de tais afetos, a ação em si mesma não parece merecer nenhum castigo, ou ser objeto próprio de nenhum ressentimento.

Mas quando ao sofrimento provocado pela ação vem se somar a impropriedade do afeto da qual procede, quando nosso coração rejeita com horror toda a solidariedade para com os motivos do agente, simpatizamos sincera e inteiramente com o ressentimento do sofredor. Tais ações parecem então merecer e, se me permitem dizer, clamar por um castigo proporcional; e compartilhamos inteiramente e assim aprovamos aquele ressentimento que tende a infligi-lo. Ao simpatizarmos com o sentimento que conduz à punição, ao aprovarmo-lo inteiramente, o ofensor forçosamente nos parece o objeto próprio de castigo. Também nesse caso, ao aprovarmos e partilharmos o afeto do qual procede a ação, necessariamente aprovamos a ação e consideramos a pessoa contra a qual tal ação se dirige como seu objeto próprio e adequado.


 
CAPÍTULO V A análise do senso de mérito e demérito
1. Assim como, pois, nosso senso de propriedade da conduta surge do que chamarei simpatia direta com os afetos e motivos da pessoa que age, nosso senso de seu mérito nasce do que chamarei uma simpatia indireta com a gratidão da pessoa sobre a qual, se assim posso dizer, se agiu.

Como não podemos, realmente, compartilhar inteiramente da gratidão da pessoa que recebe o benefício, a não ser que de antemão aprovemos os motivos do benfeitor, assim, por causa disso, o senso de mérito parece ser um sentimento composto, constituído de duas emoções distintas; uma simpatia direta com os sentimentos do agente, e uma simpatia indireta com a gratidão de quem recebe o benefício de suas ações.

Em diferentes ocasiões podemos distinguir claramente essas duas emoções diferentes, combinando-se e unindo-se em nosso senso de mérito de um caráter ou ação particular. Quando lemos na história sobre ações de grandeza própria e benéfica do espírito, com que zelo partilhamos de tais desígnios! Como nos anima a elevada generosidade que os orienta! Como desejamos seu bom êxito! Como sofremos com seu fracasso! Na imaginação, tornamo-nos a própria pessoa cujas ações nos são representadas; nossa fantasia nos transporta aos cenários daquelas distantes e esquecidas aventuras, e imaginamo-nos desempenhando o papel de um Scipio ou Camilo, um Timóleo ou um Aristides. Até aqui nossos sentimentos se fundam sobre a simpatia direta pela pessoa que age. Mas nossa simpatia pelos que recebem o benefício dessas ações não é menos sentida. Sempre que nos colocamos na situação destes últimos, com que ardorosa e afetuosa solidariedade partilhamos de sua gratidão para com aqueles que lhes serviram de maneira tão essencial! É como se abraçássemos, junto com eles, seu benfeitor. Nosso coração simpatiza prontamente com os mais extremos arrebatamentos de sua grata afeição. Nem honras nem recompensas, pensamos, seriam grandes o bastante para conferir-lhe. E quando retribuem adequadamente seus favores, sinceramente os aplaudimos e os compartilhamos. Mas ficamos desmedidamente escandalizados se por sua conduta demonstram pouco senso das obrigações que lhes foram impostas. Em resumo, todo o nosso senso do mérito e bom merecimento de tais ações, da conveniência e justiça de as recompensar e de fazer alegrar-se, por sua vez, a pessoa que as executou, surge das emoções solidárias de gratidão e amor com que, quando adotamos em nosso peito a situação das pessoas principalmente afetadas, sentimo-nos naturalmente transportados para o homem que pode agir com tão pertinente e nobre benemerência.

2. Da mesma maneira como nosso senso da impropriedade da conduta surge da falta de simpatia ou de uma direta antipatia com os afetos e motivos do agente, também nosso senso de seu demérito surge do que chamarei igualmente uma indireta simpatia com o ressentimento do sofredor.

Como certamente não podemos partilhar do ressentimento do sofredor, a não ser que nosso coração de antemão desaprove os motivos do agente e renuncie a toda a solidariedade com ele, o senso de demérito, bem como o de mérito, parecem ser um sentimento composto, constituído de duas emoções distintas: uma antipatia direta com os sentimentos do agente e uma simpatia indireta com o ressentimento do sofredor.

Aqui também podemos, em muitas ocasiões distintas, distinguir claramente as duas emoções diferentes, combinando-se e unindo-se em nosso senso de mau merecimento de um caráter ou ação particular. Quando lemos nas histórias sobre a perfídia ou a crueldade de um Bórgia ou um Nero, nosso coração rebela-se contra os detestáveis sentimentos que influenciaram sua conduta, e renuncia com horror e abominação a toda a solidariedade com tão execráveis motivos. Até aqui nossos sentimentos se fundam sobre a antipatia direta para com os afetos do agente; e a simpatia indireta com o ressentimento dos sofredores é sentida de modo ainda mais agudo. Quando nos colocamos no lugar das pessoas as quais esses flagelos da humanidade insultaram, assassinaram, traíram, quanta indignação sentimos contra tão insolentes e desumanos opressores da Terra! Nossa simpatia com a inevitável aflição dos inocentes sofredores não é mais real ou mais viva do que a nossa solidariedade com seu justo e natural ressentimento. O primeiro sentimento apenas intensifica o último, e a idéia de sua aflição serve apenas para inflamar e fazer explodir nossa animosidade contra os que a ocasionaram. Quando pensamos na angústia dos sofredores, mais avidamente tomamos o seu partido contra seus opressores; incluímo-nos com mais afinco em todos os seus planos de vingança, e na nossa imaginação sentimos, a todo momento, lançar sobre esses transgressores das leis da sociedade o castigo que nossa solidária indignação nos diz ser devido a seus crimes. Nosso senso do horror da medonha atrocidade de tal conduta, o deleite com que tomamos conhecimento de sua punição, a indignação que sentimos se escapa à retaliação devida, em resumo, todo o nosso senso e sentimento de seu mau merecimento, da conveniência e justiça de se infligir o mal à pessoa culpada, e de também fazê-la sofrer, surge da solidária indignação que naturalmente ferve no peito do espectador, sempre que assume inteiramente o caso do sofredor.

Atribuir dessa maneira nosso senso natural de demérito das ações humanas a uma simpatia pelo ressentimento do sofredor talvez pareça, para a maioria dos homens, uma degradação deste sentimento. O ressentimento é comumente considerado uma paixão tão odiosa, que as pessoas tenderiam a pensar que é impossível um princípio tão louvável como o do senso de demérito do vício fundar-se, de algum modo, sobre ele. Mas talvez se disponham mais a admitir que nosso senso de mérito das boas ações se funda sobre a simpatia pela gratidão das pessoas por elas beneficiadas, pois a gratidão, bem como todas as outras paixões benevolentes, é considerada um princípio amável, que nada retira da dignidade do que sobre ela se funda. Entretanto, sob todos os aspectos, gratidão e ressentimento evidentemente são a contrapartida uma do outro; e se nosso senso de mérito surge da simpatia por uma, nosso senso de demérito não pode se originar menos da solidariedade pelo outro.

Ademais, considere-se que o ressentimento, talvez a mais odiosa das paixões, nos graus em que com muita freqüência o vemos, não é por nós desaprovado quando, devidamente humilhado, rebaixa-se inteiramente ao nível da indignação solidária do espectador. Quando nós, os observadores, sentimos que nosso próprio rancor corresponde em tudo ao do sofredor; quando o ressentimento deste em nada excede o nosso; quando nenhuma palavra, nenhum gesto, que lhe escapa denota uma emoção mais violenta que a experimentada por nós mesmos, e quando de modo algum se propõe a infligir um castigo, ou mais severo do que o que gostaríamos de ver infligido, ou, por tal razão, de que desejaríamos ser, nós mesmos, os instrumentos de aplicação, é impossível que deixemos de aprovar inteiramente seus sentimentos. Neste caso, nossa própria emoção certamente justificará a dele a nossos olhos. E como a experiência nos ensina quão incapaz de tal moderação é a maioria dos homens, e quão grande esforço é necessário para reduzir o rude e indisciplinado impulso do ressentimento a um temperamento equânime, não podemos deixar de conceber um grau considerável de estima e admiração por quem demonstra ser capaz de exercer tamanho domínio sobre uma das mais revoltosas paixões de sua natureza. Quando de fato o rancor do sofredor excede, como quase sempre ocorre, ao de que podemos participar, uma vez que não o compartilhamos, necessariamente o desaprovamos. Desaprovamo-lo ainda mais do que faríamos com um igual excesso de quase todas as outras paixões derivadas da imaginação. E esse ressentimento demasiado violento, ao invés de nos arrebatar, acaba por se tornar o objeto de nosso próprio ressentimento e indignação. Comparti-lhamos o ressentimento contrário, ou seja, o da pessoa que é o objeto dessa emoção injusta, e que está em perigo de sofrê-la.

A vingança, portanto, excesso de ressentimento, surge como a mais detestável de todas as paixões, e é objeto do horror e indignação de todos. E como a maneira em que esta paixão comumente se revela aos homens é cem vezes excessiva para cada vez em que é moderada, tendemos a julgá-la inteiramente detestável e odiosa, porque é assim que habitualmente se revela. Contudo, mesmo no estado presente de depravação da humanidade, a natureza não parece ter-nos tratado com tanta brutalidade, dotando-nos de algum princípio que seja integralmente, e sob todos os aspectos, mau, ou que em nenhum grau, ou por razão nenhuma, possa ser objeto apropriado de louvor e aprovação. Em algumas ocasiões, sentimos que esta paixão, em geral demasiado forte, pode do mesmo modo ser demasiado fraca. Às vezes nos lamentamos de que uma certa pessoa demonstre tão pouco espírito, e tenha tão pouco senso das ofensas de que foi vítima; e tão prontamente a desprezaríamos pela falta, como a odiaríamos pelo excesso dessa paixão.

Seguramente, os autores que escreveram por inspiração divina não teriam falado, nem com tanta freqüência, nem com tanta veemência, da ira e cólera de Deus, se houvessem considerado que em todos os graus essas paixões eram viciosas e más, mesmo numa criatura tão fraca e imperfeita como o homem.

Considere-se, ainda, que a presente investigação não se ocupa de uma questão de direito, por assim dizer, mas de uma questão de fato. Não estamos analisando por ora sobre que princípios um ser perfeito aprovaria o castigo para as más ações, mas sobre que princípios uma criatura tão fraca e imperfeita de fato a aprovaria. É evidente que os princípios recém-mencionados têm um grande efeito sobre seus sentimentos, e parece sábio que seja assim. A mera existência da sociedade exigiu que a imerecida e gratuita malícia fosse contida por punições adequadas; e, por conseqüência, que infligir tais punições fosse considerada uma ação conveniente e louvável. Portanto, embora o homem seja naturalmente dotado de um desejo de bem-estar e conservação da sociedade, o Autor da natureza não confiou à sua razão descobrir que uma certa aplicação punitiva constitui o meio adequado para alcançar esse fim; dotou-o, entretanto, de uma imediata e instintiva aprovação daquela aplicação, a qual é a mais adequada para alcançá-lo. A esse respeito, a economia da natureza tem exatamente o mesmo caráter de muitas outras ocorrências. No que concerne a todos aqueles fins, que, por sua particular importância, podem-se considerar – se me permitem a expressão – os fins favoritos da natureza, os homens foram dotados, não apenas de um apetite pelas finalidades que ela propõe, mas igualmente de um apetite pelos únicos meios pelos quais essa finalidade pode realizar-se, por causa desses mesmos meios e independentemente de sua tendência a produzi-la. Assim, a conservação do indivíduo e a propagação da espécie constituem as grandes finalidades que a natureza parece se ter proposto para formar todos os animais. Os homens são dotados de um desejo por tais fins e de uma aversão pelo contrário; de um amor à vida e de um horror à morte; de um desejo pela continuação e perpetuação da espécie, e de uma aversão pela idéia de sua completa extinção. Mas, embora assim dotados de um forte desejo por ver realizados esses fins, não foi confiado às lerdas e inseguras determinações de nossa razão descobrir os meios necessários para tanto. Para a quase totalidade desses casos, a natureza nos orientou com instintos primários e imediatos. Fome, sede, a paixão que une os dois sexos, o amor ao prazer, o temor à dor, incitam-nos a aplicar esses meios por si mesmos, independentemente de qualquer consideração sobre sua tendência àqueles fins benéficos, a qual o grande Diretor da natureza intentou produzir.

Antes de concluir esta nota, devo ressaltar a diferença entre a aprovação do que é conveniente e a do que é meritório ou benéfico. Antes de conceder nossa aprovação aos sentimentos de uma pessoa como apropriados e adequados aos seus objetos, devemos não apenas nos sentir afetados do mesmo modo que ela, mas ainda perceber essa harmonia e correspondência entre os seus sentimentos e os nossos. Assim, quando me inteirasse de que uma desgraça se abateu sobre o meu amigo, deveria experimentar precisamente esse mesmo grau de aflição a que ele se abandona; contudo, até que seja informado da maneira como se comporta, até que perceba a correspondência entre suas emoções e as minhas, não se pode esperar de mim que aprove os sentimentos que governam sua conduta. Para se aprovar a conveniência, portanto, é necessário não apenas que simpatizemos inteiramente com a pessoa que age, mas que percebamos a concordância entre os seus sentimentos e os nossos. Ao contrário, quando temos notícia de um benefício conferido a outro, seja qual for o modo como isso afeta o beneficiado, se, atribuindo o caso a mim, sinto a gratidão surgir em meu próprio peito, forçosamente aprovo a conduta de seu benfeitor, considerando-a meritória, e objeto apropriado de recompensa. Se a pessoa que recebe o benefício concebe ou não gratidão, não altera, claro, nenhum grau de nossos sentimentos pelo mérito daquele que o concedeu. Aqui, pois, não é necessária uma correspondência real entre sentimentos. Basta imaginar que, caso se sentisse grato, haveria correspondência entre nossos sentimentos e os seus; por essa razão, nosso senso de mérito freqüentemente se funda sobre uma dessas simpatias ilusórias, pelas quais, quando fazemos nosso o caso de outro, sempre somos afetados de uma maneira como o principal interessado é incapaz de se afetar. Há uma diferença análoga entre nossa desaprovação do demérito e a de inconveniência.


 
SEÇÃO II Da justiça e da beneficência

 
CAPÍTULO I Comparação entre aquelas duas virtudes
Ações de tendência benéfica, que se originam de motivos apropriados, parecem merecer unicamente recompensa; porque só elas são objetos aprovados de gratidão, ou porque suscitam a gratidão solidária do espectador.

Ações de tendência danosa, que se originam de motivos impróprios, parecem as únicas dignas de punição; ou porque apenas elas são objetos aprovados de ressentimento, ou porque suscitam o ressentimento solidário do espectador.

A beneficência é sempre voluntária, não pode ser extorquida pela força, e a mera ausência dela não expõe a nenhum castigo, porque a mera ausência de beneficência não tende a produzir mal real e determinado. Pode decepcionar pelo bem que seria razoável esperar-se e, por essa razão, pode com justeza suscitar desgosto e desaprovação; não pode, entretanto, provocar um ressentimento de que os homens compartilhem. O homem que não recompensa seu benfeitor, quando está em seu poder fazê-lo e seu benfeitor precisa de sua ajuda, sem dúvida é culpado da mais negra ingratidão. O coração de qualquer espectador rejeita toda a solidariedade para com o egoísmo de seus motivos, tornando o objeto apropriado da maior desaprovação. Mas mesmo assim não provoca dano definido em ninguém. Apenas de fato não faz o bem que com propriedade deveria ter feito. É objeto de ódio, paixão naturalmente suscitada pela inconveniência do sentimento e comportamento, não do ressentimento, paixão causada propriamente apenas por ações que tendem a provocar dano real e evidente em algumas pessoas determinadas. Sua falta de gratidão, portanto, não pode ser punida. Obrigá-lo pela força a cumprir o que deveria cumprir pela gratidão – e cada espectador imparcial aprovaria se assim o fizesse – seria, se possível, ainda mais impróprio do que sua negligência. Seu benfeitor ficaria desonrado se tentasse coagi-lo à gratidão, e seria impertinente que um terceiro qualquer, que não fosse superior a nenhum dos dois, intermediasse. Mas de todos os deveres da beneficência, os que a gratidão nos recomenda são os que mais se aproximam do que chamamos perfeita e completa obrigação. O que a amizade, a generosidade e a caridade nos levariam a fazer com universal aprovação é ainda mais voluntário, e menos passível ainda de ser extorquido pela força, do que os deveres da gratidão. Falamos de dívida da gratidão, não de caridade, generosidade, nem mesmo de amizade, se a amizade é mera estima, e não foi aprimorada ou dificultada pela gratidão por bons préstimos.

O ressentimento parece nos ter sido dado pela natureza para defesa, e apenas para defesa. É a salvaguarda da justiça e a segurança da inocência. Incita-nos a repelir o mal que nos tentam fazer, e retaliar o que já nos fizeram, de modo que o ofensor seja levado a arrepender-se de sua injustiça, e nos outros o medo de castigo semelhante inspire-se o terror de ser culpado de semelhante ofensa. Portanto, o ressentimento deve ser reservado para esses fins, e o espectador não poderá partilhar dele caso obedeça a qualquer outra finalidade. Mas a mera ausência de virtudes beneficentes, embora possa nos decepcionar quanto ao bem que seria razoável esperar-se, não provoca, nem tenta provocar, nenhum mal do qual tenhamos ocasião de nos defender.

Há, entretanto, outra virtude cuja observância não se lega à liberdade de nossa própria vontade, mas, ao contrário, pode ser extorquida pela força, e cuja violação expõe ao ressentimento e, conseqüentemente, à punição. Essa virtude é a justiça, e violá-la constitui ofensa, pois assim se fere real e claramente algumas pessoas determinadas, por motivos naturalmente desaprovados. É, portanto, objeto apropriado de ressentimento e de punição, esta, a conseqüência natural do ressentimento. Na medida em que os homens aceitam e aprovam a violência empregada para vingar o mal causado pela injustiça, mais ainda devem aceitar e aprovar a que é empregada para prevenir e repelir a ofensa, coibindo o ofensor de ferir seus semelhantes. A pessoa que premedita uma injustiça sabe disso, e sente que a força pode, com a mais extrema legitimidade, ser usada tanto pela pessoa a quem está na iminência de ofender, como por outras; quer a fim de obstruir a execução de seu crime, quer para puni-lo após tê-lo executado. E sobre isso fundamenta-se a notável distinção entre justiça e todas as outras virtudes sociais, em que ultimamente insistiu particularmente um ator de grande e original genialidade, a saber: que sentimo-nos sob a obrigação mais estrita de agir de acordo com a justiça, do que segundo o que é agradável à amizade, caridade ou generosidade; que a prática das virtudes recém-mencionadas parece ter sido deixada em certa medida à nossa própria escolha, mas que, de um modo ou de outro, sentimo-nos de maneira peculiar atados, forçados e obrigados ao respeito à justiça. Isso quer dizer que sentimos como, com a mais extrema legitimidade e com a aprovação de todos os homens, pode-se empregar a força para constranger-nos a observar as regras de uma, mas não a seguir os preceitos de outra.

Sempre devemos, entretanto, distinguir cuidadosamente entre o que é apenas censurável, ou objeto adequado de desaprovação, e a força que se pode empregar quer para punir, quer para prevenir. Parece censurável o que carece do grau comum de apropriada beneficência, a qual a experiência nos ensina a esperar de todos; e, ao contrário, parece louvável o que excede esse grau comum. Em si mesmo, esse grau comum não se mostra nem censurável nem louvável. Um pai, um filho, um irmão, que se comporta com seu respectivo parente nem melhor nem pior do que é o habitual para a maioria dos homens, não demonstra merecer propriamente nem elogio nem censura. Quem nos surpreende por uma extraordinária e inesperada bondade, embora ainda apropriada e adequada, ou que, ao contrário, por uma extraordinária e inesperada, ademais, inadequada, crueldade, parece elogiável num caso, e censurável no outro.

Mesmo o grau mais comum de bondade ou beneficência, porém, não pode, entre iguais, ser extorquido pela força. Entre iguais, considera-se que cada indivíduo tenha, naturalmente e previamente à instituição do governo civil tanto o direito a defender-se de ofensas, como o de exigir um certo grau de punição para os que as causaram. Todo espectador generoso não apenas aprova sua conduta quando isso ocorre, mas partilha de tal maneira de seus sentimentos que não raro deseja ajudá-lo. Quando um homem ataca, rouba ou tenta assassinar outro, todos os vizinhos se alarmam e pensam que agem corretamente ao correr, seja para vingar quem foi ofendido, seja para defender quem está em perigo de ser. A um pai falta o grau comum de afeto paternal em relação a um filho; um filho parece desprovido da filial reverência que seria de esperar para com seu pai; irmãos carecem do grau usual de afeto fraterno; um homem fecha seu peito para a compaixão, recusando-se a suavizar a desgraça de seus semelhantes, embora o pudesse fazer com grande facilidade: em todos esses casos, ainda que todos censurem a conduta, ninguém imagina que os homens que talvez tivessem razão de esperar mais bondade possuam qualquer direito de a extorquir pela força. O sofredor só pode se queixar, e o espectador pode intermediar unicamente por conselho e persuasão. Em todas essas ocasiões, julgar-se-ia que constitui o mais alto grau de insolência e presunção iguais fazerem uso da força um contra o outro.

A esse respeito, um superior pode por vezes, com aprovação universal, obrigar os que estão sob sua jurisdição a portar-se com certo grau de conveniência recíproca. As leis de todas as nações civilizadas obrigam pais a sustentar seus filhos, e filhos a sustentar seus pais, e impõem aos homens outros deveres beneficentes. Ao magistrado civil é confiado o poder não apenas de conservar a paz pública, contendo a injustiça, mas de promover a prosperidade da República (commonwealth), estabelecendo boa disciplina e desencorajando toda sorte de vício e de inconveniência; pode, portanto, prescrever regras, proibindo não apenas as mútuas ofensas entre os concidadãos, mas ordenando, em certo grau, ajudas recíprocas. Quando o soberano ordena algo apenas indiferente, e que previamente às suas ordens se poderia omitir sem qualquer censura, desobedecer torna-se não apenas censurável mas passível de castigo. Logo, quando ordena algo que, anteriormente a qualquer uma dessas ordens, não se poderia omitir sem incorrer em grau de censura, certamente se torna ainda mais passível de castigo pela falta de obediência. De todos os deveres do legislador, este, porém, talvez seja aquele cuja execução apropriada e judiciosa exija maior delicadeza e reserva. Negligenciá-lo expõe toda a República a muitas graves desordens e ofensivas enormidades, e levar isso muito adiante é destrutivo para toda a liberdade, segurança e justiça.

Embora a mera ausência de beneficência não pareça merecer punição por parte dos iguais, as maiores práticas dessa virtude parecem merecer a mais alta recompensa. Uma vez que produzem o bem maior, são objetos naturais e aprovados da mais viva gratidão. Embora a infração à justiça, ao contrário, exponha à punição, a observância das regras dessa virtude parece não merecer quase nenhuma recompensa. Sem dúvida, há conveniência na prática da justiça, e essa prática merece, por conseguinte, toda a aprovação devida à conveniência. Mas como não promove nenhum bem positivo, tem direito a muito pouca gratidão. A mera justiça é, na maior parte das ocasiões, apenas uma virtude negativa, pois apenas nos impede de ferir nosso vizinho. O homem que tão-somente se abstém de violar a pessoa, a propriedade ou a reputação de seus vizinhos certamente tem muito pouco mérito positivo. Cumpre, no entanto, todas as regras do que é peculiarmente chamado justiça, e faz tudo o que seus iguais podem com conveniência forçá-lo a fazer, ou que o podem punir por não fazer. Freqüentemente podemos cumprir todas as regras da justiça sentando-nos, quietos e sem fazer nada.

Como tudo o que cada homem faz lhe será feito, a retaliação parece ser a grande lei que nos dita a natureza. Julgamos que beneficência e generosidade são devidas ao generoso e ao beneficente. Aqueles cujos corações jamais admitem sentimentos de humanidade não seriam, segundo pensamos, admitidos da mesma maneira pelos afetos de todos os seus semelhantes, e permitir-lhes-ia viver no meio da sociedade como num grande deserto, onde ninguém se importasse com eles, nem indagasse por eles. Dever-se-ia fazer sentir ao violador das leis da justiça o mesmo mal que fez a outro; e uma vez que nenhuma consideração pelos sofrimentos de seus irmãos é capaz de detê-lo, deveria ser subjugado pelo medo de seus próprios sofrimentos. O homem que é meramente inocente, que apenas observa as leis da justiça com relação a outros, e meramente se abstém de ferir seu próximo, pode merecer apenas que seu próximo, por sua vez, respeite sua inocência, e que as mesmas leis sejam observadas religiosamente com relação a ele.


 
CAPÍTULO II Do senso de justiça, de remorso, e da consciência do mérito
Não pode haver nenhum motivo apropriado para ferir nosso próximo, nenhum incitamento para fazer o mal a outrem, que conte com a anuência de todos os homens, exceto a justa indignação pelo mal que outro nos causou. Perturbar sua felicidade tão-somente porque está no caminho da nossa própria, tirar dele o que é de seu verdadeiro apenas porque pode ter igual ou maior uso para nós, ou permitir-nos, dessa maneira, à custa de outras pessoas, a preferência natural que todo homem tem por sua felicidade acima da dos outros, constitui algo ao qual nenhum espectador imparcial pode aceder. Sem dúvida, todo homem é por natureza primeiro e principalmente recomendado a seus próprios cuidados, e como é mais adequado para cuidar de si mesmo do que qualquer outra pessoa, é adequado e correto que faça assim. Portanto, todo homem está muito mais profundamente interessado no que diz respeito imediatamente a si, do que no que diz respeito a outro homem qualquer; e talvez ter notícia da morte de outra pessoa com a qual não tenhamos especial ligação nos cause muito menos interesse, tire muito menos nosso apetite, interrompa menos nosso descanso, do que uma insignificante desgraça que se abata sobre nós. Mas embora a ruína de nosso próximo possa nos afetar bem menos do que um diminuto infortúnio nosso, não devemos arruiná-lo para prevenir esse pequeno infortúnio, nem mesmo para prevenir nossa própria ruína. Aqui, como em todos os outros casos, devemos nos ver não tanto sob a luz em que naturalmente nos mostramos a nós mesmos, mas sob a luz em que naturalmente nos mostramos aos outros. Embora todo homem possa, segundo o provérbio, ser para si mesmo o mundo inteiro, para o resto da humanidade é a parte mais insignificante. Embora sua própria felicidade possa ter mais importância para ele do que a de todo o mundo além de si, para cada uma das outras pessoas não é mais relevante do que a de outro homem qualquer. Ainda que seja verdadeiro, portanto, que todo indivíduo, em seu próprio peito, naturalmente prefere a si mesmo a todos os outros homens, ninguém ousa olhar os outros de frente e declarar que age segundo esse princípio. Cada um percebe que esta preferência os outros jamais poderão aceitar, e que por mais natural que isso possa ser, deverá sempre parecer, aos olhos dos outros, excessivo e extravagante. Quando alguém se vê sob a luz em que sabe que os outros o vêem, compreende que não é, para esses, mais do que um indivíduo na multidão, em nenhum aspecto melhor do que qualquer outro. Se agisse de modo que o espectador imparcial pudesse compartilhar os princípios da sua conduta, o que é, entre todas as coisas, a que mais deseja ver realizada, deveria nessa e em todas as outras ocasiões, tornar humilde a arrogância de seu amor de si, reduzindo-o a algo que os outros possam aceitar. Isso será tolerado na medida em que o deixe ardentemente desejoso de sua própria felicidade, mais do que a de qualquer outro, e em que a busque com a mais grave constância. Assim, sempre que se colocarem na sua situação, prontamente a ele acederão. Na corrida pela riqueza, honras e privilégios, poderá correr o mais que puder, tensionando cada nervo e cada músculo, para superar todos os seus competidores. Mas se empurra ou derruba qualquer um destes, a tolerância dos espectadores acaba de todo. É uma violação à eqüidade, que não podem aceitar. Para eles, em todos os aspectos, esse homem é tão bom quanto o concorrente: não partilharão desse amor próprio, por meio do qual prefere tanto mais a si que ao outro e não podem aceder ao motivo pelo qual prejudicou a esse outro. Prontamente, por conseguinte, simpatizarão com o natural ressentimento do ofendido, e o ofensor torna-se objeto de seu ódio e indignação. Este sabe disso, e sente que todos os sentimentos estão prestes a explodir de todos os lados contra ele.

Quanto maior e mais irreparável o mal causado, mais intenso se torna naturalmente o ressentimento do sofredor. O mesmo ocorre com a solidária indignação do espectador, bem como com o sentimento de culpa do agente. A morte é o mal maior que um homem pode infligir a outro, e provoca o mais alto grau de ressentimento nos que mantêm uma relação imediata com o morto. Portanto, o assassinato é o mais atroz dos crimes passíveis de afetar apenas os indivíduos, seja aos olhos da humanidade, seja aos olhos da pessoa que o cometeu. Ser privado daquilo que possuímos é um mal maior do que decepcionar-se com algo de que tão-somente se está à espera. Portanto, a violação da propriedade, o roubo e assalto, que nos tiram aquilo de que temos a posse, são crimes maiores do que quebra de contrato, a qual apenas nos frustra quanto a algo de que estávamos à espera. As mais sagradas leis da justiça, por conseguinte, aquelas cuja violação parece clamar mais alto por vingança e punição, são as leis que protegem a vida e pessoa do nosso próximo; a seguir vêm as que protegem sua propriedade e posses; por último, as que protegem o que se chama seus direitos pessoais, ou o que lhe é devido pelas promessas de outros.

O violador das mais sagradas leis da justiça jamais poderá refletir sobre os sentimentos que a humanidade deve nutrir por ele, sem sentir todas as agonias de vergonha, horror e consternação. Quando sua paixão é saciada, e ele começa a refletir friamente sobre sua conduta passada, não consegue compreender nenhum dos motivos que a influenciaram. Parecem-lhe tão detestáveis agora quanto sempre o foram para os outros. Simpatizando com o ódio e horror que outros homens cultivam por ele, torna-se, em certa medida, objeto de seu próprio ódio e horror. A situação da pessoa que sofreu por sua injustiça agora apela à sua piedade. Esse pensamento o faz sofrer; lamenta os infelizes efeitos de sua própria conduta e, ao mesmo tempo, percebe que o converteram no objeto apropriado de ressentimento e indignação da humanidade, e em objeto de vingança e punição, conseqüência natural do ressentimento. Tal pensamento o assombra perpetuamente, enchendo-o de terror e perplexidade. Já não ousa olhar a sociedade de frente, pois se imagina rejeitado e expulso das afeições dos homens. Já não pode esperar pelo consolo da simpatia nessa sua imensa e terrível aflição. A memória de seus crimes estancou dos corações de seus semelhantes toda a solidariedade para com ele. O que mais teme são os sentimentos que cultivam quanto a ele. Tudo lhe parece hostil, e ficaria feliz em fugir para algum deserto inóspito, onde nunca mais tivesse de mirar o rosto de uma criatura humana, nem ler, no semblante dos homens, a condenação de seus crimes. Mas a solidão é ainda mais terrível do que a sociedade. Seus próprios pensamentos só o podem defrontar com o que é negro, infeliz, desgraçado, a melancólica previsão da incompreensível desgraça e ruína. O horror da solidão empurra-o de volta para a sociedade, e retorna à presença dos homens, surpreso por se mostrar diante deles carregado de vergonha e transtornado pelo medo, para suplicar um pouco de proteção à autoridade dos mesmos juízes que, ele sabe, já o condenaram unanimemente. Tal é a natureza do sentimento que com propriedade se chama remorso, o mais terrível de todos os sentimentos que podem introduzir-se no peito humano. É composto de vergonha pelo senso de inconveniência da minha conduta passada; da dor, pelos efeitos dessa ação; de piedade, pelos que por causa dela sofrem; e de pavor, terror da punição, pela consciência do justo ressentimento de todas as criaturas racionais.

O comportamento oposto inspira naturalmente o sentimento oposto. O homem que, não por capricho frívolo, mas por motivos apropriados, realizou uma ação generosa, olhando na direção daqueles a quem serviu, sente-se objeto natural de seu amor e gratidão, e, por simpatia com eles, da estima e aprovação de todos os outros. Ao olhar para trás, para o motivo que o levou a agir, e o examinar sob a luz com que o verá o espectador indiferente, ainda continua a experimentá-lo, e aplaude a si mesmo por solidariedade com a aprovação desse suposto juiz imparcial. Sob esses dois pontos de vista, sua própria conduta lhe parece agradável em todos os aspectos. Esse pensamento faz seu espírito encher-se de alegria, serenidade e paz. Está em harmonia e amizade com todos os homens, encara seus semelhantes com confiança e benevolente satisfação, certo de que se tornou digno de sua mais favorável opinião. Na combinação de todos esses sentimentos consiste a consciência do mérito, ou de merecida recompensa.


 
CAPÍTULO III Da utilidade dessa constituição da natureza
É assim que o homem, que apenas pode subsistir em sociedade, foi adequado pela natureza à situação para a qual foi criado. Todos os membros da sociedade humana precisam da ajuda uns dos outros, e estão igualmente expostos a ofensas mútuas. Onde a ajuda necessária é reciprocamente provida pelo amor, gratidão, amizade e estima, a sociedade floresce e é feliz. Todos os seus diferentes membros estão atados entre si pelos agradáveis elos do amor e afeição, como se atraídos para um centro comum de bons serviços recíprocos.

Mas, ainda que a ajuda necessária não seja provida por motivos tão generosos e desinteressados, ainda que entre os diferentes membros da sociedade não haja amor e afeto mútuos, a sociedade, embora menos feliz e agradável, não se dissolverá necessariamente, pois pode subsistir entre diferentes homens, como entre diferentes mercadores, por um senso de sua utilidade, sem qualquer amor ou afeto recíprocos. E embora nenhum homem que vive em sociedade deva obediência ou esteja atado a outro por gratidão, ainda assim é possível mantê-la por uma troca mercenária de bons serviços, segundo uma valoração acordada entre eles.

A sociedade, entretanto, não pode subsistir entre os que estão sempre prontos a se ferir e ofender mutuamente. No momento em que tem início a ofensa, no momento em que se instalam ressentimento e animosidade mútuos, rompem-se todos os elos da sociedade, e os diferentes membros de que ela consistia ficam como se dissipados e espalhados pela violência e oposição de seus afetos discordantes. Se existe qualquer sociedade entre ladrões e assassinos, estes pelo menos devem, segundo o senso comum, abster-se de roubar e assassinar uns aos outros. A beneficência é, assim, menos essencial à existência da sociedade que a justiça. A sociedade poderá subsistir, ainda que não segundo a condição mais confortável, sem beneficência, mas a prevalência da injustiça deverá destruí-la completamente.

Portanto, embora a natureza exorte os homens a atos de beneficência pela consciência agradável de merecida recompensa, não julgou necessário proteger e constranger a sua prática pelos terrores do merecido castigo, no caso de se negligenciarem tais atos. São eles o ornamento que embeleza, não o alicerce que sustenta o edifício; bastava, pois, recomendá-los, não necessariamente impô-los por quaisquer meios. A justiça, ao contrário, é o principal pilar que sustenta todo o edifício. Se removida, a grande, imensa estrutura da sociedade humana, essa estrutura cuja instauração e suporte neste mundo parece ter exigido, se me permitem dizer, o peculiar e caro cuidado da natureza, deverá em pouco tempo esboroar em átomos. A fim de constranger a observação da justiça, portanto, a natureza implantou no peito humano a consciência de mau merecimento, os terrores de merecida punição que resultam de sua violação, como grandes salvaguardas da associação humana, para proteger os fracos, frear os violentos, e castigar os culpados. Embora sejam naturalmente solidários, os homens sentem muito pouco por outro com quem não tenham nenhuma particular ligação, se comparado ao que sentem por si mesmos; a desgraça de um, que é apenas seu semelhante, é muito pouco importante para eles, mesmo se comparada a qualquer pequeno inconveniente próprio; têm tanto poder para feri-lo, e pode haver tantas tentações de o fazer, que se esse princípio não se impusesse entre eles para defendê-lo, e os subjugasse por reverente temor a respeitarem sua inocência, estariam prontos a lançar-se sobre ele a qualquer momento como animais ferozes, de modo que um homem entraria numa assembléia como quem entra num covil de leões.

Em toda parte do universo observamos os meios ajustados com o melhor artifício para os fins que devem produzir; e no mecanismo de uma planta ou corpo de animal, admira como tudo é planejado para promover os dois grandes propósitos da natureza: a manutenção do indivíduo e a propagação da espécie. Mas nesses, como em todos os objetos semelhantes, ainda distinguimos entre a causa eficiente e a causa final de seus vários movimentos e organizações. A digestão do alimento, a circulação do sangue, a secreção dos diversos sucos extraídos dele: todas essas são operações necessárias para os grandes propósitos da vida animal. Contudo, nunca tentamos explicá-las segundo esses propósitos, bem como segundo suas causas eficientes, nem imaginamos que o sangue circule, ou que a comida seja digerida por sua própria vontade, de acordo com a finalidade ou a intenção dos propósitos de circulação ou digestão. As engrenagens do relógio são todas admiravelmente ajustadas segundo o fim para o qual foi fabricado, ou seja, indicar a hora. Todos os seus vários movimentos são combinados da maneira mais sutil para produzir esse efeito. Se fossem dotadas de desejo ou intenção de produzir tal efeito, não o poderiam fabricar melhor. Todavia, nunca atribuímos a essas engrenagens tal desejo ou intenção, mas sim ao relojoeiro, e sabemos que são movidas por uma mola que planeja tão pouco quanto elas o efeito que produzem. Mas embora, ao explicarmos as operações dos corpos, nunca deixemos de distinguir dessa maneira a causa eficiente da causa final, ao explicarmos as do espírito tendemos a confundir essas duas coisas tão diferentes. Quando os princípios naturais nos levam a promover esses fins que uma refinada e esclarecida razão teria nos recomendado, temos a forte tendência de imputar a essa razão, como causa eficiente desses princípios, os sentimentos e ações pelos quais promovemos aqueles fins, e de imaginar que se trate da sabedoria do homem, quando na realidade se trata da sabedoria de Deus. Segundo uma visão superficial, essa causa parece suficiente para produzir os efeitos a ela atribuídos; e o sistema da natureza humana parece ser mais simples e agradável quando todas as suas diferentes operações são dessa maneira deduzidas de um só princípio.

Como a sociedade não pode subsistir sem que as leis da justiça sejam razoavelmente cumpridas, como nenhum trato social pode ocorrer entre homens que em geral não se abstenham de ofender uns aos outros, a consideração dessa necessidade, pensou-se, constituiu o fundamento de aprovarmos que as leis da justiça coagissem pelo castigo os que as violassem. Dizem que o homem ama naturalmente a sociedade, e deseja que a união da humanidade deva ser preservada para seu próprio bem, mesmo que não tire benefício disso. O estado ordeiro e florescente de sociedade lhe agrada, e deleita-se em contemplá-la. A desordem e confusão, ao contrário, são objeto de sua aversão, e tudo o que tende a produzi-las causa-lhe pesar. Também percebe que seu próprio interesse está associado à prosperidade da sociedade, e que a felicidade, talvez a conservação de sua vida, depende da conservação da seriedade. Por todos esses motivos, portanto, o homem detesta tudo o que pode tender a destruir a sociedade, e está disposto a usar de todos os meios para impedir um evento tão odiado e temido. A injustiça necessariamente tende a destruí-la. Toda manifestação de injustiça, pois, deixa-o alarmado, e ele corre, se assim posso dizer, para frear a progressão daquilo que, se pudesse prosseguir, rapidamente acabaria com tudo o que lhe é caro. Se não o puder conter por meios suaves e justos, terá de submetê-lo por meio de força e violência, para interromper, de qualquer forma, seu ulterior avanço. Donde, dizem, o homem freqüentemente aprovar o caráter coercitivo das leis de justiça, incluindo-se pena capital para os que as violam. O perturbador da paz pública é assim afastado do mundo, e seu destino aterrorizará outros, impedindo-os de seguirem seu exemplo.

Tal é a descrição habitual de por que aprovamos punição para a injustiça. E tão indubitavelmente verdadeira é essa descrição, que não raro temos a oportunidade de confirmar nosso natural senso de conveniência e adequação do castigo ao refletirmos em quão necessário é para conservar a ordem da sociedade. Quando o culpado está na iminência de sofrer a justa retaliação que a natural indignação dos homens lhe diz ser devida por aqueles crimes; quando a insolência de sua injustiça é destroçada e humilhada pelo terror de seu iminente castigo; quando cessa de ser objeto de medo, para se tornar, entre os generosos e humanos, objeto de piedade, o ressentimento destes pelos sofrimentos alheios que o culpado causou se extingue, ao pensarem no que está prestes a sofrer. Estão dispostos a perdoá-lo e desculpá-lo, salvando-o daquele castigo que, nos momentos de lucidez, julgaram a retribuição devida a tais crimes. Aqui, portanto, têm a oportunidade de chamar em auxílio a consideração dos interesses gerais da sociedade. Compensam o impulso dessa humanidade fraca e parcial com os ditames de uma humanidade mais generosa e compreensiva. Refletem que a misericórdia com os culpados constitui crueldade para com os inocentes, e opõem às emoções da compaixão que sentem por um indivíduo uma compaixão mais ampla, pela humanidade toda.

Também às vezes temos a oportunidade de defender a conveniência de se observarem as leis gerais da justiça, ao considerar como são necessárias para manter a sociedade. Freqüentemente ouvimos os jovens e os licenciosos ridicularizar as mais sagradas leis da moralidade, e professar, algumas vezes por corrupção, mas mais freqüentemente pela vaidade de seus corações, as mais abomináveis máximas de conduta. Nossa indignação desperta, e ansiamos por refutar e revelar tão detestáveis princípios. Mas embora seja seu intrínseco caráter odioso e detestável o que originalmente nos inflama contra eles, resistimos a crer que essa seja a única razão pela qual os condenamos, ou a alegar que os condenamos apenas porque nós mesmos os odiamos e detestamos. Pensamos que a razão não parece conclusiva. Contudo, por que não seria, se precisamente os odiamos e detestamos por serem objeto natural e apropriado de ódio e repulsa? Mas quando nos perguntam por que não deveríamos agir de tal e tal maneira, a própria pergunta parece supor que, para os que a fazem, esse modo de agir não parece ser por si mesmo o objeto natural e próprio daqueles sentimentos. Temos, pois, de lhes mostrar que deveria ser assim por bem de algo mais. Por essa razão geralmente procuramos outros argumentos, e a primeira consideração que nos ocorre é a desordem e confusão da sociedade que resultariam da prevalência universal daquelas práticas. Portanto, raramente deixamos de insistir nesse tópico.

Mas embora comumente não seja necessário grande discernimento para entender a tendência destrutiva de todas as práticas licenciosas para o bem-estar da sociedade, raramente é essa consideração que a princípio nos anima contra elas. Todos os homens, mesmo os mais ignorantes e estúpidos, têm horror à fraude, perfídia e injustiça, e regozija-nos vê-las punidas. Mas poucos homens refletiram sobre a necessidade da justiça para a existência da sociedade, por mais evidente que essa necessidade possa parecer.

Pode-se demonstrar, por muitas considerações evidentes, que não é a conservação da sociedade o que nos interessa originalmente na punição de crimes cometidos contra indivíduos. No mais das vezes, nossa preocupação pela fortuna e felicidade dos indivíduos não surge da preocupação pela fortuna e felicidade da sociedade. Não nos preocupa mais a destruição e perda de um só homem – porque é membro ou parte da sociedade, e porque a destruição da sociedade deve nos preocupar – do que a perda de um só guinéu, porque esse guinéu é parte de mil guinéus, e porque deve nos preocupar a perda da soma total. Em nenhum dos dois casos nosso interesse pelos indivíduos se origina do interesse pela multidão; mas, nos dois casos, nosso interesse pela multidão é composto e constituído dos interesses particulares que sentimos pelos diferentes indivíduos que a compõem. Do mesmo modo como, ao nos subtraírem injustamente uma pequena quantia, não buscamos tanto reparar a ofensa com vistas a conservar toda a nossa fortuna, mas com vistas àquela quantia particular que perdemos, assim, quando se ofende ou destrói um só homem, exigimos punição pelo mal que lhe foi feito, menos por preocupação pelo interesse geral da sociedade, que por preocupação com aquele indivíduo ofendido. É preciso notar, porém, que essa preocupação não inclui necessariamente nenhum grau daqueles sentimentos peculiares, comumente chamados amor, estima, afeto, pelos quais distinguimos nossos amigos particulares e conhecidos. A preocupação que se exige nesse caso não é mais do que a solidariedade geral que temos para com todo homem, meramente por ser nosso semelhante. Compartilhamos até mesmo o ressentimento de uma pessoa odiosa, quando é ofendida por aqueles a quem não provocou. Nesse caso, nossa desaprovação de seus habituais caráter e conduta não impede nossa completa solidariedade com sua indignação natural, embora entre os que não são extremamente francos, ou não foram acostumados a corrigir e regular seus sentimentos naturais por regras gerais, essa solidariedade seja provavelmente reduzida.

Em algumas ocasiões, com efeito, a um tempo punimos e aprovamos a punição apenas com vistas ao interesse geral da sociedade que, imaginamos, não pode ser assegurado de outra maneira. São dessa espécie todas as punições infligidas por infração ao que se chama código civil ou disciplina militar. Tais crimes não ferem imediata ou diretamente nenhuma pessoa em particular, mas suas conseqüências remotas, supõe-se, produzem ou poderiam produzir quer um considerável inconveniente, quer uma grande desordem na sociedade. Por exemplo, uma sentinela que adormece na sua vigília é condenada à morte segundo as leis da guerra, porque esse descuido poderia pôr em perigo o exército inteiro. Em muitas ocasiões, essa severidade pode se mostrar necessária, e, por essa razão, justa e adequada. Quando a conservação de um indivíduo é inconsistente com a segurança de uma multidão, nada pode ser mais justo do que preferir os muitos a um só. Contudo, por mais necessário que seja, esse castigo sempre se mostra excessivamente severo. A atrocidade natural do crime parece tão pequena e a punição tão grande, que só com muita dificuldade nosso coração se reconcilia com essa situação. Embora esse descuido pareça muito censurável, a idéia desse crime, porém, não suscita naturalmente um ressentimento tal que nos fizesse realizar tão terrível vingança. Um humanitário deve se recompor, fazer um esforço e exercer toda a sua firmeza e resolução antes de poder ou infligir o castigo ou participar dele, quando infligido por outros. Não é dessa maneira, entretanto, que concebe o justo castigo de um ingrato assassino ou parricida. Nesse caso, seu coração aplaude com fervor, e mesmo com arrebatamento, a justa retaliação que parece devida a tão detestáveis crimes. Se, por algum acaso, o criminoso escapasse, ficaria muitíssimo irado e desapontado. Os sentimentos muito diferentes com que o espectador assiste a esses diferentes castigos são prova de que a aprovação de um está longe de se fundamentar sobre os mesmos princípios que a de outro. Considera a sentinela uma vítima infeliz que, de fato, deve devotar-se à segurança de muitos, mas a quem, mesmo assim, em seu coração ficaria feliz de salvar; lamenta apenas que o interesse de muitos se oponha a isso. Mas se o assassino escapasse de punição, isso suscitaria sua maior indignação, e clamaria por Deus para que vingasse em outro mundo esse crime que a injustiça humana deixou de castigar na terra.

Pois é digno de nota que estamos tão longe de imaginar que a injustiça deveria ser punida nesta vida apenas em razão da ordem da sociedade, a qual de outra maneira não pode ser mantida, que a natureza nos ensina a ter esperança e, supomos, a religião nos autoriza a aguardar que será punida até mesmo numa vida futura. Nosso sentido de seu mau merecimento busca essa punição, se me permitem dizer, até mesmo além do túmulo, embora o exemplo de seu castigo naquele lugar não possa servir para deter o resto dos homens – que não o vêem e dele não sabem – de ser culpado das mesmas práticas aqui. Mas a justiça de Deus, pensamos, ainda exige que se vinguem as ofensas da viúva e do órfão, tantas vezes insultados com essa impunidade. Assim, em toda religião, em toda superstição que o mundo jamais contemplou, tem havido tanto um Tártaro quanto um Elísio; um lugar para castigo dos maus, bem como outro, para recompensa dos justos.


 
SEÇÃO III Da influência da fortuna sobre os sentimentos da humanidade quanto ao mérito ou demérito das ações

 
INTRODUÇÃO
Seja qual for o louvor ou censura devido a qualquer ação, necessariamente pertence, primeiro, à intenção ou afeto do coração, do qual procede; ou, segundo, à ação ou movimento externo do corpo, que esse afeto provoca; ou, finalmente, às boas ou más conseqüências que na verdade e de fato dele procedem. Essas três diferentes coisas constituem toda a natureza e circunstâncias da ação, e devem ser o fundamento de qualquer qualidade que lhe possa pertencer.

Que as duas últimas dessas três circunstâncias não podem constituir o fundamento de nenhum louvor ou censura é amplamente óbvio, e ninguém jamais afirmou o contrário. A ação externa ou movimento do corpo é freqüentemente a mesma nas ações mais inocentes e nas mais censuráveis. O que atira num pássaro e o que atira num homem realizam o mesmo movimento externo: cada um deles puxa o gatilho de uma arma. As conseqüências que realmente e de fato procedem de qualquer ação, se possível, são ainda mais indiferentes a louvor ou censura do que o movimento externo do corpo. Como não dependem do agente, mas da fortuna, não podem constituir fundamento adequado de nenhum sentimento do qual sejam objeto seu caráter e conduta.

As únicas conseqüências pelas quais o agente pode ser responsável ou pelas quais pode merecer qualquer espécie de aprovação ou desaprovação são as que foram de algum modo intencionadas ou, pelo menos, mostram alguma qualidade agradável ou desagradável na intenção do coração, a partir da qual ele agiu. À intenção ou afeto do coração, pois, à conveniência ou inconveniência, à beneficência ou malignidade do desígnio, deve em última instância pertencer todo o elogio ou censura, toda a espécie de aprovação ou desaprovação, que se possa conferir com justiça a cada ação.

Quando essa máxima é assim proposta, em termos abstratos e gerais, não há quem não concorde com ela. Sua evidente justiça é reconhecida pelo mundo todo, e não há voz discordante na humanidade. Todo o mundo admite que, por mais diferentes que sejam as conseqüências acidentais, não-intencionadas e imprevisíveis das diferentes ações, mesmo assim, se as intenções ou afetos de que se originam fossem, por um lado, igualmente apropriados e igualmente beneficentes, ou, por outro, igualmente impróprios e malevolentes, o mérito ou demérito das ações ainda seria o mesmo, e o agente igualmente objeto adequado de gratidão ou de ressentimento.

Mas ainda que, ao considerarmos desse modo essa máxima imparcial, isto é, em abstrato, estejamos bastante persuadidos de sua verdade, ao alcançarmos os casos particulares, as reais conseqüências que eventualmente procedem de qualquer ação têm um enorme efeito sobre nossos sentimentos a respeito de seu mérito ou demérito, e quase sempre tanto intensificam quanto reduzem nosso senso de ambos. É pouco provável que, após examinarmos um caso qualquer, venhamos a descobrir que nossos sentimentos são inteiramente regulados por essa regra, a qual, todos admitimos, deveria regulá-los inteiramente.

Essa irregularidade do sentimento, que todos percebem, quase ninguém conhece suficientemente e ninguém está disposto a admitir, é o que passarei a explicar agora; e primeiro devo considerar a causa que a origina, ou o mecanismo pelo qual a natureza a produz; segundo, a extensão de sua influência; e, por último, o fim ao qual responde, ou que propósito o Autor da natureza teria pretendido com ela.


 
CAPÍTULO I Das causas dessa influência da fortuna
Sejam quais forem as causas da dor e do prazer, ou os modos como operam, parecem constituir os objetos que, em todos os animais, imediatamente suscitam essas duas paixões de gratidão e ressentimento. São suscitadas por objetos inanimados bem como por animados. Zangamo-nos, por um momento, até com a pedra que nos machuca. Uma criança bate nela, um cão late para ela, um homem encolerizado poderá amaldiçoá-la. Mas a menor reflexão, com efeito, corrige esse sentimento, e logo percebemos que aquilo que não possui percepção é objeto muito impróprio de vingança. Porém, quando o dano foi muito grande, o objeto que o causou sempre se nos é desagradável, e sentimos prazer em queimá-lo ou destruí-lo. Desta maneira deveríamos tratar o instrumento que acidentalmente causou a morte de um amigo, e freqüentemente nos julgamos culpados de uma espécie de desumanidade, por deixarmos de revidar essa absurda espécie de vingança.

Do mesmo modo, concebemos uma espécie de gratidão por aqueles objetos inanimados que foram causa de grande ou freqüente prazer nosso. O marujo que, tão logo alcança terra firme, acende seu fogo com a prancha sobre a qual acaba de escapar de um naufrágio pareceria culpado de uma ação antinatural. Deveríamos esperar que a preservasse com cuidado e afeto, como monumento de certa forma querido. Um homem passa a gostar de uma caixinha de rapé, de um canivete, de um bastão do qual fez uso durante muito tempo, e a conceber algo parecido com um verdadeiro amor e afeto por eles. Se os quebra ou perde, seu aborrecimento é inteiramente desproporcional ao valor do prejuízo. A casa na qual vivemos por longo tempo, a árvore cujo verdor e sombra saboreamos longo tempo, são contemplados com uma sorte de respeito que parece devido a tais benfeitores. A decadência de uma, a ruína de outra, afetam-nos com uma espécie de melancolia, embora não soframos perda nenhuma com isso. É provável que as dríades e os deuses-lares dos antigos, espécie de gênios das árvores e das casas, tenham sido originalmente sugeridos por esse tipo de afeto que os autores dessas superstições sentiam por tais objetos, e que pareceria insensato se não houvesse nesses objetos nada de animado.

Mas para que algo possa ser objeto apropriado de gratidão ou ressentimento, deve não apenas ser a causa do prazer ou dor, mas igualmente deve ser capaz de os sentir. Sem essa outra qualidade, aquelas paixões não podem dar vazão a nenhuma satisfação. Como são suscitadas pelas causas do prazer ou dor, sua gratificação consiste em revidar essas sensações sobre o que as causou, o que é inútil quando se trata de algo sem sensibilidade. Os animais, portanto, são objetos menos impróprios de gratidão e ressentimento do que objetos inanimados. O cão que morde, o boi que chifra, são ambos punidos. Se foram a causa da morte de uma pessoa, nem o público nem os parentes do morto ficarão satisfeitos, a menos que por sua vez os animais sejam mortos; e isso não é apenas por segurança dos vivos, mas de certa maneira para vingar a ofensa aos mortos. Ao contrário, os animais que foram notavelmente úteis aos seus donos tornam-se objetos de uma gratidão muito intensa. Ofende-nos a brutalidade daquele funcionário, mencionado em O espião turco, que esfaqueou o cavalo que o conduziu por um braço de mar, temendo que no futuro o animal distinguisse uma outra pessoa com aventura similar.

Embora os animais não sejam apenas a causa de prazer e dor, pois também são capazes de ter essas sensações, não constituem, todavia, objetos completos e perfeitos, seja de gratidão, seja de ressentimento, já que falta àquelas paixões algo que as satisfaça inteiramente. O que a gratidão mais deseja é não apenas fazer que o benfeitor sinta por sua vez prazer, mas fazê-lo saber que experimenta sua recompensa por causa de sua conduta passada, torná-lo feliz com essa conduta, e satisfeito, pois a pessoa a quem prestou seus bons serviços não é indigna deles. O que mais nos encanta em nosso benfeitor é a harmonia entre seus sentimentos e os nossos no que diz respeito ao que nos interessa tanto quanto o valor de nosso próprio caráter e a estima que nos é devida. Ficamos encantados ao encontrar uma pessoa que nos atribui o mesmo valor que nós mesmos nos atribuímos, e nos distingue do resto dos homens com uma atenção semelhante àquela com que nós nos distinguimos. Conservar nela esses sentimentos agradáveis e lisonjeiros é uma das principais finalidades propostas pelas retribuições que nos dispomos a lhe fazer. Um espírito generoso muitas vezes desdenha a idéia interesseira de extorquir novos favores de seu benfeitor, o que se pode chamar de impertinência de sua gratidão. Mas conservar e aumentar a estima do benfeitor é um interesse que nem mesmo um grande espírito julga indigno de sua atenção. E esse é o fundamento do que observei inicialmente: quando não somos capazes de compartilhar os motivos de nosso benfeitor, quando sua conduta e caráter nos parecem indignos de nossa aprovação, por maiores que sejam seus favores, nossa gratidão sempre diminui consideravelmente. A distinção nos lisonjeia menos; e conservar a estima de um patrono tão fraco ou indigno é objeto que não merece ser buscado só por si mesmo.

Ao contrário, o propósito mais almejado pelo ressentimento não é tanto fazer que nosso inimigo, por sua vez, também sinta dor, mas fazê-lo saber que a sente por causa de sua conduta passada, fazê-lo arrepender-se dessa conduta e perceber que a pessoa a quem ofendeu não merece ser tratada daquela maneira. O que mais nos enraivece no homem que nos ofende ou insulta é a pouca conta em que parece nos ter, a preferência insensata que dá a si mesmo em detrimento de nós, e o absurdo amor de si que o faz imaginar que outras pessoas podem a qualquer momento se sacrificar por seus caprichos ou humor. A berrante inconveniência dessa conduta, a grosseira insolência e injustiça que ela parece envolver, muitas vezes nos deixam indignados e exasperados mais que todo o dano que sofremos. Restaurar-lhe um sentido mais justo do que é devido aos outros, fazê-lo perceber o que nos deve e o mal que nos fez, é freqüentemente a principal finalidade a que se propõe nossa vingança, a qual é sempre imperfeita quando isso não sucede. Quando nosso inimigo parece não nos ter feito nenhuma ofensa, quando percebemos que agiu de maneira bastante conveniente, que, em sua situação, teríamos feito o mesmo, e que merecemos dele todo o dano que nos foi causado, nesse caso, se temos a menor fagulha de sinceridade ou justiça, não poderemos cultivar nenhuma espécie de ressentimento.

Portanto, para que algo possa ser objeto completo e apropriado de gratidão ou ressentimento, deve possuir três distintas qualificações. Primeiro, deve ser causa de prazer num caso, e de dor no outro. Segundo, deve ser capaz de perceber essas sensações. E, terceiro, não deve apenas ter produzido essas sensações, mas deve tê-las produzido com um desígnio, e um desígnio que seja aprovado num caso, e desaprovado no outro. É pela primeira qualificação que um objeto qualquer pode suscitar aquelas paixões; pela segunda, é capaz de as satisfazer em algum aspecto; a terceira qualificação é necessária não apenas para a completa satisfação dessas paixões, mas, por provocar dor ou prazer a um tempo refinado e peculiar, constitui igualmente causa motriz suplementar daquelas paixões.

Ainda que as intenções de alguém sempre fossem apropriadas e beneficentes, por um lado, ou impróprias e malevolentes, por outro, como o que provoca prazer ou dor é a única causa motriz de gratidão e ressentimento, se não se conseguiu produzir o bem ou mal que se pretendia, por faltar nos dois casos uma das causas motrizes, menos gratidão parece se dever num caso, e noutro, menos ressentimento. E, inversamente, ainda que nas intenções de alguém não houvesse, de um lado, nenhum grau louvável de benevolência, ou, de outro, nenhum grau censurável de malignidade, se suas ações produzirem ou grande bem ou grande mal, por estar presente nessas duas ocasiões uma das causas motrizes, alguma gratidão pode surgir num caso e noutro, algum ressentimento. Uma sombra de mérito parece recair sobre o homem no primeiro caso, e de demérito, no segundo. E, na medida em que as conseqüências das ações estão inteiramente sob o império da fortuna, surge daí sua influência sobre os sentimentos dos homens, no que concerne a mérito e demérito.


 
CAPÍTULO II Dos limites dessa influência da fortuna
O primeiro efeito dessa influência da fortuna é o de diminuir nosso senso do mérito ou demérito das ações que, originando-se das mais louváveis ou censuráveis intenções, são incapazes de produzir os efeitos propostos; o segundo, o de aumentar nosso senso do mérito ou demérito de ações que, excedendo os devidos motivos ou afetos dos quais se originam, provocam acidentalmente extraordinário prazer ou extraordinária dor.

1. Primeiro, afirmo que, embora as intenções de alguém devessem ser tão apropriadas e beneficentes, por um lado, ou impróprias e malevolentes, por outro, se malograrem em produzir os efeitos, seu mérito se revela imperfeito num caso, e seu demérito incompleto no outro. Essa irregularidade de sentimento não é, entretanto, percebida apenas pelos que são imediatamente afetados pelas conseqüências de qualquer ação. Em certa medida, mesmo o espectador imparcial a percebe. O homem que solicita um favor para outro, mas não o obtém, é considerado seu amigo e parece merecer seu amor e afeição. Porém, o homem que não apenas solicita, mas o consegue, é mais peculiarmente considerado seu patrono e benfeitor, e possui o direito a seu respeito e gratidão. Tendemos a pensar que a pessoa devedora pode, com alguma justiça, imaginar-se no mesmo nível da primeira; mas não podemos participar de seus sentimentos, se ela não se sentir inferior à segunda. De fato, é comum dizer que somos igualmente devedores do homem que tentou nos servir, e do que efetivamente o fez. É o discurso que constantemente forjamos em toda tentativa mal sucedida dessa espécie; embora, como todos os outros belos discursos, deva ser compreendido com alguma condescendência. Os sentimentos que um homem generoso nutre pelo amigo que malogra freqüentemente estão, com efeito, muito próximos dos que concebe pelo que é bem sucedido; e quanto mais generoso for, mais próximos estarão esses sentimentos de um nível idêntico. Para os verdadeiramente generosos, ser amado e estimado pelos que eles mesmos julgam dignos de estima promove mais prazer e, por isso, suscita mais gratidão, do que todas as vantagens que possam esperar daqueles sentimentos. Quando perdem essas vantagens, portanto, demonstram ter perdido nada além de uma ninharia, que quase nem vale a pena levar em conta. Ainda assim, entretanto, perderam alguma coisa. Por isso, seu prazer, e conseqüentemente sua gratidão, não são inteiramente completos. Desse modo, se são iguais as circunstâncias restantes entre um amigo que malogra e outro, bem sucedido, mesmo no melhor e mais nobre espírito haverá uma pequena diferença de afeto em favor do bem sucedido. Mais ainda: tão injusta é a humanidade a esse respeito que, embora o benefício pretendido seja obtido, se não o for por meio de um benfeitor particular, pode-se pensar que se deve menos gratidão ao homem que, com as melhores intenções do mundo, não pôde senão ajudar a avançar um pouco mais. Como nesse caso a gratidão dos homens se divide entre as diferentes pessoas que contribuíram para seu prazer, uma parte menor dela parece devida a cada uma. É comum ouvirmos os homens dizerem que tal pessoa sem dúvida pretendia nos servir, e realmente acreditamos que empenhou todas as suas habilidades para esse fim. Mas não lhe somos devedores pelo seu benefício, uma vez que, não fosse pela concordância de outros, tudo o que pudesse fazer não traria tal benefício. Os homens imaginam que, até mesmo aos olhos do espectador imparcial, essa ponderação diminui a dívida que têm para com essa pessoa. Aquele que tentou sem êxito promover um benefício não depende, de modo algum, da gratidão do homem a quem pretendia manter sob obrigação, nem possui o mesmo senso de seu próprio mérito em relação a esse, em caso de êxito.

Mesmo o mérito de talentos e habilidades, os quais algum acidente impediu de produzirem seus efeitos, revela-se em certa medida imperfeito, até para os que estão plenamente convencidos da capacidade de os produzir. O general que foi impedido, pela inveja dos ministros, de ganhar alguma grande vantagem sobre os inimigos de seu país lamenta a perda da oportunidade para sempre. E não é só pelo público que lamenta. Lamenta ter sido impedido de realizar uma ação que teria acrescentado, quer a seus olhos, quer aos olhos de todas as outras pessoas, novo brilho a seu caráter. Não satisfaz, nem a ele nem a outros, refletir que o plano ou desígnio era tudo o que dependia dele; que não se exigia maior capacidade para executá-lo do que para projetá-lo; que seria extremamente capaz de pô-lo em prática e, se lhe tivessem permitido seguir adiante, o êxito não tardaria. Mesmo assim, não o executou; e, embora possa merecer toda a aprovação devida a um grande e magnânimo desígnio, ainda assim faltou-lhe o mérito real de ter realizado uma grande ação. Subtrair a administração de qualquer assunto de interesse público a um homem que quase o trouxe a termo é considerado a mais insidiosa injustiça. Como fez tanto, pensamos que deveriam permitir-lhe obter o mérito completo de levar o assunto a cabo. Objetou-se a Pompeu que ele se intrometera nas vitórias de Lúculo, recebendo os louros devidos ao valor e sorte de outro. Ao que parece, a glória de Lúculo foi menos completa até na opinião de seus amigos, pois não lhe permitiram concluir a conquista que sua conduta e coragem tornaram possível a qualquer homem concluir. Um arquiteto fica mortificado quando seus projetos ou não são inteiramente postos em prática, ou são tão alterados que danificam a execução do edifício. Mas o projeto é tudo o que depende do arquiteto. Segundo bons críticos, todo o gênio de um arquiteto se revela tanto no projeto quanto na execução de fato. No entanto, mesmo os mais inteligentes consideram que o projeto não proporciona tanto prazer quanto um nobre e esplêndido edifício. Podem descobrir tanto bom gosto e genialidade num e noutra. Mas ainda assim os respectivos efeitos são enormemente diferentes, e a distração que encontram com o primeiro jamais se aproxima do assombro e admiração que por vezes a segunda suscita. Podemos acreditar que muitos homens têm talentos superiores aos de César e Alexandre, e que nas mesmas situações realizariam feitos ainda maiores. Entretanto, não os contemplamos com o mesmo assombro e admiração com que aqueles dois heróis têm sido contemplados em todos os séculos e por todas as nações. Os juízos calmos do espírito podem aprová-los mais, falta-lhes, porém, o esplendor dos grandes feitos para deslumbrar e arrebatar. A superioridade de virtudes e talentos não tem, inclusive sobre os que reconhecem tal superioridade, o mesmo efeito que a superioridade das conquistas.

Assim como o mérito de uma fracassada tentativa de fazer o bem parece, aos olhos da humanidade ingrata, diminuído pelo malogro, igualmente ocorre com o demérito de uma fracassada tentativa de fazer o mal. A intenção de praticar um crime, por mais que se comprove, dificilmente será punida com a mesma severidade com que se pune a prática efetiva. Talvez o caso da traição constitua a única exceção. Como afeta diretamente a existência do próprio governo, naturalmente o governo é mais cioso deste do que de qualquer outro crime. Ao punir a traição, o soberano ressente-se das agressões que o atingem diretamente; ao punir outros crimes, ressente-se das que foram cometidas contra outros homens. Num caso, cede ao seu próprio ressentimento; no outro, ao de seus súditos, do qual por simpatia participa. No primeiro caso, pois, como julga em causa própria, tende a infligir uma punição muito mais violenta e sanguinária do que a que pode aprovar um espectador imparcial. Seu ressentimento também se insurge em ocasiões menores, e nem sempre, como nos outros casos, aguardará que o crime seja perpetrado, ou mesmo que se tente praticá-lo. Uma conjuração traiçoeira, ainda que nada se tenha realizado ou intentado em conseqüência dela, e mais ainda, um diálogo traiçoeiro, é punido em muitos países do mesmo modo como a prática efetiva da traição. No que concerne a todos os outros crimes, a mera intenção, se não for seguida de nenhuma tentativa, raramente é punida, e nunca o é com severidade. Pode-se afirmar que uma intenção criminosa e uma ação criminosa de fato não supõem necessariamente o mesmo grau de depravação e não deveriam, por isso, ser sujeitas à mesma punição. Pode-se afirmar ainda que somos capazes de resolver e até tomar medidas para executar muitas coisas que, à hora marcada, contudo, nos sentimos inteiramente incapazes de executar. Mas esse raciocínio não tem lugar quando a intenção foi levada às últimas conseqüências. Porém, o homem que dispara a pistola contra o inimigo, mas não o acerta, é punido com a morte pelas leis de quase todos os países. Segundo a antiga lei da Escócia, ainda que ele fira seu inimigo, salvo se a morte ocorrer dentro de certo tempo, o assassino, contudo, não merecerá a punição extrema. Mas o ressentimento dos homens contra esse crime é tão grande, seu terror ao homem que se mostra capaz de praticá-lo é tão imenso, que a mera tentativa de o praticar deveria ser passível de pena capital. A tentativa de praticar crimes menores é quase sempre sujeita a penas leves, e às vezes nem é punida. O ladrão cuja mão foi apanhada dentro do bolso do vizinho, antes de tirar dali alguma coisa, é punido apenas com a ignomínia. Se tivesse tido tempo de retirar dali um lenço, teria sido condenado à morte. O arrombador que fosse encontrado colocando uma escada junto à janela de seu vizinho, mas sem entrar por ela, não seria exposto à pena capital. A tentativa de violentar não é punida como estupro. A tentativa de seduzir uma mulher casada não é punida em absoluto, embora a sedução seja severamente punida. Nosso ressentimento contra a pessoa que apenas tentou provocar dano raramente é tão forte que nos leve a infligir punição idêntica a que julgássemos devida, se realmente o tivesse provocado. Num caso, a alegria por nos termos livrado abranda nosso senso da atrocidade de sua conduta; em outro, a aflição pelo nosso infortúnio aumenta esse sentimento. Mas o verdadeiro demérito dessa pessoa é, sem dúvida, o mesmo nos dois casos, uma vez que suas intenções eram igualmente criminosas; a esse respeito há, portanto, uma irregularidade nos sentimentos de todos os homens, e um conseqüente relaxamento da disciplina, creio eu, nas leis de todas as nações, das mais civilizadas às mais bárbaras. A humanidade de um povo civilizado o predispõe quer a eximir, quer a mitigar as penas, sempre que as conseqüências do crime não incitem sua natural indignação. De outro lado, os bárbaros não tendem a se esmerar na perquirição dos motivos do crime, se nenhuma conseqüência real resultou da ação.

A pessoa que, seja por paixão, seja por influência de más companhias, resolveu e talvez tomou medidas para perpetrar um crime, mas felizmente foi impedida por um acidente que a impossibilitou de praticá-lo, se lhe restar alguma consciência, certamente não deixará, ao longo de toda a sua vida, de considerar esse evento como uma grande e notável libertação. Jamais o poderá lembrar sem agradecer aos Céus por terem concedido a graça de salvá-lo da culpa em que estava pronto a mergulhar, não permitindo que transformasse o resto de sua vida num cenário de horror, remorso e arrependimento. Mas, embora suas mãos estejam inocentes, sabe que seu coração tem tanta culpa quanto se de fato houvesse executado o que tão decididamente esperava fazer. Mas causa grande alívio à sua consciência considerar que não executou o crime, embora saiba que o malogro não se deveu a nenhuma virtude sua. Contudo, considera-se menos merecedor de castigo e ressentimento, e essa boa fortuna ou diminui ou afasta inteiramente seu sentimento de culpa. Lembrar o quanto estava decidido a cometer o crime tem o único efeito de fazê-lo conceber sua salvação como a maior e a mais milagrosa; pois ainda imagina que foi salvo, e olha para trás, para o perigo a que fora exposta a paz de seu espírito, com o mesmo terror com que às vezes alguém em segurança pode lembrar o risco em que esteve de cair de um precipício, e a esse pensamento treme de horror.

2. O segundo efeito dessa influência da fortuna é aumentar nosso senso do mérito ou demérito das ações que, excedendo os motivos ou afetos dos quais se originaram, fortuitamente produzem prazer ou dor extraordinários. Os efeitos agradáveis ou desagradáveis da ação freqüentemente lançam uma sombra de mérito ou demérito sobre o agente, embora nada houvesse na sua intenção que merecesse louvor ou censura, ou pelo menos que os merecesse no grau em que estamos dispostos a concedê-los. Assim, até o mensageiro de más notícias nos é desagradável; e, ao contrário, sentimos uma espécie de gratidão para com o homem que nos traz boas novas. Por um momento, olhamos para eles como se fossem autores, um da boa fortuna, outro da má, e em certa medida os consideramos como se realmente tivessem causado os eventos que apenas nos descrevem. O primeiro autor de nossa alegria é naturalmente o objeto de uma gratidão transitória: abraçamo-lo calorosa e afetuosamente, e durante o tempo de nossa prosperidade gostaríamos de recompensá-lo, como se fosse por um notável serviço. Segundo os costumes de todas as cortes, o oficial que traz a notícia de uma vitória tem direito a privilégios consideráveis, e o general sempre escolhe um de seus principais favoritos para levar tão agradável mensagem. O primeiro autor de nossa tristeza é, ao contrário, também naturalmente o objeto de um ressentimento transitório. Mal podemos evitar de fitá-lo com mágoa e desconforto; e os rudes e brutais tendem a despejar sobre ele a bílis que o recado provocou. Tigranes, rei da Armênia, cortou a cabeça do homem que lhe trouxe o primeiro informe da aproximação de um formidável inimigo. Parece bárbaro e desumano punir dessa maneira o autor de más notícias; contudo, recompensar o mensageiro de boas novas não nos desagrada; julgamos que combina com a generosidade de reis. Mas por que fazemos essa diferença, uma vez que se não há erro de um, tampouco há mérito do outro? É porque qualquer espécie de raciocínio parece suficiente para autorizar o exercício dos afetos sociáveis e benevolentes; mas são necessários os mais sólidos e substanciais raciocínios para compartilharmos os afetos insociáveis e malevolentes.

Mas embora geralmente sejamos avessos a compartilhar os afetos insociáveis e malevolentes, embora estabeleçamos como regra nunca aprovarmos sua justificação, salvo na medida em que a intenção maliciosa e injusta da pessoa contra a qual são dirigidos a torne objeto adequado, em algumas ocasiões, contudo, atenuamos essa severidade. Quando a negligência de um homem causou a outro algum dano não-premeditado, geralmente partilhamos tanto do ressentimento do sofredor que aprovamos a aplicação de uma pena ao ofensor muito superior à que a ofensa parecia merecer, não tivesse dela se seguido tamanha infeliz conseqüência.

Há um grau de negligência que, embora não cause nenhum prejuízo, parece merecer severa punição. Assim, se uma pessoa jogasse uma grande pedra por sobre um muro na direção de uma via pública, sem advertir os que poderiam estar passando e sem pensar onde ela provavelmente cairia, mereceria certamente uma punição severa. Um policial extremamente cuidadoso puniria tão absurda ação mesmo que não tivesse provocado dano algum. O culpado revela um insolente desprezo pela felicidade e segurança dos demais. Há verdadeira injustiça em sua conduta, pois expõe caprichosamente seu próximo a algo a que nenhum homem sensato decidiria se expor, e evidentemente falta-lhe o senso do que é devido aos seus semelhantes, o qual fundamenta a justiça e a sociedade. De acordo com a lei, portanto, a flagrante negligência quase equivale a intenção dolosa. Quando alguma conseqüência infeliz resulta de tal descuido, o culpado é freqüentemente punido como se de fato houvesse premeditado essas conseqüências; e sua conduta que, sendo apenas irrefletida e insolente, mereceria algum castigo, é considerada atroz e passível da mais severa punição. Assim, se pela ação imprudente acima mencionada essa pessoa matasse acidentalmente um homem, segundo as leis de muitos países, particularmente a antiga lei da Escócia, seria passível da pena capital. E embora seja sem dúvida excessivamente severa, não é inteiramente inconsistente com nossos sentimentos naturais. Nossa justa indignação contra a insensatez e desumanidade da conduta dessa pessoa é agravada por nossa simpatia pelo infeliz sofredor. Mas nada agrediria mais nosso senso natural de eqüidade, do que levar ao cadafalso um homem apenas por ter jogado uma pedra descuidadamente na rua, sem ferir ninguém. A insensatez e desumanidade de sua conduta, seriam, nesse caso, as mesmas; mas muito diversos seriam nossos sentimentos. A ponderação acerca dessa diferença pode nos convencer do quanto a indignação, mesmo de um espectador, tende a ser motivada pelas reais conseqüências da ação. Em casos dessa espécie, se não me engano, encontraremos um grande grau de severidade nas leis de quase todas as nações; do mesmo modo como, conforme já observei, houve nas de uma espécie oposta relaxamento amplo da disciplina.

Há outro grau de negligência que não envolve nenhum tipo de injustiça. O culpado por negligência trata seu próximo como trata a si mesmo, não deseja prejudicar ninguém, e está longe de cultivar qualquer insolente desprezo pela segurança e felicidade de outros. Porém, não é tão cuidadoso e circunspecto em sua conduta como deveria, e merece, por essa razão, algum grau de censura e crítica, mas nenhum castigo. Contudo, se por uma negligência dessa espécie provocar algum dano a outra pessoa, acredito que segundo as leis de todos os países será obrigado a indenizá-la. E, embora essa seja, sem dúvida, uma punição real que, não fosse o infeliz acidente que sua conduta causou, nenhum mortal pensaria em lhe infligir, essa decisão da lei é aprovada pelos sentimentos naturais de todos os homens. Para nós, nada pode ser mais justo do que um homem não sofrer pela imprudência de outro; e que o dano provocado por censurável negligência seja reparado pela pessoa culpada dele.

Há uma outra espécie de negligência, que consiste apenas na falta do mais receoso acanhamento e circunspecção quanto a todas as possíveis conseqüências de nossos atos. A ausência dessa atenção minuciosa, quando não seguida de más conseqüências, está tão longe de ser considerada censurável, que se prefere censurar a qualidade contrária. Aquela tímida circunspecção que tudo receia nunca é vista como virtude, mas como uma qualidade que, mais do que outra qualquer, incapacita para a ação e os negócios. Porém, quando, por falta desse cuidado excessivo, uma pessoa casualmente provoca dano a outra, muitas vezes é obrigada, pela lei, a indenizá-la. Assim, pela Lei Aquilina, o homem que, incapaz de dominar um cavalo que acidentalmente se assustou, atropelasse o escravo de seu vizinho, seria obrigado a indenizar o prejuízo. Quando ocorre um acidente como esse, tendemos a pensar que esse homem não deveria montar tal animal, e a considerar sua tentativa de o fazer como imperdoável leviandade. No entanto, sem esse acidente não apenas não faríamos tal reflexão, mas consideraríamos a sua recusa a montar o cavalo como efeito de uma tímida fraqueza, e de um receio quanto a eventos meramente possíveis, que é inútil levar em conta. A própria pessoa, que por um acidente desses fere outra sem querer, parece ter algum senso do seu mau merecimento. Naturalmente corre até o sofredor para expressar sua preocupação pelo ocorrido, e para tomar todas as providências que estão a seu alcance. Se tiver alguma sensibilidade, necessariamente desejará reparar o dano, e fazer todo o possível para aplacar o furioso ressentimento que sabe tenderá a suscitar no peito do sofredor. Não se desculpar, não oferecer-se à expiação, é considerada a maior das brutalidades. Mas por que ele deveria se desculpar mais do que qualquer outra pessoa? Por que, já que foi tão inocente quanto qualquer outro espectador, seria assim isolado de todos os outros homens para reparar a má sorte de outro? Essa tarefa certamente jamais lhe seria imposta, não sentisse o espectador imparcial alguma indulgência pelo que se pode considerar o injusto ressentimento do outro.


 
CAPÍTULO III Da causa final dessa irregularidade dos sentimentos
Tal é o efeito da boa ou má conseqüência das ações sobre os sentimentos, tanto da pessoa que as realiza quanto de outras; e assim, a fortuna, que governa o mundo, tem alguma influência onde menos desejaríamos lhe conceder alguma, e governa, em certa medida, os sentimentos dos homens quanto ao caráter e conduta deles próprios e de outros. Que o mundo julga pelo fato e não pela intenção, tem sido a queixa de todos os tempos, e o maior desestímulo à virtude. Todos concordam com a máxima universal de que, não dependendo o fato do agente, não deveria exercer nenhuma influência sobre nossos sentimentos relativos ao mérito ou conveniência de sua conduta. Mas quando examinamos os particulares, descobrimos que num caso qualquer nossos sentimentos dificilmente estão em exata conformidade com o que ordenaria essa máxima eqüitativa. A ocorrência feliz ou infortunada de qualquer ação não apenas tende a nos dar uma opinião boa ou má da prudência com que foi conduzida, mas quase sempre motiva nossa gratidão ou ressentimento, nosso senso do mérito ou demérito da intenção.

Porém, quando implantou as sementes dessa irregularidade no peito humano, como em todas as demais ocasiões, a natureza parece ter pretendido a felicidade e perfeição da espécie. Se a nocividade da intenção, se a malevolência do afeto fossem as únicas causas a suscitar nosso ressentimento, deveríamos sentir todas as fúrias dessa paixão contra qualquer pessoa em cujo peito suspeitássemos ou acreditássemos que se ancoram tais intenções ou afetos, ainda que estes jamais tivessem irrompido em atos. Sentimentos, pensamentos, propósitos, tornar-se-iam objetos de castigo; e se a indignação dos homens fosse tão intensa contra eles quanto contra as ações; se a baixeza do pensamento que deu origem à ação parecesse, aos olhos do mundo, clamar tão alto por vingança quanto a baixeza da ação, todos os tribunais de magistratura se transformariam numa verdadeira inquisição. Não haveria segurança para a mais inocente e circunspecta das condutas. Maus desejos, maus olhares, más intenções, poderiam se tornar suspeitas; e quando estas suscitassem a mesma indignação que a má conduta, quando se ressentisse tanto das más intenções como das más ações, a pessoa estaria exposta a igual punição e ressentimento. Portanto, as ações que ou produzem mal efetivo ou experimentam produzi-lo – causando-nos, desse modo, medo imediato – o Autor da natureza tornou-as os únicos objetos apropriados e aprovados de punição e ressentimento humanos. Sentimentos, intenções, afetos: embora deles, segundo o frio raciocínio humano, os atos humanos derivem todo o seu mérito ou demérito, o grande Juiz dos corações os colocou além dos limites de qualquer jurisdição humana, reservando-os unicamente ao conhecimento do seu próprio infalível tribunal. Por conseguinte, a necessária regra da justiça, segundo a qual nesta vida são passíveis de punição somente os atos dos homens, não seus desígnios e intenções, funda-se sobre essa salutar e útil irregularidade nos sentimentos humanos relativos a mérito e demérito, a qual à primeira vista parece tão absurda e inexplicável. Mas todas as partes da natureza, se examinadas atentamente, igualmente demonstram o cuidado providencial de seu Autor; e podemos admirar a sabedoria e bondade de Deus até mesmo na fraqueza e insensatez dos homens.

Tampouco é inteiramente inútil essa irregularidade de sentimentos, por meio da qual o mérito de uma malograda tentativa de servir, e sobretudo o de meras boas inclinações e bons desejos, mostra-se imperfeito. O homem foi criado para a ação e para promover, pelo exercício de suas faculdades, as modificações nas circunstâncias externas, próprias e alheias, que lhe pareçam mais favoráveis à felicidade de todos. Não deve se satisfazer com uma benevolência indolente, nem imaginar-se amigo da humanidade, só porque em seu coração deseja a prosperidade do mundo. A natureza lhe ensinou que pode invocar todo o vigor de sua alma, e tensionar cada nervo, a fim de produzir as finalidades as quais sua existência tem como propósito promover, e que nem ele nem a humanidade podem-se satisfazer plenamente com sua conduta, concedendo-lhe todos os aplausos, a não ser que ele realmente os tenha produzido. A natureza o faz saber que o louvor das boas intenções, sem o mérito dos bons serviços, será de pouca valia para suscitar ou as mais estrondosas aclamações do mundo, ou mesmo o maior grau de aplauso de si mesmo. O homem que não executou uma só ação importante, mas cuja conversa e comportamento expressam sempre os mais justos, nobres e generosos sentimentos, não tem direito a reclamar uma recompensa muito elevada, embora sua inutilidade não se deva nada senão a uma falta de oportunidade para servir. No entanto, podemos recusar-lhe essa recompensa, sem o censurarmos. Mesmo assim, podemos-lhe perguntar: O que fizeste? Que serviço real podes produzir, que te dê direito a tão grande recompensa? Estimamo-te e amamo-te; mas não te devemos nada. De fato, recompensar a virtude latente que não foi utilizada apenas por falta de oportunidade de servir, conceder a ela honras e privilégios que, embora em certa medida os mereça, o decoro não permitiria que os exigisse, é o efeito da mais divina benevolência. Ao contrário, punir apenas por causa dos afetos do coração, ainda que nenhum crime tenha sido praticado, é a mais bárbara e insolente tirania. Os afetos benevolentes parecem merecer maior louvor se não são postergados até o momento em que quase configure crime não colocá-los em prática. Ao contrário, os malevolentes dificilmente são demasiado tardios, lentos e deliberados.

É até mesmo de considerável importância que se conceba o mal causado sem intenção como infortúnio para o agente bem como para o sofredor. O homem é ensinado, desse modo, a reverenciar a felicidade de seus irmãos, a tremer ante a possibilidade de que faz, mesmo inconscientemente, algo que os possa ferir, e a sentir pavor daquele brutal ressentimento que, percebe ele, está prestes a irromper sobre si, caso se torne, sem intenção, o intermediário da calamidade desses seus irmãos. Na antiga religião pagã, o solo que fora consagrado a algum deus não deveria ser pisado, senão em ocasiões solenes e necessárias, e o homem que o violasse, mesmo por ignorância, doravante se tornaria sacrílego, e incorreria na vingança daquele ser poderoso e invisível a quem o solo fora reservado, até que se realizasse a reparação apropriada; assim também, pela sabedoria da natureza, a felicidade de todo homem inocente é da mesma maneira tornada sagrada, consagrada, e cercada contra a aproximação de qualquer outro homem, para não se pisar nela à toa, e mesmo para não ser, em nenhum aspecto, violada, por ignorância ou involuntariamente, sem que seja necessária alguma expiação, alguma reparação, proporcional à grandeza dessa violação não intencional. Um humanitário, que acidentalmente – e sem o menor grau de negligência censurável – causou a morte de outro homem, sente-se um sacrílego, embora não um culpado. Durante toda a sua vida considera esse acidente como um dos maiores infortúnios que lhe podiam suceder. Se os familiares do morto são pobres, e sua própria situação é apenas passável, imediatamente os toma sob sua proteção, e sem nenhum outro mérito julga que têm direito a todo favor e bondade. Se estão em melhor situação, experimenta toda a submissão, todas as expressões de tristeza, procura prestar-lhes todos os bons ofícios que possa divisar ou que eles possam aceitar para reparar o ocorrido, e aplacar, na medida do possível, o ressentimento talvez natural, embora sem dúvida injustíssimo, pela grande, mas involuntária, ofensa que lhes causou.

A aflição que sente uma pessoa inocente, a qual acidentalmente foi levada a fazer algo que, se feito consciente e intencionalmente, tê-la-ia exposto com justiça à mais profunda censura, propiciou algumas das mais belas e interessantes cenas tanto do drama antigo como moderno. É esse falacioso sentimento de culpa que constitui toda a aflição de Édipo e Jocasta no teatro grego, de Monímia e Isabela no teatro inglês. São todos eles sacrílegos no mais alto grau, embora nenhum tenha nenhum grau de culpa.

Entretanto, não obstante todas essas manifestas irregularidades do sentimento, se infelizmente o homem causa males que não pretendeu, ou fracassa em produzir o bem que pretendia, a natureza não deixa sua inocência inteiramente sem consolo, nem sua virtude inteiramente sem recompensa. Assim, o homem chama em seu socorro aquela máxima justa e eqüitativa segundo a qual os eventos que não dependem de nossa conduta não devem diminuir a estima que nos é devida. Evoca toda magnanimidade e firmeza de sua alma, e esforça-se por ver-se, não sob a luz em que agora se mostra, mas sob a luz em que deveria mostrar-se, em que teria se mostrado, fossem suas generosas intenções coroadas de êxito, ou, a despeito de fracasso, em que ainda se mostrariam se os sentimentos dos homens fossem inteiramente sinceros e eqüitativos, ou até perfeitamente consistentes consigo mesmos. A parte mais sincera e bondosa da humanidade concorda inteiramente com os esforços que ele então faz para amparar-se em sua própria opinião. Exerce toda a sua generosidade e grandeza de espírito para corrigir em si mesma essa irregularidade da natureza humana, e se empenha em ver a infortunada magnanimidade desse homem sob a mesma luz em que, se êxito tivesse, naturalmente estaria disposto a considerá-la, sem qualquer esforço de generosidade.


 
TERCEIRA PARTE DO FUNDAMENTO DE NOSSOS JUÍZOS QUANTO A NOSSOS PRÓPRIOS SENTIMENTOS E CONDUTA, E DO SENSO DE DEVER

 
CAPÍTULO I Do princípio da aprovação e de desaprovação de si mesmo
Nas duas partes anteriores deste discurso, considerei principalmente a origem e fundamento de nossos juízos quanto aos sentimentos e conduta de outros. Passo a considerar agora mais particularmente a origem dos que dizem respeito aos nossos.

O princípio pelo qual naturalmente aprovamos ou desaprovamos nossa própria conduta parece em tudo igual ao princípio pelo qual formamos juízos semelhantes a respeito da conduta de outras pessoas. Aprovamos ou desaprovamos a conduta de outro homem segundo sintamos que, ao fazermos nosso seu caso, podemos ou não simpatizar inteiramente com os sentimentos e motivos que a nortearam. E, da mesma maneira, aprovamos ou desaprovamos nossa própria conduta segundo sintamos que, quando nos colocamos na situação de outro homem, como se a contemplássemos com seus olhos e de seu ponto de vista, podemos ou não entender os sentimentos e motivos que a determinaram, simpatizando inteiramente com ela. Jamais podemos inspecionar nossos próprios sentimentos e motivos, jamais podemos formar juízo algum sobre eles, a não ser abandonando, por assim dizer, nossa posição natural e procurando vê-los como se estivessem a certa distância de nós. Mas o único modo de fazermos isso é tentar divisá-los com os olhos de outras pessoas, isto é, como provavelmente outras pessoas os veriam. Todo juízo que formemos sobre eles, portanto, deverá guardar necessariamente uma secreta relação, seja com o que é, seja com o que seria em certas condições – ou com o que imaginamos deveria ser – o juízo dos outros. Empenhamo-nos em examinar nossa própria conduta como imaginamos que outro espectador imparcial e leal a examinaria. Se, colocando-nos em seu lugar, conseguimos compartilhar inteiramente as paixões e motivos que a determinaram, nós a aprovamos por simpatia com a aprovação desse suposto eqüitativo juiz. Se, ao contrário, compartilhamos sua desaprovação, condenamos essa conduta.

Se fosse possível que uma criatura humana vivesse em algum lugar solitário até alcançar a idade madura, sem qualquer comunicação com sua própria espécie, não poderia pensar em seu próprio caráter, a conveniência ou demérito de seus próprios sentimentos e conduta, a beleza ou deformidade de seu próprio espírito, mais do que na beleza e deformidade de seu próprio rosto. Todos esses são objetos que não pode facilmente ver, para os quais naturalmente não olha, e com relação aos quais carece de espelho que sirva para apresentá-los à sua vista. Tragam-no para a sociedade, e será imediatamente provido do espelho de que antes carecia. É colocado ante o semblante e comportamento daqueles com quem vive – que sempre registram quando compartilham ou desaprovam seus sentimentos –, é aí que pela primeira vez verá a conveniência ou inconveniência de suas próprias paixões, a beleza ou deformidade de seu espírito. Para um homem que desde o nascimento fosse estranho à sociedade, os objetos de suas paixões, os corpos exteriores que lhe agradassem ou maltratassem, ocupariam toda a sua atenção. As paixões em si mesmas, os desejos ou aversões, alegrias ou tristezas que tais objetos suscitassem, embora fossem, de todas as coisas, as mais presentes a ele, dificilmente seriam objeto de suas reflexões. Pensar neles nunca poderia lhe interessar o bastante para chamar sua atenta consideração. A consideração de sua alegria não poderia suscitar uma nova alegria, nem a de sua aflição uma nova aflição, ainda que a consideração das causas dessas paixões pudesse freqüentemente suscitar ambas. Tragam-no para a sociedade, e todas as suas paixões imediatamente se converterão em causas de novas paixões. Cuidará que os homens aprovam algumas, e se enojam com outras. Num caso se sentirá exaltado, abatido em outro; agora, seus desejos e aversões, alegrias e tristezas freqüentemente se converterão em causas de novos desejos e novas aversões, novas alegrias e novas tristezas, e, por isso, agora lhe interessarão profundamente, e muitas vezes ocuparão sua mais atenta consideração.

Nossas primeiras idéias de beleza e deformidade das pessoas são extraídas da figura e aparência de outros, não das nossas próprias. No entanto, logo cuidamos que os outros exercem a mesma crítica quanto a nós. Alegra-nos que aprovem nossa figura, e aborrece-nos quando lhes incomoda. Ansiamos por saber em que medida nossa aparência merece sua censura ou sua aprovação. Examinamos membro a membro nossa pessoa, e, colocando-nos diante de um espelho, ou por algum outro expediente, tentamos o mais possível nos ver à distância com olhos de outros. Se depois dessa inspeção ficamos satisfeitos com nossa aparência, poderemos suportar mais facilmente os mais adversos juízos alheios. Se, ao contrário, temos consciência de que somos objeto natural de aversão, toda mostra de sua desaprovação nos mortifica desmedidamente. Um homem razoavelmente bonito permitirá que se riam de qualquer insignificante deformação de sua pessoa; mas todas essas brincadeiras são habitualmente insuportáveis para alguém que seja realmente deformado. De todo modo, é evidente que nossa própria beleza e deformidade nos preocupam somente por causa de seus efeitos sobre os demais. Se estivéssemos completamente desligados da sociedade, ambas nos seriam totalmente indiferentes.

Da mesma maneira, nossas primeiras críticas morais se referem aos caracteres e conduta de outros; e com grande desembaraço observamos como cada uma delas nos afeta. Porém, logo aprendemos que outras pessoas têm igual franqueza a respeito das nossas. Ansiamos por saber em que medida merecemos sua censura ou aplauso, e se perante elas necessariamente mostramo-nos tão agradáveis ou desagradáveis como elas perante nós. Começamos, pois, a examinar nossas próprias paixões e conduta, e considerar o que devem parecer aos outros, pensando o que a nós nos pareceriam se estivéssemos em seu lugar. Supomo-nos espectadores de nosso próprio comportamento, e procuramos imaginar o efeito que, sob essa luz, produziria sobre nós. Esse é o único espelho com o qual, em certa medida, conseguimos esquadrinhar a conveniência de nossa própria conduta por intermédio de olhos alheios. Se desse ponto de vista nos agrada, ficamos moderadamente satisfeitos. Podemos ser mais indiferentes quanto ao aplauso e, em certa medida, desprezar a censura do mundo, contanto que estejamos seguros de ser, por mais que não nos compreendam ou nos interpretem mal, objetos naturais e adequados de aprovação. Inversamente, se carecermos dessa segurança, com muita freqüência e precisamente por esse motivo, ficaremos mais ansiosos por obter aprovação alheia, e, se ainda não tivermos apertado a mão da infâmia, como se diz, a mera idéia da censura alheia, que então nos golpeará com redobrada severidade, bastará para nos deixar inteiramente transtornados.

Quando me esforço para examinar minha própria conduta, quando me esforço para pronunciar sentença sobre ela, seja para aprová-la ou condená-la, é evidente que, em todos esses casos, tudo se passa como se me dividisse em duas pessoas; e que eu, examinador e juiz, represento um homem distinto perante ao outro eu, a pessoa cuja conduta se examina e se julga. A primeira pessoa é o espectador, de cujos sentimentos quanto à minha conduta tento participar, colocando-me em seu lugar e considerando como a mim me pareceria se a examinasse desse ponto de vista particular. A segunda é o agente, pessoa a quem propriamente designo como eu mesmo, e sobre cuja conduta tentava formar uma opinião, como se fosse a de um espectador. A primeira é o juiz; a segunda é a pessoa a quem se julga. Mas, que o juiz seja em tudo o mesmo que a pessoa julgada, é tão impossível quanto a causa ser em tudo o mesmo que o efeito.

Ser amável e ser meritório, isto é, merecer amor e recompensa, são as grandes características da virtude; e ser odioso e passível de punição, as do vício. Mas todas essas características quase não têm uma imediata referência com os sentimentos de outros. Da virtude não se diz que é amável ou meritória, porque objeto de seu próprio amor, ou de sua própria gratidão, mas porque provoca tais sentimentos em outros homens. A consciência de saber-se objeto de opiniões tão favoráveis origina essa tranqüilidade interior e satisfação consigo que naturalmente a acompanham, assim como a suspeita do contrário dá ocasião aos tormentos do vício. Há felicidade maior que ser amado e saber que merecemos o amor? Há desgraça maior que ser odiado e saber que merecemos o ódio?


 
CAPÍTULO II Do amor ao louvor, e do amor ao que é louvável; e do horror à censura, e ao que é censurável
Naturalmente o homem não apenas deseja ser amado, mas amável; ou ser objeto natural e apropriado de amor. Naturalmente não apenas teme ser odiado, mas ser odioso; ou ser objeto natural e apropriado de ódio. Não deseja apenas louvor, mas o que é digno de louvor; ou, ainda que não louvado por ninguém, ser objeto natural e apropriado de louvor. Tem horror não apenas à censura, mas ao que é digno de censura; ou, embora ninguém o censure, ser, contudo, objeto natural e apropriado de censura.

De nenhum modo o amor ao que é louvável deriva inteiramente do amor ao louvor. Esses dois princípios, embora semelhantes, embora associados e muitas vezes misturados um ao outro, são todavia, em muitos aspectos, distintos e independentes entre si.

O amor e admiração que naturalmente concebemos por aqueles cujo caráter e conduta aprovamos predispõem-nos, necessariamente, a desejar nos convertermos em objetos dos mesmos sentimentos agradáveis, e sermos tão amáveis e admiráveis quanto aqueles a quem mais amamos e admiramos. A emulação, o aflito desejo de sermos excelentes, funda-se originalmente em nossa admiração pela excelência de outros. Tampouco nos satisfaz sermos admirados tão-somente pelo que outros o são; ao menos devemos acreditar que somos admiráveis pelo que elas são. Mas, para obtermos essa satisfação, devemos nos tornar espectadores imparciais de nosso próprio caráter e conduta. É preciso nos esforçarmos para vê-los com os olhos de outras pessoas, ou como outras pessoas provavelmente os verão. Vistos nessa luz, se nos aparecem como desejamos, ficamos felizes e contentes. Porém, confirma-se grandemente essa felicidade e contentamento, ao descobrirmos que outros, vendo nosso caráter e conduta com aqueles olhos com os quais nós, apenas em imaginação, esforçávamo-nos por vê-los, vêem-nos precisamente sob a mesma luz em que nós os víramos. Sua aprovação necessariamente confirma a aprovação de nós mesmos. Seu louvor necessariamente fortalece nosso senso de que somos dignos de louvor. Nesse caso, o amor ao que é louvável está tão distante de derivar inteiramente do amor ao louvor, que este parece, em grande medida, pelo menos, derivar daquele, isto é, do amor ao que é louvável.

O mais sincero louvor pode proporcionar pouco prazer quando não se pode considerá-lo como uma espécie de prova de que se é louvável. Não basta, em absoluto, que de um modo ou outro nos concedam, por ignorância ou engano, estima e admiração. Se estamos conscientes de não merecermos que façam de nós uma idéia tão favorável, e de que se a verdade viesse a lume seríamos vistos com sentimentos bastante diversos, nem de longe nossa satisfação é completa. O homem que nos aplaude ora por ações que não realizamos, ora por motivos que não tiveram nenhuma influência sobre nossa conduta, não aplaude a nós, mas a outra pessoa. Não podemos extrair nenhuma satisfação de seus louvores. Para nós, seriam mais mortificantes do que qualquer censura, e perpetuamente nos trariam a lembrança da mais humilhante das reflexões: o que deveríamos ser, mas não somos. Poder-se-ia imaginar que uma mulher que pinta se envaideceria pouco com os elogios ao seu semblante. É de esperar que tais elogios antes fizessem-na lembrar dos sentimentos que seu semblante desperta, e muito a mortificasse o contraste. Alegrar-se com um aplauso tão infundado é prova da mais superficial leviandade e fraqueza. É a isso que se chama propriamente de vaidade, fundamento dos mais ridículos e desprezíveis vícios, a saber, o da afetação e da mentira contumaz: loucuras de que, alguém imaginaria, a menor centelha de bom-senso nos poderia libertar, se a experiência não nos ensinasse o quanto são comuns. O tolo mentiroso que procura suscitar a admiração dos outros pelo relato de aventuras que nunca ocorreram; o influente janota que se dá ares de classe e distinção, quanto aos quais bem sabe que não pode nutrir justas pretensões, ambos sem dúvida se alegram com o aplauso que imaginam receber. Mas sua vaidade se origina de uma tão grosseira ilusão da imaginação, que é difícil conceber como poderia convencer qualquer criatura racional. Quando se colocam no lugar daqueles a quem pensam ter enganado, impressiona-os a grande admiração por suas próprias pessoas. Sabem que olham para si mesmos não como devem se mostrar aos companheiros, mas como realmente acreditam que os olham. Sua fraqueza superficial e trivial loucura impedem-nos de alguma vez voltar os olhos para dentro de si, ou de se ver de acordo com esse desprezível ponto de vista em que suas próprias consciências devem-lhes dizer que apareceriam a todo o mundo, caso a verdade viesse à tona.

Uma vez que um louvor tolo e infundado não proporciona uma sólida alegria, e tampouco uma satisfação que resista a um sério exame, então, ao contrário, não raro conforta verdadeiramente refletir que, embora nenhum louvor realmente nos seja dado, nossa conduta mesmo assim o merecia, e foi em tudo adequada a medidas e regras pelas quais habitualmente se confere louvor e aprovação. Alegra-nos não apenas o louvor, mas termos praticado algo louvável. Alegra-nos pensar que nos convertemos nos objetos naturais de aprovação, embora nenhuma aprovação jamais nos fosse realmente concedida. E mortifica-nos refletir que a censura daqueles com quem convivemos foi merecida justamente, ainda que esse sentimento nunca se dirigisse efetivamente contra nós. O homem que está consciente de ter respeitado exatamente as medidas de conduta, as quais a experiência lhe diz serem geralmente agradáveis, reflete satisfeito sobre a conveniência de seu próprio comportamento. Quando o vê sob a luz em que o veria o espectador imparcial, participa inteiramente de todos os motivos que o determinaram. Relembra com prazer e aprovação cada parte desse seu comportamento e, embora a humanidade jamais venha a saber o que fez, considera-se não tanto conforme a luz em que realmente o vêem, mas conforme a luz em que o veriam, se fossem mais bem informados. Antecipa o aplauso e admiração que nesse caso lhe seriam dedicados; e aplaude e admira a si mesmo por simpatia com sentimentos que de fato não ocorrem, mas que apenas a ignorância do público impede de ocorrer. Sabendo que esses sentimentos são efeitos naturais e comuns de tal conduta, associa-os em sua imaginação, e adquire o hábito de concebê-los como algo que dela deveria se seguir natural e apropriadamente. Há homens que abandonaram voluntariamente a vida para adquirir após a morte um nome de que não mais poderiam usufruir. Entrementes, sua imaginação antecipava a fama que lhes seria concedida em tempos futuros. Os aplausos que nunca ouviriam ressoam em seus ouvidos; os pensamentos da admiração, cujos efeitos jamais perceberiam, brincavam em seus corações, baniam de seus peitos o mais forte dos medos naturais, transportando-os a executar ações que parecem quase fora do alcance da natureza humana. Mas, no que diz respeito à realidade, certamente não há grande diferença entre a aprovação que apenas será concedida quando já não a pudermos aproveitar, e a que nunca será concedida de fato, embora pudesse ser, caso o mundo algum dia compreendesse apropriadamente as reais circunstâncias de nosso comportamento. Se uma freqüentemente produz tantos efeitos violentos, não nos surpreende que a outra sempre seja tão bem recebida.

Quando criou o homem para a sociedade, a natureza o dotou de um desejo original de agradar, e de uma aversão primária a ofender seus irmãos. Ensinou-o a sentir prazer com a opinião favorável destes, e a sofrer com sua opinião desfavorável. Tornou a aprovação dos semelhantes em si mesma muito lisonjeira e agradável a ele, e sua desaprovação muito mortificante e ofensiva.

Mas esse desejo de aprovação e essa aversão à desaprovação de seus irmãos não seriam suficientes para torná-lo adequado à sociedade para a qual fora criado. A natureza o dotou, pois, não apenas de um desejo de ser aprovado, mas de se tornar objeto de aprovação necessária, ou de ser aprovado pelo que ele mesmo aprova em outros homens. O primeiro desejo apenas o faria esperar mostrar-se adequado à sociedade. O segundo foi necessário a fim de fazê-lo preocupar-se em ser realmente adequado. O primeiro apenas poderia tê-lo motivado a afetar virtude e a ocultar o vício. O segundo foi necessário para inspirar-lhe o verdadeiro amor à virtude e o real horror ao vício. Em todo espírito esclarecido, esse segundo desejo parece ser o mais forte dos dois. Apenas os mais superficiais e mais fracos dos homens podem se deliciar com o louvor que sabem em tudo imerecido. Um homem fraco pode por vezes regozijar-se com isso, ao passo que um homem sábio o rejeita em todas as ocasiões. Porém, embora um sábio extraia pouco prazer do louvor quando sabe que nada há para se louvar, freqüentemente extrai o mais intenso prazer de realizar algo que sabe louvável, embora também não ignore que tal ação jamais receberá louvor algum. Obter a aprovação dos homens, quando nenhuma aprovação é devida, nunca terá, para ele, relevância. Obter aprovação quando é realmente devida pode, por vezes, ter pouca relevância para ele. Mas ser merecedor de aprovação sempre deve ter extrema relevância.

Desejar ou até aceitar louvor, quando nenhum louvor é devido, pode ser apenas efeito da mais desprezível vaidade. Desejá-lo quando é realmente devido é nada menos que desejar que se nos faça o mais essencial ato de justiça. O amor à justa fama, à verdadeira glória, mesmo por si mesmo e independente de qualquer vantagem que possa trazer, não é indigno nem mesmo de um homem sábio. Às vezes, no entanto, este a negligencia e até a despreza, e tende a fazê-lo quando está perfeitamente seguro quanto à perfeita conveniência de cada passo de sua conduta. Nesse caso, não é necessário que a aprovação de si mesmo seja confirmada pela aprovação de outros homens: basta por si só, e isso satisfaz ao sábio. Essa aprovação de si é o principal, senão o único, objeto com o qual pode ou deve preocupar-se. O amor a ela constitui o amor pela virtude.

Do mesmo modo como o amor e admiração que naturalmente concebemos por alguns personagens nos inclinam a desejar nos tornarmos objetos adequados de tão agradáveis sentimentos, também o ódio e desprezo que concebemos naturalmente por outros nos predispõem, talvez ainda mais fortemente, a temermos a simples idéia de nos parecermos a eles no menor aspecto. Também nesse caso, não tememos tanto a idéia de ser odiado e desprezado, mas a de sermos odiosos e desprezíveis. Tememos a idéia de fazer algo que nos possa tornar objetos justos e adequados de ódio e desprezo de nossos semelhantes, ainda que estejamos perfeitamente seguros de que esses sentimentos nunca se dirigiram realmente contra nós. O homem que violou todas essas normas de conduta, as únicas capazes de torná-lo agradável à humanidade, embora estivesse perfeitamente seguro de que ocultou seus atos de todo olho humano para sempre, sabe que tudo isso é inútil. Ao rememorá-los e vê-los sob a luz em que o espectador imparcial os veria, descobre que não consegue entender nenhum dos motivos que os determinaram. Tais pensamentos o deixam perplexo e confuso, e necessariamente sente com intensidade a vergonha a que estaria exposto, se seus atos viessem a ser conhecidos de todos. Também nesse caso, sua imaginação antecipa o desprezo e escárnio de que nada o salva, exceto a ignorância dos que com ele convivem. Ainda sente que é objeto natural desses sentimentos, e ainda treme ao pensar no que sofreria, se porventura esses sentimentos realmente lhe fossem dedicados. Porém, se não fosse culpado meramente de uma dessas inconveniências que constituem objeto de simples desaprovação, mas de um desses crimes enormes, que suscitam horror e ressentimento, enquanto lhe restasse alguma sensibilidade, jamais pensaria em seus atos, sem sentir toda a agonia do horror e do remorso; e, embora estivesse seguro de que nenhum homem jamais viria a saber de nada, e até pudesse acreditar que não existe Deus para se vingar sobre ele, ainda assim, o que experimentaria desses dois sentimentos bastaria para amargurar toda sua vida. Ademais, considerar-se-ia objeto natural de ódio e indignação de todos os seus semelhantes e, se seu coração já não estivesse calejado pelo hábito de cometer crimes, não poderia conceber sem terror e perplexidade até mesmo a maneira como os outros o olhariam, a expressão de seus rostos e olhos, se a terrível verdade um dia viesse a ser conhecida. Essas agonias naturais de uma consciência atemorizada são os demônios, as fúrias vingativas que assombram os culpados nesta vida, que não lhes permitem nem calma nem repouso, que freqüentemente os levam ao desespero e loucura, de que nenhuma certeza de sigilo os protege, nenhum princípio de irreligião os pode salvar inteiramente, e de que nada os pode libertar, senão a mais vil e abjeta das condições, isto é, a completa indiferença quanto a honra e infâmia, vício e virtude. Homens de temperamentos os mais detestáveis, que na execução dos mais hediondos crimes friamente tomaram decisões para evitar até a suspeita de culpa, às vezes são levados pelo horror de sua situação a revelar de bom grado o que nenhuma sagacidade humana jamais poderia investigar. Reconhecendo sua culpa, submetendo-se ao ressentimento dos concidadãos que foram ofendidos e, com isso, saciando a vingança da qual sabiam ter-se tornado objetos adequados, esperam com sua morte reconciliar-se, pelo menos em sua imaginação, com os sentimentos naturais dos outros homens; esperam ser capazes de se considerar menos dignos de ódio e ressentimento, e de alguma forma pagar por seus crimes, tornando-se, assim, antes objetos de compaixão do que de horror, e se possível morrendo em paz, com o perdão de todos os seus semelhantes. Comparado ao que sentiam antes da revelação, até esse pensamento, ao que parece, lhes traz felicidade.

Em casos como esse, o horror a ser digno de censura parece subjugar completamente o horror à censura, mesmo quando se trata de pessoas insuspeitas de qualquer extraordinária sensibilidade ou delicadeza de caráter. A fim de aliviar esse horror, de pacificar de alguma maneira o remorso de suas consciências, submetem-se voluntariamente tanto à repreensão quanto ao castigo que sabem lhe foram devidos por seus crimes, mas que, ao mesmo tempo, poderiam facilmente ter evitado.

São as pessoas mais frívolas e superficiais as únicas que se encantam sobremaneira com o louvor que sabem ser inteiramente imerecido. A repreensão imerecida, entretanto, não raro é capaz de mortificar severamente mesmo homens de constância mais que comum. Na verdade, homens de constância a mais comum facilmente aprendem a desprezar as tolas historietas que com freqüência circulam em sociedade e que, por seu absurdo e falsidade, sempre acabam no curso de poucas semanas ou poucos dias. Mas um homem inocente, ainda que de constância incomum, muitas vezes não apenas se ofende, mas se mortifica severamente com a imputação grave, embora falsa, de um crime, sobretudo quando, por infelicidade, a imputação tem apoio em circunstâncias que lhe conferem ar de probabilidade. Deixa-o humilhado descobrir que alguém julgue seu caráter tão mesquinho, a ponto de supor que fosse capaz de ser culpado disso. Embora perfeitamente ciente de sua própria inocência, a mera imputação muitas vezes parece, até em sua própria imaginação, lançar uma sombra de desgraça e desonra sobre seu caráter. Além disso, sua justa indignação diante de tão vulgar injúria, a qual, contudo, é freqüentemente inconveniente e às vezes até impossível vingar, em si mesma é uma sensação muito dolorosa. Não há maior torturador do peito humano do que o intenso ressentimento que não pode ser saciado. Um homem inocente, levado ao cadafalso pela falsa imputação de um crime odioso ou infame, sofre o mais cruel infortúnio que um inocente pode sofrer. A agonia de seu espírito, nesse caso, pode muitas vezes ser mais intensa que a agonia dos que sofrem pelos mesmos crimes, dos quais foram efetivamente culpados. Criminosos devassos, tais como ladrões comuns e bandoleiros, freqüentemente têm pouco senso da baixeza de sua própria conduta, e, por conseguinte, nenhum remorso. Sem se incomodarem com a justiça ou injustiça da punição, habituaram-se desde sempre a olhar para o patíbulo como um destino que muito provavelmente sobreviria. Quando, portanto, realmente sobrevém, consideram-se apenas menos afortunados do que seus companheiros, e se submetem à sua sorte sem nenhum desconforto, senão o que surge do medo da morte, um medo que freqüentemente vemos, mesmo por tais indignos desgraçados, subjugar tão fácil e completamente. Ao contrário, o inocente, além do desconforto que esse medo pode provocar, é torturado pela sua própria indignação ante a injustiça que lhe fizeram. Ocorre-lhe com horror o pensamento da infâmia que a punição poderá derramar sobre sua memória, e prevê com a mais intensa angústia que doravante será lembrado por seus mais queridos amigos e parentes com vergonha e até horror por sua suposta conduta infame, não com pena e afeto. E assim as sombras da morte parecem fechar-se ao seu redor com um desalento mais lúgubre e mais melancólico do que as acompanham naturalmente. Para a tranqüilidade dos homens, deve-se esperar que esses funestos incidentes ocorram muito raramente em qualquer país, apesar de às vezes ocorrerem em todos os países, até naqueles onde a justiça é, de modo geral, muito bem administrada. O infeliz Calas, homem de constância muito superior à comum (arrebentado na roda e queimado na fogueira em Toulouse pelo suposto assassinato de seu próprio filho, do qual era completamente inocente), mostrou com seu último suspiro condenar menos a crueldade do castigo, que a desgraça que essa imputação poderia lançar sobre sua memória. Depois de arrebentado, na iminência de ser lançado ao fogo, o monge que acompanhava a execução o exortou a confessar o crime pelo qual fora condenado. “Meu pai”, disse Calas, “o senhor consegue convencer-se de que sou culpado?”

Para pessoas em circunstâncias tão infelizes, aquela modesta filosofia, cujas opiniões estão confinadas nesta vida, talvez sirva de pouco consolo. Tudo o que poderia tornar a vida ou a morte respeitáveis lhes foi tirado. Estão condenadas à morte e à eterna infâmia. Somente a religião pode lhes propiciar qualquer conforto efetivo. Apenas ela pode lhes dizer que é de pouca importância o que o homem venha a pensar da sua conduta, se o Juiz Onisciente do mundo a aprovar. Só ela pode lhes apresentar a visão de outro mundo, um mundo de mais sinceridade, humanidade e justiça do que o presente, onde sua inocência será declarada no devido tempo, e sua virtude finalmente compensada. E o mesmo grande princípio, único que pode espelhar terror pelo vício triunfante, fornece o único consolo eficaz para a inocência desgraçada e insultada.

Em ofensas menores, bem como em crimes maiores, freqüentemente sucede de uma pessoa sensível ferir-se muito mais com a injusta imputação do que o verdadeiro criminoso com sua culpa real. Uma mulher galante ri até das insinuações bem fundadas que circulam quanto a sua conduta. A mais infundada insinuação dessa espécie é uma punhalada mortal numa virgem inocente. Creio que podemos estabelecer como regra geral que a pessoa deliberadamente culpada de um ato desgraçado não tem muito senso da desgraça, e a pessoa habitualmente culpada de tal ato dificilmente terá qualquer desse senso.

Se todo homem, mesmo o de entendimento mediano, tão prontamente despreza o aplauso imerecido, talvez valha a pena considerar como sucede que a imerecida repreensão muitas vezes consiga mortificar tão gravemente homens do mais sólido discernimento.

Já tive ocasião de observar que a dor é, em quase todos os casos, uma sensação mais pungente do que o prazer oposto e correspondente. Uma quase sempre nos faz cair muito abaixo do comum, ou do que se pode chamar natural estado de felicidade, do que o outro porventura nos ergue acima dele. Um homem sensível tende a ser mais humilhado pela justa censura do que porventura é elevado pelo justo aplauso. Em todas as ocasiões, um homem sábio rejeita o aplauso imerecido com desdém; mas freqüentemente sente de modo bastante intenso a injustiça da censura imerecida. Ao permitir a si mesmo o aplauso pelo que não realizou, ao presumir de um mérito que não lhe é devido, sente que é culpado de vil falsidade e merece, não a admiração, mas o desprezo das mesmas pessoas que, por engano, foram levadas a admirá-lo. Talvez lhe dê algum prazer bem fundamentado descobrir que muitas pessoas o julgaram capaz de realizar o que não realizou. Mas, embora possa ser devedor de seus amigos por sua boa opinião, julgar-se-ia culpado da maior baixeza, caso não os desiludisse imediatamente. Proporciona-lhe pouco prazer ver-se sob a luz em que outros realmente o vêem, quando está consciente de que, se soubessem a verdade, olhariam para ele sob uma luz bem diferente. Um homem fraco, porém, não raro se deleita imensamente vendo-se sob essa luz falsa e ilusória. Presume do mérito de toda ação louvável que lhe é atribuída, e muitas vezes reclama o que ninguém jamais pensou em lhe atribuir. Reclama ter feito o que nunca fez, ter escrito o que um outro escreveu, ter inventado o que outro descobriu, sendo assim conduzido a todos os miseráveis vícios do plágio e da mentira vulgar. No entanto, ainda que nenhum homem de mediano bom-senso possa extrair muito prazer da imputação de uma ação louvável que nunca realizou, um homem sábio pode sofrer grande dor com a séria imputação de um crime que nunca cometeu. Nesse caso, a natureza não apenas tornou a dor mais pungente do que o prazer oposto e correspondente, mas fez isso em um grau muito superior ao comum. Uma negação imediatamente livra o homem do prazer tolo e ridículo, mas nem sempre o livrará da dor. Quando recusa o mérito que lhe atribuem, ninguém duvida de sua veracidade. Pode-se duvidar quando nega o crime de que o acusam. A um só tempo enraivece-o a falsidade da imputação, e mortifica-o descobrir que se deu algum crédito a tal imputação. Percebe que seu caráter não basta para o proteger. Percebe que seus irmãos, em vez de o verem sob a luz em que deseja ardorosamente ser visto, julgam-no capaz de ser culpado daquilo de que o acusam. Sabe perfeitamente que não foi culpado; sabe perfeitamente o que fez; talvez, contudo, quase ninguém saiba perfeitamente o que ele próprio é capaz de fazer. O que a constituição peculiar de seu espírito pode ou não permitir é talvez questão mais ou menos duvidosa para qualquer um. A confiança e boa opinião dos amigos e vizinhos tendem, mais do que tudo, a aliviá-lo desta dúvida tão desagradável; sua desconfiança e opinião desfavorável tendem a aumentá-la. Pode-se julgar muito confiante de que esse julgamento desfavorável está errado; mas essa confiança raramente é tão grande que impeça tal julgamento de impressioná-lo; e quanto maior sua sensibilidade, sua delicadeza, sua dignidade, tanto maior será, provavelmente, essa impressão.

Deve-se observar que o acordo ou o desacordo quer dos sentimentos, quer dos juízos de outras pessoas com os nossos é, em todos os casos, de maior ou menor importância para nós, na proporção exata em que nós mesmos estamos mais ou menos inseguros quanto à conveniência de nossos sentimentos e quanto à precisão de nossos próprios juízos. Às vezes um homem sensível pode sentir grande desconforto ao recear que cedera demasiadamente até mesmo àquilo a que chamaríamos paixão honrada, isto é, à sua justa indignação ante a ofensa que talvez se tenha perpetrado ou contra ele ou contra seu amigo. Apreensivo, receia que, ao pretender apenas agir com inteligência e fazer justiça, por causa da grande violência de sua emoção tenha cometido uma ofensa verdadeira contra uma outra pessoa, a qual, embora não seja inocente, talvez não fosse tão culpada como de início pensara. A opinião de outras pessoas adquire, nesse caso, a maior importância para ele. Sua aprovação é o bálsamo mais curativo; sua desaprovação, o mais amargo e torturante veneno que se possa despejar em seu perturbado espírito. Quando está perfeitamente satisfeito com cada fração de sua própria conduta, o juízo que outros façam é freqüentemente de menor importância para ele.

Há algumas artes muito belas e nobres nas quais o grau de excelência pode ser determinado unicamente por meio de certo requinte de gosto, cujas decisões, porém, sempre se mostram em certa medida incertas. Outras há em que o sucesso permite uma demonstração clara ou uma prova muito satisfatória. Entre as candidatas à excelência nessas diferentes artes, a preocupação quanto à opinião pública é sempre muito maior nas primeiras do que nas últimas.

A beleza da poesia é assunto de tal requinte, que um jovem iniciante quase jamais está seguro de tê-la alcançado. Nada o deleita mais, portanto, do que os juízos favoráveis de seus amigos e do público; e nada o mortifica tão severamente quanto o contrário. Um firma, o outro abala, a boa opinião que ansiosamente deseja cultivar sobre seu próprio desempenho. Experiência e êxito com o tempo podem dar-lhe um pouco mais de confiança em seu próprio juízo. Mas, em todos os momentos, está sujeito a ficar gravemente mortificado pelos juízos desfavoráveis do público. A Racine desgostou tanto a indiferente acolhida de sua Fedra, talvez a melhor tragédia já existente em qualquer idioma, que, embora estivesse no vigor de seus anos e no auge de suas habilidades, decidiu-se a nunca mais escrever para o palco. Esse grande poeta costumava dizer a seu filho que a dor que a crítica mais mesquinha e tola lhe causava era superior ao prazer que o maior e mais justo elogio lhe proporcionava. A extrema sensibilidade de Voltaire à menor censura dessa espécie é bem conhecida por todos. A Duncíad de Pope é um monumento perene de quanto o mais correto, mais elegante e harmonioso dos poetas ingleses ficou magoado pelas críticas dos mais baixos e desprezíveis autores. Gray (que reúne à sublimidade de Milton a elegância e harmonia de Pope, e para quem nada falta para se tornar talvez o primeiro poeta da língua inglesa, exceto ter escrito um pouco mais) ficou, segundo se diz, tão magoado com uma paródia tola e impertinente de duas de suas melhores odes, que depois disso nunca mais tentou nenhuma obra considerável. Em alguma medida, os homens de letras que valorizam a si próprios pelo que se chama a bela escrita em prosa aproximam-se da sensibilidade dos poetas.

Ao contrário, os matemáticos, que podem adquirir a mais perfeita certeza da verdade e da importância de suas descobertas, freqüentemente são muito indiferentes quanto à recepção que venham a ter do público. Os dois maiores matemáticos que já tive a honra de conhecer, e creio eu, os maiores que viveram em meu tempo, o Dr. Robert Simpson de Glasgow, e o Dr. Matthew Stewart de Edimburgo, nunca deram mostras de se perturbar minimamente com a negligência com que a ignorância do público recebeu alguns de seus trabalhos mais valiosos. A grande obra de Sir Isaac Newton, seus Princípios matemáticos da filosofia natural, foi negligenciada pelo público durante muitos anos, segundo me disseram. É provável que por essa razão a tranqüilidade desse grande homem jamais tenha sofrido a interrupção de um quarto de hora sequer. Filósofos da natureza, em sua independência em relação à opinião pública, aproximam-se bastante dos matemáticos, e em seus juízos quanto ao mérito de suas próprias descobertas e observações gozam de algum grau da mesma segurança e serenidade.

A moral dessas diferentes classes de homens de letras talvez seja às vezes um tanto afetada por essa grande diferença de sua situação com relação ao público.

Matemáticos e filósofos da natureza, graças à sua independência com relação à opinião pública, têm pouca tentação de reunirem-se em facções e seitas, seja para apoiar sua própria reputação, seja para reduzir a de seus rivais. São quase sempre homens de grande simplicidade nas maneiras, vivendo em boa harmonia entre si, amigos da reputação um do outro, que não participam de intriga para garantir o aplauso público, embora gostem de ver suas obras aprovadas, sem ficarem nem muito vexados, nem muito irados, quando são negligenciados. O mesmo nem sempre ocorre, quando se trata de poetas, ou os que se valorizam pelo que se chama bela prosa. Tendem bastante a se dividir em certas facções literárias, muitas vezes cada seita é abertamente, e quase sempre secretamente, inimiga mortal da reputação de todas as outras, e emprega todas as malignas artes da intriga e do apelo para previamente conquistar a opinião pública em favor das obras de seus próprios membros, contra as de seus inimigos e rivais. Na França, Despreaux e Racine não acharam indigno de si mesmo colocar-se à frente de uma seita literária, para rebaixar a reputação, primeiro de Quinault e Perrault, depois de Fontenelle e La Motte, e até mesmo para tratar o bom La Fontaine com uma sorte da mais desrespeitosa amizade. Na Inglaterra, o amável Sr. Addison não achou indigno de seu caráter gentil e modesto pôr-se à frente de uma pequena seita do mesmo tipo para aviltar a ascendente reputação do Sr. Pope. O Sr. Fontenelle, ao escrever sobre as vidas e caracteres dos membros da academia de ciências, uma sociedade constituída de matemáticos e filósofos da natureza, tem seguidas oportunidades de celebrar a amável simplicidade de suas maneiras, uma qualidade que, observa, era tão universal entre esses homens que mais parecia característica de toda uma classe de homens de letras do que de um indivíduo. O Sr. D’Alembert, ao escrever sobre as vidas e caracteres dos membros da Academia Francesa, uma sociedade constituída de poetas e escritores, ou dos que deveriam ser, não revela ter tido essas mesmas seguidas oportunidades de fazer qualquer comentário desse tipo, e em nenhum lugar pretende representar essa amável qualidade como característica da classe de homens de letras a quem celebra.

A incerteza quanto a nosso próprio mérito, somada à preocupação em julgá-lo favoravelmente, naturalmente bastam para que desejemos conhecer a opinião de outras pessoas a esse respeito, para estarmos mais animados que o habitual, se essa opinião é favorável, e mais mortificados quando não é. No entanto, não deveriam nos deixar desejosos de obter a opinião favorável ou evitar a desfavorável por meio de intriga e conspiração. Quando um homem subornou todos os juízes, a mais unânime decisão do tribunal não lhe pode dar nenhuma certeza de que agiu em conformidade com o direito, embora possa fazê-lo ganhar seu processo; e se conduziu esse processo apenas para comprovar que agira legitimamente, jamais teria subornado os juízes. Mas, embora desejasse ter assegurado seu direito, também queria ganhar seu processo, e por essa razão subornou os juízes. Se o louvor fosse relevante para nós apenas como prova de que somos louváveis, jamais nos esforçaríamos para obtê-lo por meios desleais. Porém, ainda que para homens sábios o louvor tenha, pelo menos em casos duvidosos, cardeal relevância por essa razão, também tem relevância por si mesmo; e portanto homens muito acima do nível comum (nessas ocasiões, não podemos de fato chamá-los sábios) por vezes tentaram, por meios muito desleais, conquistar louvor e evitar censura.

Louvor e censura expressam o que realmente são; ser louvável e censurável, o que naturalmente deveriam ser os sentimentos dos outros em relação a nosso caráter e conduta. O amor ao louvor é o desejo de obter os sentimentos favoráveis de nossos irmãos. O amor a ser louvável é o desejo de nos convertermos em objetos apropriados desses sentimentos. Assim, esses dois princípios se assemelham e se relacionam. A mesma afinidade e semelhança ocorre entre o horror à censura e a ser censurável.

O homem que deseja praticar ou realmente pratica uma ação louvável pode igualmente desejar o louvor que é devido à ação, e às vezes talvez mais do que o devido. Nesse caso, os dois princípios se mesclam um ao outro. Em que medida sua conduta foi determinada por um, e em que medida foi determinada pelo outro, eis o que freqüentemente ele mesmo desconhece. Quase sempre os outros tampouco sabem. Os que estão predispostos a diminuir o mérito de sua conduta imputam-na principal ou inteiramente ao mero amor ao louvor, ou ao que chamam mera vaidade. Os que se inclinam a considerá-la de modo mais favorável imputam-na principal ou inteiramente ao amor a ser louvável, ao amor ao que é realmente honroso e nobre na conduta humana; não apenas ao desejo de obter, mas ao de merecer a aprovação e aplauso de seus irmãos. A imaginação do espectador confere a essa conduta uma cor ou outra, quer segundo seus hábitos de pensamento, quer conforme ao favor ou desgosto que possa guardar pela pessoa cuja conduta está considerando.

Ao julgar a natureza humana, alguns filósofos biliosos portaram-se como pessoas irritadiças tendem a se portar quando julgam a conduta umas das outras, imputando ao amor ao louvor, ou ao que chamam vaidade, toda ação a que deveria ser atribuído o amor ao que é louvável. Mais adiante terei ocasião de descrever alguns de seus sistemas, e por essa razão não me detenho por ora a examiná-los.

Muito poucos homens podem estar convencidos em sua própria consciência privada de ter alcançado as qualidades, ou realizado as ações que admiram e julgam louváveis em outras pessoas, a não ser que ao mesmo tempo se reconheça amplamente que possuem uma ou realizaram a outra. Ou, em outras palavras, a menos que tenham realmente obtido o louvor que julgam devido tanto a uma quanto a outra. Nesse aspecto, contudo, os homens diferem consideravelmente uns dos outros. Alguns parecem indiferentes ao louvor, se em seu espírito estão perfeitamente convencidos de se ter tornado louváveis. Outros parecem muito menos preocupados quanto a ser louvável do que quanto ao louvor.

Nenhum homem pode estar completamente ou até toleravelmente convencido de ter evitado tudo que há de censurável em sua conduta, salvo se igualmente tiver evitado a censura ou a repreensão. Um homem sábio pode freqüentemente negligenciar o louvor, mesmo quando mais o mereceu; porém, em todos os assuntos de graves conseqüências, esforçar-se-á, com grande diligência, para regular sua conduta e assim evitar não apenas ser digno de censura mas, tanto quanto possível, toda provável imputação de censura. Com efeito, jamais evitará a censura fazendo algo que julgue censurável, deixando de cumprir qualquer parte de seu dever, ou negligenciando qualquer oportunidade de praticar algo que julgue real e grandemente louvável. Com todas essas modificações, evitará forçosa e diligentemente a censura. Demonstrar preocupação com o louvor, ou até com ações louváveis, raramente é marca de grande sabedoria, ao contrário, em geral revela algum grau de fraqueza. Mas pode não haver fraqueza alguma em preocupar-se em evitar a sombra da censura ou repreensão, ao contrário, isso revela freqüentemente a mais louvável prudência.

“Uma censura injusta”, diz Cícero, “mortifica mais gravemente, e de modo demasiado inconsistente, os que desprezam a glória.” Essa inconsistência, porém, parece fundar-se nos inalteráveis princípios da natureza humana.

Dessa maneira, o sapientíssimo Autor da natureza ensinou o homem a respeitar os sentimentos e juízos de seus irmãos; a ficar mais ou menos contente quando aprovam sua conduta, e mais ou menos magoado quando a desaprovam. Fez o homem, se me permitem a expressão, juiz imediato da humanidade; e a esse respeito, como em muitos outros, criou-o à sua própria imagem, indicando-o como seu vice-rei na terra, para supervisionar o comportamento de seus irmãos. A natureza os ensina a reconhecer o poder e jurisdição que assim foi conferido ao homem, e a ficar mais ou menos humilhados e mortificados quando incorrem em sua censura, e mais ou menos exultantes quando obtêm seu aplauso.

Mas, ainda que dessa maneira o homem se torne juiz imediato da humanidade, isso se deve apenas a uma decisão de primeira instância; dessa sentença cabe apelação para um tribunal superior, o tribunal de suas próprias consciências, o tribunal do espectador supostamente imparcial e esclarecido, do homem dentro do peito – o grande juiz e árbitro de suas condutas. As jurisdições desses dois tribunais se fundam sobre princípios que, embora em alguns aspectos pareçam semelhantes e guardem alguma vinculação entre si, na realidade são diferentes e separados. A jurisdição do homem exterior (without) funda-se inteiramente no desejo do real louvor, e na aversão à real censura. A jurisdição do homem interior (within) funda-se inteiramente no desejo de ser louvável e na aversão a ser censurável; no desejo de possuir as qualidades e praticar as ações que amamos e admiramos em outras pessoas; e no horror a possuir as qualidades e praticar as ações que odiamos e desprezamos em outras pessoas. Se o homem exterior nos aplaude, ou por ações que não praticamos, ou por motivos que não nos influenciaram, o homem interior imediatamente sujeita o orgulho e exaltação do espírito que do contrário essas infundadas aclamações poderiam ocasionar, dizendo-nos que, por nós sabermos não as merecer, tornar-nos-emos desprezíveis se as aceitarmos. Se, ao contrário, o homem exterior nos repreende ou por ações que nunca praticamos ou por motivos que não tiveram influência sobre as ações que talvez tenhamos praticado, o homem interior imediatamente corrige esse falso juízo, assegurando-nos de que não somos, de modo algum, objetos apropriados da censura que sobre nós foi exercida de modo tão injusto. Nesse e em alguns outros casos, porém, o homem interior parece por vezes como estupefato e confuso pela veemência e o clamor do homem exterior. A violência e o alarido com que às vezes a censura é despejada sobre nós parecem embrutecer e embotar nosso senso natural do que é louvável ou censurável e, assim, os julgamentos do homem interior, ainda que talvez não se tenham absolutamente alterado ou pervertido, ficam tão abalados na constância e firmeza de suas decisões, que seu efeito natural de assegurar tranqüilidade ao espírito é freqüentemente em grande medida destruído. Mal nos atrevemos a absolver a nós mesmos, quando todos os nossos irmãos parecem nos condenar clamorosamente. O suposto espectador imparcial de nossa conduta parece dar sua opinião em nosso favor com medo e hesitação, quando a opinião de todos os espectadores reais, a de todos por cujos olhos e de cuja posição esforça-se por considerá-la é unânime e violentamente contrária a nós. Nesses casos, esse semideus dentro do peito, como os semideuses dos poetas, parece descender parte de imortais e parte, todavia, de mortais. Quando seus juízos são firme e constantemente governados pelo senso do que é louvável e do que é censurável, parece agir conforme sua ascendência divina; mas quando se deixa entorpecer e confundir pelos juízos do homem fraco e ignorante, revela seu parentesco com a mortalidade, e parece agir em conformidade com a parte humana de sua origem, não com a divina.

Em tais casos, o único consolo eficaz do homem humilhado e aflito repousa num apelo a um tribunal ainda mais superior, o Juiz onisciente, cujo olho jamais pode ser enganado, e cujos julgamentos jamais podem ser pervertidos. Apenas a confiança firme na retidão infalível desse grande tribunal, diante do qual sua inocência será pronunciada no tempo devido e sua virtude finalmente recompensada, pode ampará-lo diante da fraqueza e desalento de seu espírito, da perturbação e perplexidade do homem que vive em seu peito, a quem a natureza instaurou com o grande guardião, desta vida, não apenas de sua inocência, mas de sua serenidade. Assim, em muitas ocasiões nossa felicidade nesta vida depende da humilde esperança e expectativa de uma vida vindoura, esperança e expectativa essas que, por se enraizarem na natureza humana, são as únicas a poderem amparar suas nobres idéias sobre a sua própria dignidade, a iluminarem a assustadora perspectiva da mortalidade que se aproxima continuamente, e a manter em sua alegria sob as mais graves calamidades a que pode se expor por causa das desordens desta vida. Que existe um mundo vindouro, onde se fará perfeita justiça a cada homem, onde todos serão equiparados aos que são realmente seus iguais em qualidades morais e intelectuais; onde, por sofrer os reveses da fortuna, o dono desses humildes talentos e virtudes que não tivera, nesta vida, ocasião de exibi-los, ocultando-os do público e de si mesmo, pois não estava certo de possuí-los e tampouco o homem de dentro do seu peito aventurou-se a dar testemunho claro e distinto delas; digo, onde esse mérito modesto, silencioso e desconhecido será colocado no mesmo patamar, e talvez até acima, daqueles que neste mundo gozaram da maior reputação e, pela vantagem de sua situação, conseguiram praticar as ações mais esplêndidas e deslumbrantes: tudo isso constitui uma doutrina em geral tão venerável, tão reconfortante para a fraqueza, tão lisonjeira para a grandeza da natureza humana, que o homem virtuoso, se tiver o infortúnio de dela duvidar, possivelmente não pode evitar de desejar, do modo o mais determinado e ardente, de nela acreditar. Tal doutrina nunca teria sido exposta ao riso dos zombadores, não fosse a distribuição de recompensas e castigos – que seria feita no mundo vindouro, segundo nos ensinaram alguns de seus mais zelosos defensores – tão freqüentemente avessa a todos os nossos sentimentos morais.

Que muitas vezes se favorece mais o cortesão assíduo do que o servidor ativo e fiel; que muitas vezes servilidade e adulação são caminhos mais curtos e seguros para os privilégios do que mérito ou préstimo; e que muitas vezes uma campanha em Versalhes ou St. James vale duas na Alemanha ou Flandres, é queixa que todos ouvimos de muitos antigos oficiais, veneráveis mas descontentes. No entanto, considera-se que a maior repreensão, mesmo à fraqueza dos soberanos terrenos, deva ser atribuída, como ato de justiça, à perfeição divina; e os deveres da devoção, o culto público e privado da Divindade, têm sido representados, até por homens de virtude e habilidades, como as únicas virtudes que podem ou dar direito a recompensa, ou eximir de punição na vida vindoura. Talvez fossem virtudes mais adequadas à condição que ocupavam, e nas quais principalmente eles próprios se tenham excedido, pois todos estamos naturalmente inclinados a superestimar as excelências de nossos próprios caracteres. No discurso que pronunciou o eloqüente e filosófico Marsillon, abençoando os estandartes do regimento de Catinat, há o seguinte recado aos oficiais: “O mais deplorável em vossa situação, cavalheiros, é que, numa vida dura e dolorosa, em que os serviços e deveres às vezes vão além do rigor e severidade dos mais austeros conventos, vós sofrereis sempre em vão pela vida vindoura, e freqüentemente até mesmo por esta vida. Hélas! O monge solitário em sua cela, obrigado a mortificar a carne e sujeitá-la ao espírito, é amparado pela esperança de uma recompensa certa e pela secreta unção da graça que suaviza o jugo do Senhor. Mas vós, no leito de morte, podeis atrever-vos a apresentar-lhe vossas fadigas e as durezas diárias de vosso cargo? Podeis ousar solicitar-lhe qualquer recompensa? E em todas as ações que tendes feito, em todas as violências que tendes cometido contra vós próprios, o que Ele deveria pesar? Os melhores dias de vossas vidas, porém, foram sacrificados à vossa profissão, e dez anos de serviço exauriu mais vossos corpos do que talvez uma vida inteira de arrependimento e mortificação. Hélas! Meu irmão, um só dia de sofrimentos consagrado ao Senhor talvez vos tivesse obtido uma felicidade eterna. Uma só ação, dolorosa para a natureza, e ofertada a Ele, talvez vos tivesse assegurado a herança dos santos. E fizestes tudo isso, em vão, por este mundo.”

Comparar dessa maneira as fúteis mortificações do monastério com as enobrecedoras durezas e riscos da guerra; supor que um dia ou uma hora empregadas nas primeiras seriam, aos olhos do Grande Juiz do mundo, mais meritórios do que uma vida inteira passada honravelmente nas últimas é certamente contrário a todos os nossos sentimentos morais, e a todos os princípios pelos quais a natureza nos ensinou a regrar nosso desprezo ou nossa admiração. Porém, é esse espírito que, enquanto reservou as legiões celestiais para monges e frades ou para aqueles cuja conduta e conversa parecem às dos monges e frades, condenou ao inferno todos os heróis, todos os estadistas e legisladores, todos os poetas e filósofos de épocas antigas, todos os que inventaram, melhoraram as artes que contribuem para a subsistência, o conforto, os ornamentos da vida humana ou que nelas se sobressaem; todos os grandes protetores, instrutores e benfeitores da humanidade; todos aqueles a quem nosso natural senso do que é louvável força a atribuir o maior mérito e a mais elevada virtude. Podemos nos admirar de que uma aplicação tão estranha dessa respeitabilíssima doutrina por vezes a tenha exposto a desdém e ridículo, juntamente com os que talvez ao menos não tiveram grande gosto ou inclinação para as virtudes devotas e contemplativas?


 
CAPÍTULO III Da influência e autoridade da consciência
Ainda que a aprovação de sua própria consciência mal consiga, em ocasiões extraordinárias, contentar a fraqueza do homem, ainda que o testemunho do suposto espectador imparcial, do grande habitante do peito humano, nem sempre consiga, por si só, dar-lhe guarida, a influência e autoridade desse princípio é, em todas as ocasiões, enorme; e é apenas consultando esse juiz interior que poderemos ver o que nos diz respeito em sua forma e dimensões apropriadas; ou que poderemos estabelecer uma comparação apropriada entre nossos interesses e os de outras pessoas.

No que se refere ao olho do corpo, os objetos se apresentam grandes ou pequenos, não tanto conforme suas reais dimensões, mas conforme a proximidade ou distância em que se encontram; o mesmo ocorre com o que se pode chamar o olho natural do espírito; e remediamos os defeitos desses dois órgãos de modo bastante parecido. No lugar em que me encontro agora, uma imensa paisagem de campinas, bosques e montanhas distantes parece apenas cobrir a pequena janela junto da qual escrevo, e ser desproporcionalmente menor do que o quarto em que estou. Posso estabelecer uma justa comparação entre os grandes e pequenos objetos ao meu redor, tão-somente me transportando, ao menos na imaginação, a uma posição diferente, de onde posso examinar ambos a distâncias quase iguais, e assim formar algum juízo de sua real proporção. O hábito e a experiência ensinaram-me a fazer isso tão fácil e tão prontamente que mal me dou conta de que o faço; e um homem deve estar, em certa medida, familiarizado com a filosofia da visão, antes de se convencer inteiramente de quão pequenos aqueles objetos se apresentariam ao olho, se a imaginação, tendo conhecimento de suas reais magnitudes, não os fizesse inchar e dilatar-se.

Da mesma maneira, para as paixões egoístas e originárias da natureza humana, a perda ou ganho de um exíguo interesse particular se mostra de importância muito mais ampla, suscita uma alegria ou dor muito mais apaixonada, um desejo ou aversão muito mais ardente, do que a maior preocupação de outrem, com quem não temos nenhuma relação específica. Seus interesses, na medida em que são examinados de sua posição, nunca poderão ser contrabalançados aos nossos, nunca nos impedirão de fazer o que possa ajudar a promover os nossos próprios interesses, por mais ruinoso que isso seja para ele. Antes de podermos fazer uma comparação apropriada entre esses interesses opostos, devemos mudar nossa posição. Não podemos vê-los de nosso lugar, nem tampouco do dele nem com nossos olhos, nem, todavia, com os dele. É preciso vê-los do local e com os olhos de uma terceira pessoa, que não tenha nenhuma relação particular com algum de nós, e que nos julgue com imparcialidade. Também aqui, hábito e experiência nos ensinaram a fazer isso tão fácil e prontamente, que mal nos damos conta de que o fazemos; também nesse caso, é necessário algum grau de reflexão, e até de filosofia, para nos convencer de quão pouco interesse teríamos pelas maiores preocupações de nosso vizinho, de quão pouco seríamos afetados por tudo o que a ele se relaciona, se o senso de conveniência e justiça não corrigisse a desigualdade de nossos sentimentos, que de outra maneira seria natural.

Suponhamos que o grande império da China, com suas miríades de habitantes, fosse subitamente engolido por um terremoto, e imaginemos como um humanitário na Europa, sem qualquer ligação com aquela parte do mundo, seria afetado ao receber a notícia dessa terrível calamidade. Imagino que, antes de tudo, expressaria intensamente sua tristeza pela desgraça de todos esses infelizes, faria muitas reflexões melancólicas sobre a precariedade da vida humana e a vacuidade de todos os labores humanos, que num instante puderam ser aniquilados. Além disso, se fosse um homem especulativo, talvez ponderasse muitos raciocínios sobre os efeitos que esse desastre poderia produzir no comércio da Europa em particular, e nas transações e negócios do mundo em geral. E quando toda essa bela filosofia tivesse acabado, quando todos esses sentimentos humanos tivessem encontrado sua expressão definitiva, continuaria seus negócios ou seu prazer, teria seu repouso ou sua diversão, com o mesmo relaxamento e tranqüilidade que teria se tal acidente não tivesse ocorrido. O mais frívolo desastre que se abatesse sobre ele causaria uma perturbação mais real. Se perdesse o dedo mínimo de manhã, não dormiria de noite; mas desde que nunca os visse, roncaria na mais profunda serenidade ante a ruína de centenas de milhares de seus irmãos. E a destruição dessa imensa multidão parece claramente apenas um objeto menos interessante do que seu reles infortúnio particular. Para evitar, portanto, esse reles infortúnio, um humanitário estaria disposto a sacrificar as vidas de centenas de milhares de irmãos seus, desde que nunca os tivesse visto? A natureza humana fica atônita de horror em face de tal idéia, e em sua maior depravação e corrupção o mundo jamais produziu um vilão que fosse capaz de cultivar esses pensamentos. Mas o que causa essa diferença? Se nossos sentimentos passivos são quase sempre tão sórdidos e egoístas, como ocorre que nossos princípios ativos sejam freqüentemente tão generosos e nobres? Se sempre somos mais profundamente afetados pelo que interessa a nós mesmos do que pelo que diz respeito aos outros homens, o que leva os generosos, em todas as ocasiões, e os maus em muitas, a sacrificar seus próprios interesses pelos interesses maiores de outros? Não é, então, o brando poder da humanidade, não é a débil centelha de benevolência que a natureza acendeu no coração humano, o que pode resistir aos mais fortes impulsos do amor de si. É um poder mais forte, um motivo mais convincente, que nessas ocasiões se põe em ação. É a razão, o princípio, a consciência, o habitante do peito, o homem interior, o grande juiz e árbitro de nossa conduta. É ele que, sempre que estamos por agir, de modo a afetar a felicidade alheia, grita para nós, com uma voz capaz de deixar estupefata as nossas mais presunçosas paixões, que somos apenas um na multidão, em nada melhores do que qualquer outro indivíduo; que, ao nos preferirmos aos outros tão vergonhosa e cegamente, nos tornamos objetos apropriados de ressentimento, horror e execração. É apenas com ele que aprendemos nossa verdadeira pequenez, a de tudo o que nos diz respeito, pois unicamente o olho desse espectador imparcial pode corrigir as falsas representações do amor de si. É ele que nos mostra a conveniência da generosidade e a deformação da injustiça; a conveniência de se renunciar aos nossos maiores interesses particulares em favor dos ainda maiores interesses de outros; e a deformidade de causar a outro a menor ofensa, a fim de obter maior benefício para nós mesmos. Não é o amor ao nosso próximo, não é o amor à humanidade, o que nos motiva, em muitas ocasiões, a praticar as virtudes divinas. É um amor mais forte, um afeto mais poderoso, o que geralmente tem lugar nessas ocasiões: o amor ao que é honrado e nobre, à grandeza, dignidade e superioridade de nossos próprios caracteres.

Quando de alguma maneira a felicidade ou desgraça de outros depende de nossa conduta, não ousamos, como talvez sugira amor de si, a preferir o interesse de um aos de tantos. O homem interior nos grita que nos estimamos demais e a outras pessoas de menos, e que, ao fazer isso, convertemo-nos em objeto apropriado do desprezo e indignação de nossos irmãos. Tampouco esse sentimento se restringe a homens de extraordinária magnanimidade e virtude. Está profundamente inscrito em todo soldado razoavelmente bom, o qual sente que seria ridicularizado por seus camaradas se o imaginassem capaz de recuar diante do perigo ou de hesitar em se expor ou perder a vida, quando o bem do seu serviço o exigisse.

Um indivíduo nunca deve se preferir tanto a outro a ponto de ferir ou prejudicar esse outro para beneficiar a si mesmo, ainda que o benefício de um fosse muito maior do que a dor ou prejuízo de outro. O homem pobre não deve defraudar nem roubar o rico, embora a aquisição possa beneficiar muito mais a um do que a perda poderia prejudicar a outro. O homem interior imediatamente lhe grita, também neste caso, que não é melhor que seu vizinho, e que, por causa de sua preferência injusta, converte-se em objeto apropriado de desprezo e indignação da humanidade, bem como da punição que esse desprezo e indignação deve naturalmente predispô-los a infligir, por ter assim violado uma das regras sagradas, de cuja razoável observação depende toda a segurança e paz da sociedade humana. Não há homem habitualmente honesto que não tema mais a desgraça interna de tal ação, a indelével nódoa que imporia para sempre em seu espírito, do que a maior calamidade exterior que, sem nenhuma culpa sua, pudesse se abater sobre ele. Não há homem habitualmente honesto que não sinta internamente a verdade daquela grande máxima estóica, segundo a qual para um homem, privar injustamente outro de qualquer coisa, ou promover injustamente sua própria vantagem pela perda ou desvantagem de outro, é mais contrário à natureza do que a morte, a pobreza, a dor, todos os infortúnios que o possam afetar, seja no corpo, seja nas circunstâncias externas.

Com efeito, quando a felicidade ou desgraça de outros em nenhum aspecto depende de nossa conduta; quando nossos interesses estão inteiramente separados e apartados dos deles, de modo que não haja nenhuma relação ou competição entre eles, nem sempre julgamos necessário conter, por um lado, nossa preocupação natural – e talvez inadequada – quanto a nossos próprios problemas, ou, por outro, nossa natural – e talvez igualmente inadequada – indiferença pelos problemas de outros homens. A mais vulgar educação nos ensina a agir, em todas as ocasiões importantes, com alguma espécie de imparcialidade entre nós e outros, e até mesmo o ordinário comércio deste mundo é capaz de ajustar nossos princípios ativos a algum grau de conveniência. Mas somente a educação mais artificial e refinada, dizem, pode corrigir as desigualdades de nossos sentimentos passivos; e, com esse propósito, alega-se que devamos recorrer à mais grave, bem como à mais profunda filosofia.

Dois diferentes grupos de filósofos tentaram ensinar-nos essa lição de moral, a mais dura de todas. Um grupo se empenhou em aumentar nossa sensibilidade pelos interesses de outros; o outro, em diminuir nossa sensibilidade por nossos próprios interesses. Para o primeiro, deveríamos sentir pelos outros o que naturalmente sentimos por nós. Para o segundo, deveríamos sentir por nós mesmos o que naturalmente sentimos pelos outros. Ambos, talvez, tenham levado suas doutrinas muito além do justo padrão da natureza e da conveniência.

Os primeiros são os moralistas lamuriantes e melancólicos que perpetuamente nos recriminam pela nossa felicidade, enquanto tantos de nossos irmãos estão na desgraça, que consideram igualmente ímpia a natural alegria pela prosperidade, a qual não leva em conta os muitos desgraçados que trabalham sob toda a sorte de calamidades, no langor da pobreza, na agonia da enfermidade, nos horrores da morte, sob os insultos e opressão de seus inimigos. Julgam que a comiseração por essas desgraças que nunca vimos, de que nunca tivemos notícia, mas que, podemos estar seguros, a todo momento infestam tantos de nossos semelhantes, deveria impregnar os prazeres dos afortunados, e tornar habitual a todos os homens certo melancólico desalento. Porém, antes de tudo, essa extremada solidariedade para com infortúnios dos quais nada sabemos parece inteiramente absurda e insensata. Tomemos toda a Terra como média: para um homem que sofre dor ou miséria haverá vinte prósperos e alegres ou, pelo menos, vivendo em circunstâncias suportáveis. Certamente não se pode dar razão pela qual deveríamos antes chorar com um, do que nos alegrarmos com vinte. Essa comiseração artificial, ademais, não é apenas absurda, mas parece inteiramente inatingível, e os que afetam esse caráter comumente nada têm, senão certa tristeza afetada e sentimental que, sem atingir o coração, serve apenas para tornar o semblante e a conversa impertinentemente desanimados e desagradáveis. E, finalmente, essa disposição do espírito, posto que alcançada, seria perfeitamente inútil, e não serviria a outro propósito, que não tornar miserável a pessoa que a possuísse. Seja qual for nosso interesse pela fortuna daqueles com quem não temos familiaridade nem ligação, ou com quem está situado completamente fora da nossa esfera de atividade, só pode produzir inquietação em nós, sem qualquer vantagem para eles. Qual a finalidade de nos atormentarmos com o mundo na lua? Todos os homens, mesmo os que estão à maior distância, sem dúvida têm direito a nossos votos de felicidade, e nossos votos de felicidade naturalmente desejamos a todos. Mas, a despeito disso, se forem infelizes, não parece fazer parte de nosso dever inquietarmo-nos por essa razão. Termos pouco interesse, portanto, na fortuna daqueles a quem não podemos nem servir nem ferir, e que em todo o sentido estão muito remotos de nós, parece ser sabiamente ordenado pela Natureza; e se fosse possível alterar nesse aspecto a constituição original de nossa estrutura, mesmo assim nada poderíamos ganhar com essa mudança.

Nunca nos objetam que temos muito pouca solidariedade para com a alegria do êxito. Sempre que a inveja não a impede, a boa-vontade que demonstramos para com a prosperidade tende a ser imensa; e os mesmos moralistas que nos censuram por falta de suficiente simpatia com os desgraçados nos recriminam pela leviandade com que tendemos a admirar, e quase a venerar, os afortunados, os poderosos e os ricos.

Entre os moralistas que se esforçam para corrigir a desigualdade natural de nossos sentimentos passivos, diminuindo nossa sensibilidade pelo que particularmente nos diz respeito, podemos registrar todas as antigas seitas de filósofos, mais especificamente os antigos estóicos. Segundo os estóicos, o homem deve considerar-se não como algo separado e apartado, mas como cidadão do mundo, membro da vasta república da natureza. Pelo interesse dessa grande comunidade, deveria estar disposto, em todos os momentos, a sacrificar seu pequeno interesse particular. O que quer que diga respeito a si mesmo não deveria afetá-lo mais do que o que diz respeito a qualquer outra parte igualmente importante desse imenso sistema. Deveríamos nos ver, não sob a luz em que nossas próprias paixões egoístas tendem a nos colocar, mas sob a luz em que qualquer outro cidadão do mundo nos veria. Deveríamos considerar o que nos acomete como o que acomete o nosso vizinho, ou, o que dá no mesmo, como nosso vizinho considera o que nos acomete. Epíteto diz: “Quando teu próximo perde a esposa ou o filho, ninguém há que não perceba que essa é uma calamidade humana, evento natural inteiramente conforme o curso ordinário das coisas; mas quando a mesma coisa acontece conosco, então gritamos como se tivéssemos sofrido o mais terrível infortúnio. Devemos lembrar, porém, como fomos afetados quando esse acidente aconteceu com outro, e reagir em nosso caso do mesmo modo como reagimos no dele.”

Esses infortúnios particulares, pelos quais nossos sentimentos tendem a exceder os limites da conveniência, são de duas diferentes espécies. Ou são tais que nos afetam apenas indiretamente, por afetarem em primeiro lugar algumas outras pessoas que nos são especialmente caras, como nossos pais, filhos, nossos irmãos e irmãs, nossos amigos íntimos; ou são tais que afetam a nós mesmos, imediata e diretamente, em nosso corpo, ou fortuna, ou em nossa reputação, como dor, enfermidade, a proximidade da morte, pobreza, desgraça, etc.

Sem dúvida, em infortúnios da primeira espécie, nossas emoções podem ir muito além do que a exata conveniência permitiria; mas também podem ficar aquém disso, o que freqüentemente ocorre. O homem que não sentisse mais a morte ou aflição de seu próprio pai ou filho, do que a do pai ou filho de qualquer outro homem, não demonstraria ser nem bom pai, nem bom filho. Tal indiferença antinatural, longe de suscitar nosso aplauso, incorreria na nossa maior desaprovação. Entre os afetos domésticos, entretanto, alguns tendem a ofender por excesso, outros por falta. Para os mais sábios fins, a natureza converteu na maioria dos homens, talvez em todos, a ternura paternal num afeto muito mais forte do que a piedade filial. A continuação e propagação da espécie depende inteiramente da primeira, não da segunda. Em casos comuns, a existência e conservação do filho estão em completa dependência dos cuidados dos pais. As dos pais raramente dependem dos cuidados do filho. Por conseguinte, a natureza tornou a primeira afeição tão intensa, que geralmente não é necessário suscitá-la, mas moderá-la, e os moralistas se esforçam para nos ensinar menos como tolerar, que como conter nosso amor, nossa excessiva afeição, a injusta preferência que tendemos a dar a nossos próprios filhos, em detrimento dos filhos de outros. Exortam-nos, ao contrário, a uma afetuosa atenção aos nossos pais, e a retribuir-lhes adequadamente na velhice a bondade com que nos trataram em nossa infância e juventude. No Decálogo, somos exortados a honrar pais e mães. Não se menciona o amor aos nossos filhos, pois a natureza nos preparou suficientemente para o cumprimento desse último dever. Raramente se acusa os homens de gostarem mais de seus filhos do que realmente gostam. Às vezes, porém, suspeita-se de que demonstrem com excessiva ostentação sua piedade pelos pais. Pela mesma razão, desconfia-se de que a dor ostensiva das viúvas seja insincera. Deveríamos respeitar, se acreditássemos em sua sinceridade, até mesmo o excesso de tais afetos; e embora não o aprovássemos inteiramente, não deveríamos condená-lo severamente. De que se mostra louvável, pelo menos aos olhos de quem a afeta, a própria afetação é prova.

Até o excesso dos afetos bondosos, que predispõem mais a ofender, precisamente pelo excesso, embora possa mostrar-se censurável, nunca se mostra odioso. Censuramos o excessivo amor e preocupação de um pai como algo que possa, por fim, revelar-se nocivo à criança e que, entrementes, é demasiado inconveniente para o pai; mas perdoamos isso facilmente, jamais o considerando com ódio ou aversão. Mas a ausência desse afeto habitualmente excessivo sempre parece particularmente odiosa. O homem que não demonstra sentir nada por seus próprios filhos, que sempre os trata com imerecido rigor e aspereza, parece o mais detestável dos brutos. O senso de conveniência, em vez de exigir que erradiquemos completamente a extraordinária sensibilidade que naturalmente temos pelos infortúnios de nossos parentes mais próximos, é sempre muito mais contrariado pela falta do que pelo excesso dessa sensibilidade. Nesses casos, a apatia estóica nunca é agradável, e todos os sofismas metafísicos que a amparam raramente têm outra finalidade, senão inflar a dura insensibilidade de um janota a dez vezes sua insolência primitiva. Os poetas e romancistas, que melhor pintam os refinamentos e delicadezas do amor e da amizade e todos os demais afetos domésticos e privados, Racine e Voltaire, Richardson, Marivaux e Riccoboni, são muito melhores instrumentos nesses casos do que Zenão, Crisipo e Epíteto.

A sensibilidade moderada pelos infortúnios alheios, que não nos desqualifica para o cumprimento de nenhum dever – a melancólica e afetuosa lembrança dos amigos que partiram – a pungência, como diz Gray, cara à dor secreta – não são, de modo algum, desagradáveis. Embora externamente cubram-se dos traços da dor e do sofrimento, internamente são inscritas com os caracteres enobrecedores da virtude e da aprovação de si.

O mesmo não ocorre com os infortúnios que afetam, imediata e diretamente, seja nosso corpo, nossa fortuna, seja nossa reputação. O senso de conveniência está muito mais propenso a ser contrariado pelo excesso que pela falta de sensibilidade, e há apenas uns poucos casos em que podemos nos aproximar de fato da apatia e indiferença estóica.

Já se observou que temos muito pouca solidariedade com qualquer das paixões que se originam do corpo. A dor provocada por uma causa manifesta, tal como cortar ou dilacerar a carne, é talvez o afeto do corpo pelo qual o espectador sinta a mais viva simpatia. Também a morte iminente de seu vizinho raramente deixa de afetá-lo bastante. Nos dois casos, porém, é tão pouco o que sente, se comparado ao que sente a pessoa diretamente atingida, que esta última dificilmente poderá ofender o primeiro, ao demonstrar que sofre com muita facilidade.

A mera falta de fortuna, a mera pobreza, suscita pouca compaixão. Suas queixas tendem muito mais a ser objeto de desprezo do que de solidariedade. Desprezamos um mendigo, e embora suas importunidades possam-nos extorquir uma esmola, dificilmente será objeto de séria comiseração. A decadência da riqueza para a pobreza, uma vez que habitualmente causa a mais verdadeira aflição ao sofredor, raramente deixa de suscitar a mais sincera comiseração no espectador. Ainda que no presente estado da sociedade esse infortúnio raramente aconteça sem que haja negligência nos negócios e considerável dose de desleixo também do sofredor, este, contudo, causa tanta pena, que dificilmente lhe permitirão decair na mais baixa condição de pobreza; mas pelos meios de seus amigos, e freqüentemente por tolerância até dos credores que têm muita razão de se queixarem de sua imprudência, quase sempre é sustentado num grau de mediania decente, embora humilde. Nas pessoas submetidas a tal infortúnio, talvez facilmente perdoássemos alguma fraqueza; ao mesmo tempo, porém, os que mostram o semblante mais firme, que se acomodam com maior facilidade à sua nova situação, que não parecem se sentir humilhados pela mudança, pois mantêm sua posição na sociedade graças a seu caráter e conduta, não à sua riqueza, são sempre os que mais aprovamos, e que nunca deixam de conquistar nossa maior e mais afetuosa admiração.

Como de todos os infortúnios externos que podem afetar um homem inocente imediata e diretamente o maior é, com certeza, a perda imerecida da reputação, então um considerável grau de sensibilidade para com o que possa causar tamanha calamidade nem sempre parece desgracioso ou desagradável. Freqüentemente maior é nossa estima por um jovem quando ele se ressente, posto que com alguma violência, de qualquer repreensão injusta que tenha sofrido o seu caráter ou sua honra. A aflição de uma jovem dama inocente, por conta de boatos infundados que possam circular quanto à sua conduta, muitas vezes revela-se perfeitamente amável. Pessoas muito idosas, a quem a longa experiência da loucura e injustiça deste mundo ensinou a dar pouca importância à sua censura ou ao seu aplauso, negligenciam e desprezam a difamação, e nem se dignam a honrar seus levianos autores com algum ressentimento sério. Essa indiferença, fundada inteiramente sobre uma firme confiança em seus próprios caracteres provados e estáveis, seria desagradável em pessoas jovens, que nem podem nem devem sentir tamanha confiança. Neles, poder-se-ia supor que prediz para a velhice a mais inconveniente insensibilidade quanto à verdadeira honra e à infâmia.

Em todos os outros infortúnios privados que nos afetam imediata e diretamente, é muito raro que possamos ofender mostrando-nos pouquíssimo afetados. Freqüentemente lembramos de nossa sensibilidade para com os infortúnios alheios com prazer e satisfação. Raramente podemos lembrar da sensibilidade para com os nossos, sem sentir algum grau de vergonha e humilhação.

Se examinarmos as diferentes nuanças e gradações de fraqueza e autodomínio tal como os encontramos na vida comum, muito facilmente nos convenceremos de que o domínio de nossos sentimentos passivos deve ser adquirido não por abstrusos silogismos de uma dialética sofística, mas pela grande disciplina que a Natureza estabeleceu para a aquisição dessa e de todas as outras virtudes: a consideração dos sentimentos do espectador, real ou imaginário, de nossa conduta.

Uma criança muito pequena não tem domínio de si, mas sejam quais forem suas emoções, se medo, tristeza ou raiva, sempre procura, com a violência de seus gritos, alarmar o mais que pode a atenção de sua ama ou de seus pais. Enquanto permanece sob custódia de protetores tão parciais, sua raiva é a primeira, e talvez a única, paixão que aprende a moderar. Com ruídos e ameaças, esses protetores muitas vezes são obrigados, para seu próprio conforto, a coagir a criança a um melhor temperamento; e a paixão que a incita a enfrentar é contida pela que a ensina a cuidar de sua própria segurança. Quando está em idade de ir à escola, ou misturar-se com seus iguais, logo descobre que não terão essa parcialidade tolerante com ela. Naturalmente desejará conquistar os favores das outras, e evitar seu ódio ou desdém. Até mesmo a consideração da própria segurança lhe ensina isso; e logo verá que pode fazer isso unicamente moderando, não apenas sua raiva, mas todas as suas demais paixões, a um nível que provavelmente agrade a seus colegas e companheiros. Assim a criança entra na grande escola do autodomínio; estuda para ser cada vez mais dona de si mesma, e começa a exercer sobre seus próprios sentimentos uma disciplina que a prática da mais longa vida raramente bastará para levar à perfeição completa.

Em todos os infortúnios privados, na dor, na doença, na tristeza, o mais fraco dos homens, quando visitado por seu amigo e sobretudo por um estranho, imediatamente se impressiona com o juízo que provavelmente fazem sobre sua situação. Isso desvia a sua atenção do juízo que faz sobre si mesmo, e de certa maneira seu peito se aquieta no momento em que vêm à sua presença. Esse efeito é produzido instantaneamente, quase mecanicamente; mas, num homem fraco, não tem longa duração. O juízo de sua situação imediatamente se repete. Entrega-se como antes aos suspiros, lágrimas e lamentações; e como criança que ainda não foi à escola, procura produzir algum tipo de harmonia entre sua própria dor e a compaixão do espectador, não moderando a primeira, mas importunamente apelando à segunda.

Com um homem um pouco mais firme, o efeito é mais permanente. Esforça-se o mais que pode para fixar sua atenção no juízo que os outros provavelmente fazem de sua situação. Ao mesmo tempo, percebe a estima e aprovação que naturalmente têm por ele quando desse modo preserva sua tranqüilidade; e, embora sob a pressão de alguma grande e recente calamidade, nada demonstra sentir por si além do que seus companheiros realmente sentem. Aprova e aplaude-se por simpatia com a aprovação deles, e o prazer que extrai desse sentimento ampara e capacita-o mais facilmente a prosseguir nesse generoso esforço. Na maioria dos casos, evita mencionar seu próprio infortúnio; e seus amigos, se forem toleravelmente bem educados, têm cuidado em nada dizer que o faça lembrar disso. Tenta distraí-los de sua maneira habitual com diferentes temas, ou, se se sentir forte o bastante para aventurar-se a mencionar seu infortúnio, procura falar dele como julga que serão capazes de o fazer, e até busca não sentir mais do que eles serão capazes de sentir. Se não é afeito à dura disciplina do autodomínio, logo ficará enfastiado desse comedimento. Uma longa visita o fatiga, já no fim dela constantemente se arrisca a fazer o que sempre faz no momento em que acaba a visita, ou seja, entregar-se a toda a fraqueza da dor excessiva. As boas maneiras modernas, extremamente tolerantes com a fraqueza humana, proíbem por algum tempo visitas de estranhos a pessoas submetidas a uma grande aflição familiar, permitindo apenas as dos parentes mais próximos e mais íntimos amigos. Considera-se que a presença destes últimos imporá menos comedimento do que a dos primeiros, e os sofredores poderão acomodar-se mais facilmente aos sentimentos daqueles de quem não têm razão para esperar uma simpatia mais tolerante. Inimigos secretos, que imaginam não serem conhecidos como tais, freqüentemente gostam de fazer essas visitas caridosas sem tardança, tal como os mais íntimos amigos. O mais fraco homem do mundo, nesse caso, empenha-se em mostrar seu semblante viril, e, por indignação e desprezo por essa malícia, portar-se com a alegria e o desembaraço possíveis.

O homem verdadeiramente constante e firme, o homem sábio e justo que recebeu toda a sua educação da grande escola do autodomínio, da azáfama e dos negócios deste mundo, talvez exposto à violência e injustiça das facções, às durezas e riscos da guerra, mantém esse controle dos sentimentos passivos em todas as ocasiões; e quer na solidão, quer em sociedade, mostra quase o mesmo semblante, e é afetado quase da mesma maneira. No êxito e na frustração, na prosperidade e na adversidade, diante de amigos ou de inimigos, muitas vezes esteve submetido à necessidade de conservar essa virilidade. Nunca se atreveu a esquecer por um instante o juízo que o espectador imparcial faria de seus sentimentos e sua conduta. Jamais se atreveu a permitir que o homem interior se ausentasse um só instante de sua atenção. Sempre se habituou a ver com os olhos desse grande inquilino tudo o que se relacionasse consigo. Esse costume se lhe tornou perfeitamente familiar: esteve submetido à prática constante, e, na verdade sob a necessidade permanente, de modelar ou empenhar-se por modelar não apenas sua conduta e maneiras externas, mas, na medida do possível, seus sentimentos e emoções internas, segundo os desse terrível e respeitável juiz. Não apenas afeta os sentimentos do espectador imparcial, realmente os adota. Quase se identifica com ele, quase se torna esse espectador imparcial, e até mesmo quase sente o que esse grande árbitro de sua conduta comanda que sinta.

O grau da aprovação de si com que todo homem examina sua conduta nessas ocasiões é mais alto ou mais baixo, de acordo com a proporção exata do grau de autodomínio necessário para obter essa aprovação. Quando pouco autodomínio é necessário, pouca aprovação de si é devida. O homem que apenas arranhou o dedo não pode aplaudir-se em demasia, ainda que logo demonstre ter se esquecido desse reles infortúnio. O homem que, logo depois de ter perdido a perna por causa de um tiro de canhão, fala e age com sua frieza e tranqüilidade habituais, na medida em que exerce um grau muito maior de autodomínio, sente naturalmente um grau muito maior de aprovação de si. Quanto à maioria dos homens, num acidente como esse, sua visão natural do próprio infortúnio se lhes imporia com tamanha vivacidade e força de cores, que apagaria inteiramente toda a ponderação de uma outra visão. Nada sentiriam, nada poderiam levar em conta, senão sua própria dor e seu próprio medo; e não apenas o juízo do homem ideal dentro do peito, mas também o do espectador real que por acaso estivesse presente, seria inteiramente ignorado e negligenciado.

A recompensa que a natureza oferece ao bom comportamento no infortúnio é, assim, exatamente proporcional ao grau desse bom comportamento. A única compensação que ela possivelmente daria pela amargura da dor e da aflição é, também assim, em graus idênticos de bom comportamento, exatamente proporcional ao grau da dor e da aflição. Em proporção ao grau de autodomínio necessário para conquistar nossa natural sensibilidade, o prazer e o orgulho da conquista são muito maiores; e esse prazer e orgulho são tão grandes, que nenhum homem consegue ser inteiramente infeliz, se goza deles totalmente. A desgraça e a miséria nunca podem entrar no peito onde vive a total satisfação consigo; e embora talvez possa ser excessivo afirmar como os estóicos que, num acidente como o acima mencionado, a felicidade de um homem sábio é em todos os aspectos igual à que sentiria em qualquer outra circunstância, deve-se admitir, ao menos, que esse prazer completo de aplaudir-se a si mesmo, embora não a extinga inteiramente, certamente deve aliviar muito a sensação dos próprios sofrimentos.

Imagino que em tais paroxismos da aflição, se me permitem chamá-los assim, o homem mais sábio e mais firme é obrigado, a fim de conservar sua equanimidade, a fazer um esforço considerável e até doloroso. O próprio sentimento natural de sua aflição, sua opinião natural da própria situação, pressionam-no duramente, e não consegue, sem um enorme esforço, fixar sua atenção na opinião do espectador imparcial. As duas opiniões apresentam-se a ele ao mesmo tempo. Seu senso de honra, sua consideração pela própria dignidade, obrigam-no a fixar toda a sua atenção numa das opiniões. Seus sentimentos naturais, seus sentimentos que não foram cultivados, nem disciplinados, desviam-na continuamente para a outra. Nesse caso, não se identifica perfeitamente com o homem ideal dentro do peito, não se torna, ele mesmo, espectador imparcial de sua própria conduta. As diferentes opiniões dos dois caracteres existem em seu espírito apartadas e distintas uma da outra, e cada uma o dirige para um comportamento diferente. Com efeito quando segue a opinião que lhe é apontada pela honra e pela dignidade, a Natureza não o deixa sem recompensa. Goza da inteira aprovação de si e do aplauso de todo espectador sincero e imparcial. Por suas leis inalteráveis, porém, o homem ainda sofre; e a recompensa que a Natureza lhe oferece, posto que considerável, não bastará para reparar os sofrimentos que tais leis infligem. Nem é adequado que isso ocorra. Se os reparasse inteiramente, ele poderia, por interesse próprio, não ter motivo para evitar um acidente que deve necessariamente reduzir sua utilidade tanto para si próprio quanto para a sociedade; e a Natureza, pelos seus cuidados maternais para com ambos, quis que o homem evitasse ansiosamente todos esses acidentes. Portanto, ele sofre e, embora na agonia do paroxismo, mantém não apenas o semblante viril, mas a calma e sobriedade do juízo, o que exige dele os maiores e mais exaustivos esforços.

Pela constituição da natureza humana, entretanto, a agonia nunca é permanente e, se ele sobreviver ao paroxismo, logo, sem esforço, voltará a gozar de sua habitual tranqüilidade. Um homem com perna de pau sem dúvida sofre, e prevê que deverá continuar sofrendo, pelo resto de sua vida, uma inconveniência muito considerável. Mas cedo passa a vê-la, exatamente como um espectador imparcial, como uma inconveniência que não o impede de usufruir todos os prazeres comuns tanto da solidão como da sociedade. Cedo se identifica com o homem ideal dentro do peito, cedo se torna, ele mesmo, o espectador imparcial de sua própria situação. Não haverá mais de soluçar, de se lamentar, já não sofrerá por isso como talvez um homem fraco faça no início. A opinião do espectador imparcial torna-se tão perfeitamente habitual a ele que, sem qualquer esforço, sem qualquer dificuldade, nunca pensa em examinar seu infortúnio de outro ponto de vista.

A infalível certeza com que todos os homens, cedo ou tarde, acomodam-se ao que vem a se tornar sua situação permanente talvez nos induza a pensar que ao menos os Estóicos estavam quase inteiramente certos; que entre uma situação permanente e uma outra nenhuma diferença essencial relativa à verdadeira felicidade havia; ou que, se houvesse alguma, seria suficiente apenas para converter algumas dessas situações em objetos de simples escolha ou preferência – não, contudo, em objetos de um desejo determinado ou ansioso –, e outras, em objetos de simples rejeição, pois adequados a serem postos de lado ou evitados – mas não de alguma aversão determinada ou ansiosa. A felicidade consiste na tranqüilidade e prazer. Sem tranqüilidade não há prazer, e quando há perfeita tranqüilidade dificilmente algo não diverte. Mas em toda a situação permanente, quando não há esperança de mudança, o espírito de todo homem cedo ou tarde retorna a seu natural e usual estado de tranqüilidade. Na prosperidade, depois de algum tempo, recua a esse estado; na adversidade, depois de certo tempo, avança até ele. No confinamento e solidão da Bastilha, depois de certo tempo, o mundano e frívolo Conde de Lauzun recuperou suficiente tranqüilidade para conseguir divertir-se alimentando uma aranha. Um espírito mais bem alentado talvez recuperasse a tranqüilidade mais cedo, e mais cedo encontrasse em seus próprios pensamentos uma diversão bem melhor.

Ao que parece, a grande fonte da miséria e ainda das perturbações da vida humana se origina de se superestimar a diferença entre uma situação permanente e uma outra. A avareza superestima a diferença entre pobreza e riqueza; a ambição, a diferença entre condição pública e privada; a vanglória, entre obscuridade e grande fama. A pessoa sob influência de qualquer uma dessas paixões extravagantes não é apenas desgraçada em sua situação atual, mas muitas vezes inclina-se a perturbar a paz da sociedade, para alcançar o que tão tolamente admira. A mais superficial observação, contudo, poderia convencê-lo de que em todas as situações ordinárias da vida humana um espírito bem disposto pode ser igualmente calmo, igualmente alegre e igualmente satisfeito. Sem dúvida, algumas dessas situações merecem ser preferíveis a outras, mas nenhuma delas merece ser buscada com o ardor apaixonado que nos impele a violar as regras da prudência ou da justiça, ou a corromper a futura tranqüilidade de nosso espírito, quer pela vergonha de rememorarmos nossa própria loucura, quer pelo remorso do horror à nossa própria injustiça. Quando a prudência não comandar e a justiça não permitir a experiência de mudar nossa situação, o homem que de fato insistir com isso estará arriscando sua sorte no mais desigual dos jogos de azar, pois apostará tudo contra quase nada. O que o favorito do Rei de Épiro disse a seu senhor pode-se aplicar aos homens, em todas as situações ordinárias da vida. O Rei lhe contara uma a uma todas as conquistas que se propunha fazer e, quando chegou à última delas, o favorito disse: “E o que Vossa Majestade se propõe fazer, então?”. O Rei respondeu: “Proponho então divertir-me com meus amigos, e me esforçar para ser boa companhia diante de uma garrafa.” “E o que impede Vossa Majestade de fazer isso agora?”, perguntou o favorito. Na mais fulgurante e grandiosa situação que nossa ociosa imaginação pode nos apresentar, os prazeres dos quais nos propomos extrair nossa verdadeira felicidade são quase sempre iguais aos que, em nossa humilde posição real, temos todo o tempo à mão e em nosso poder. Exceto os frívolos prazeres da vaidade e superioridade, podemos encontrar na mais humilde posição, em que só há liberdade pessoal, tudo o que a mais grandiosa posição pode oferecer; e os prazeres da vaidade e superioridade raramente são consistentes com a perfeita tranqüilidade, princípio e fundamento de todo o prazer real e satisfatório. Tampouco é sempre certo que na esplêndida situação a que almejamos esses prazeres reais e satisfatórios possam ser usufruídos com a mesma segurança que os usufruímos na nossa humilde posição, a qual desejamos tanto abandonar. Examina os registros da história, relembra o que aconteceu no círculo de tua própria experiência, considera com atenção qual foi a conduta de quase todos os desgraçados, seja na vida pública, seja na pessoal, sobre quem possas ter lido, ou ouvido, ou de quem te lembres, e descobrirás que os infortúnios da grande maioria dessas pessoas se deveram a não saberem quando estavam bem, quando era adequado ficarem quietos e satisfeitos. A inscrição na sepultura do homem que fez o possível para emendar uma constituição física satisfatória tomando remédios – “Eu estava bem, quis ficar melhor; eis-me aqui” –, pode em geral ser aplicada com grande acerto à aflição da avareza e decepção que se frustraram.

Considera-se singular, embora para mim seja justa, a observação segundo a qual nos infortúnios que admitem algum remédio a maioria dos homens não recupera tão prontamente ou tão inteiramente sua tranqüilidade natural e habitual, como nos infortúnios que claramente não admitem remédio algum. Nos infortúnios da segunda espécie, é principalmente no que se pode chamar paroxismo, ou na primeira investida, que descobrimos uma sensível diferença de sentimentos e comportamento entre o homem sábio e o fraco. No fim, o tempo, grande e universal confortador, gradualmente traz ao homem fraco a mesma tranqüilidade que ao homem sábio um olhar para sua própria dignidade e virilidade ensina a adotar já de saída. O caso do homem com a perna de pau é um claro exemplo disso. Nos irreparáveis infortúnios ocasionados pela morte de filhos, ou amigos e parentes, até um sábio pode permitir-se por algum tempo um sofrimento moderado. Nessas ocasiões, uma mulher afetuosa, mas fraca, não raro fica quase inteiramente transtornada. Num período maior ou menor, o tempo, contudo, nunca deixa de trazer à mais frágil das mulheres a mesma tranqüilidade do mais forte dos homens. Tão logo se anunciem as irreparáveis calamidades que o afetarão direta e imediatamente, um homem forte esforça-se para antecipar-se ao tempo e usufruir a tranqüilidade, prevendo que certamente o curso de uns poucos meses ou anos afinal a restituirá a ele.

Nos infortúnios para os quais a natureza das coisas admite ou parece admitir remédio, mas nos quais os meios de o aplicar não estão ao alcance do sofredor, as vãs e infrutíferas tentativas de restabelecer a antiga situação, a contínua ansiedade por que tais tentativas tenham êxito, as repetidas frustrações resultantes dos fracassos, isso tudo é o que mais o impede de recuperar sua tranqüilidade natural. Ademais tudo isso freqüentemente torna miserável para o resto da vida um homem a quem um infortúnio maior, que não admitiu, entretanto, nenhum remédio, não perturbaria por mais de uma quinzena. No declínio das mercês reais para a desgraça, do poder para a insignificância, da riqueza para a pobreza, da liberdade para a prisão, da boa saúde para uma doença lenta, crônica e talvez incurável, o homem que menos luta, que mais fácil e prontamente aquiesce com a fortuna que sobre ele se abateu, breve recupera sua habitual e natural tranqüilidade, examinando as mais desagradáveis circunstâncias de sua situação real sob a mesma luz, ou talvez sob uma luz menos desfavorável, em que o mais indiferente espectador estaria inclinado a examiná-las. Facção, intriga e conluio perturbam o sossego do infortunado estadista. Projetos extravagantes, visões de minas de ouro, interrompem o repouso de quem foi à bancarrota. O prisioneiro que continuamente trama safar-se de seu confinamento não pode usufruir a despreocupada segurança que até mesmo uma prisão pode-lhe oferecer. As drogas do médico freqüentemente são o maior tormento de um paciente incurável. Não foi capaz o monge de restaurar a serenidade ao espírito perturbado de sua infeliz rainha, Joana de Castela, ou trazer-lhe conforto pela morte do marido Felipe, contando-lhe a lenda do rei que, catorze anos depois de morto, fora restituído à vida pelas preces de sua aflita rainha. Pois esta empenhou-se em repetir a mesma experiência na esperança do mesmo êxito; resistiu por muito tempo ao enterro do marido, logo depois retirou seu corpo da tumba, cuidou dele quase constantemente, e aguardou, com toda a impaciente ansiedade de uma expectativa desvairada, o abençoado momento em que seus desejos se realizariam com a ressurreição de seu amado Filipe.

Ao invés de inconsistente com o vigor do autodomínio, nossa sensibilidade para com os sentimentos de outros é o princípio sobre o qual se funda esse vigor. Precisamente o mesmo princípio ou instinto que no infortúnio de nosso vizinho motiva-nos a ter compaixão de sua dor, em nosso próprio infortúnio nos motiva a conter os lamentos abjetos e miseráveis pela nossa própria dor. O mesmo princípio ou instinto que, na sua prosperidade e êxito, motiva-nos a felicitá-lo pela alegria, em nossa própria prosperidade e êxito nos motiva a conter a leviandade e intemperança de nossa própria alegria. Nos dois casos, a conveniência de nossos sentimentos e emoções parece ser exatamente proporcional à vivacidade e força com que partilhamos e concebemos os sentimentos e emoções do outro.

O homem mais perfeitamente virtuoso, o homem a quem naturalmente mais amamos e reverenciamos, é o que associa ao mais perfeito controle de seus sentimentos originais e egoístas a mais refinada sensibilidade para os sentimentos originais e solidários de outros. O homem que às virtudes doces, amáveis e gentis, associa todas as grandes, veneráveis e respeitáveis virtudes deve ser, sem dúvida, o objeto apropriado e natural de nosso maior amor e admiração.

A pessoa mais indicada pela natureza para adquirir o primeiro desses dois conjuntos de virtudes é necessariamente adequada também para adquirir as últimas. O homem mais atingido pelas alegrias e dores dos outros é o mais adequado para adquirir o completo domínio de suas próprias alegrias e dores. O homem da mais refinada benevolência é naturalmente o mais capaz de adquirir o maior grau de domínio de si. No entanto, talvez nem sempre isso tenha ocorrido e muito freqüentemente não ocorre. Talvez esse homem sempre vivesse com muito conforto e tranqüilidade. Talvez nunca se tenha exposto à violência da facção, ou às durezas e perigos da guerra. Pode nunca ter experimentado a insolência dos superiores, a inveja ciumenta e maligna de seus iguais, ou a furtiva injustiça de seus inferiores. Na velhice, quando alguma acidental mudança da fortuna o expõe a tudo isso, causam-lhe uma enorme impressão. Tem a disposição adequada para adquirir o mais perfeito autodomínio, o qual, entretanto, nunca teve oportunidade de adquirir. Exercício e prática faltaram e, sem eles, nenhum hábito pode ser razoavelmente estabelecido. Durezas, perigos, ofensas, infortúnios, são os únicos mestres sob os quais podemos aprender o exercício dessa virtude. Mas todos eles são mestres em cuja escola ninguém entra de bom grado.

As situações em que a gentil virtude da benevolência pode ser cultivada mais satisfatoriamente não são, de modo algum, idênticas às mais adequadas para se formar a virtude austera do autodomínio. O homem que está despreocupado é mais capaz de assistir à aflição dos outros, uma vez que o homem exposto a dificuldades é chamado imediatamente a acompanhar e dominar seus próprios sentimentos. Sob o sol ameno do sossego não perturbado, no calmo recolhimento do lazer regrado e filosófico, floresce e cresce melhor a suave virtude da benevolência. Contudo, em tais situações, os maiores e mais nobres esforços de dominar-se são pouco praticados. Sob o céu ameaçador e tempestuoso da guerra e da facção, do tumulto público e da confusão, a enérgica severidade do domínio de si prospera melhor, podendo ser cultivada com êxito. Nessas situações, todavia, as mais fortes propostas de benevolência muitas vezes devem ser sufocadas ou negligenciadas; e cada um desses descuidos necessariamente tende a enfraquecer o princípio de benevolência. Assim como freqüentemente o dever do soldado é não ter misericórdia, às vezes seu dever é concedê-la; e a benevolência do homem que inúmeras vezes esteve sob a necessidade de se submeter a esse desagradável dever dificilmente deixa de sofrer uma considerável redução. Para seu próprio bem, rapidamente aprende a fazer pouco caso dos infortúnios que tantas vezes precisa causar; e as situações que trazem à tona os mais nobres esforços de autodomínio, por imporem a necessidade de vez por outra violar a propriedade ou a vida de nosso próximo, sempre tendem a reduzir, e freqüentemente a extinguir inteiramente, a sagrada consideração para com ambos, a qual constitui o fundamento da justiça e da humanidade. E é essa a razão de encontrarmos amiúde no mundo homens de grande benevolência, mas que têm pouco autodomínio, são indolentes, indecisos, e, ou por dificuldade, ou por perigo, facilmente desanimam dos mais honrosos misteres; e, ao contrário, homens do mais perfeito autodomínio, a quem nenhuma dificuldade consegue desencorajar, nenhum perigo abalar, e que a todo momento estão prontos para os empreendimentos mais audaciosos e desesperados, mas, ao mesmo tempo, parecem endurecidos contra todo o senso de justiça ou de humanidade.

Na solidão, tendemos a sentir de modo muito intenso tudo o que nos diz respeito: tendemos a superestimar os bons serviços que possamos ter realizado, as ofensas que possamos ter sofrido; a estar radiantes por nossa boa fortuna, e prostrados pela má. Nosso humor melhora ao conversarmos com um amigo, e melhora ainda mais se conversamos com um estranho. Pois freqüentemente é necessário que o espectador real desperte o homem que o peito encerra, esse espectador abstrato e ideal de nossos sentimentos e conduta, para relembrá-lo de seu dever; é sempre esse espectador real, do qual podemos esperar uma ínfima simpatia e tolerância, que provavelmente nos ensinará a mais perfeita lição sobre como nos dominarmos.

Estás na adversidade? Não lamentes no escuro da solidão, não regules tua dor segundo a indulgente solidariedade de teus amigos íntimos; volta assim que possível à luz diurna do mundo e das companhias. Vive com estranhos, com os que nada sabem de teus infortúnios nem com eles se importam; nem evites a companhia dos inimigos; concede-te, porém, o prazer de mortificar a alegria maligna destes, fazendo-os sentir como estás pouco afetado pela tua calamidade, e o quanto estás acima dela.

Estás na prosperidade? Não confines a alegria de tua boa sorte à tua própria casa, à companhia de seus amigos, talvez de teus bajuladores, os que constroem sobre tua fortuna a esperança de consertarem a própria; freqüenta os que são independentes de ti, que só podem te avaliar pelo teu caráter e conduta, não pelo teu dinheiro. Nem procura nem evita a sociedade, nem te introduzas nela nem fujas da companhia dos que outrora foram teus superiores, e que podem-se magoar ao descobrirem que és seu igual agora, ou talvez até seu superior. A impertinência do seu orgulho poderá talvez tornar essa companhia desagradável demais; mas, se não for, podes ter certeza de que essa é a melhor companhia que poderás ter; e se pela simplicidade de na conduta discreta conseguires ganhar seu favor e sua bondade, podes ficar satisfeito por seres suficientemente modesto, e por tua cabeça não ter sido prejudicada pela tua boa fortuna.

A conveniência de nossos sentimentos morais nunca é mais passível de corrupção que quando o espectador tolerante e parcial está à mão, enquanto o imparcial e indiferente está bem longe.

No relacionamento entre duas nações independentes, nações neutras são os únicos espectadores indiferentes e imparciais. Mas estão a tamanha distância que ficam quase fora da vista. Quando duas nações entram em conflito, os cidadãos de cada uma prestam pouca importância aos sentimentos que as nações estrangeiras possam nutrir pela gestão interna. Toda a ambição do país é obter aprovação de seus concidadãos; e como são todos animados pelas mesmas paixões hostis que o animam, nunca consegue agradá-los tanto quanto é capaz de enfurecer e ofender os seus inimigos. O espectador parcial está perto; o imparcial, a grande distância. Na guerra e na negociação, portanto, raramente se observam as leis da justiça. Verdade e procedimentos justos são quase totalmente desconsiderados. Violam-se tratados; e a violação, se confere alguma vantagem, dificilmente lança alguma desonra sobre o violador. O embaixador que engana o ministro de uma nação estrangeira é admirado e aplaudido. O homem justo que desdenha ora tirar, ora conceder vantagem, mas que julgaria menos desonroso conceder do que tirá-la – esse homem, que seria o mais amado e estimado em todas as transações particulares, nas públicas é considerado tolo e idiota, alguém que não entende de seus negócios, incorrendo sempre no desprezo dos outros, às vezes até mesmo no ódio de seus concidadãos. Na guerra, não apenas são violadas regularmente as chamadas leis das nações, o que não torna desonrado o violador (entre os seus concidadãos, cujo juízo unicamente lhe interessa), mas essas mesmas leis são, em sua grande maioria, estabelecidas sem razoável conformidade com as mais simples e claras leis da justiça. Que os inocentes, apesar da ligação e dependência mantida com os culpados (o que talvez nem possam evitar) não sofram por causa disso, nem sejam punidos pelos culpados, é uma das mais simples e claras leis da justiça. Na mais injusta guerra, porém, é comum que soberano ou os legisladores sejam os únicos culpados. Em geral, os súditos são quase sempre completamente inocentes. No entanto, o inimigo público, sempre que lhe convém, apreende em terra ou mar os bens dos cidadãos pacíficos; suas propriedades são devastadas, suas casas queimadas, e eles próprios, se cogitarem de resistir, são mortos ou aprisionados; e tudo isso em perfeita conformidade com o que se chamam leis das nações.

A animosidade de facções hostis, sejam civis ou eclesiásticas, é freqüentemente ainda mais irada do que a de nações hostis, e seu modo de agir uma com a outra ainda mais atroz. O que se pode chamar de leis de facção são muitas vezes estabelecidas por autores graves respeitando menos ainda as regras da justiça do que as chamadas leis das nações. O mais feroz patriota jamais declarou como questão relevante se constituiria dever manter a palavra empenhada com inimigos públicos, ou com rebeldes, ou hereges: tais questões amiúde são furiosamente debatidas por renomados doutores, civis e eclesiásticos. É desnecessário notar, presumo, que os rebeldes, bem como os hereges, são os infelizes que, quando as coisas atingiram certo grau de violência, tiveram o infortúnio de pertencer ao partido mais fraco. Numa nação conturbada pelas facções sempre há, sem dúvida, uns poucos, comumente muito poucos, que conservam seu discernimento livre do contágio geral. Raramente somam mais do que um solitário aqui e ali, sem nenhuma influência, pois sua sinceridade os exclui da confiança dos dois partidos. Ademais, a despeito de serem dos homens mais sábios, ou precisamente por essa razão, não têm nenhuma relevância para a sociedade. Todas essas pessoas são desprezadas e ridicularizadas, freqüentemente detestadas, pelos furiosos zelotes dos dois partidos. Um verdadeiro partidário odeia e despreza a sinceridade e, na verdade, não há vício que o pudesse desqualificar mais para a profissão de partidário que essa única virtude. Portanto, em nenhuma ocasião o real e reverenciado espectador imparcial está mais distanciado que em meio à violência e fúria dos partidos em luta. Talvez se possa afirmar que, para esses, tal espectador dificilmente exista em algum lugar do universo. Até ao grande Juiz do universo imputam seus próprios preconceitos, e não raro consideram esse Ser divino como alguém animado por todas as suas próprias paixões vingativas e implacáveis. Dentre todos os corruptores dos sentimentos morais, por conseguinte, a dissensão e o fanatismo sempre foram os maiores.

No que concerne ao problema do autodomínio, devo acrescentar ainda que nossa admiração pelo homem que continua se portando com fortaleza e firmeza nos mais graves e inesperados infortúnios sempre pressupõe ser imensa sua sensibilidade para com esses infortúnios, e como tal é necessário um grande esforço a conquistá-lo ou governá-lo. O homem inteiramente insensível à dor física não poderia merecer aplauso por suportar a tortura com a mais perfeita paciência e equanimidade, uma vez que o fato de se ter criado sem o medo natural da morte não lhe permite reclamar o mérito de conservar sua frieza e presença de espírito em meio aos mais terríveis perigos. Uma das extravagâncias de Sêneca foi asseverar que o sábio estóico, nesse sentido, era superior até mesmo a um deus, uma vez que, se a segurança do deus se dera inteiramente ao benefício da natureza, eximindo-o de sofrer, a segurança do sábio constituía um benefício para si mesmo, derivada inteiramente de si e de seus próprios esforços.

Entretanto, a sensibilidade de alguns homens para com alguns dos objetos que imediatamente os afetam é por vezes tão forte, que torna impossível todo autodomínio. Nenhum senso de honra pode dominar os temores do homem que é suficientemente fraco a ponto de desmaiar ou sofrer convulsões ante a aproximação do perigo. Pode ser talvez duvidoso que essa fraqueza de nervos, como tem sido chamada, não possa admitir alguma cura por exercícios graduais e disciplina apropriada. De todo modo, parece certo que jamais se deve confiar nesses métodos, ou empregá-los.


 
CAPÍTULO IV Da natureza do auto-engano, e da origem e utilidade de regras gerais
A fim de que a retidão de nossos próprios juízos relativos à conveniência de nossa conduta sofra desvio nem sempre é necessário que o espectador real e imparcial esteja muito distanciado. Quando está por perto, quando está presente, às vezes bastam a violência e a injustiça de nossas paixões egoístas para induzir o homem em nosso peito a fazer um relato bem diferente do que as reais circunstâncias do caso são capazes de autorizar.

Há duas diversas ocasiões em que examinamos nossa própria conduta e nos esforçamos por vê-la sob a luz em que o espectador imparcial a veria; primeiro, quando estamos prestes a agir; segundo, depois de agirmos. Em ambos os casos, nossos juízos tendem a ser bastante parciais; mas tenderiam muito mais a sê-lo quando seria de suprema importância que fossem de outro modo.

Quando estamos na iminência de agir, a avidez da paixão raramente nos permitirá considerar o que fazemos com a lucidez de uma pessoa indiferente. As violentas emoções que nesse momento nos agitam nublam nossos juízos sobre as coisas, mesmo quando nos esforçamos por ocupar o lugar de outro, e considerar os objetos de nosso interesse sob a luz em que ele naturalmente as consideraria. O ímpeto de nossas paixões nos chama constantemente de volta para nosso próprio lugar, onde, por causa de nosso amor de si, tudo parece ampliado e desfigurado. Da maneira como esses objetos seriam vistos por outra pessoa, do juízo que sobre eles formaria, só podemos oferecer, se me permitem a expressão, vislumbres fugazes que num instante se desvanecem e que, mesmo enquanto perduram, não são inteiramente justos. Nem por esses instantes podemos nos despir inteiramente do calor e da veemência que nos inspira nossa situação peculiar, nem considerar o que estamos prestes a fazer com a perfeita imparcialidade de um juiz correto. Por essa razão, como diz o Padre Malebranche, as paixões sempre se justificam a si mesmas, e parecem razoáveis e proporcionais a seus objetos, enquanto continuarmos as experimentando.

Tão logo termina a ação, tão logo arrefecem as paixões que a provocaram, podemos, com efeito, compreender mais friamente os sentimentos do espectador indiferente. O que antes nos interessou, agora é transformado em algo quase tão indiferente para nós como sempre foi para ele, e podemos então examinar nossa conduta com franqueza e imparcialidade iguais às dele. O homem de hoje já não mais se agita pelas mesmas paixões que perturbaram o homem de ontem; e quando finda o paroxismo da emoção, assim como o paroxismo da aflição, já podemos nos identificar por assim dizer com o homem ideal que nosso peito encerra, e ver, assim como num caso nossa situação, no outro, nossa conduta, com os olhos severos do mais imparcial espectador. Mas agora nossos juízos são em geral de pouca importância, se comparados ao que foram antes, e com freqüência nada produzem, senão remorso vão e arrependimento inútil, sem que isso nos assegure contra erros semelhantes no futuro. É raro, contudo, que mesmo nesse momento nossos juízos sejam inteiramente sinceros. A opinião que cultivamos acerca de nosso próprio caráter em tudo depende de nosso juízo sobre nossa conduta passada. É tão desagradável pensarmos mal de nós mesmos, que amiúde afastamos propositadamente nosso olhar das circunstâncias que poderiam tornar esse julgamento desfavorável. Dizem que é um cirurgião ousado aquele cujas mãos não tremem quando opera seu próprio corpo; e muitas vezes é igualmente ousado quem não hesita em arrancar o véu misterioso do auto-engano, que esconde de seus olhos as deformidades de sua própria conduta. Ao invés de vermos nosso próprio comportamento sob um aspecto tão desagradável, com excessiva freqüência nos esforçamos, tola e fracamente, para exasperar de novo essas paixões injustas que já nos haviam desencaminhado antes; por meio de artifício, esforçamo-nos para despertar nossos antigos ódios e irritar uma vez mais nossos ressentimentos quase esquecidos; até nos aplicamos nesse miserável propósito e assim perseveramos na injustiça, apenas porque uma vez fomos injustos, e porque nos envergonhamos e temos medo de reconhecer que o fomos.

Tão parciais são as opiniões dos homens quanto à conveniência de sua própria conduta, seja no momento da ação, seja depois dela, e tão difícil é julgarem-na sob a luz em que qualquer espectador indiferente a consideraria. Mas se fosse por alguma faculdade peculiar, como se supõe seja o senso moral, pela qual julgassem sua própria conduta, se fossem dotadas de algum especial poder de percepção que servisse para distinguir entre a beleza e a deformidade das paixões e dos afetos, como suas paixões estariam mais imediatamente expostas à vista dessa faculdade, esta as julgaria com mais precisão que as de outros homens, das quais apenas teria uma perspectiva mais remota.

Esse auto-engano, essa fatal fraqueza dos homens, é fonte de metade das desordens de nossa vida. Se pudéssemos nos ver como os outros nos vêem, ou como nos veriam se soubessem de tudo, seria inevitável uma reforma geral. De outro modo, não poderíamos mais suportar essa visão.

Porém, a natureza não deixou sem remédio essa fraqueza tão grave; tampouco nos abandonou inteiramente às ilusões do amor de si. Nossa constante observação da conduta alheia imperceptivelmente nos leva a formar para nós próprios certas regras gerais quanto ao que é adequado e apropriado fazer ou evitar. Algumas das ações alheias escandalizam todos os nossos sentimentos naturais. Cuidamos que todos ao nosso redor manifestam o mesmo horror a tais ações. Isso de novo confirma, e até agrava, nosso natural senso da sua deformidade. Ficamos satisfeitos por tê-las julgado de um modo conveniente quando notamos que outras pessoas as julgam do mesmo modo. Decidimos nunca ser culpados de ações semelhantes, nem jamais nos convertermos, assim, em objetos de desaprovação universal. Essa é a maneira como naturalmente estabelecemos a regra geral para nós, de acordo com a qual todas essas ações devem ser evitadas, porque tendem a nos tornar odiosos, desprezíveis ou passíveis de punição, e objeto de todos os sentimentos que nos inspiram o maior temor e aversão. Outras ações, ao contrário, provocam nossa aprovação, e de todos ao nosso redor ouvimos a mesma opinião favorável a respeito delas. Todos desejam honrá-las e recompensá-las. Suscitam todos os sentimentos que por natureza desejamos intensamente: o amor, a gratidão, a admiração dos homens. Surge em nós a ambição de imitá-los, e assim naturalmente estabelecemos para nós uma regra distinta: que devemos procurar cuidadosamente todas as ocasiões de agirmos dessa maneira.

É assim que se formam as regras gerais da moralidade. Fundamentam-se em última instância na experiência do que, em casos particulares, aprovam ou desaprovam nossas faculdades morais ou nosso senso natural de mérito e da conveniência. Originalmente, não aprovamos ou condenamos ações em particular, porque ao examiná-las parecem agradáveis ou inconsistentes com certa regra geral. Ao contrário, a regra geral se forma por se descobrir, a partir da experiência, que se aprovam ou desaprovam todas as ações de determinada espécie, ou circunstanciadas de certa maneira. O homem que pela primeira vez presenciou um assassinato desumano cometido por avareza, inveja ou ressentimento injusto, sendo a vítima alguém que amava o assassino e nele confiava; que além disso contemplou as últimas agonias do moribundo e que o ouviu, com o último suspiro, queixar-se mais da perfídia e ingratidão desse falso amigo do que da violência cometida sobre sua pessoa; para esse espectador, não haveria necessidade de refletir, a fim de conceber o horror dessa ação, que uma das mais sagradas regras de conduta é a que proíbe tirar a vida de um inocente, que nesse caso houve flagrante violação da regra e que, por conseguinte, trata-se de uma ação altamente censurável. É evidente que seu horror a esse crime surgiria instantaneamente e mesmo antes de o espectador formular para si essa regra geral. Ao contrário, a regra geral que pôde formar depois estaria fundada sobre o horror que necessariamente sentiria em seu peito, ao pensar nessa e em qualquer outra ação particular da mesma espécie.

Quando lemos na história ou nos romances a descrição de ações de generosidade ou baixeza, nem a admiração que concebemos por uma, nem o desprezo pela outra se originam da reflexão sobre certas regras gerais, as quais declaram admiráveis todas as ações de uma espécie, e desprezíveis todas as outras. Ao contrário, todas essas regras gerais se formam de experimentarmos os efeitos sobre nós que todas as espécies de ação naturalmente produzem.

Uma ação amável, uma ação respeitável, uma ação horrenda, todas são ações que naturalmente suscitam, em relação a quem as realiza, o amor, o respeito ou o horror do espectador. A única maneira de formar regras gerais, determinando as ações que são ou não objetos de cada um desses sentimentos, é observar as ações que verdadeiramente e de fato suscitam tais sentimentos.

Com efeito, quando essas regras gerais já estão formadas, quando são universalmente aceitas e estabelecidas pelo concurso dos sentimentos de todos os homens, freqüentemente apelamos a elas como padrões de julgamento para determinar o grau de louvor ou censura que merecem certas ações de natureza dúbia ou complicada. Em casos como esses, citam-nas como fundamento último do que é justo ou injusto na conduta humana, e essa circunstância parece ter confundido vários autores muito eminentes, levando-os a esboçar seus sistemas sobre a suposição de que originalmente os juízos humanos a respeito do certo ou errado teriam se formado como as sentenças judiciais, isto é, considerando-se primeiro a regra geral, e, em seguida, se a ação particular que se examina se inclui adequadamente na sua compreensão.

Essas regras gerais de conduta, uma vez fixadas em nosso espírito por uma reflexão habitual, são muito úteis para corrigir os equívocos do amor de si quanto ao que adequada e propriamente se deve fazer em nossa situação particular. O homem de ressentimento violento, se escutasse os ditames dessa paixão, consideraria talvez a morte de seu inimigo como uma pequena compensação pelo mal que imagina ter recebido, o que, contudo, pode não passar de uma leve provocação. Mas suas observações sobre a conduta de outros ensinaram-lhe como parecem horríveis todas essas vinganças sanguinárias. A não ser que sua educação tenha sido muito peculiar, estabeleceu para si mesmo, como norma inviolável, abster-se inteiramente de tais vinganças. Essa regra exerce sua autoridade sobre ele e torna-o incapaz de fazer-se culpado dessa violência. Todavia, a fúria de seu temperamento pode ser tanta, que se fosse essa a primeira vez em que meditava sobre tal ação, sem dúvida a teria qualificado como muito justa e apropriada, digna da aprovação de todo espectador imparcial. Mas o respeito à regra que a experiência passada lhe inculcou detém a impetuosidade de sua paixão, e o ajuda a corrigir as opiniões excessivamente parciais que de outra forma lhe sugeriria seu amor de si, quanto ao que seria conveniente fazer nessa situação. Mesmo no caso de se permitir ser arrebatado por uma paixão tão forte, que o leve a violar essa regra, ainda assim é incapaz de afastar inteiramente o temor reverencial e o respeito com que foi acostumado a considerá-lo. No tempo exato de agir, no momento em que a paixão alcança o ápice ao pensar no que está prestes a fazer, hesita e treme; secretamente sabe-se rompendo as regras de conduta que, quando lúcido, decidira jamais infringir, que nunca vira outros infringirem sem suscitar a maior desaprovação, e cuja infração, antecipa-lhe seu próprio espírito, logo deve torná-lo objeto dos mesmos desagradáveis sentimentos. Antes que tome a última resolução fatal, atormentam-no todas as agonias da dúvida e da incerteza; o pensamento de violar uma regra tão sagrada o aterroriza, mas ao mesmo tempo o encoraja e impele o desejo furioso de a violar. Muda de propósito a todo momento; às vezes decide agarrar-se a seu princípio, e não alimentar uma paixão que pode corromper o resto de sua vida com os horrores da vergonha e do arrependimento; e uma calma momentânea toma posse de seu peito, em razão da perspectiva de gozar a segurança e tranqüilidade, tão logo resolva não se expor aos perigos de uma outra conduta. Mas imediatamente a paixão se insurge de novo, e com fúria revigorada o leva a praticar o que um instante atrás decidira evitar. Exausto e perturbado por essas contínuas indecisões, finalmente, por uma espécie de desespero, dá o passo fatal e irreversível. Mas o faz com o terror e a incredulidade de alguém que ao fugir de um inimigo se lança sobre um precipício, onde o aguarda uma destruição mais certa do que aquela que encontraria se algo o atacasse pelas costas. Tais são seus sentimentos, mesmo no instante de agir; embora então perceba menos a inconveniência de sua conduta do que depois de ter saciado e aniquilado sua paixão, começa a ver o que fez, do mesmo modo como tendem a vê-lo; e deveras sente o que apenas antevira muito imperfeitamente antes: as pontadas do remorso e do arrependimento principiando a perturbá-lo e atormentá-lo.


 
CAPÍTULO V Da influência e da autoridade de regras gerais da moralidade, que são justamente consideradas como as leis da Divindade
O respeito às regras gerais de conduta é o que se chama propriamente senso de dever, princípio da maior importância na vida humana, e o único pelo qual a maioria da humanidade é capaz de ordenar suas ações. Há muitos homens que se portam com bastante decência e evitam, ao longo de suas vidas, agir de modo censurável, mas que talvez nunca tenham experimentado o sentimento sobre cuja conveniência fundamentamos nossa aprovação de sua conduta, agindo apenas por consideração ao que julgavam ser as regras de comportamento já estabelecidas. O homem que recebeu grandes benefícios de um outro pode, pela natural frieza de seu temperamento, experimentar apenas um grau muito pequeno do sentimento de gratidão. Porém, se recebeu uma educação virtuosa, com freqüência lhe terão feito notar como parecem odiosas as ações que denotam falta desse sentimento, e como são amáveis as contrárias. Portanto, ainda que nenhuma afeição grata aqueça seu coração, lutará para agir como se de fato aquecesse, empenhando-se em retribuir a seu benfeitor a estima e o cuidado que apenas a mais viva gratidão poderia sugerir. Há de visitá-lo regularmente, de portar-se respeitosamente para com ele; para falar dele sempre usará expressões da mais elevada estima, e sempre mencionará as inúmeras obrigações que lhe deve. E, o que é mais importante, aproveitará cuidadosamente todas as oportunidades de retribuir de maneira apropriada seus favores passados. Pode também fazer tudo isso sem nenhuma hipocrisia ou dissimulação censurável, sem qualquer intenção egoísta de obter novos favores, e sem o desígnio de aproveitar-se de seu benfeitor ou do público. O motivo de suas ações não pode ser outro senão uma reverência pela regra de dever estabelecida, um sério e grave desejo de agir em tudo segundo a lei de gratidão. Da mesma maneira, às vezes uma esposa pode não sentir pelo marido o terno respeito que é adequado à relação que existe entre eles. Se recebeu educação virtuosa, entretanto, esforçar-se-á para agir como se nutrisse tal sentimento, mostrando-se cuidadosa, solícita, fiel e sincera, e não negligenciará nenhum dos cuidados que o sentimento de afeto conjugal poderia incitá-la a atender. Sem dúvida, tal amigo e tal esposa não são, nem um nem outro, os melhores que há e, embora possam ter o mais grave e sério desejo de cumprir inteiramente o seu dever, ignorarão muitas delicadas e refinadas cortesias, perderão várias oportunidades de agradar que jamais lhes passariam despercebidas, se possuíssem o sentimento que convém à sua situação. Posto não serem exatamente os primeiros, são talvez os segundos; e se lhes incutiu fortemente o respeito às regras gerais de conduta, nenhum deles ignorará o que é essencial a seu dever. Ninguém, senão os de molde mais ditoso, é capaz de adequar com precisão seus sentimentos e comportamento à menor diferença de situação, e de agir em todas as ocasiões com a mais delicada e acurada conveniência. A argila tosca de que se forma a maioria dos homens não pode ser esculpida com tal perfeição. Dificilmente, porém, haverá um homem em que, com disciplina, educação e exemplo, não se possa incutir o respeito às regras gerais, de modo que aja em quase todas as ocasiões com tolerável decência, e evite, ao longo de sua vida, ser fortemente censurado.

Sem esse sagrado respeito às regras gerais, não existe homem em cuja conduta se possa confiar demasiadamente. Isso é o que constitui a maior diferença entre um homem de honra e de princípios e um sujeito indigno. O primeiro segue, em todas as ocasiões, suas máximas firme e resolutamente, e conserva por toda sua vida a mesma regularidade na conduta. O outro age de modo inconstante, acidental, ao sabor de seu humor, sua inclinação, ou seu interesse predominante. Mais ainda: são de tal sorte as desigualdades de humor a que todos estão sujeitos, que, sem esse princípio, mesmo um homem que em seus momentos de lucidez tinha a mais aguda percepção da conveniência de sua conduta, nas ocasiões mais frívolas poderia, muitas vezes, ser levado a agir de maneira absurda, quando seria quase impossível apontar um motivo sério para se comportar assim. Teu amigo te faz uma visita quando casualmente estás com um péssimo humor, o que torna desagradável recebê-lo; em teu atual estado de espírito, talvez a civilidade do amigo pareça-te uma impertinente intrusão; e se desses vazão às opiniões que ora te ocorrem, embora sejas de temperamento educado, tratá-lo-ia com frieza e desdém. O que te torna incapaz dessa grosseria nada mais é que o respeito às regras gerais de civilidade e hospitalidade, as quais proíbem a grosseria. A habitual reverência que tua experiência passada te ensinou permite-te agir em todas essas ocasiões com conveniência quase imperturbável e impede as desigualdades de temperamento – a que todos estão sujeitos – de influenciar sensivelmente tua conduta. Mas se fossem freqüentemente violados até mesmo os deveres da polidez, os quais são facilmente observados e dificilmente há um motivo sério para violá-los, se não houvesse respeito por essas regras gerais o que seria dos deveres da justiça, da verdade, da castidade, da fidelidade, os quais amiúde são tão difíceis de observar, e pode haver tantos motivos fortes para violá-los? Da razoável observância desses deveres depende a própria existência da sociedade humana, a qual desmoronaria se nos homens não se incutisse uma reverência por essas importantes regras de conduta.

Essa reverência é ainda mais aprimorada por uma opinião, que primeiro a natureza incutiu, depois o raciocínio e a filosofia confirmaram, segundo a qual essas importantes regras da moralidade são os mandamentos e leis da Divindade, que finalmente recompensará os obedientes e punirá os que transgridem seus deveres.

Digo que essa opinião, ou apreensão, parece primeiramente incutida pela natureza. Os homens são naturalmente levados a atribuir àqueles misteriosos seres, o que quer que sejam os objetos de temor religioso em qualquer país, todos os seus próprios sentimentos e paixões. Não possuem nenhum outro, nenhum outro são capazes de conceber, para atribuirlhes. Esses desconhecidos intelectos que imaginam, mas não vêem, devem necessariamente ser formados com alguma espécie de semelhança com os intelectos dos quais têm alguma experiência. Durante a ignorância e treva da superstição pagã, a humanidade parece ter formado as idéias de suas divindades com tão pouca delicadeza, que lhes atribuíram, indiscriminadamente, todas as paixões da natureza humana, sem excluir as que menos honram a nossa espécie, como luxúria, fome, avareza, inveja e vingança. Por isso, não puderam deixar de atribuir àqueles seres, por cuja natureza excelente ainda concebiam a mais extrema admiração, os sentimentos e qualidades que são o grande ornamento da humanidade, e que parecem alçá-lo à semelhança da perfeição divina, a saber, o amor à virtude e à benemerência, o horror ao vício e à injustiça. O homem ofendido invocava Júpiter para testemunhar o mal que lhe faziam, e não duvidava de que esse ser divino contemplaria a prática dessa injustiça com a mesma indignação que animaria o espectador mais mesquinho. Quem praticou a ofensa sentiu-se objeto apropriado de ódio e ressentimento dos outros; e seus temores naturais o levaram a imputar os mesmos sentimentos àqueles terríveis seres, cuja presença não podia evitar, e a cujo poder não podia resistir. Esperanças, medos e suspeitas naturais foram propagados por solidariedade e confirmados pela educação, e universalmente se representaram e se julgaram os deuses como os que recompensam a humanidade e a misericórdia, e os que vingam a perfídia e a injustiça. Assim, muito tempo antes da era da filosofia e do raciocínio artificial, ainda que em sua forma mais rude, a religião sancionou as regras da moralidade. Para que a natureza não deixasse a felicidade dos homens depender da lentidão e incerteza dos estudos filosóficos foi de demasiada importância, pois, que os terrores da religião dessem cumprimento ao senso natural do dever.

Quando tais estudos ocorreram, no entanto, confirmaram-se as previsões originais da natureza. Seja qual for o fundamento de nossas faculdades morais, quer certa modificação da razão, quer um instinto original chamado senso moral, ou algum outro princípio de nossa natureza, não se pode duvidar de que nos foram dadas para orientar nossa conduta nesta vida. Trazem consigo as mais evidentes insígnias dessa autoridade, o que denota que foram instaladas dentro de nós para serem árbitros supremos de todas as nossas ações, para dirigir todos os nossos sentidos, paixões e apetites, e julgar em que medida cada um deles deve ser satisfeito ou contido. Ao contrário do que alguns pretenderam, de nenhuma maneira nossas faculdades morais ocupam a mesma posição das outras faculdades e apetites de nossa natureza, ou seja, teriam tanto direito de conter estes últimos, quanto estes de as conter. Nenhuma outra faculdade ou princípio de ação julga qualquer outro. O amor não julga o ressentimento, nem o ressentimento julga o amor. Essas duas paixões podem ser opostas entre si, mas não se pode dizer propriamente que aprovem ou desaprovem uma à outra. Porém, é ofício peculiar das faculdades que ora examinamos julgar, censurar ou aplaudir, todos os outros princípios da nossa natureza. Podem ser consideradas uma espécie de sentido, dos quais esses princípios são objetos. Cada sentido é supremo em relação a seus objetos. O olho não apela da beleza ou das cores, nem o ouvido da harmonia sonora, nem o gosto de sabores agradáveis. Cada um desses sentidos julga seus objetos em última instância. O que contenta o gosto é doce, o que agrada ao olho é belo, o que conforta o ouvido é harmonioso. A própria essência de cada uma dessas qualidades consiste em sua adequação a agradar ao sentido ao qual se remete. Da mesma maneira, cabe às nossas faculdades morais determinar quando se deve confortar o ouvido, quando se deve agradar ao olho, quando se deve contentar o gosto, quando e em que medida qualquer outro princípio de nossa natureza deve ser satisfeito ou contido. O que é agradável a nossas faculdades morais é adequado, certo e apropriado fazer-se; o contrário, errado, inadequado e impróprio. Os sentimentos que tais faculdades aprovam são graciosos e dignos; o contrário, é desgracioso e indigno. As próprias palavras “certo”, “errado”, “adequado”, “impróprio”, “gracioso”, “indigno”, significam apenas o que agrada ou desagrada essas faculdades.

Portanto, uma vez que estas foram claramente designadas como princípios reguladores da natureza humana, as regras que prescrevem devem ser consideradas como mandamentos e leis da Divindade, promulgados pelos vice-reis que Ele instalou dentro de nós. Todas as regras gerais são comumente denominadas leis, donde as regras gerais a que os corpos obedecem ao efetuar o movimento serem chamadas leis de movimento. Contudo, as regras gerais a que nossas faculdades morais obedecem ao aprovar ou condenar qualquer sentimento ou ação sujeito à sua jurisdição com muito mais justiça podem ser assim chamadas. Guardam muito mais semelhança com o que se chama propriamente de leis, a saber, as regras gerais que o soberano estabelece para ordenar a conduta de seus súditos. Como estas, são regras para ordenar as ações livres dos homens; são prescritas mais acertadamente por um superior legítimo, e também resultam na sanção de recompensas e punições. Pois os vice-reis de Deus dentro de nós nunca deixam de punir a violação delas com os tormentos da censura interna e autocondenação, e, ao contrário, sempre recompensam a obediência com tranqüilidade de espírito, contentamento e auto-satisfação.

Há inúmeras outras considerações que servem para confirmar a mesma conclusão. A felicidade dos homens, assim como de todas as outras criaturas racionais, parece ter sido o propósito original do Autor da Natureza quando os criou. Nenhuma outra finalidade parece digna da suprema sabedoria e divina benignidade que necessariamente lhe atribuímos; e essa opinião, a que chegamos pela abstrata consideração de Suas infinitas perfeições, confirma-a mais ainda o exame das obras da Natureza, que parecem, todas, designadas para promover felicidade e proteger contra a desgraça. Mas, ao agirmos de acordo com os ditames de nossas faculdades morais, necessariamente buscamos os meios mais eficazes de promover felicidade dos homens, e por conseguinte se pode dizer que, em certo sentido, colaboramos com a Divindade, e na medida de nossas possibilidades fazemos avançar os projetos da providência. Ao agirmos de outro modo, inversamente, parecemos obstruir em certa medida o plano que o Autor da Natureza estabeleceu para a felicidade e perfeição do mundo, e nos declaramos, se assim posso dizer, em alguma medida inimigos de Deus. Donde sermos naturalmente encorajados a esperar Seu extraordinário favor e recompensa num caso, e a temer sua vingança e punição, no outro.

Há, além desses, muitos outros motivos e princípios naturais que tendem, todos, a confirmar e inculcar a mesma salutar doutrina. Se considerarmos as regras gerais segundo as quais a prosperidade e adversidade exteriores são comumente distribuídas nesta vida, descobriremos que, malgrado a desordem em que tudo parece estar neste mundo, mesmo aqui toda virtude naturalmente encontra sua recompensa apropriada, ou seja, a mais adequada para encorajar e promovê-la; e isso é tão certo que é preciso um concurso extraordinário de circunstâncias para frustrá-la. Qual a recompensa mais apropriada para encorajar a destreza, a prudência e a circunspecção? Êxito em toda sorte de negócios. E é possível que na vida inteira essas virtudes não o consigam obter? Riqueza e honrarias externas são sua recompensa apropriada, a que raramente deixam de obter. Qual a recompensa mais apropriada para promover a prática da verdade, justiça e humanidade? A confiança, a estima e o amor daqueles com quem vivemos. A humanidade não almeja ser eminente, mas ser amada. A verdade e a justiça não se regozijariam com a riqueza, mas com a confiança e o crédito, recompensas que tais virtudes quase sempre obtêm. Por alguma circunstância extraordinária e muito infeliz, um homem bom pode se tornar suspeito de um crime que seria totalmente incapaz de cometer, e por essa razão ser injustamente exposto, pelo resto de sua vida, ao horror e aversão dos homens. Pode-se dizer que esse o faria perder tudo, a despeito de sua integridade e justiça, do mesmo modo como um homem cauteloso, a despeito de sua extrema circunspecção, pode ser arruinado por um terremoto ou inundação. Acidentes como os do primeiro tipo, porém, talvez sejam ainda mais raros e contrários ao curso comum das coisas do que os do segundo; ainda assim permanece verdadeiro que a prática da verdade, justiça e humanidade é um método certo e quase infalível de adquirir o que essas virtudes mais almejam: a confiança e o amor daqueles com quem vivemos. Uma pessoa pode muito facilmente ser mal interpretada quanto a uma ação particular; mas é quase impossível que o seja quanto ao sentido geral de sua conduta. Pode-se acreditar que um homem inocente praticou o mal – o que, entretanto, raramente acontece. Ao contrário, a firme opinião da inocência de seus hábitos, freqüentemente nos faz absolvê-lo quando realmente erra, apesar de indícios muito fortes. Da mesma maneira, um velhaco pode escapar da censura ou até receber aplausos por uma determinada patifaria, porque não se compreende a sua conduta. Mas nenhum homem se comportou habitualmente assim, sem que quase todos o soubessem, e nenhum homem foi freqüentemente suspeito de culpa, quando na realidade era perfeitamente inocente. E, na medida em que vício e virtude podem ser punidos ou recompensados pelos sentimentos e opiniões dos homens, ambos, segundo o curso normal das coisas, recebem mesmo aqui algo mais do que uma justiça exata e imparcial.

Ainda que, se consideradas desse viés isento e filosófico, as regras gerais pelas quais prosperidade e adversidade são comumente distribuídas pareçam perfeitamente adequadas à situação dos homens nesta vida, contudo, não se adaptam, em nenhuma medida, a alguns de nossos sentimentos naturais. Nosso natural amor e admiração por algumas virtudes é tal que desejaríamos conferir-lhes toda sorte de honrarias e recompensas, mesmo as que reconhecemos como próprias de qualidades que nem sempre acompanham essas virtudes. Ao contrário, nosso ódio a alguns vícios é tal que desejaríamos amontoar sobre eles toda sorte de desgraças e males, sem excetuar os que são a conseqüência natural de qualidades bastante diversas. Magnanimidade, generosidade e justiça ordenam uma admiração tão elevada, que desejamos vê-los coroados de riqueza, poder e honras de toda sorte – conseqüência natural de prudência, destreza e aplicação, qualidades com as quais essas virtudes não estão inseparavelmente associadas. Fraude, falsidade, brutalidade e violência, por outro lado, suscitam no peito de todo homem tal escárnio e repúdio, que açula nossa indignação vê-las possuírem benefícios, os quais talvez de algum modo tenham merecido, pela diligência e destreza que por vezes deles se seguem. O velhaco industrioso cultiva o solo, o bom homem indolente o deixa sem cultivo. Quem deve colher os frutos? Quem deve passar fome, quem deve viver em abundância? O curso natural das coisas decide em favor do velhaco, os sentimentos naturais da humanidade em favor do virtuoso. O homem julga que as boas qualidades de um são excessivamente recompensadas pelos benefícios que tendem a lhe proporcionar, e que as omissões do outro são punidas com demasiada severidade pela aflição que obviamente lhe causam; e as leis humanas, conseqüência de sentimentos humanos, privam o diligente e cauteloso traidor de sua vida e posses (estate), enquanto dão extraordinária recompensa à fidelidade e ao espírito público do bom cidadão, o qual, no entanto, é imprevidente e descuidado. Assim, a natureza ordena ao homem que corrija em certa medida essa distribuição das coisas, pois do contrário ela mesma teria corrigido. Com esse propósito, incita-o a seguir regras, as quais são diferentes das que ela própria obedece. A cada virtude e a cada vício a natureza dá precisamente a recompensa ou castigo que seja o mais adequado para encorajar uma, e refrear o outro. Apenas essa consideração a orienta, e pouco lhe importam os diversos graus de mérito ou demérito de que virtude e vício pareçam se apossar nos sentimentos e paixões do homem. Ao contrário, é isso unicamente o que lhe importa, e se empenharia em conceder a cada virtude uma posição (state) exatamente proporcional ao grau de estima e de amor, e a cada vício ao grau de desprezo e horror que ele próprio concebe. As regras que a natureza segue lhe são adequadas, as que o homem segue são adequadas para si mesmo; mas ambas são calculadas para propiciar a mesma grande finalidade: a ordem do mundo, a perfeição e a felicidade da natureza humana.

Embora desse modo o homem esteja empenhado em alterar a distribuição de coisas que os eventos naturais fariam, se isso lhes fosse legado; embora, como os deuses dos poetas, esteja intervindo perpetuamente por meios extraordinários em favor da virtude e em oposição ao vício, e, ainda como os deuses esforce-se por afastar a seta apontada para a cabeça do justo, e, ao contrário, apresse o gládio da destruição empunhado contra o perverso, de nenhum modo é capaz, no entanto, de mudar a fortuna de qualquer um dos dois, tornando-a adequada a seus próprios sentimentos e desejos. O curso natural das coisas não pode ser inteiramente dominado pelos esforços impotentes do homem, pois a corrente é demasiado rápida e forte para que a interrompa; e posto as regras que a orientam aparentem ter sido estabelecidas para os melhores e mais sábios propósitos, às vezes produzem efeitos que escandalizam todos os nossos sentimentos naturais. Que um grande conjunto de homens devesse prevalecer sobre um pequeno; que os envolvidos numa empresa que requer previsão e muito preparo prevalecessem sobre os que carecem de preparo e se opõem aos outros; e que todo fim deveria ser alcançado somente pelos meios que a natureza estabeleceu para sua aquisição, parece constituir regra não somente necessária e inevitável em si mesma, mas até útil e apropriada para suscitar a destreza e atenção dos homens. Todavia, se a conseqüência dessa regra é o predomínio da violência e do artifício sobre a sinceridade e a justiça, quanta indignação não se provoca no peito de cada espectador humano? Quanta dor e compaixão pelos sofrimentos do inocente, e que furioso ressentimento contra o êxito do opressor? Todos ficamos igualmente agravados e irados pelo mal causado, mas freqüentemente pensamos que está inteiramente fora de nosso poder repará-lo. Quando então desesperamos de encontrar força na terra capaz de conter o triunfo da injustiça, naturalmente apelamos aos céus e esperamos que doravante o grande Autor de nossa natureza executará por si mesmo tudo o que os princípios, fornecidos a nós por Ele para a orientação de nossa conduta, nos inclinam a tentar executar aqui mesmo; que Ele completará o plano que nos ensinou a iniciar; e, numa vida futura, restituirá a cada um conforme as obras que realizou neste mundo. E assim somos levados à crença numa condição futura, não apenas pelas fraquezas, esperanças e medos da natureza humana, mas pelos mais nobres e melhores princípios que a ela pertencem: o amor à virtude e o horror ao vício e à injustiça.

“Servirá à grandeza de Deus”, diz o eloqüente e filosófico Bispo de Clermont com a apaixonada e exagerada força da imaginação, que por vezes parece exceder os limites do decoro, “servirá à grandeza de Deus deixar o mundo que Ele criou em meio a tão universal desordem? Ver o perverso quase sempre prevalecer sobre o justo; o usurpador destronar o inocente; o pai tornar-se vítima da ambição de um filho desnaturado; o marido expirar sob os golpes de uma esposa bárbara e infiel? Do alto de Sua grandeza, deveria Deus contemplar esses melancólicos eventos como uma fantástica diversão, sem participar deles? Por ser grande, Ele deveria ser fraco, ou injusto, ou bárbaro? Porque os homens são pequenos, dever-se-ia permitir-lhes ser dissolutos sem punição, ou virtuosos sem recompensa? Ah, Deus! Se isso é uma característica do Vosso supremo ser, se sois Vós a quem adoramos por tão terríveis idéias, já não Vos posso reconhecer como meu pai, meu protetor, conforto de minha tristeza, amparo de minha fraqueza, recompensa de minha fidelidade. Não seríeis mais do que um tirano indolente e fantástico, que sacrifica os homens à sua vaidade insolente, e que os tirou do nada apenas para fazê-los servir de pilhéria do seu ócio e aos seus caprichos.”

Quando as regras gerais que determinam o mérito e demérito de ações passam a ser assim consideradas como leis de um ser onipotente – que vigia nossa conduta e, numa vida futura, recompensará a observância e punirá a infração dessas leis – passam a adquirir, necessariamente, uma nova sacralidade. De que nossa consideração pela vontade da Divindade deveria ser a regra suprema de nossa conduta, ninguém, que acredite em Sua existência, pode duvidar. O mero pensamento de desobediência parece implicar a mais ofensiva inconveniência. Como seria vão e absurdo que o homem negligenciasse ou contrapusesse os comandos que a infinita sabedoria e o infinito poder lhe impingiram. Como é desnaturado e impiedosamente ingrato quem não reverencia os preceitos que a infinita bondade do Criador prescreveu para si, embora de tal violação não se siga nenhum castigo! Também aqui os mais fortes motivos do interesse próprio reiteram o senso de conveniência. A idéia de que sempre estaremos sob as vistas de Deus e expostos ao castigo deste grande vingador da injustiça, malgrado possamos nos furtar à vigilância dos homens, ou nos posicionar fora do alcance da punição humana, é razão para refrear as mais obstinadas paixões, pelo menos as dos homens que, por reflexão constante, fizeram-se afeitos a tal idéia.

É assim que a religião dá cumprimento ao senso natural de dever, e é daí que a maioria dos homens está disposta a depositar grande confiança na probidade dos que parecem profundamente imbuídos de sentimentos religiosos. Imagina-se que tais pessoas estejam atadas por outra amarra, além das que regulam a conduta dos demais. O respeito à conveniência de qualquer ação, bem como à reputação; o respeito ao aplauso de seu próprio peito, bem como do de outrem, são motivos que, supõe-se, têm sobre o homem religioso a mesma influência que sobre o mundano. Mas o primeiro sofre outra restrição, pois nunca age de modo ponderado, senão em presença do grande Superior, o qual finalmente o recompensará de acordo com seus atos. Deposita-se, por isso, maior confiança na regularidade e precisão de sua conduta. E, sempre que os princípios naturais da religião não são corrompidos por facções e pelo fervor partidário de algum conluio indigno; sempre que o primeiro dever exigido seja cumprir todas as obrigações da moralidade; sempre que aos homens não se ensine que o respeito às observâncias frívolas são deveres de religião mais imediatos que atos de justiça e beneficência, ou que podem negociar com a Divindade, trocando sacrifícios, cerimônias e vãs súplicas por fraude, perfídia e violência, sem dúvida o mundo dá, a esse respeito, um veredito correto, depositando, justamente, dobrada confiança na retidão de conduta do homem religioso.


 
CAPÍTULO VI Em que casos o senso do dever deveria ser o único princípio de nossa conduta; e em que casos deveria coincidir com outros motivos
A religião provê motivos tão fortes para a prática da virtude, protege-nos da tentação do vício por meio de restrições tão poderosas, que muitos foram levados a supor que os princípios religiosos constituíam os únicos motivos louváveis de ação. “Não deveríamos”, dizem, “recompensar por gratidão, nem punir por ressentimento; não deveríamos proteger o desamparo de nossos filhos, nem prover conforto às fraquezas de nossos pais, por afeto natural. Todos os afetos por objetos particulares devem ser extintos de nosso peito, para que uma grande afeição tome o lugar de todas as outras: o amor à Divindade, o desejo de nos tornarmos amáveis a Ele, e de orientarmos nossa conduta em todos os aspectos segundo a Sua vontade. Não deveríamos ser gratos por gratidão, caridosos por humanitarismo, não deveríamos ter espírito público por amor a nosso país, nem generosos e justos apenas por amor aos homens. O único princípio e motivo de nossa conduta no cumprimento de todos esses diferentes deveres deveria ser um senso de que Deus nos ordenou que os cumpríssemos.” Não me deterei, por ora, em examinar particularmente essa opinião; apenas advirto que não se espere encontrar uma seita que a mantenha e ao mesmo tempo se professe de uma religião na qual o primeiro preceito seja o de amar Deus, nosso Senhor, de todo o coração, com toda a nossa alma, com toda a nossa força, e o segundo, de amar nosso próximo como a nós mesmos. Certamente nos amamos por nós mesmos, e não somente porque isso nos foi ordenado. Em nenhuma parte o Cristianismo ordena o preceito de que o senso de dever constitui o único princípio de nossa conduta; mas, que deva ser o dominante e o regulador, ordena-o a filosofia, e de fato o senso-comum.

Poder-se-ia perguntar, entretanto, em que casos nossas ações deveriam se originar principal ou inteiramente de um senso de dever, ou de uma consideração por regras gerais, e em que casos algum outro sentimento ou afeto deveria coincidir ou exercer uma influência decisiva.

A solução dessa pergunta, que talvez não se possa fornecer com grande exatidão, dependerá de duas circunstâncias diferentes: primeiro, da natural amabilidade ou deformidade do sentimento ou afeto que nos levaria a praticar uma ação qualquer, independentemente de toda consideração por regras gerais; segundo, da precisão e exatidão, ou imprecisão e incerteza das próprias regras gerais.

I. Primeiro, afirmo que dependerá da natural amabilidade ou deformidade do próprio afeto, isto é, em que medida nossas ações deveriam se originar daí, ou proceder inteiramente de se respeitar a regra geral.

Todas essas ações amáveis e admiráveis a que nos impeliriam os afetos benevolentes deveriam proceder tanto das próprias paixões, quanto de qualquer consideração das regras gerais de conduta. Um benfeitor julga-se mal recompensado quando a pessoa a quem prestou seus bons serviços os retribui apenas por um frio senso de dever, sem qualquer afeto para com a sua pessoa. Um marido fica insatisfeito com a mais obediente esposa, se imagina que nenhum outro princípio motiva sua conduta, além do respeito pelo que exige o vínculo que a prende. Embora um filho não devesse se esquecer de nenhuma das tarefas do dever filial, se lhe falta a afetuosa reverência que lhe convém sobremaneira sentir, o pai pode justamente reclamar de sua indiferença. Tampouco um filho poderia satisfazer-se plenamente com um pai que, embora cumprisse todos os deveres de sua condição, nada tivesse do carinho paternal que se poderia esperar dele. No que diz respeito a todos esses afetos benevolentes e sociáveis, é agradável ver o senso de dever empregado antes para os refrear, do que para os animar, antes para impedir de nos excedermos, do que para nos impelir a fazer o que deveríamos. Dá-nos prazer ver um pai obrigado a controlar o próprio carinho, um amigo obrigado a estabelecer limites para sua generosidade natural, uma pessoa que recebeu um benefício obrigada a conter a gratidão sanguínea de seu próprio temperamento.

A máxima contrária diz respeito às paixões maléficas e insociáveis. Deveríamos recompensar pela gratidão e generosidade de nossos próprios corações, sem nenhuma relutância, sem sermos obrigados a refletir sobre a notável conveniência de se recompensar; mas sempre deveríamos punir com relutância, mais por um senso da conveniência de se punir do que por qualquer selvagem disposição para vingar-se. Nada é mais gracioso do que o comportamento do homem que aparenta ressentir-se das maiores ofensas, mais por um senso de que estas merecem ressentimento e são seus objetos apropriados, do que por sentir as fúrias dessa desagradável paixão; que, como um juiz, leva em conta apenas a regra geral, a qual determina que vingança é devida a cada ofensa particular; que, ao pôr em execução essa regra, sente menos o que ele próprio sofreu do que o ofensor está prestes a sofrer; que, embora irado, lembra-se da misericórdia, e está disposto a interpretar a regra da maneira mais gentil e favorável, e a permitir todos os paliativos que a mais sincera humanidade poderia, em conformidade com o bom-senso, admitir.

Já se observou anteriormente que, em outros aspectos, as paixões egoístas ocupam uma espécie de posição intermediária entre os afetos sociáveis e insociáveis. O mesmo ocorre aqui. Em todos os casos comuns, miúdos e ordinários, a busca por objetos de interesse particular deveria derivar antes de uma consideração por regras gerais que prescrevem tal conduta, do que de qualquer paixão pelos objetos em si; no entanto, em ocasiões mais importantes e extraordinárias, deveríamos ficar embaraçados, estúpidos e sem-graça, se os próprios objetos não parecessem nos animar com um grau considerável de paixão. Estar apreensivo ou arquitetar alguma trama seja para ganhar, seja para poupar um só xelim degradaria o mais vulgar comerciante na opinião de seus vizinhos. Contanto que suas circunstâncias sejam míseras, nenhuma atenção a assuntos por si só tão pequenos deve transparecer na sua conduta. Sua situação pode exigir a mais rigorosa poupança, e a mais exata diligência; mas cada esforço particular dessa poupança e diligência deve proceder, não tanto da consideração pela poupança ou ganho específicos, como da regra geral que lhe prescreve, com extremo rigor, essa regularidade da conduta. Sua parcimônia de hoje não deve se originar especificamente do desejo pelas três moedas que isso lhe permite poupar, tampouco o trabalho em sua loja deve proceder especificamente de uma paixão pelas dez moedas que obterá com isso; tanto uma como outro deveriam se originar apenas de uma consideração pela regra geral que prescreve, com a mais implacável severidade, esse plano de conduta a todas as pessoas que vivem da mesma maneira que ele. Nisso consiste a diferença entre o caráter de um miserável e o de um homem de correta economia e diligência. A uns os assuntos miúdos preocupam por si mesmos; ao outro, esses assuntos interessam apenas por causa do programa de vida que estabeleceu para si próprio.

Dá-se o contrário quando se trata de objetos de interesse pessoal mais importantes e extraordinários. Revela-se de espírito mesquinho quem não persegue tais objetos por si mesmos, com alguma perseverança. Deveríamos desprezar um príncipe que não se preocupasse em conquistar ou defender uma província. Deveríamos ter pouco respeito por um cavalheiro de baixa patente que não se empenhasse em adquirir posses ou mesmo um cargo considerável, quando os poderia obter sem mesquinharia ou injustiça. Um membro do Parlamento que não demonstra entusiasmo pela sua própria eleição é abandonado pelos amigos por ser totalmente indigno de sua afeição. Até mesmo os colegas julgam frouxo o comerciante que não move uma palha para ter o que chamam um excelente serviço ou um benefício incomum. Essa ousadia e entusiasmo fazem a diferença entre o homem empreendedor e o homem de obtusa regularidade. Aqueles grandes objetos de interesse próprio, cuja perda ou aquisição muda inteiramente a posição social de alguém, são objetos da paixão propriamente chamada ambição, paixão que, quando mantida dentro das fronteiras da prudência e da justiça, é sempre admirada no mundo, mas, quando ultrapassa os limites dessas duas virtudes, assumindo um esplendor irregular que ofusca a imaginação, torna-se não apenas injusta, mas extravagante. Daí a admiração geral por heróis e conquistadores, até por estadistas, cujos projetos foram muito audaciosos e amplos, embora totalmente despidos de justiça, tais como os dos cardeais Richelieu e Retz. Os objetos da avareza e da ambição diferem apenas em grandeza. Um miserável enfurece-se tanto por um centavo, quanto um homem ambicioso pela conquista de um reino.

II. Segundo, afirmo que dependerá parcialmente da precisão e exatidão, ou da imprecisão e incerteza das próprias regras gerais, isto é em que medida nossa conduta deveria proceder inteiramente de se respeitá-las.

As regras gerais relativas a quase todas as virtudes, as que determinam quais as tarefas da prudência, da caridade, da generosidade, da gratidão, da amizade, são em muitos aspectos imprecisas e incertas, pois admitem muitas exceções, e exigem tantas modificações que é quase impossível regular nossa conduta inteiramente por respeito a elas. As máximas proverbiais comuns da prudência, sendo fundadas na experiência universal, talvez sejam as melhores regras gerais que a esse respeito se possa oferecer. Entretanto, afetar que se as segue de modo rigorosamente estrito e literal evidenciaria o mais absurdo e ridículo pedantismo. De todas as virtudes recém-mencionadas, talvez a gratidão possua as regras mais precisas, e admita o menor número de exceções. Que tão logo pudéssemos deveríamos dar igual e, se possível, superior retribuição aos favores recebidos, pareceria uma regra bastante clara, e que admite pouquíssimas exceções. No entanto, ao mais superficial exame, essa regra revelará o mais alto grau de imprecisão e incerteza e admitirá dez mil exceções. Se teu benfeitor cuidou de ti quando estavas enfermo, deverias tu cuidar dele se adoentasse? Ou podes cumprir a obrigação de gratidão, retribuindo-o de outra maneira? Se devesses cuidar dele, seria por quanto tempo? Pelo mesmo tempo em que ele cuidou de ti, ou mais, e quanto mais? Se teu amigo emprestou-te dinheiro quando estavas aflito, deverias emprestar-lhe dinheiro quando precisar? E quanto deverias emprestar? Quando? Agora, amanhã, no mês que vem? E por quanto tempo? É evidente que não se pode estabelecer regra geral que forneça resposta precisa a todas essas questões. A diferença entre o caráter do outro e o teu, a situação dele e a tua, pode ser tal que sejas perfeitamente grato mas te recuses a lhe emprestar um centavo; e, ao contrário, podes estar disposto a emprestar, ou até lhe dar dez vezes a quantia que ele te emprestou, e, contudo, ser justamente acusado da mais negra ingratidão, de não ter cumprido um centésimo da obrigação a que estás atado. Assim como os deveres da gratidão talvez sejam, entretanto, os mais sagrados de todos os que nos são prescritos pelas virtudes beneficentes, também as regras gerais que os determinam são, como já comentei antes, as mais precisas. As que determinam as ações necessárias para a amizade, humanidade, hospitalidade, generosidade, são ainda mais vagas e indeterminadas.

Há, porém, uma virtude cujas regras gerais determinam, com a maior exatidão, o que se exige de cada ação externa. Essa virtude é a Justiça. As regras da justiça são extremamente precisas, e não admitem exceções, nem modificações, exceto as que podem ser determinadas de modo tão preciso quanto as próprias regras, e que geralmente derivam de fato dos mesmos princípios que essas. Se devo dez libras a um homem, a justiça exige que eu lhe pague exatamente dez libras, ou no tempo acordado, ou quando ele o exigir. O que eu devo cumprir, quanto deveria cumprir, quando e onde devo cumprir, a natureza e as circunstâncias completas da ação prescrita, tudo isso está precisamente fixado e determinado. Portanto, embora possa ser embaraçoso e pedante afetar que se seguem estritamente as regras comuns da prudência ou da generosidade, não há pedantismo em manter-se imperturbável no cumprimento às regras da justiça. Ao contrário, a elas se deve o mais sagrado respeito; e as ações que essa virtude exige nunca são realizadas de maneira tão apropriada como quando o principal motivo de as realizar é o reverente e religioso respeito às regras gerais que as exigem. Na prática de outras virtudes, nossa conduta deveria ser orientada mais por certa idéia de conveniência, certo gosto por uma determinada regularidade de conduta, que por respeito a uma máxima ou regra exata; e deveríamos respeitar a finalidade e o fundamento da regra mais do que a regra em si. Mas dá-se o contrário quando se trata da justiça: o homem menos cultivado, o que segue com a mais obstinada constância as regras gerais nelas mesmas, é o mais recomendável, aquele em quem mais se pode confiar. Embora a finalidade das regras de justiça seja impedir-nos de provocar dano a nosso próximo, freqüentemente pode constituir crime violá-las, a despeito de alegarmos, como pretexto razoável, que uma determinada violação não provocaria dano algum. Não é raro que um homem se transforme em vilão no momento em que começa, até no seu foro íntimo, a chicanear dessa maneira. No instante em que cogita de abandonar a mais firme adesão ao que lhe prescrevem esses preceitos invioláveis, não mais é confiável, e já não se sabe a que grau de culpa pode chegar. O ladrão imagina que não há mal nenhum em roubar dos ricos algo de que, segundo supõe, seguramente não darão por falta, algo que possivelmente nem saberão que lhes foi roubado. O adúltero imagina que não há mal nenhum em corromper a mulher do seu amigo, desde que acoberte sua intriga da suspeita do marido, e não perturbe a paz da família. Uma vez que começamos a ceder a tais sutilezas, não há enormidade de que não sejamos capazes.

As regras de justiça podem ser comparadas às regras de gramática; as regras das outras virtudes, às regras que os críticos estabelecem para alcançar o sublime e elegante na composição. As primeiras são precisas, exatas, indispensáveis; as outras, imprecisas, vagas, indeterminadas, e nos apresentam mais uma idéia geral da perfeição que deveríamos buscar, do que orientações certas e infalíveis para a atingir. Se seguir as regras, um homem pode aprender a escrever, do ponto de vista gramatical, corretamente, com a mais absoluta infalibilidade; e assim talvez se possa ensiná-lo a agir com justiça. Mas não há regras cuja observância nos conduzirá infalivelmente a alcançar o elegante e o sublime na prosa, embora haja algumas que possam nos ajudar, em certa medida, a corrigir e a determinar as vagas idéias que do contrário poderíamos formar sobre essas perfeições. E não há regras por cujo conhecimento somos ensinados infalivelmente a agir em todas as ocasiões com prudência, com justa magnanimidade, ou beneficência apropriada, embora haja algumas que podem nos capacitar a corrigir e discernir em vários aspectos as idéias imperfeitas que de outro modo poderíamos formar dessas virtudes.

Algumas vezes, pode suceder que, tendo o mais sério e determinado desejo de agir de modo a merecer aprovação, enganemo-nos sobre as regras apropriadas de conduta, e então nos desencaminhe esse mesmo princípio que deveria nos orientar. É inútil esperar que nesse caso os homens aprovem inteiramente nosso comportamento. Não podem compartilhar a absurda idéia de dever que nos influenciou, nem tomar parte de nenhuma das ações que dela resultam. Ainda assim, há todavia algo respeitável no caráter e comportamento de alguém que é dessa maneira atraído ao vício por um senso errado de dever, ou pelo que se chama consciência errônea. Por mais que se tenha desencaminhado por fatalidade, ainda será, entre os generosos e humanos, objeto de comiseração mais do que de ódio ou ressentimento. Lamentarão a fraqueza da natureza humana, que nos expõe a tão desafortunadas ilusões, mesmo quando mais sinceramente labutamos pela perfeição e nos esforçamos para agir conforme o melhor princípio que nos possa orientar. Nesse sentido, falsas noções de religião são quase as únicas causas que podem ocasionar alguma perversão mais vulgar de nossos sentimentos naturais; e apenas esse princípio que confere a maior autoridade às regras do dever é capaz de distorcer consideravelmente nossas idéias a respeito de tais sentimentos. Em todos os outros casos, o senso-comum basta para nos orientar, se não na direção da mais refinada conveniência de conduta, pelo menos na direção de algo que não está longe disso; e desde que desejemos determinadamente agir bem, nosso comportamento sempre será, em geral, louvável. Que obedecer à vontade de Deus constitui a primeira regra do dever, todos os homens estão de acordo. No entanto, no que se refere aos mandamentos específicos que essa vontade pode impor sobre nós, divergem amplamente uns dos outros. Aqui, portanto, espera-se a maior paciência e tolerância mútuas; e ainda que a defesa da sociedade exija que os crimes sejam punidos, sejam quais forem os motivos de que procederam, um bom homem sempre os punirá com relutância, se procederem claramente de falsas noções de dever religioso. Jamais sentirá contra os que os cometem a indignação que sente contra outros criminosos, mas, ao contrário, na mesma hora em que punir seus crimes, lamentará, e às vezes até admirará, sua infortunada firmeza e magnanimidade. Na tragédia Maomé, das melhores de Voltaire, está bem representado quais deveriam ser nossos sentimentos para com crimes que procedem de tais motivos. Nessa tragédia, dois jovens de sexos diferentes, de disposição a mais inocente e virtuosa, e sem nenhuma outra fraqueza, senão a que os torna ainda mais caros a nós, ou seja, uma afeição mútua um pelo outro, são instigados pelos mais fortes motivos de uma falsa religião a cometer um horrendo assassinato, que ofende todos os princípios da natureza humana. Um venerável ancião, que exprimira o mais terno afeto pelos dois; por quem, malgrado inimigo confesso de sua religião, ambos concebiam elevada reverência e estima; e que, embora não soubessem, na verdade era seu pai, é-lhes indicado para o sacrifício que Deus exigira expressamente que fizessem com suas próprias mãos, sendo então lhes ordenado que o matassem. Quando estão prestes a executar o crime, torturam-nos todas as agonias que podem se originar do conflito entre a idéia do dever religioso indispensável, de um lado, e, de outro, a compaixão, gratidão, reverência pela idade, amor à humanidade e à virtude do homem a quem vão destruir. Essa representação exibe o mais interessante, e talvez o mais instrutivo, dos espetáculos já levados à cena em qualquer teatro. Mas afinal o senso de dever prevalece sobre todas as amáveis fraquezas da natureza humana. Executam o crime que lhes fora imposto, porém imediatamente descobrem seu erro e a fraude que os enganou, e são atormentados pelo horror, remorso e ressentimento. Tais são nossos sentimentos pelos infelizes Seid e Palmira, tais deveriam ser nossos sentimentos por toda pessoa que desse modo foi desencaminhada pela religião, se estamos certos de que foi realmente a religião o que a desencaminhou, não uma pretensa religião, de que se faz uma capa para algumas das piores paixões humanas.

Assim como um homem pode agir mal, seguindo um mau senso de dever, também às vezes a natureza pode prevalecer, levando-o a agir bem, em oposição a esse senso. Nesse caso, não pode nos desagradar ver a prevalência do motivo que julgamos deva prevalecer, embora a própria pessoa seja demasiado fraca para julgar de outro modo. Mas como sua conduta resulta de fraqueza, não de princípio, é difícil lhe conceder algo semelhante à completa aprovação. Um católico fanático, que, durante o massacre de São Bartolomeu, foi tão dominado pela compaixão, que salvou alguns infelizes protestantes a quem pensava ser seu dever destruir, não pareceria ter direito ao alto aplauso que deveríamos ter-lhe concedido, tivesse ele praticado a mesma generosidade com a completa aprovação de si. Poderia agradar-nos a humanidade de seu temperamento, mas ainda assim o veríamos com uma espécie de piedade, a qual é inteiramente inconsistente com a admiração devida à virtude perfeita. O mesmo ocorre com todas as demais paixões. Não nos desgosta vê-las praticadas de modo apropriado ainda quando a falsa noção de dever ordenasse à pessoa que as contivesse. Não desagradaria que um quacre muito devoto, levando um tapa numa face, em vez de oferecer a outra, esquecesse de tal modo sua interpretação literal do preceito do Salvador, a ponto de aplicar uma boa disciplina ao bruto que o insultou. Havíamos de rir e nos divertir com seu espírito, e gostar ainda mais dele. Mas de modo algum o veríamos com o respeito e estima que pareciam devidos a alguém que, numa ocasião semelhante, tivesse agido propriamente por um senso justo do que era conveniente fazer. Nenhuma ação pode ser propriamente chamada virtuosa, se não for acompanhada do sentimento de aprovação de si.


 
QUARTA PARTE DO EFEITO DA UTILIDADE SOBRE O SENTIMENTO DE APROVAÇÃO

 
CAPÍTULO I Da beleza que a aparência de utilidade confere a todos os produtos de arte, e da ampla influência dessa espécie de beleza
Todos os que já consideraram com alguma atenção o que constitui a natureza da beleza observaram que a utilidade é uma das principais fontes de beleza. A comodidade de uma casa proporciona tanto prazer ao espectador, quanto a regularidade; e do mesmo modo causa-lhe pesar observar o defeito contrário, como, por exemplo, ver que as janelas correspondentes são de diferentes formatos, ou a porta não colocada exatamente no meio do edifício. Que a capacidade de qualquer sistema ou máquina para produzir a finalidade para a qual foram planejadas confere certa conveniência e propriedade ao todo e torna agradável tão-somente imaginá-lo ou contemplálo, é algo tão óbvio que ninguém jamais deixou de notar.

Também, a causa por que nos agrada o útil indicou-nos ultimamente um filósofo engenhoso e agradável, que reúne grande profundidade de pensamento à maior elegância de expressão, e que possui o singular e feliz talento de tratar os temas mais abstrusos não apenas com a mais perfeita perspicuidade, mas com a mais viva eloqüência. De acordo com esse filósofo, a utilidade de qualquer objeto agrada ao seu dono porque lhe sugere, constantemente, o prazer ou comodidade que é capaz de lhe proporcionar. Toda vez que o contempla, vemlhe à lembrança esse prazer, e dessa maneira o objeto torna-se fonte de perpétua satisfação e deleite. Por simpatia, o espectador compartilha os sentimentos do dono, e necessariamente considera o objeto sob o mesmo aspecto agradável. Quando visitamos os palácios dos poderosos, não podemos evitar de conceber a satisfação que nos daria se fôssemos nós os donos, e se possuíssemos acomodações fabricadas de modo tão inventivo e engenhoso. É semelhante a razão por que a aparência de desconforto torna qualquer objeto desagradável, tanto ao dono, quanto ao espectador.

Mas, até onde sei, ninguém antes cuidou que essa capacidade, essa feliz invenção de qualquer produção artística seja com freqüência mais valorizada do que o fim para o qual tais objetos foram designados e, do mesmo modo, que o ajuste exato de meios para obter qualquer comodidade ou prazer seja, não raro, mais valorizado do que a própria comodidade ou prazer, em cuja obtenção pareceria residir todo seu mérito. Porém, que isso aconteça amiúde, é algo que se pode observar em mil exemplos, tanto nos mais frívolos, quanto nos mais importantes assuntos da vida humana.

Quando uma pessoa entra em seu aposento e vê as cadeiras todas no meio do quarto, fica zangada com seu criado, e, a vê-las nessa desordem, prefere, talvez, o trabalho de colocá-las em seus lugares com os encostos contra a parede. A conveniência dessa nova situação surge da maior comodidade de deixar o assoalho livre e sem estorvos. Para conseguir essa comodidade, impõe-se voluntariamente mais trabalho do que a falta dela teria provocado, pois nada seria mais fácil do que sentar-se numa das cadeiras, o que provavelmente fará, quando seu trabalho terminar. Portanto, parece que desejava não tanto a comodidade, como o arranjo que as coisas promovem. E, no entanto, é essa comodidade o que em última instância recomenda o arranjo e o que lhe confere toda a sua conveniência e beleza.

Da mesma maneira, um relógio que se atrasa mais de dois minutos por dia é desprezado por um indivíduo interessado em relógios. Talvez o venda por um par de guinéus, e compre outro por cinqüenta, desde que este não se atrase mais do que um minuto a cada quinze dias. A única utilidade dos relógios, entretanto, é dizer-nos as horas, impedindo-nos de descumprir qualquer compromisso, ou de passar por outro incômodo por ignorarmos o horário. Mas a pessoa que tem tanto zelo por essa máquina nem sempre seria mais escrupulosamente pontual do que outros homens, nem por algum outro motivo teria uma preocupação maior de saber exatamente a hora do dia. O que a interessa não é tanto a obtenção desse conhecimento particular, como a perfeição da máquina que serve para alcançá-lo.

Quantas pessoas arruínam-se gastando dinheiro em enfeites de utilidade frívola? O que agrada a esses amantes de brinquedos não é tanto a utilidade, mas a aptidão das máquinas que são adequadas para promovê-la. Todos os seus bolsos estão entupidos de pequenas comodidades. Inventam novos bolsos, que não existem nas roupas de outras pessoas, para carregar grande número dessas coisas. Passeiam abarrotadas de um sem-número de bugigangas, que não são inferiores em peso e às vezes nem em valor a uma ordinária sacola de mercadorias, algumas das quais por vezes são de pouco uso, mas que por vezes poderiam ser, todas, dispensadas, e que, juntas, certamente não valem o cansaço e o peso suportados.

Entretanto, esse princípio não influi em nossa conduta apenas quando se trata de objetos tão frívolos: é muito freqüentemente o motivo secreto das mais sérias e importantes ocupações da vida, seja privada, seja pública.

O filho do homem pobre, a quem o céu, na sua ira, castigou com a ambição, admira a condição dos ricos tão logo começa a olhar a seu redor. Pensa que a choupana do pai é pequena demais para o acomodar e imagina que estaria confortável se estivesse hospedado num palácio. Não gosta de ser obrigado a andar a pé, ou suportar a fadiga de cavalgar no lombo de um cavalo. Vê seus superiores sendo conduzidos por aí em carros, e acredita que num deles viajaria com muito menos incômodo. Sente-se por natureza indolente, desejando servir-se o menos possível com suas próprias mãos e julga que uma numerosa comitiva de criados lhe pouparia muito trabalho. Pensa que se alcançasse tudo isso ficaria sentado, contente, quieto, divertindo-se com a idéia da felicidade e tranqüilidade de sua situação. Está encantado com a remota idéia dessa felicidade. Em sua imaginação, essa parece a vida de algum ser superior, e para ascender a ela consagra-se a perseguir para sempre riqueza e honra. A fim de obter as comodidades que essas coisas proporcionam, submete-se durante o primeiro ano, ou melhor, durante o primeiro mês de seu esforço, às maiores fadigas corporais e à maior perturbação do espírito do que todas as que poderia sofrer durante sua vida inteira, se não houvesse ambicionado honra e riqueza. Estuda para distinguir-se em alguma árdua profissão. Com a mais incansável dedicação, trabalha dia e noite para adquirir talentos superiores a todos os seus competidores. Em seguida, esforça-se para exibir esses talentos ao público, e com igual cuidado solicita toda oportunidade de os empregar. Para isso, faz a corte a toda a humanidade, serve aos que odeia, é obsequioso com aqueles a quem despreza. Durante toda a sua vida, persegue a idéia de certo repouso artificial e elegante, que talvez jamais alcance, e pelo qual sacrifica uma tranqüilidade verdadeira que a todo o tempo está a seu dispor; repouso que, se nos extremos da velhice chega por fim a conquistar, descobrirá que não é, de modo algum, preferível a essa humilde segurança e contentamento que abandonou por ele. É então, nos últimos arrancos de sua vida, o corpo exaurido por fadigas e doenças, o espírito amargurado e assaltado pela lembrança de mil ofensas e desilusões que imagina procederem da injustiça de seus inimigos ou da perfídia e ingratidão dos amigos, quando finalmente começa a se dar conta de que riqueza e honra são meros enfeites frívolos em nada mais capazes de propiciar alívio ao corpo e tranqüilidade ao espírito do que os estojos dos aficionados por bugigangas e que, como elas, são um fardo mais pesado para quem as carrega, que cômodas pela soma de vantagens que poderiam proporcionar. Nenhuma outra verdadeira diferença há entre eles, exceto que as comodidades de um são mais notáveis do que as de outro. Os palácios, jardins, carruagens, serviçais dos poderosos são objetos cuja manifesta comodidade impressiona a todos. Não é necessário que seus donos nos indiquem em que consiste sua utilidade. De bom grado os apreciamos prontamente, por simpatia usufruímos e, por isso, aplaudimos a satisfação que são capazes de proporcionar aos donos. Mas a curiosidade por um palito de dentes, um limpador de ouvidos ou um aparelho de cortar unhas, por qualquer bugiganga desse tipo, não é tão manifesta. Sua comodidade pode ser igualmente grande, mas menos impressionante, além de não apreciarmos tão prontamente a satisfação do homem que as possui. São, portanto, objetos de vaidade menos razoáveis do que a magnificência da riqueza e da grandeza; e nisso consiste a única vantagem destas últimas. Satisfazem mais efetivamente aquele amor à distinção, tão natural no homem. Para quem vivesse sozinho numa ilha deserta, talvez fosse duvidoso que um palácio ou uma coleção dos pequenos utensílios, que por vezes cabem numa caixa de quinquilharias, pudessem contribuir mais para sua felicidade e deleite. Se vive em companhia de outros, com efeito, não há comparação, porque nesse, como em todos os outros casos, sempre levamos mais em conta os sentimentos do espectador do que os da pessoa diretamente envolvida e consideramos mais como sua situação se mostrará aos outros, que como se mostrará a ela mesma. Porém, se examinarmos por que o espectador distingue com tal admiração a condição dos ricos e poderosos, descobriremos que não obedece tanto ao ócio e prazer de que supostamente desfrutam, quanto aos inumeráveis expedientes artificiais e elegantes de que dispõem para obter esse ócio e esse prazer. Na realidade, o espectador não imagina que gozem de maior felicidade que as outras pessoas: imagina que disponham de mais meios para alcançá-lo. E a principal causa de sua admiração radica na engenhosa e inventiva adaptação desses meios para a finalidade para que foram criados. Mas no langor da enfermidade e no cansaço da velhice, desaparecem os prazeres dos vãos e quiméricos sonhos de grandeza. Para alguém que se encontre nessa situação, esses prazeres já não possuem atração suficiente para recomendar os penosos desvelos que antes o ocuparam. No fundo de seu coração amaldiçoa a ambição e em vão lamenta a despreocupação e indolência da juventude, prazeres que se foram para sempre, e que tolamente sacrificou por algo que, quando o possuiu, já não pode lhe proporcionar uma satisfação verdadeira. Tal é o miserável aspecto que oferece a grandeza a todo homem reduzido, por melancolia ou doença, a observar atentamente sua própria situação, e a considerar o que realmente falta para sua felicidade. Então, poder e riqueza se mostram como na verdade são: gigantescas e trabalhosas máquinas fabricadas para produzir algumas poucas insignificantes comodidades para o corpo, consistindo de molas belas e delicadas que se devem manter em bom estado com a mais ardorosa atenção, e que, apesar de todos os nossos cuidados, estão sempre prontas a arrebentar em mil pedaços, esmagando, em seus destroços, seu infeliz dono. São imensos edifícios que exigem o trabalho de uma vida inteira para serem erguidos, a todo momento ameaçam dominar quem neles habita, e que, enquanto estão de pé, embora possam poupá-lo de algum dos menores incômodos, não o podem proteger de nenhuma das mais severas inclemências da estação. Afastam as chuvas de verão, não a tempestade de inverno, mas a todo o tempo o deixam cada vez mais exposto à ansiedade, ao medo, e à dor; às doenças, à ira e à morte.

Mas ainda que essa filosofia biliosa, familiar a todos em tempos de doença ou infortúnio, deprecie de modo tão absoluto os grandes objetos do desejo humano, quando desfrutamos de melhor saúde ou melhor humor, jamais deixamos de considerá-los sob um aspecto mais agradável. Nossa imaginação, que na dor e no sofrimento parece confinada e encerrada dentro dos limites de nós mesmos, em tempos de conforto e prosperidade expande-se para tudo que nos rodeia. Encanta-nos, então, a beleza do conforto que reina nos palácios e na economia dos poderosos, e admiramos como tudo concorre para promover sua tranqüilidade, para evitar que lhes falte algo, e para divertir seus mais frívolos desejos. Se considerarmos por si só a satisfação que todas essas coisas são capazes de proporcionar, separada da beleza de disposição adequada para suscitá-la, sempre parecerá muito desprezível e trivial. No entanto, raras são as vezes em que as vemos sob essa luz abstrata e filosófica. Em nossa imaginação, naturalmente a confundimos com a ordem, o movimento uniforme e harmonioso do sistema, a máquina ou economia que a produzem. Os prazeres da riqueza e das honras, considerados desse ponto de vista complexo, atingem a imaginação como se se tratasse de algo grandioso, belo e nobre, cuja obtenção vale bem todo o trabalho e cuidado que tão dispostos estamos a lhe dedicar.

E é bom que a natureza se imponha a nós dessa maneira. É essa ilusão que dá origem e mantém em contínuo movimento a destreza dos homens. É o que primeiro os incitou a cultivar o solo, a construir casas, a fundar cidades e estados e a inventar e a aperfeiçoar todas as ciências e artes, que enobrecem e embelezam a vida humana; que mudaram toda face do globo, transformando as rudes florestas naturais em planícies (plains) agradáveis e férteis, o insondável e estéril oceano em nova fonte de subsistência, e na grande via de comunicação entre as diferentes nações da terra. Por causa desses trabalhos humanos, a terra foi obrigada a redobrar sua fertilidade natural, para manter um número maior de habitantes. Não é em vão que o altivo e insensível senhor feudal vê seus amplos campos e, sem pensar nas carências de seus irmãos, consome em imaginação tudo o que ali está plantado. Nunca o provérbio popular e comum, de que os olhos são maiores do que a barriga, confirmou-se mais que nesse caso. A capacidade do seu estômago não mantém nenhuma proporção com a imensidão de seus desejos, pois não receberá nada além do que o mais vil camponês. É obrigado a distribuir o que sobra entre os que melhor preparam o pouco de que ele faz uso, entre os que arrumam o palácio em que se consumirá esse pouco, entre os que provêm e mantêm em ordem todas as diversas miudezas e bugigangas empregadas na economia da honra; entre todos os que de seu luxo e capricho extraem a porção das necessidades da vida que debalde teriam esperado de sua humanidade ou de sua justiça. Em todos os tempos, o produto do solo sustenta aproximadamente o número de habitantes que é capaz de sustentar. Os ricos apenas escolhem do monte o que é mais precioso e mais agradável. Consomem pouco mais do que os pobres; e a despeito de seu natural egoísmo e rapacidade, embora pensem tão-somente em sua própria comodidade, embora a única finalidade que buscam, ao empregar os trabalhos de muitos, seja satisfazer seus próprios desejos vãos e insaciáveis, apesar disso dividem com os pobres o produto de todas as suas melhorias. São conduzidos por uma mão invisível a fazer quase a mesma distribuição das necessidades da vida que teria sido feita, caso a terra fosse dividida em porções iguais entre todos os seus moradores; e assim, sem intenção, sem saber, promovem os interesses da sociedade, e oferecem meios para multiplicar a espécie. Quando a providência dividiu a terra entre uns poucos orgulhosos senhores, não se esqueceu e tampouco abandonou os que pareciam ter ficado fora dessa partilha. Também estes usufruíram sua parte em tudo o que a terra produz. No que se refere à verdadeira felicidade da vida humana, não são em nada inferiores aos que pareceriam estar tão acima deles. No conforto do corpo e na paz de espírito, todas as diferentes posições da vida estão quase no mesmo nível, e o mendigo que se aquece ao sol junto da estrada possui a segurança por que se batem os reis.

O mesmo princípio, o mesmo amor ao sistema, a mesma consideração da beleza da ordem, da arte e da invenção, freqüentemente servem para recomendar as instituições que tendem a promover o bem-estar público. Quando um patriota se empenha pela melhoria de qualquer parte da política pública, sua conduta nem sempre nasce de pura simpatia pela felicidade dos que dela vão colher benefícios. Comumente, não é por solidariedade com cocheiros condutores de carruagens que um homem de espírito público encoraja o conserto das estradas. Quando a legislatura estabelece prêmios e outros estímulos para o progresso das manufaturas de lã ou linho, essa conduta raramente procede de mera simpatia com o usuário de roupas finas ou baratas, muito menos com o manufaturista ou comerciante. A perfeição da política, a extensão do comércio e das manufaturas, são objetos nobres e magníficos. Agrada-nos contemplá-los, e interessa-nos tudo que tenda a promovê-los. Fazem parte do grande sistema de governo, e as rodas da máquina política parecem mover-se com mais harmonia e facilidade por meio deles. Sentimos prazer em contemplar a perfeição de tão belo e grandioso sistema, e nos sentimos intranqüilos até removermos qualquer obstáculo que possa perturbar ou estorvar minimamente a regularidade de seus movimentos. Todas as constituições de governo, entretanto, são valorizadas apenas na proporção em que tendem a promover a felicidade dos que vivem sob elas. Esse é seu único uso e propósito. Porém, por um certo espírito de sistema, por um certo amor à arte e ao engenho, parecemos às vezes valorizar mais os meios do que os fins, e a estar ansiosos por promover a felicidade de nossos semelhantes mais pelo intento de aperfeiçoar e melhorar um certo sistema ordenado e belo, do que por uma sensação ou sentimento imediato do que os outros sofrem ou gozam. Tem havido homens de grande espírito público, que se revelaram em outros aspectos pouco sensíveis para com os sentimentos da humanidade. E, ao contrário, tem havido homens de grande humanitarismo, que parecem inteiramente vazios de espírito público. Todo homem pode encontrar no círculo de seus conhecidos exemplos de um tipo ou outro. Quem algum dia teve menos humanidade e mais espírito público do que o celebrado legislador da Moscóvia? O social e bondoso Jaime I da Grã-Bretanha, ao contrário, parece que tivera pouca paixão, tanto pela glória, quanto pelos interesses de seu país. Se desejares despertar a diligência de um homem que parece quase morto para a ambição, com freqüência não adiantará descrever-lhe a felicidade dos ricos e poderosos; dizer-lhe que em geral estão sob o abrigo de sol e chuva, que raramente passam fome, raramente passam frio, raramente são expostos à fadiga, ou a qualquer espécie de carência. A mais eloqüente exortação desse tipo terá pouco efeito sobre ele. Se desejares ter sucesso, deves lhe descrever a comodidade e disposição dos diferentes apartamentos em seus palácios; deves explicar-lhe a conveniência de suas caleças, e chamar-lhe a atenção para o número, a ordem, os diferentes cargos de todos os seus criados. Se alguma coisa é capaz de o impressionar, é essa. Mas todas essas coisas tendem apenas a manter afastados sol e chuva, a poupá-los da fome e frio, das carências e da fadiga. Da mesma maneira, se desejares implantar a virtude pública no peito do que parece desatento dos interesses de seu país, muitas vezes será inútil falar-lhe das vantagens superiores de que gozam os súditos de um Estado bem governado; que estão mais bem alojados, mais bem vestidos, mais bem nutridos. Essas considerações habitualmente não causam grande impressão. É mais provável que o persuadas se descreveres o grande sistema de serviços públicos que trazem essas vantagens; se explicares as relações e as dependências entre suas várias partes, sua subordinação mútua umas às outras, sua subserviência universal à felicidade da sociedade; se mostrares como esse sistema poderia ser introduzido no seu país, o que impede isso de ocorrer no momento, como se poderiam remover esses obstáculos, para que todas as várias rodas da máquina no governo pudessem se mover com mais harmonia e suavidade, sem raspar umas nas outras, sem retardar os movimentos umas das outras. É quase impossível um homem ouvir um discurso como esse e não se sentir animado em alguma medida de espírito público. Ao menos por ora, sentirá algum desejo de remover esses obstáculos, e de pôr em movimento uma máquina tão bela e ordenada. Nada predispõe tanto a promover o espírito público quanto o estudo da política – os vários sistemas de governo civil, suas vantagens e desvantagens –, da constituição de nosso país, sua situação e interesses com relação a nações estrangeiras, seu comércio, sua defesa, as desvantagens sob as quais opera, os perigos a que pode estar exposto, como remover umas e defender-se contra as outras. Por essa razão, as digressões políticas, se justas, razoáveis e praticáveis, são, entre todas as obras de especulação, as mais úteis. Até as mais fracas e piores não estão inteiramente desprovidas de utilidade. Servem ao menos para animar as paixões públicas dos homens e incitá-los a procurar meios de promover a felicidade da sociedade.


 
CAPÍTULO II Da beleza que a aparência de utilidade confere aos caracteres e ações dos homens; e em que medida a percepção dessa beleza pode ser considerada como um dos princípios de aprovação originais
Os caracteres dos homens, bem como os produtos de arte ou as instituições do governo civil, podem servir ou para promover ou para perturbar a felicidade, tanto do indivíduo quanto da sociedade. O caráter prudente, eqüitativo e diligente, resoluto e sóbrio, promete prosperidade e satisfação, tanto para a própria pessoa, como para todas as que a ela se relacionam. Ao contrário, o imprudente, o insolente, o relaxado, o efeminado e voluptuoso, prenuncia a ruína do indivíduo, e a desgraça de todos com que mantenha alguma relação. O primeiro desses modos de ser tem pelo menos toda a beleza que pode adornar a máquina mais perfeita jamais inventada para promover o mais agradável fim; e o segundo, toda a deformidade da mais desastrada e desajeitada invenção. Que instituição de governo poderia ser mais adequada para promover a felicidade dos seres humanos que a preponderância da sabedoria e da virtude? Todo governo não é senão um remédio imperfeito para a deficiência destas. Portanto, a beleza que possa pertencer ao governo civil por causa de sua utilidade necessariamente deverá corresponder em grau muito maior à sabedoria e à virtude. Ao contrário, que política civil pode ser mais ruinosa e destrutiva que os vícios dos homens? Os efeitos fatais de um mau governo se devem unicamente a ele não proteger suficientemente contra os males causados pela perversidade humana.

Essa beleza e deformidade que os caracteres demonstram retirar de sua utilidade ou inconveniência tendem a impressionar de maneira peculiar aos que consideram em abstrato e filosoficamente as ações e a conduta dos homens. Quando um filósofo examina por que se aprova a humanidade e se condena a crueldade, nem sempre forma para si de modo claro e distinto o conceito de uma ação particular, seja de crueldade, seja de humanidade, mas habitualmente se contenta com a idéia vaga e indeterminada que as designações gerais dessas qualidades lhe sugerem. No entanto, é só nesses casos particulares que a conveniência ou inconveniência, mérito ou demérito das ações são óbvios e discerníveis. Apenas quando se dão exemplos particulares podemos perceber com distinção o acordo e desacordo entre nossos próprios afetos e os do agente, ou ainda sentir, num caso, que surge uma gratidão de solidariedade por ele, ou de ressentimento, no outro. Quando consideramos virtude e vício de maneira abstrata e geral, parece que as qualidades que provocam esses diversos sentimentos em boa parte desaparecem, e os sentimentos mesmos tornam-se menos óbvios e discerníveis. Ao contrário, os efeitos felizes, num caso, e as conseqüências fatais, no outro, parecem então erguer-se ante a nossa vista, como se destacassem e se separassem de todas as outras qualidades de um e outro.

O mesmo autor engenhoso e agradável que pela primeira vez explicou por que o útil agrada impressionou-se tanto com essa maneira de ver as coisas, que reduziu toda a nossa aprovação da virtude a uma simples percepção dessa espécie de beleza que resulta da aparência de utilidade. Nenhuma qualidade do espírito, adverte, é aprovada como virtuosa, senão as que são úteis ou agradáveis, seja para a própria pessoa, seja para outra; e nenhuma qualidade é desaprovada como viciosa, exceto as de tendência contrária. E, na verdade, a Natureza ao que parece ajustou de modo tão feliz nossos sentimentos de aprovação e desaprovação à conveniência do indivíduo e da sociedade, que após o mais rigoroso exame se descobrirá, creio eu, que se trata de uma regra universal. Não obstante, afirmo que não é o modo como se vê essa utilidade ou esse dano que constitui a primeira ou principal fonte de nossa aprovação ou desaprovação. Sem dúvida esses sentimentos estão realçados e intensificados pela percepção da beleza ou deformidade que resulta da utilidade ou dano. Mas, apesar disso, insisto em que são original e essencialmente distintos dessa percepção.

Antes de mais nada, parece impossível que a aprovação da virtude seja um sentimento da mesma espécie que aquele por meio do qual aprovamos um edifício cômodo e bem projetado; ou que não tenhamos outra razão para elogiar um homem que não seja a mesma pela qual recomendamos um armário com gavetas.

Em segundo lugar, caso se examine bem, descobrir-se-á que a utilidade de qualquer disposição de espírito raramente constitui o primeiro fundamento de nossa aprovação, e que o sentimento de aprovação sempre implica um senso de conveniência muito distinto da percepção de utilidade. Podemos observar isso em relação a todas as qualidades aprovadas como virtuosas, tanto as que, segundo esse sistema, são originalmente consideradas úteis a nós mesmos, quanto as que são estimadas por causa de sua utilidade para outras pessoas.

As qualidades mais úteis a nós mesmos são, em primeiro lugar, razão e entendimento superiores, que nos capacitam a discernir as conseqüências remotas de todos os nossos atos, e a prever o benefício ou prejuízo que provavelmente resultarão deles. E, em segundo lugar, o autodomínio que permite abstermo-nos de um prazer momentâneo, ou de suportar uma dor presente, a fim de obter um prazer maior, ou evitar uma dor maior no futuro. Na união dessas duas qualidades consiste a virtude da prudência, de todas as virtudes a mais útil ao indivíduo.

No que se refere à primeira dessas qualidades, já se observou anteriormente que razão e entendimento superiores são originalmente aprovados como justos, certos e precisos, e não apenas como úteis ou vantajosos. É nas ciências mais abstrusas, notadamente nas altas matemáticas, que se revelaram os maiores e mais admiráveis esforços da razão humana. Mas a utilidade dessas ciências, para o indivíduo ou para o público, não é óbvia, e prová-la exige uma demonstração que nem sempre é facilmente entendida. Não foi, portanto, sua utilidade que primeiro as recomendou à admiração pública. Pouco se insistiu nessa qualidade, até que se tornou necessário responder de algum modo às acusações dos que, não tendo gosto por tão sublimes especulações, esforçam-se por depreciá-las como inúteis.

Da mesma maneira, tanto sob o aspecto da conveniência, como da utilidade, aprovamos o autodomínio por meio do qual refreamos nossos apetites presentes a fim de satisfazê-los melhor em outra ocasião. Quando agimos dessa maneira, os sentimentos que influenciam nossa conduta parecem coincidir exatamente com os do espectador. Este não experimenta as súplicas de nossos apetites presentes. Para ele, o prazer que vamos usufruir dentro de uma semana ou um ano é tão interessante quanto o que estamos usufruindo neste instante. Quando, pois, pelo bem do presente sacrificamos o futuro, nossa conduta lhe parece extravagante e absurda ao extremo, e é incapaz de compartilhar os princípios que a influenciam. Ao contrário, quando nos abstemos de um prazer presente, a fim de assegurar um prazer maior futuro, quando agimos como se o objeto remoto nos interessasse tanto quanto o que pressiona imediatamente nossos sentidos, quando nossos afetos correspondem exatamente aos seus, ele sempre aprova nosso comportamento; e, como sabe por experiência quão poucos são capazes desse autodomínio, olha nossa conduta com muita estranheza e admiração. Daí surge essa eminente estima com que todos os homens consideram naturalmente a firme perseverança na prática da frugalidade, diligência e dedicação, ainda que dirigidas apenas para aquisição de fortuna. A firmeza resoluta da pessoa que assim age e que, a fim de obter uma vantagem grande, embora remota, não apenas renuncia a todos os prazeres presentes, mas suporta os maiores trabalhos, quer do espírito, quer do corpo, necessariamente ordena nossa aprovação. A perspectiva de seu interesse e sua felicidade, que parece regular sua conduta, corresponde exatamente à idéia que naturalmente formamos dela. Existe a mais perfeita correspondência entre os seus sentimentos e os nossos, e ao mesmo tempo, por causa de nossa experiência da comum fraqueza da natureza humana, não é razoável esperar-se tal correspondência. Não apenas aprovamos, portanto, mas, em certa medida, admiramos sua conduta, e a julgamos merecedora de considerável aplauso. Unicamente a consciência dessa merecida aprovação e estima é capaz de amparar o agente na observação desse modelo de conduta. O prazer que usufruiremos dentro de dez anos nos interessa tão pouco em comparação com o que talvez gozemos hoje; a paixão que o primeiro desperta é, naturalmente, tão fraca em comparação com a violenta emoção que o segundo pode ocasionar, que um jamais poderia compensar o outro, a não ser amparado pelo senso de conveniência, pela consciência de que merecemos a estima e aprovação de todo o mundo ao agirmos de um modo, e de que nos tornaríamos, ao nos portarmos do outro modo, objetos apropriados de seu desprezo e escárnio.

Humanidade, justiça, generosidade e espírito público são as qualidades mais úteis aos outros. Anteriormente expliquei em que consiste a conveniência da humanidade e da justiça, e mostrei quanto nossa estima e aprovação dessas qualidades dependiam do acordo entre os afetos do agente e os dos espectadores.

A conveniência da generosidade e do espírito público funda-se no mesmo princípio que o da justiça. A generosidade é distinta de humanidade. Essas duas qualidades que à primeira vista parecem tão intimamente ligadas nem sempre pertencem à mesma pessoa. A humanidade é a virtude de uma mulher, a generosidade, de um homem. O belo sexo, que comumente tem muito mais ternura do que o nosso, raramente tem igual generosidade. A lei civil observa que as mulheres poucas vezes fazem doações consideráveis. A humanidade consiste meramente na refinada solidariedade que o espectador nutre pelos sentimentos das pessoas principalmente afetadas, afligindo-se pelos sofrimentos delas, ressentindo-se com as ofensas que lhes fazem, e alegrando-se com sua boa sorte. As ações mais humanas não exigem abnegação nem autodomínio, nem um grande esforço do senso de conveniência. Consistem simplesmente em fazer o que essa refinada simpatia por si só nos incita a realizar. O mesmo não ocorre com a generosidade. Nunca somos generosos, salvo quando de algum modo preferimos outra pessoa a nós mesmos, e sacrificamos algum grande e importante interesse próprio por outro igual interesse de um amigo ou de alguém que é nosso superior. O homem que renuncia às pretensões a um cargo que foi grande objeto de sua ambição, porque imagina que outro tem mais direito a ele; o homem que expõe sua vida para defender a do seu amigo, que julga mais valiosa que a sua, nenhum deles, em ambos os casos, age por humanidade, ou porque sinta mais intensamente o que se refere a outra pessoa do que o que lhe diz respeito. Ambos consideram esses interesses opostos, não à luz em que naturalmente aparecem a eles, mas em que aparecem aos demais. Para qualquer circunstante, o êxito ou conservação dessa outra pessoa pode, com justiça, ter mais interesse do que o êxito e conservação próprios; mas é impossível que seja assim para eles. Portanto, quando sacrificam, pelo interesse dessa outra pessoa, os seus próprios interesses, acomodam-se aos sentimentos do espectador, e, com um esforço de magnanimidade, agem segundo a opinião que sabem deverá naturalmente ser a de um terceiro qualquer. O soldado que sacrifica sua vida para defender a do seu oficial talvez fosse pouco afetado pela morte deste se acontecesse sem nenhuma culpa sua, e uma pequena desgraça que o tivesse abatido talvez provocasse uma dor mais viva. Mas quando se esforça para agir de modo a ser aplaudido e a obrigar o espectador imparcial a partilhar dos princípios de sua conduta, sente que, para todo o mundo, menos para ele, sua vida é uma ninharia comparada com a do seu oficial, e que, sacrificando uma pela outra, estará agindo muito apropriadamente e em conformidade com o que seriam as apreensões naturais de todo o circunstante imparcial.

O mesmo ocorre com os maiores esforços de espírito público. Quando um jovem oficial expõe sua vida para aumentar em muito pouco os domínios de seu soberano, não é porque a aquisição do novo território seja, para ele mesmo, objeto mais desejável do que a conservação da própria vida. Para ele, sua vida é infinitamente mais valiosa do que a conquista de um reino inteiro para o Estado a que serve. Mas ao comparar esses dois objetos, não os divisa sob o ponto de vista em que naturalmente lhe aparecem, e adota o da nação pela qual está lutando. Para esta, o êxito da guerra é importantíssimo e a vida de um indivíduo particular quase não tem conseqüências. Quando o oficial se coloca na situação dos outros, imediatamente compreende que não estará sendo pródigo demais com seu sangue, se, derramando-o, contribuir com um propósito tão valioso. O heroísmo de sua conduta consiste, por senso de dever e de conveniência, em vergar a mais forte de todas as inclinações naturais. Há muitos ingleses honrados a quem particularmente a perda de um guinéu traria mais inquietação do que a perda nacional de Minorca, mas que, se estivesse em seu poder a defesa dessa fortaleza, prefeririam mil vezes sacrificar sua vida a deixá-la cair, por culpa sua, nas mãos do inimigo. Quando o primeiro Brutus levou seus próprios filhos ao cadafalso, porque haviam conspirado contra a nascente liberdade de Roma, sacrificou o que, se consultasse o próprio peito, revelar-se-ia a mais forte das débeis afeições. Brutus deveria naturalmente sentir muito mais a morte de seus filhos do que todos os possíveis males de que Roma teria padecido por falta de tão grande exemplo. Porém, via os filhos não com olhos de pai, mas com os de cidadão romano. Tão profundamente compartilhou os sentimentos próprios desta condição, que não deu importância ao laço que o unia aos filhos; e para um cidadão romano, os filhos de Brutus, postos na balança com o menor dos interesses de Roma, pareciam desprezíveis. Nesse e em todos os outros casos semelhantes, nossa admiração se fundamenta menos sobre a utilidade que sobre o insólito, donde a grande, nobre e sublime conveniência de tais ações. Certamente, quando contemplamos essa utilidade, compreendemos que lhes confere uma nova beleza, e por essa razão as recomenda ainda mais para nossa aprovação. Porém, essa beleza é principalmente percebida por homens de reflexão e especulação, e não é, em absoluto, a qualidade que primeiro recomenda tais ações aos sentimentos naturais da maioria dos homens.

Deve-se observar que, na medida em que o sentimento de aprovação se deve à percepção da beleza da utilidade, não tem relação alguma com os sentimentos alheios. Por conseguinte, se fosse possível uma pessoa crescer e tornar-se adulta sem qualquer comunicação com a sociedade, apesar disso, suas ações poderiam lhe ser agradáveis ou desagradáveis, segundo tendessem para sua felicidade ou desvantagem. Poderia perceber uma beleza dessa espécie na prudência, temperança e na boa conduta, e uma deformidade no comportamento oposto; de um lado poderia considerar seu próprio caráter e temperamento com essa espécie de satisfação com que vemos uma máquina bem construída, ou, de outro, com essa espécie de desgosto e insatisfação com que contemplamos um objeto muito incômodo e inconveniente. No entanto, como essas percepções são apenas questão de gosto, e guardam toda a fragilidade e delicadeza dessa espécie de percepção – sobre cuja precisão se fundamenta o que se chama propriamente de gosto –, provavelmente alguém que se encontrasse nessa condição solitária e miserável não lhes daria atenção. Ainda que lhe ocorressem, antes desse contato com a sociedade, não teriam em absoluto o mesmo efeito sobre ele, que teriam como conseqüência desse contato. A mera idéia de sua deformidade não o abateria com a vergonha interna, nem a consciência da beleza oposta produziria nele a exaltação de um secreto triunfo do espírito. A noção de merecer recompensa, num caso, não o faria exultar, nem tremeria ante a suspeita de um merecido castigo, no outro. Todos esses sentimentos supõem a idéia de algum outro ser que fosse o juiz natural da pessoa que os experimenta; e é apenas por simpatia com as decisões desse árbitro de sua conduta, que pode conceber ou o triunfo de aplaudir-se a si mesmo, ou a vergonha de se condenar.


 
QUINTA PARTE DA INFLUÊNCIA DOS USOS E COSTUMES SOBRE OS SENTIMENTOS DE APROVAÇÃO E DESAPROVAÇÃO MORAL

 
CAPÍTULO I Da influência dos usos e costumes sobre nossas noções de beleza e deformidade
Há outros princípios além dos já enumerados, que exercem considerável influência sobre os sentimentos morais da humanidade, e são as principais causas das diversas opiniões irregulares e discordantes que prevalecem nas diferentes épocas e nações, quanto ao que é censurável ou louvável. Esses princípios são os usos e os costumes, que estendem seus domínios sobre nossos juízos relativos a toda a espécie de beleza.

Quando dois objetos são freqüentemente vistos juntos, a imaginação adquire um hábito de passar facilmente de um a outro. Quando o primeiro aparece, acreditamos que o segundo vai seguir. Por si mesmos, um nos faz lembrar o outro, e a atenção desliza facilmente por entre eles. Ainda que, independentemente do costume, não haja verdadeira beleza na sua união, uma vez que o costume os associou dessa maneira, experimentamos uma inconveniência em sua separação. Julgamos um deles desajeitado quando aparece sem seu usual acompanhamento. Sentimos falta de algo que esperávamos encontrar, e a habitual disposição de nossas idéias perturba-se com essa frustração. Um traje, por exemplo, parece carecer de algo, se não está presente o mais insignificante adorno que habitualmente o acompanha, e reputamos vulgar ou inconveniente até mesmo a ausência de um botão. Quando existe alguma conveniência natural na união, o costume aumenta nosso senso dela, e faz uma disposição diferente parecer ainda mais desagradável do que de outro modo seria. Os que se acostumaram a ver coisas de bom gosto aborrecem-se ainda mais com tudo que seja grosseiro ou desajeitado. Quando a conjunção é imprópria, o costume reduz ou remove inteiramente nosso senso de inconveniência. Os que se acostumaram à desordem desleixada perdem todo o seu senso de esmero e elegância. As modas de mobília e roupa que parecem ridículas para estrangeiros não insultam os que se habituaram a elas.

O uso é diferente do costume ou, antes, é uma espécie particular de costume. Não se trata do uso que todos mantêm, mas do que é mantido pelos de posição social ou caráter elevado. Os modos graciosos, naturais, dignos dos poderosos, associados à habitual riqueza e magnificência de suas vestes, conferem graça ao próprio figurino que lhes ocorre usar. Na medida em que continuam a usar esse figurino, relacionaremolo em nossa imaginação à idéia de algo refinado e majestoso que, embora em si mesmo indiferente, parece ter, por causa dessa relação, algo de refinado e majestoso. Assim que põem de lado esse figurino, toda graça que manifestava possuir antes se perde, e, sendo usado agora apenas pelas condições inferiores, parece ter algo da vulgaridade e falta de graça destas.

O mundo todo concede que as vestes e a mobília estejam inteiramente sob domínio dos usos e costumes. Porém, de modo algum a influência desses princípios se limita a uma esfera tão estreita, estendendo-se a tudo o que de algum modo seja objeto de gosto – música, poesia, arquitetura. As modas de roupa e mobília estão em constante mudança; e a experiência nos convence de que estilos, ridículos hoje, mas admirados cinco anos atrás, devem sua voga principal ou inteiramente aos costumes e usos. Roupas e mobília não são feitas de materiais muito duráveis. Um casaco caro demora um ano para ser produzido e por isso, como a moda, não mais é capaz de divulgar o figurino segundo qual foi feito. As modas de mobília mudam menos rapidamente do que as de roupa, porque comumente a mobília é mais durável. Geralmente, porém, em cinco ou seis anos sobrevém uma completa revolução, de modo que todo homem, ao longo de sua vida, vê várias mudanças nos estilos. Os produtos das outras artes são muito mais duradouros, e, se foram imaginados de maneira feliz, podem continuar a difundir o uso que lhes deu feitio por muito mais tempo. Um edifício bem concebido pode durar muitos séculos; uma bela ária pode destinar-se, por uma espécie de tradição, a várias gerações sucessivas; um poema bem escrito pode durar tanto quanto o mundo; e todos continuam por séculos a fio imprimindo voga àquele estilo, gosto, ou modo particular, segundo cada um deles foi composto. Poucos homens têm oportunidade de ver, durante sua vida, os usos de qualquer uma dessas artes mudar consideravelmente. Poucos homens têm suficiente experiência e conhecimento dos vários usos nas nações e épocas remotas, a ponto de se reconciliarem com estes ou poderem julgar imparcialmente entre isso e o que ocorre em seu próprio tempo e país. Poucos homens, portanto, estão dispostos a conceder que os usos ou costumes exercem considerável influência sobre seus juízos relativos ao que é belo, ou, de outro modo, sobre a produção de qualquer dessas artes. Imaginam que todas as regras que deveriam, segundo pensam, ser observadas em cada uma das artes se fundam na razão e na natureza, não no hábito ou preconceito. Um pouquinho de atenção, contudo, poderá convencê-los do contrário, e provar-lhes que a influência dos usos e costumes sobre os trajes e a mobília não é mais absoluta do que é sobre a arquitetura, poesia e música.

Pode-se, por exemplo, indicar qualquer razão por que o capitel dórico devesse ser adaptado a um pilar, cuja altura seja igual a oito diâmetros; a voluta jônica, a um pilar de um por nove; e a folhagem coríntia, a um em dez? A conveniência de cada uma dessas adaptações só pode se fundar no hábito e costume. Tendo-se habituado a ver uma determinada proporção associada a um determinado adorno, o olho se ofenderia, caso não estivessem associados. Cada uma das cinco ordens tem seus adornos específicos, que não podem ser trocados por outro, sem insultar todos os que sabem alguma coisa das regras de arquitetura. Com efeito, de acordo com alguns arquitetos, tal é o refinado juízo com que os antigos indicaram para cada ordem seus adornos próprios, que não se podem encontrar outros igualmente adequados. Entretanto, parece um pouco difícil conceber que essas formas, embora sem dúvida extremamente agradáveis, fossem as únicas que possam se adequar a essas proporções, ou que não haja quinhentas outras que, previamente do costume estabelecido, não lhes seriam igualmente bem adequadas. Porém, uma vez que o costume estabeleceu regras particulares de construção, contanto que não sejam absolutamente insensatas, é absurdo pensar em alterá-las por outras que sejam apenas igualmente boas, ou mesmo por outras que, do ponto de vista da elegância e da beleza, tenham naturalmente uma pequena vantagem sobre elas. Seria ridículo o homem que aparecesse em público com roupas diferentes das habitualmente usadas, por mais gracioso e adequado que seu novo traje fosse em si mesmo. E parece haver um absurdo do mesmo tipo em ornar uma casa segundo maneiras bem diferentes das prescritas pelos usos e costumes, ainda que os novos ornamentos sejam em si um pouco superiores aos comuns.

Conforme os antigos retóricos, certa medida ou verso era naturalmente apropriada a cada espécie particular de prosa, pois expressava naturalmente o caráter, sentimento ou paixão que deveria predominar. Diziam que um verso era adequado para obras graves, outro para alegres, e não poderiam, segundo pensavam, ser intercambiados sem grande inconveniência. Mas a experiência dos tempos modernos talvez contradiga esse princípio, embora em si mesmo parecesse extremamente provável. O que é o verso burlesco em inglês é o verso heróico em francês. As tragédias de Racine e a Henríada de Voltaire são quase iguais, em verso, com

“Let me have your advice in a weighty affair.”

O verso burlesco em francês, ao contrário, é bastante semelhante ao verso heróico de dez sílabas em inglês. O costume fez uma nação associar às idéias de gravidade, sublimidade e seriedade àquela medida que a outra relacionou com tudo que é alegre, irreverente e cômico. Nada se mostraria mais absurdo em inglês do que uma tragédia escrita nos versos alexandrinos franceses; ou em francês, do que uma obra da mesma espécie, em versos de dez sílabas.

Um artista eminente deseja provocar uma considerável mudança nos modos estabelecidos de cada uma dessas artes, e introduzir um novo feitio para a escrita, música, ou arquitetura. As vestes de um agradável homem de alta posição se recomendam por si, e, por mais peculiares e fantásticos que sejam, em breve serão admiradas e copiadas. Do mesmo modo, as excelências de um mestre eminente recomendam suas peculiaridades, e suas maneiras tornam-se o estilo da moda na arte que pratica. Nesses últimos cinqüenta anos, o gosto dos italianos em música e arquitetura sofreu considerável mudança, por imitar as peculiaridades de alguns mestres eminentes em cada uma dessas artes. Quintiliano acusa Sêneca de ter corrompido o gosto dos romanos, e de ter introduzido uma beleza frívola nos aposentos da razão majestosa e da eloqüência masculina. Salústio e Tácito foram acusados por outros das mesmas coisas, embora de uma maneira diferente. Alega-se que deram reputação a um estilo que, embora muito conciso, elegante, expressivo e até poético, carecia de desenvoltura, simplicidade e naturalidade, e era obviamente produto da mais esmerada e estudada afetação. Quantas grandes qualidades deve possuir o escritor que assim consegue tornar agradáveis os seus defeitos! Depois de louvá-lo por refinar o gosto de uma nação, talvez o maior elogio que se pode fazer a um autor é dizer que ele o corrompeu. Em nosso próprio idioma, o Sr. Pope e o Dr. Swift introduziram, cada um, uma maneira distinta da que anteriormente se praticava em todas as obras escritas em rima, um em versos longos, outro em versos curtos. A originalidade de Butler cedeu lugar à clareza de Swift. A liberdade errante de Dryden e o correto, mas muitas vezes tedioso e prosaico, langor de Addison, não mais são objetos de imitação. Agora todos os versos longos são escritos à maneira da nervosa precisão do Sr. Pope.

Tampouco é apenas sobre as produções da arte que os usos e costumes exercem seu domínio. Influenciam igualmente nossos juízos relativos à beleza dos objetos naturais. Quantas formas variadas e opostas são consideradas belas em diferentes espécies de coisas! As proporções que se admiram num animal são inteiramente distintas das que se apreciam em outro. Toda classe de coisas tem uma conformação peculiar, que se aprova, e possui uma beleza própria, distinta da beleza de todas as outras espécies. É precisamente por essa razão que um erudito jesuíta, Padre Buffier, determinou que a beleza de cada objeto consiste na forma e cor mais comuns entre coisas do grupo particular a que o objeto pertence. Assim, na forma humana a beleza de cada traço reside em certo meio-termo, igualmente retirado de uma variedade de outras formas que são feias. Um nariz belo, por exemplo, não é nem muito comprido nem muito curto, nem muito reto nem muito curvado, mas uma espécie de meio-termo entre todos esses extremos, e menos diferente de cada um deles do que estes são entre si. É a forma a que a Natureza parece ter visado em todos eles, da qual, porém, ela se desvia por uma grande variedade de linhas, e muito raramente acerta com precisão, e com a qual todos esses desvios ainda guardam forte semelhança. Quando se faz uma quantidade de desenhos segundo um padrão, embora todos sejam diferentes deste num aspecto, serão mais parecidos com ele do que uns com os outros; o caráter geral do padrão há de traspassar por todos eles; os mais singulares e bizarros serão os que mais se afastam dele; e posto muito poucos o copiem com precisão, as linhas mais acuradas terão maior semelhança com as mais descuidadas do que as descuidadas terão entre si. Da mesma maneira, em cada espécie de criatura, a mais bela traz os caracteres mais fortes da estrutura geral da espécie, e guarda a mais forte semelhança com a maior parte dos indivíduos com que se classifica. Monstros, ao contrário, ou tudo que seja completamente deformado, são sempre mais singulares e bizarros, e guardam a menor semelhança com o gênero da espécie a que pertencem. Assim, a beleza de cada espécie, embora num sentido a mais rara de todas as coisas, porque poucos indivíduos atingem precisamente essa forma mediana, em outro sentido é a mais comum, porque todos os desvios se assemelham mais com ela do que uns com os outros. Portanto, a forma mais costumeira é em cada espécie de coisas, segundo o padre Buflier, a mais bela. Daí que certa prática e experiência de contemplar cada espécie de objetos é necessária, antes de podermos julgar sua beleza, ou saber em que consiste a forma mediana e mais usual. O mais sutil dos juízos relativos à beleza da espécie humana não nos ajudará a julgar a beleza das flores ou dos cavalos, ou de qualquer outra espécie de coisas. Pela mesma razão, em diferentes climas e onde existem diferentes costumes e modos de vida, na medida em que a generalidade de qualquer espécie recebe uma conformação diferente daquelas circunstâncias, prevalecem as diferentes idéias de sua beleza. A beleza de um cavalo mouro não é exatamente a mesma de um cavalo inglês. Quantas idéias distintas a respeito da beleza das formas humanas e do rosto formam-se em diferentes nações! Uma pele clara é uma deformidade espantosa na costa da Guiné. Lábios grossos e nariz chato são beleza. Em algumas nações, orelhas compridas penduradas até os ombros são objetos de admiração geral. Na China, se o pé de uma dama é grande a ponto de poder-se andar sobre ele, ela é considerada um monstro de feiúra. Algumas nações selvagens da América do Norte amarram quatro tiras ao redor das cabeças de suas crianças, espremendo-as enquanto os ossos são tenros e maleáveis, para resultar numa forma quase perfeitamente quadrada. Os europeus ficam horrorizados ante a absurda barbárie dessa prática, à qual alguns missionários imputaram a singular obtusidade das nações entre as quais prevalece. Mas, ao condenarem esses selvagens, não refletem que as damas na Europa, até poucos anos atrás, esforçaram-se durante quase um século para apertar a bela redondez de suas formas naturais para obterem igualmente uma forma quadrada. E que, apesar das muitas distorções e doenças que essa prática sabidamente ocasionava, o costume a tornou agradável entre algumas das nações mais civilizadas que o mundo jamais tenha contemplado.

Tal é o sistema desse erudito e engenhoso padre, no que diz respeito à natureza da beleza, cujo encanto todo, segundo ele, pareceria se originar assim da sua concordância com hábitos que o costume imprimira na imaginação, relativos às coisas de cada espécie particular. Porém, não posso ser induzido a acreditar que nosso senso de beleza, mesmo externa, fundamente-se inteiramente sobre o costume. A utilidade de cada forma, sua adequação para os propósitos úteis para os quais foi designada, evidentemente a recomendam, e a tornam agradável a nós, independentemente de costume. Certas cores são mais agradáveis do que outras, e dão mais deleite ao olho na primeira vez que as contempla. Uma superfície macia é mais agradável do que outra áspera. A variedade agrada mais do que uma uniformidade tediosa e sem diversidade. A variedade conexa, em que cada nova aparição parece ser introduzida pelo que a antecedeu, e em que todas as partes reunidas parecem manter uma relação natural entre si, é mais agradável que o amontoado desconexo e desordenado de objetos sem nenhuma relação entre si. Embora não possa admitir que o costume seja o único princípio da beleza, posso aceitar, contudo, a verdade desse sistema engenhoso, na medida em que concede que é raro existir uma forma externa tão bela a ponto de agradar e ao mesmo tempo ser inteiramente contrária ao costume, e diferente de tudo a que fomos acostumados nessa espécie particular de coisas; ou tão deformada que não seja agradável, se o costume a tolera uniformemente, e nos habitua a vê-la em cada indivíduo da mesma espécie.


 
CAPÍTULO II Da influência dos usos e costumes sobre os sentimentos morais
Uma vez que nossos sentimentos relativos a todas as espécies de beleza sofrem a influência dos usos e costumes, não se pode esperar que os sentimentos relativos à beleza da conduta estejam inteiramente isentos do domínio desses princípios. Porém, aqui sua influência parece muito menor do que em todo o resto. Talvez não haja uma forma para os objetos externos, por mais absurda e fantástica, com a qual o costume não venha a nos reconciliar, ou que o uso não torne até mesmo agradável a nós. Mas o caráter e a conduta de um Nero ou de um Cláudio é algo com que costume algum jamais nos reconciliará, e uso algum jamais tornará agradável; um sempre será objeto de horror e ódio, o outro, de escárnio e zombaria. Os princípios da imaginação, dos quais depende nosso senso de beleza, são de natureza muito sutil e delicada, e podem ser facilmente alterados por hábito e educação; os sentimentos de aprovação e desaprovação moral, contudo, fundamentam-se nas mais fortes e vigorosas paixões da natureza humana e, ainda que possam de alguma forma ser distorcidos, nunca podem ser inteiramente pervertidos.

Embora a influência dos usos e costumes sobre os sentimentos morais nunca seja tão grande, é todavia perfeitamente semelhante à que ocorre em todos os outros casos. Quando os usos e costumes coincidem com os princípios naturais do certo e do errado, aumentam a delicadeza de nossos sentimentos, e intensificam nosso horror a tudo que se aproxime do mal. Os que realmente foram educados junto à boa companhia, e não junto ao que habitualmente se chama assim, que foram acostumados a enxergar nas pessoas a quem estimam e com quem convivem nada além de justiça, modéstia, humanidade e boa disposição, ficam mais agastados com tudo que pareça inconsistente com as regras prescritas por essas virtudes. Ao contrário, os que tiveram o infortúnio de ser criados no meio da violência, licenciosidade, falsidade e injustiça, perdem não apenas todo o senso da inconveniência de tal conduta, mais ainda todo o senso de sua terrível enormidade, ou da vingança e castigo que lhe são devidos. Familiarizam-se com esses vícios desde a infância, o costume tornou-os habitual, e estão muito predispostos a considerá-los como o que se chama o jeito do mundo, algo que pode ou deve ser praticado para impedir que sejamos logrados por nossa própria integridade.

Também o uso por vezes dará reputação a certo grau de desordem, e, ao contrário, desencorajará qualidades que merecem estima. No reinado de Carlos II, certa licenciosidade foi considerada característica de uma educação liberal. Segundo as noções da época, estaria associada à generosidade, sinceridade, magnanimidade, lealdade, e provava que quem agia dessa maneira era um cavalheiro, não um puritano. De outro lado, severidade nos hábitos e conduta regular estavam inteiramente fora de moda, associando-se, na imaginação daquele tempo, com arenga, astúcia, hipocrisia e modos vulgares. Para espíritos superficiais, os vícios dos grandes em todos os tempos parecem agradáveis. Associam-nos não apenas ao esplendor da fortuna, mas também a muitas virtudes superiores que atribuem aos que lhes são superiores; ao espírito de liberdade e independência, à franqueza, generosidade, humanidade e polidez. As virtudes da gente de posição social inferior, ao contrário, sua parcimoniosa frugalidade, sua penosa diligência, sua adesão rígida às regras, parecem-lhes vulgares e desagradáveis. Associam-nas tanto à vileza da posição a que essas qualidades comumente pertencem, como a inúmeros e imensos vícios que, supõem, acompanham-nas habitualmente, tais como uma disposição abjeta, covarde, doentia, mentirosa e baixa.

Como os objetos com os quais homens das diferentes profissões e posições estão familiarizados são muito diferentes, habituando-os a paixões muito diferentes, naturalmente formam-se neles caracteres e modos muito diversos. Supomos em cada camada social e profissão um grau dos modos que, ensina-nos a experiência, pertencem a elas. Porém, assim como nos agrada particularmente em cada espécie de coisas a confirmação mediana que, em toda parte e feição, coincide mais precisamente com o padrão geral que a natureza parece ter estabelecido para coisas desse tipo, em cada camada social, ou, se me permitem dizer, em cada espécie de homens, agrada-nos particularmente não terem nem demais nem de menos do caráter que habitualmente acompanha sua condição e situação particular. Dizemos que um homem deveria parecer-se com seus negócios e sua profissão e seus assuntos, embora o pedantismo de cada profissão seja desagradável. Pela mesma razão, aos diferentes períodos da vida cabem diferentes modos. Esperamos na velhice a gravidade e a tranqüilidade que as fraquezas, a longa experiência, a sensibilidade esgotada parecem tornar naturais e respeitáveis; e acreditamos encontrar na juventude a sensibilidade, alegria e vivacidade de espírito que a experiência nos ensina a esperar a partir das fortes impressões que todos os objetos interessantes conseguem produzir nos sentidos tenros e inexperientes desse período da vida. Cada uma dessas duas idades, porém, facilmente pode ter excesso dessas peculiaridades que lhe pertence. A descuidada leviandade da juventude, e a inamovível insensibilidade da velhice são igualmente desagradáveis. Os jovens, conforme o provérbio popular, são mais agradáveis quando há em seu comportamento algo dos modos dos velhos; e os velhos, quando retêm algo da alegria da juventude. Mas cada um deles pode ter, facilmente, excesso dos modos do outro. A extrema frieza e embotada formalidade que são perdoadas na velhice tornam a juventude ridícula. A leviandade, a despreocupação, a vaidade, que são permitidas na juventude, tornam a velhice desprezível.

O caráter e os modos peculiares que o costume nos leva a atribuir a cada camada social e profissão talvez tenham às vezes uma conveniência independente do costume, e constituem algo que devemos aprovar por si mesmos, se considerarmos todas as diferentes circunstâncias que naturalmente afetam os que estão em diferentes estágios de vida. A conveniência do comportamento de uma pessoa depende da adequação, não a qualquer circunstância de sua situação, mas a todas as circunstâncias que, quando fazemos nosso o seu caso, sentimos que naturalmente exigiriam a sua atenção. Se aparenta estar tão ocupada com qualquer uma dessas circunstâncias a ponto de negligenciar por completo as demais, desaprovamos sua conduta como algo de que não podemos partilhar inteiramente, porque não está adequadamente ajustada a todas as circunstâncias da sua situação; contudo, talvez a emoção que tal pessoa exprime pelo objeto que mais a interessa não exceda aquilo que deveríamos aprovar e com que simpatizaríamos inteiramente em alguém cuja atenção não fosse requerida por nenhuma outra coisa. Na vida privada, um pai poderia, em face da perda de seu único filho, expressar sem censura um grau de pesar e ternura que seria imperdoável num general que estivesse à frente de seu exército, quando a glória e a segurança pública exigem intensamente a sua atenção. Assim como diferentes objetos deveriam, em ocasiões comuns, ocupar a atenção de homens de diferentes profissões, paixões tão diferentes deveriam naturalmente tornar-se habituais a eles; e quando, nesse aspecto particular, fazemos nossa a sua situação, devemos perceber que toda ocorrência deveria afetá-los mais ou menos, conforme a emoção que suscita coincida com o hábito e temperamento fixo de seus espíritos ou deles divirja. Não poderemos esperar de um clérigo a mesma sensibilidade para com os alegres prazeres e divertimentos da vida que creditamos a um oficial. O homem cuja ocupação peculiar é lembrar ao mundo o terrível futuro que os aguarda, que deve anunciar as possíveis conseqüências funestas de todo desvio das regras do dever, e que deve dar, ele próprio, o exemplo da mais exata conformidade, parece ser mensageiro de novas que não podem ser propriamente transmitidas com leviandade ou indiferença. Supõe-se que seu espírito esteja continuamente ocupado com o que é demasiado grandioso e solene para deixar espaço para as impressões desses objetos frívolos que preenchem a atenção dos alegres e dos dissipados. Prontamente percebemos que, independente do costume, há uma conveniência nos modos que o costume determinou a essa profissão, e que nada pode ser mais adequado ao caráter de um clérigo do que a severidade grave, austera e absorta que estamos habituados a esperar em seu comportamento. Essas reflexões são tão óbvias que dificilmente haverá um homem tão imprudente que não as tenha feito alguma vez, e não tenha considerado dessa maneira a razão por que ele mesmo aprova o caráter habitual dessa ordem.

O fundamento do caráter costumeiro de algumas outras profissões não é tão óbvio, e nesse caso nossa aprovação se fundamenta inteiramente no hábito, de modo que reflexões dessa espécie não a confirmam nem a esclarecem. Somos levados pelo costume, por exemplo, a anexar o caráter de alegria, leviandade e liberdade jovial, bem como alguma dissipação, à profissão militar. Todavia se considerássemos o humor ou disposição de ânimo mais adequados a essa situação, talvez fôssemos capazes de estabelecer que o mais sério e pensativo modo de ser conviria melhor àqueles cujas vidas estão continuamente expostas a um perigo incomum, e que deveriam, portanto, ocupar-se mais constantemente com as idéias de morte e suas conseqüências, do que os outros homens. Mas é provavelmente essa mesma circunstância a razão por que o modo de ser contrário tanto prevaleça entre homens dessa profissão. Ao examinarmos com firmeza e atenção o medo da morte, é necessário um esforço tão grande para dominá-lo, que os homens constantemente expostos a isso consideram mais fácil afastar inteiramente seus pensamentos de morte, cobrir-se de uma segurança e indiferença descuidadas, mergulhando, para tanto, em todo tipo de divertimento e dissipação. Um acampamento militar não é o ambiente para um homem pensativo ou melancólico; de fato, pessoas dessa disposição freqüentemente são bastante determinadas, e capazes, com grande esforço, de avançar com inflexível resolução para a morte inevitável. No entanto, estar exposto a perigo constante, embora menos iminente, ser obrigado a praticar por longo tempo um grau desse esforço, exaure e deprime o espírito, tornando-o incapaz de toda felicidade e regozijo. Os alegres e descuidados, que não têm ocasião de fazer esforço algum, que honestamente resolvem nunca olhar em frente, e sim dissipar em contínuos prazeres e divertimentos toda ansiedade com sua situação, suportam mais facilmente essas circunstâncias. Sempre que, por qualquer circunstância peculiar, um oficial não tem motivo para acreditar-se exposto a um perigo inusitado, pode muito bem perder a alegria e a dissipada despreocupação de caráter. O capitão da guarda da cidade é habitualmente um animal tão sóbrio, cuidadoso e avarento quanto o resto de seus concidadãos. Pelo mesmo motivo, uma prolongada paz tem a forte tendência de reduzir a diferença entre caráter civil e militar. A situação ordinária de homens dessa profissão, entretanto, faz a alegria e certa dissipação se tornarem de tal maneira seu caráter habitual, e ademais na nossa imaginação o costume associou tão intensamente esse caráter a essa condição de vida, que somos capazes de desprezar qualquer homem cujo humor ou situação peculiar o tornem incapaz de adquiri-lo. Rimos do rosto grave e cauteloso do guarda municipal, tão pouco parecido a outros rostos de sua profissão; ele mesmo parece com freqüência envergonhado da regularidade de seus próprios modos, e, para não ficar fora da moda de seu mister, gosta de afetar uma leviandade que não lhe é natural. Seja qual for o comportamento que nos acostumamos a ver numa ordem respeitável de homens, vem a estar tão associada em nossa imaginação, àquela ordem, que sempre quando vemos uma acreditamos que depararemos com a outra, e, se nos desapontamos, sentimos falta de algo que esperávamos encontrar. Ficamos embaraçados e hesitantes, não sabendo como nos dirigir a um caráter que afeta claramente ser de uma espécie distinta daquelas em que estávamos predispostos a classificá-lo.

Da mesma maneira, as diferentes situações de diferentes épocas e países tendem a atribuir diversos caracteres à generalidade dos que neles vivem, e seus sentimentos relativos ao grau específico de cada qualidade louvável ou censurável variam segundo o grau comum em seu próprio país e seu próprio tempo. O grau de polidez que seria de estimar profundamente talvez fosse visto na Rússia como adulação afeminada e, na corte da França, como grosseria e barbarismo. O grau de ordem e frugalidade que se consideraria excessiva parcimônia num nobre polonês seria visto como extravagância num cidadão de Amsterdam. Toda época e país considera o grau de cada qualidade que habitualmente se encontra nos homens respeitáveis como o ponto médio do talento ou virtude particular, e, como isso varia conforme as diversas circunstâncias tornem diferentes qualidades mais ou menos habituais, por conseguinte variam os sentimentos relativos à exata conveniência de caráter e comportamento.

Entre nações civilizadas, as virtudes que se fundam sobre a humanidade são mais cultivadas do que as que se fundam sobre a abnegação e o domínio das paixões. O caso é outro quando se trata de nações rudes e bárbaras: as virtudes de abnegação são mais cultivadas do que as de humanidade. A segurança e felicidade geral que prevalecem em tempos de civilidade e polidez oferecem pouco esforço ao desprezo pelo perigo, à paciência em suportar trabalhos, fome e dor. Pode-se evitar facilmente a pobreza, e por essa razão o desprezo por ela quase cessa de ser virtude. A abstinência do prazer torna-se menos necessária, o que deixa o espírito mais livre para relaxar e para permitir suas inclinações naturais em todos esses aspectos particulares.

O caso é outro entre bárbaros e selvagens. Todo selvagem experimenta uma espécie de disciplina espartana e, pela necessidade de sua situação, acostuma-se a toda a sorte de durezas. Está em contínuo perigo, freqüentemente exposto a extremos de fome, não raro morre de pura carência. Suas circunstâncias não apenas o habituam a toda sorte de aflição, como o ensinam a não dar vazão a nenhuma das paixões que essa aflição tende a suscitar. Não pode esperar a simpatia nem a indulgência de seus compatriotas por tal fraqueza. Pois, antes de lamentarmos tanto por outros, devemos, em certa medida, estar despreocupados. Se nossa própria miséria nos aguilhoa tão severamente, não temos vagar para cuidar da miséria alheia; e todos os selvagens estão ocupados demais com suas próprias carências e necessidades, para dar muita atenção às de outras pessoas. Portanto, seja qual for a natureza de sua aflição, um selvagem não espera solidariedade dos que o rodeiam, e precisamente por isso desdenha expor-se, permitindo que não lhe escape a menor fraqueza. Nunca permite que suas paixões, por mais furiosas e violentas que sejam, perturbem a serenidade de seu semblante, ou a compostura de sua conduta e comportamento. Os selvagens da América do Norte, segundo nos foi relatado, assumem em todas as ocasiões uma enorme indiferença, e julgar-se-iam degradados se alguma vez se mostrassem, em qualquer aspecto, dominados ou por amor, ou dor, ou ressentimento. Nesse sentido, sua magnanimidade e autodomínio estão quase além do entendimento dos europeus. Num país em que todos os homens estão no mesmo nível com relação à posição e fortuna, poder-se-ia esperar que as inclinações mútuas das duas partes deveriam ser a única coisa levada em conta nos casamentos, e deveriam ser permitidas sem nenhuma espécie de controle. Esse, porém, é o país onde todos os casamentos, sem exceção, são acertados pelos pais, e onde um rapaz se julgaria desgraçado para sempre se mostrasse a menor preferência por uma mulher em detrimento de outra, ou não expressasse a mais completa indiferença tanto pela época em que se deve casar como pela pessoa com quem deve fazê-lo. A fraqueza do amor, que tanto se tolera nas épocas de humanidade e polidez, é vista entre os selvagens como a mais imperdoável efeminação. Mesmo depois do casamento, os dois parecem envergonhados de uma ligação fundada sobre tão sórdida necessidade. Não vivem juntos, só se encontram furtivamente; ambos continuam a habitar as casas de seus respectivos pais, e a coabitação aberta dos dois sexos, permitida sem censura em todos os demais países, lá é considerada a mais indecente e pouco viril sensualidade. Não é apenas quanto a essa paixão agradável que exercem esse autodomínio absoluto. Às vistas de seus companheiros, muitas vezes aturam ofensas, reproches, insultos grosseiros, aparentando uma imensa insensibilidade, não expressando o menor ressentimento. Quando feito prisioneiro de guerra, o selvagem recebe, como de costume, uma sentença de morte de seus conquistadores, mas a ouve sem expressar qualquer emoção, e em seguida submete-se às mais terríveis torturas, sem se lamuriar ou exibir outra paixão, além de desprezo pelos inimigos. Enquanto é pendurado pelos ombros sobre um fogo lento, ridiculariza seus torturadores, e lhes descreve com que superior habilidade torturaria tais inimigos que tivessem caído em suas mãos. Após ser calcinado, queimado e lacerado durante várias horas nas partes mais tenras e sensíveis de seu corpo, sempre lhe permitem uma breve trégua, e o retiram do cadafalso, a fim de prolongar sua desgraça.

Emprega esse intervalo para falar sobre os mais indiferentes assuntos, para perguntar pelas notícias do país, parecendo indiferente a sua própria situação. Os espectadores manifestam a mesma insensibilidade; a visão de objeto tão horrível parece não os impressionar, quase nem olham o prisioneiro, salvo para ajudar a torturá-lo. Nas outras horas fumam tabaco, e distraem-se com qualquer objeto comum, como se nada estivesse ocorrendo. Diz-se que todo selvagem se prepara desde a mais tenra juventude para esse pavoroso fim: compõe para esse propósito o que chamam canção da morte, canção que deverá entoar quando tiver caído nas mãos do inimigo, e estiver expirando sob as torturas que lhe infligem. Consiste em insultos aos seus torturadores, e expressa um enorme desprezo pela morte e pela dor. Entoa essa canção em todas as ocasiões extraordinárias: quando vai para a guerra, quando encontra seus inimigos no campo de batalha, ou sempre que pretenda mostrar que acostumou sua imaginação aos mais terríveis infortúnios, e que nenhum humano poderá intimidar sua determinação ou alterar seu propósito. O mesmo desprezo pela morte e pela tortura prevalece entre todas as demais nações selvagens. A esse respeito, não existe um único negro da costa da África cuja magnanimidade a alma de seu sórdido senhor mal consegue conceber. A fortuna nunca exerceu mais cruelmente seu império sobre os homens do que quando sujeitou essas nações de heróis ao rebotalho das masmorras da Europa, a pobres-diabos que não possuem nem as virtudes do país de onde vêm, nem as daqueles para onde vão, e cuja leviandade, brutalidade e baixeza os expõem tão justamente ao desdém dos vencidos.

Essa firmeza heróica e indomável, que o costume e a educação do país demandam de cada selvagem, não é exigida aos que foram criados para viver em sociedades civilizadas. Se estes se queixam quando têm dor, lamentam-se quando estão aflitos, permitem-se ser sobrepujados pelo amor ou descompostos pela ira, são facilmente perdoados. Entende-se que tais fraquezas não afetam os elementos essenciais do seu caráter. Na medida em que não se permitem arrebatamentos que os levem a fazer algo contrário à justiça e à humanidade, perdem pouco de sua reputação, embora a serenidade de seu semblante ou a compostura de seu discurso e conduta fiquem um tanto tocadas e perturbadas. Um povo humano e polido, que tenha mais sensibilidade para com as paixões alheias, mais prontamente consegue compartilhar um comportamento vivaz e passional, e mais facilmente consegue perdoar algum pequeno excesso. A pessoa principalmente atingida percebe isso e, segura da eqüidade de seus juízes, permite-se expressões mais fortes de paixão, receia menos que a intensidade de suas emoções exponha-a ao desprezo dos homens. Podemos aventurar-nos a expressar mais emoção na presença de um amigo do que na de um estranho, porque esperamos mais indulgência de um que de outro. E, da mesma maneira, as regras de decoro entre nações civilizadas permitem um comportamento mais animado do que seria aprovado pelos bárbaros. Os primeiros convivem entre si com a franqueza de amigos; os últimos, com a reserva de estrangeiros. A emoção e vivacidade com que franceses e italianos, as duas nações mais polidas no Continente, expressam-se nas ocasiões públicas que de algum modo têm interesse surpreendem de início os estrangeiros que viajam entre eles, os quais, sendo educados entre um povo de sensibilidade mais embotada, não podem compartilhar esse comportamento apaixonado, de que jamais viram exemplo em seu país. Um jovem nobre francês chorará na presença da Corte inteira, se lhe for recusado um regimento. Um italiano, diz o Abade Dû Bos, expressa mais emoção ao ser condenado a uma multa de vinte xelins do que um inglês ao receber uma sentença de morte. Cícero, nos termos da mais elevada polidez romana, podia, sem se degradar, chorar com toda a amargura da dor, na presença de todo o senado e de todo o povo – pois é evidente que deve ter chorado no final de quase todos os seus discursos. Os oradores dos tempos mais antigos e mais rudes de Roma provavelmente não poderiam expressar-se com tamanha emoção, conforme os modos de sua época. Suponho que teria sido considerado violação da natureza e da propriedade nos Cipiões, nos Lélios e em Catão, o Velho, expor tamanha sensibilidade à vista do público. Os antigos guerreiros poderiam expressar-se com aprumo, gravidade e bom discernimento, mas diz-se que eram estranhos à eloqüência sublime e apaixonada que foi originalmente introduzida em Roma, não muitos anos antes do nascimento de Cícero, pelos dois Gracos, Crasso e Sulpício. Essa eloqüência vivaz, que foi durante muito tempo praticada com ou sem êxito na França e na Itália, apenas agora começa a ser introduzida na Inglaterra. Assim, grande é a diferença entre os graus de autodomínio exigidos em nações civilizadas e bárbaras, e tais são os diferentes padrões com que julgam a conveniência do comportamento.

Essa diferença dá ocasião a muitas outras, não menos essenciais. Um povo polido, em alguma medida acostumado a dar vazão aos impulsos da natureza, torna-se franco, aberto, sincero. Os bárbaros, ao contrário, obrigados a abafar e ocultar toda manifestação de paixão, necessariamente adquirem hábitos de falsidade e dissimulação. Todos os que conviveram com selvagens, seja na Ásia, África ou América, observaram que são igualmente impenetráveis, e que, se pretendem ocultar a verdade, nenhum interrogatório é capaz de arrancá-la deles. Não podem ser trepanados nem pelo mais hábil interrogatório. A própria tortura é incapaz de fazê-los confessar algo que não tenham a intenção de contar. As paixões de um selvagem, também, ainda que nunca se expressem por nenhuma emoção exterior e fiquem ocultas no peito de quem sofre, atingem todavia o mais alto pico de fúria. Embora raramente demonstre qualquer sintoma de ira, sua vingança, quando chega a descarregá-la, é sempre sanguinária e terrível. A menor afronta o leva ao desespero. Com efeito, seu semblante e seu discurso ainda são sóbrios e compostos, nada expressando senão a mais perfeita tranqüilidade de espírito; mas seus atos são com freqüência os mais furiosos e violentos. Entre os norte-americanos, não é incomum pessoas da mais tenra idade e do sexo mais medroso afogarem-se, apenas porque receberam uma leve reprimenda de suas mães, e isso também sem expressarem paixão alguma, ou sem dizerem nada, exceto: “Vós já não tereis filha.” Em nações civilizadas, as paixões humanas não são comumente tão furiosas ou tão desesperadas. São muitas vezes clamorosas e ruidosas, mas raramente são demasiado nocivas, e amiúde parecem visar apenas à satisfação de convencer o espectador de que têm razão de se moverem assim, e de obter a simpatia e aprovação deste.

Todos esses efeitos dos usos e costumes sobre os sentimentos morais da humanidade são, entretanto, insignificantes, se comparados aos que geram em alguns outros casos, e não é quanto ao estilo geral do caráter e comportamento que esses princípios produzem a maior perversão de juízo, mas quanto à conveniência ou inconveniência de usos particulares.

Os diferentes modos que o costume nos ensina a aprovar nas diversas profissões e situações de vida não dizem respeito a coisas de grande importância. Esperamos verdade e justiça de um ancião como de um jovem, de um clérigo como de um oficial; e é apenas nesses assuntos de pequena monta que procuramos as marcas distintivas de seus respectivos caracteres. Também quanto a estes freqüentemente há alguma circunstância despercebida, a qual nos mostraria, se a tivéssemos notado, que, independente do costume, havia conveniência no caráter que o costume nos ensinara a atribuir a cada profissão. Nesse caso, portanto, não podemos nos queixar de que a perversão do sentimento natural é muito grande. Embora os modos de diferentes nações requeiram diferentes graus da mesma qualidade no caráter que julgam digno de estima, pode-se dizer que mesmo aqui o que de pior pode acontecer é os deveres de uma virtude por vezes se estenderem a ponto de invadir um pouco os recintos de alguma outra. A rústica hospitalidade, voga entre os poloneses, talvez invada um pouco a economia e a boa ordem; e a frugalidade, estimada na Holanda, talvez invada a generosidade e a solidariedade. A rigidez que se exige dos selvagens diminui sua humanidade, e talvez a delicada sensibilidade requerida nas nações civilizadas por vezes destrua a firmeza máscula de caráter. Em geral, pode-se afirmar que o estilo dos modos existente em qualquer nação é o mais adequado à sua situação. A rigidez é o caráter mais adequado às circunstâncias de um selvagem; a sensibilidade, o mais adequado às de quem vive numa nação bastante civilizada. Mesmo aqui, por conseguinte, não podemos nos queixar de que os sentimentos morais dos homens sejam muito gravemente pervertidos.

Portanto, não é no estilo geral de conduta ou comportamento que o costume autoriza a mais ampla separação do que é a conveniência natural da ação. No que diz respeito aos usos particulares, sua influência com freqüência é mais destrutiva para a boa moral, pois é capaz de estabelecer como legítimas e irrepreensíveis ações particulares que colidem com os mais simples princípios do certo e do errado.

Pode haver maior barbárie, por exemplo, do que ferir um bebê? Seu desamparo, sua inocência, sua amabilidade, provocam compaixão até mesmo no inimigo, e não poupar essa tenra idade é considerado o mais enfurecido ato de um conquistador irado e cruel. O que imaginar então do coração de um pai que pudesse ferir essa fragilidade, a qual até um inimigo enfurecido receia violar? Contudo, o abandono, isto é, o assassinato de bebês recém-nascidos, era prática permitida em quase todos os estados da Grécia, mesmo entre os polidos e civilizados atenienses; e todas as vezes em que as circunstâncias do pai tornassem inconveniente criar o filho, julgava-se que abandoná-lo à fome ou aos animais selvagens não era censurável, nem passível de condenação. Provavelmente tal prática começara nos tempos da mais selvagem barbárie. A imaginação dos homens primeiro se tornou familiar a essa prática durante o mais antigo período da sociedade, e o prosseguimento uniforme do costume a impedira mais tarde de perceber sua enormidade. Vemos que ainda hoje tal prática prevalece entre todas as nações selvagens, mas certamente no mais baixo e rude estado de sociedade é mais perdoável do que em qualquer outro. A extrema indigência de um selvagem é com freqüência tal, que o expõe aos extremos da fome; muitas vezes morre de pura carência, e freqüentemente lhe é impossível sustentar a si mesmo e a seu filho. Não podemos nos admirar então que nesse caso o abandone. Alguém que, fugindo de um inimigo a quem foi impossível resistir, largasse seu bebê porque o impedia de correr, certamente seria desculpável, pois, se tentasse salvá-lo, só poderia esperar o consolo de morrer com ele. Portanto, não deveria nos surpreender tanto que nesse estado da sociedade a um pai fosse permitido julgar se poderia ou não criar seu filho. Nos últimos tempos da Grécia, porém, a mesma coisa era permitida com vistas ao interesse remoto ou à conveniência, o que de modo algum poderia ser desculpável. A essa altura, o costume ininterrupto autorizara tão completamente essa prática, que não apenas as vagas máximas do mundo toleravam essa prerrogativa bárbara, como até mesmo a doutrina dos filósofos, que deveriam ser mais justos e cuidadosos, deixou-se levar pelo costume estabelecido; e nesse caso, como em muitos outros, em vez de censurarem, apoiavam o horrível abuso com implausíveis considerações de utilidade pública. Aristóteles fala disso como algo que em muitas ocasiões o magistrado deveria encorajar. O humanitário Platão é da mesma opinião, e apesar de todo o amor à humanidade que parece animar todos os seus escritos, em lugar algum caracteriza essa prática com desaprovação. Se o costume é capaz de sancionar uma violação da humanidade tão terrível, é bem possível imaginarmos que quase não há prática repulsiva que não autorize. Ouvimos os homens dizerem todos os dias que tal coisa se faz comumente, como se julgassem que isso constitui apologia suficiente para algo que, em si mesmo, é conduta extremamente injusta e nada razoável.

Há uma razão óbvia por que o costume jamais deveria perverter nossos sentimentos relativos ao estilo e caráter gerais da conduta e comportamento, do mesmo modo como os relativos à conveniência ou ilegitimidade de usos particulares. Jamais pode haver tal costume. Nenhuma sociedade poderia subsistir por um momento, se nela o impulso usual da conduta e comportamento dos homens acompanhasse a horrenda prática que acabo de mencionar.


 
SEXTA PARTE DO CARÁTER DA VIRTUDE

 
INTRODUÇÃO
Quando consideramos o caráter de um indivíduo qualquer, naturalmente vemo-lo sob dois aspectos diferentes: primeiro, como pode afetar sua própria felicidade; e, segundo, como pode afetar a felicidade de outras pessoas.


 
SEÇÃO I Do caráter do indivíduo, na medida em que afeta sua própria felicidade; ou da prudência
A conservação e o estado saudável do corpo parecem ser os objetos que a natureza primeiramente recomenda ao cuidado de cada indivíduo. Os apetites de fome e sede, as sensações agradáveis e desagradáveis de prazer e dor, calor e frio, etc., podem ser consideradas como lições preferidas pela voz da própria Natureza, orientando-o quanto ao que deveria escolher e evitar para esse propósito. As primeiras lições que lhe ensinam aqueles a quem sua infância foi confiada tendem, em grande parte, ao mesmo propósito. Seu principal objeto é ensinar-lhe como manter-se afastado da via dos danos.

Na medida em que cresce, o homem logo aprende que algum cuidado e previsão são necessários para prover os meios de satisfazer esses apetites naturais, de obter prazer e evitar dor, de obter a temperatura de calor e frio agradável e evitar a desagradável. Na orientação adequada desse cuidado e previsão consiste a arte de conservar e intensificar o que se chama a sua fortuna externa.

Embora seja para suprir as necessidades e conveniências do corpo que as vantagens da fortuna externa nos são originalmente recomendadas, não podemos viver muito neste mundo sem perceber que o respeito de nossos iguais, nosso crédito e posição na sociedade em que vivemos, dependem muito do grau em que possuímos, ou em que se supõe possuirmos, essas vantagens. O desejo de nos tornarmos objetos apropriados desse respeito, de merecer e alcançar esse crédito e posição entre nossos iguais, é talvez o mais forte de todos os nossos desejos; e, por conseguinte, esse desejo suscita e exaspera nossa preocupação de alcançar as vantagens da fortuna mais do que o desejo de suprir todas as necessidades e comodidades do corpo, quase sempre muito fáceis de se suprirem.

Nossa posição e crédito entre nossos iguais também dependem muito daquilo de que talvez um homem virtuoso desejaria que dependessem inteiramente: nosso caráter e conduta, ou da confiança, estima e boa vontade que esses naturalmente suscitam nas pessoas com quem vivemos.

O cuidado da saúde, da fortuna, da posição e reputação do indivíduo – objetos dos quais se supõe que dependam principalmente seu conforto e felicidade nesta vida – é considerado a empresa própria daquela virtude comumente chamada prudência.

Já se comentou que o sofrimento causado por decairmos de uma situação melhor para uma pior é muito superior ao regozijo que sentimos ao ascendermos de uma situação pior para uma melhor. Portanto, a segurança é o primeiro e principal objeto de prudência. É avessa a expor nossa saúde, nossa fortuna, nossa posição ou reputação a qualquer espécie de perigo. É antes cautelosa que empreendedora, e mais preocupada em conservar as vantagens que já possuímos do que disposta a nos incitar à aquisição de vantagens ainda maiores. Os métodos para melhorar nossa fortuna, os quais a prudência nos recomenda principalmente, são os que não nos expõem a perdas ou riscos: verdadeiro conhecimento e habilidade em nosso negócio ou profissão, constância e diligência no exercício desta, frugalidade, e até mesmo certo grau de parcimônia em todas as nossas despesas.

O homem prudente sempre estuda séria e determinadamente para entender o que professa entender, e não meramente para persuadir outras pessoas de que entende; e posto seus talentos nem sempre sejam brilhantes, são sempre perfeitamente genuínos. Tampouco se esforça para impor-se a ti pelos perspicazes expedientes de um impostor astuto, ou pelos ares arrogantes de um pretenso pedante, nem pelas afirmações confiantes de um pretendente superficial e impudente: não ostenta sequer as habilidades que realmente possui. Sua conversa é simples e modesta, e é avesso a todas as artes charlatanescas por meio das quais outras pessoas com tanta freqüência intrometem-se na atenção e reputação do público. Por reputação na sua profissão, está naturalmente predisposto a confiar um bocado na solidez de seu conhecimento e de suas habilidades, mas nem sempre pensa em cultivar os favores das pequenas associações e juntas que, nas artes e ciências superiores, com demasiada freqüência se erigem em juízes supremos do mérito, tomando para si a incumbência de celebrar talentos e virtudes uns dos outros, e denegrir tudo que possa vir a competir com eles. Se porventura se associar a alguma organização dessa espécie, é meramente para autodefesa, não com vistas a abusar do público, mas a impedir que do público se abuse, para sua desvantagem, por meio de clamores, sussurros, intrigas dessa organização particular, ou alguma outra da mesma espécie.

O homem prudente é sempre sincero, e sente horror ao mero pensamento de expor-se à desgraça que se segue da descoberta da falsidade. Ainda que sempre sincero, contudo, nem sempre é franco e aberto, e ainda que nunca diga senão a verdade, nem sempre se julga obrigado, caso não o tenham propriamente convocado, a dizer a verdade completa. Do mesmo modo como é cauteloso em suas ações, também é reservado no seu discurso, e jamais expressa precipitada ou desnecessariamente sua opinião sobre coisas ou pessoas.

O homem prudente, embora nem sempre se destaque pela mais delicada sensibilidade, é sempre capaz de manter amizades. Sua amizade, porém, não é aquela afeição ardente e apaixonada, muitas vezes transitória, que se revela tão deliciosa à generosidade da juventude e da inexperiência. É uma ligação sossegada, mas constante e fiel, com poucos companheiros bem examinados e bem escolhidos, em cuja escolha não é guiado pela frívola admiração das realizações brilhantes, mas pela sóbria estima da modéstia, discrição e boa conduta.

Contudo, embora capaz de manter amizades, nem sempre está muito disposto a uma sociabilidade geral. Raramente freqüenta esses grupos sociais marcados pela alegria e graça da sua conversa e mais raramente ainda figura entre eles. O modo de vida destes freqüentemente poderia interferir na regularidade de sua temperança, poderia interromper a constância de sua diligência, ou perturbar o rigor da sua frugalidade.

Embora sua palestra nem sempre seja brilhante ou divertida, é todavia sempre perfeitamente inofensiva. Odeia a idéia de ser culpado de petulância ou grosseria; nunca é impertinente em relação a quem quer que seja e, em todas as ocasiões comuns, de boa vontade coloca-se antes abaixo do que acima dos seus iguais. Tanto em sua conduta quanto em sua palestra, é um observador rigoroso da decência, e respeita, com escrúpulo quase religioso, todo o decoro e cerimoniais estabelecidos da sociedade. E, nesse aspecto, oferece um exemplo muito melhor do que com freqüência oferecem homens de talentos e virtudes bem mais esplêndidos, os quais, em todos os tempos – desde Sócrates e Aristipo, até o Dr. Swift e Voltaire, desde Filipe e Alexandre, o Grande, até o grande Czar Pedro de Moscou –, muitas vezes se destacaram pelo mais impróprio, até mesmo insolente, desprezo por todo o decoro comum à vida e à palestra e, por isso, ofereceram o mais pernicioso exemplo a quem, desejando parecer-se a eles, não raro se contenta em imitar suas loucuras, sem tentar atingir sua perfeição.

Na constância de sua diligência e frugalidade, em seu constante sacrifício ao conforto e regozijo do presente pela expectativa provável de conforto e regozijo ainda maiores num tempo mais remoto, mas mais duradouro, o homem prudente é sempre amparado e recompensado pela inteira aprovação do espectador imparcial, e pelo representante do espectador imparcial, o homem que o peito encerra. O espectador imparcial não se sente exaurido pelo presente labor dos homens cuja conduta examina; tampouco se sente solicitado pelos chamados importunos de seus apetites presentes. Para ele, o presente desses homens, e o que provavelmente será sua situação futura, são quase iguais: vê-os quase à mesma distância, e afetam-no quase da mesma maneira. Sabe, entretanto, que para as pessoas principalmente envolvidas seu presente e seu futuro estão longe de ser iguais, e que naturalmente as afetam de modo muito diverso. Portanto, o espectador imparcial só pode aprovar e até aplaudir o esforço adequado de autodomínio que as torna capazes de agir como se sua situação presente e futura as afetassem quase da mesma maneira que afetam a ele.

O homem que vive de acordo com sua renda está naturalmente contente com sua situação, a qual, por acúmulos contínuos, embora pequenos, melhora a cada dia. Consegue gradualmente relaxar tanto no rigor de sua parcimônia, quanto na severidade de sua dedicação; e percebe com satisfação dobrada esse gradual aumento de conforto e deleite por ter experimentado antes as durezas que acompanham a falta deles. Não tem nenhuma preocupação em alterar uma situação tão confortável, e não sai em busca de novos empreendimentos e aventuras, que poderiam colocar em perigo, mas não aumentariam muito, a segura tranqüilidade de que verdadeiramente usufrui. Se entra em novos projetos ou empreendimentos, provavelmente serão bem planejados e preparados. Jamais pode ser apressado ou impelido a eles por alguma necessidade, pois sempre dispõe de tempo e ócio para deliberar sóbria e lucidamente sobre quais serão suas prováveis conseqüências.

O homem prudente não se predispõe a sujeitar-se a uma responsabilidade que não tenha sido imposta por seu dever. Não põe em alvoroço negócios que não lhe dizem respeito, nem se intromete em assuntos alheios; não é conselheiro ou consiliário professo, que despeja seu parecer onde ninguém o pediu: confina-se, na medida em que lhe permitir o seu dever, aos seus próprios negócios, e não tem gosto pela tola importância que muitas pessoas desejam obter, aparentando ter alguma influência na administração dos assuntos alheios; é avesso a meter-se em disputas, odeia facções, e nem sempre se prontifica a ouvir sequer a voz de uma ambição nobre e grande. Quando distintamente convocado, não declinará servir a seu país; mas não maquinará para forçar que o aceitem nesse serviço, e lhe agradaria muito mais que outra pessoa administrasse os assuntos públicos a ter ele mesmo o trabalho, a responsabilidade de os administrar. No fundo de seu coração, preferiria o deleite impassível da tranqüilidade segura, não apenas a todo vão esplendor da ambição bem-sucedida, mas à glória sólida e real de realizar as maiores e mais magnânimas ações.

Em resumo, quando orientada meramente para o cuidado da saúde, da fortuna, da posição e reputação do indivíduo, embora considerada uma qualidade muito respeitável e até, em certa medida, amável e agradável, a prudência nunca é considerada uma das virtudes mais caras ou mais nobres. Conquista certa estima fria, mas não parece ter direito a um ardente amor e admiração.

Uma conduta sábia e judiciosa, quando orientada para propósitos maiores e mais nobres do que cuidados com saúde, fortuna, posição, reputação do indivíduo, não raro é propriamente chamada Prudência. Falamos da prudência do grande general, do grande estadista, do grande legislador. Em todos esses casos, à Prudência se combinam muitas virtudes maiores e mais esplêndidas: valor, ampla e forte benevolência, um sagrado respeito às regras da justiça, e tudo isso amparado por um grau apropriado de domínio de si. Essa prudência superior, quando transportada para o mais alto grau de perfeição, necessariamente supõe a arte, o talento e o hábito ou disposição de agir com a mais perfeita conveniência em todas as possíveis circunstâncias e situações. Supõe necessariamente a extrema perfeição de todas as virtudes intelectuais e morais. É a melhor cabeça unida ao melhor coração. É a mais perfeita sabedoria combinada com a mais perfeita virtude. Constitui, com muita proximidade, o caráter do sábio acadêmico ou peripatético, do mesmo modo como a prudência inferior constitui o caráter do epicurista.

A mera imprudência, ou a mera falta de capacidade de cuidar de si mesmo, é para os generosos e humanos objeto de compaixão; para os de sentimentos menos delicados, de negligência ou, pior, de desprezo, mas nunca de ódio ou indignação. Quando combinada a outros vícios, porém, agrava sobremaneira a infâmia e desgraça que por outras razões os acompanhariam. O velhaco astuto, cuja destreza e oratória o eximem, se não de fortes suspeitas, pelo menos de castigo ou de clara denúncia, é com muita freqüência recebido no mundo com uma indulgência que de modo algum merece. O desajeitado e tolo, que por falta dessa destreza e oratória, é sentenciado e punido, é objeto de ódio universal, desprezo e sarcasmo. Em países onde grandes crimes freqüentemente passam sem punição, os atos mais atrozes se tornam quase familiares às pessoas, cessando de impressioná-las com o horror que universalmente se sente em países onde existe uma administração exata da justiça. A injustiça é a mesma nos dois países, mas não raro a imprudência é muito diversa. No último, grandes crimes constituem evidentemente grandes loucuras. No primeiro, nem sempre são consideradas enquanto tais. Na Itália, durante a maior parte do século XVI, crimes, assassinatos, até homicídios encomendados, parecem ter sido quase familiares entre as camadas superiores. César Bórgia convidou quatro dos pequenos príncipes de suas vizinhanças, que possuíam pequenas soberanias, e comandavam pequenos exércitos, para uma conferência amigável em Senigaglia, onde, assim que chegaram, mandou-os matar. Esse ato infame, embora certamente não fosse aprovado nem mesmo naquele tempo de crimes, parece ter contribuído muito pouco para o descrédito e em nada para a ruína de quem o perpetrou. Essa ruína sucedeu poucos anos depois, por causas inteiramente distintas desse crime. Maquiavel – de fato, um homem cuja moralidade não era, nem mesmo para seu tempo, das mais encantadoras – residia, como ministro da República de Florença, na Corte de César Bórgia, quando esse crime foi cometido. Oferece uma descrição bastante minuciosa desse evento, com aquela linguagem pura, elegante e simples que distingue todos os seus escritos: fala disso com grande frieza; agrada-lhe a habilidade com que César Bórgia conduziu tudo; despreza muito a ingenuidade e fraqueza dos sofredores, mas nenhuma compaixão por sua miserável e prematura morte, nenhuma espécie de indignação pela crueldade e falsidade de seu assassino. A violência e a injustiça de grandes conquistadores são freqüentemente vistas com tola admiração e assombro, as dos pequenos ladrões, assaltantes e assassinos, em todas as acasiões, com desprezo, ódio, e até horror. As primeiras, ainda que cem vezes mais danosas e destrutivas, se alcançam êxito, passam amiúde por façanhas de heróica magnanimidade. As últimas são sempre vistas com ódio e aversão, como as loucuras e os crimes dos piores e mais baixos seres humanos. A injustiça dos primeiros é, certamente, pelo menos tão grande quanto as dos últimos; mas a loucura e imprudência não são nem de longe tão grandes. Um homem hábil, perverso e indigno, muitas vezes passa pelo mundo com muito mais crédito do que merece. Um homem tolo, perverso e indigno apresenta-se sempre como o mais odioso e o mais desprezível dentre todos os mortais. Do mesmo modo como a prudência, combinada com outras virtudes, constitui o mais nobre dos caracteres, a imprudência, combinada com outros vícios, constitui o mais vil.


 
SEÇÃO II Do caráter do indivíduo na medida em que pode afetar a felicidade de outras pessoas

 
INTRODUÇÃO
O caráter de cada indivíduo, na medida em que pode afetar a felicidade de outras pessoas, deve fazê-lo pela sua disposição seja de prejudicar, seja de beneficiá-las.

O ressentimento apropriado pela injustiça que se tentou cometer ou que realmente se cometeu é o único motivo que, aos olhos do espectador imparcial, pode justificar que prejudiquemos ou perturbemos em qualquer aspecto a felicidade de nosso próximo. Fazê-lo por qualquer outro motivo constitui em si mesmo uma violação das leis da justiça, e nesse caso dever-se-ia empregar a força, quer para refrear, quer para punir. A sabedoria de cada Estado ou república (commonwealth) empenha-se, tanto quanto possível, em empregar a força da sociedade para coibir os que são sujeitos à sua autoridade, de prejudicar ou perturbar a felicidade uns dos outros. As regras estabelecidas para esse fim constituem as leis civil e criminal de cada Estado ou país em particular. Os princípios sobre os quais essas regras são ou deveriam ser fundadas são assunto de uma ciência particular, de longe a mais importante de todas, mas até aqui talvez a menos cultivada – a jurisprudência natural –, a respeito da qual não cabe a nosso tema entrar em detalhes. Um sagrado e religioso respeito a não prejudicar nem perturbar em nenhum aspecto a felicidade de nosso próximo, mesmo nos casos em que nenhuma lei pode proteger adequadamente, constitui o caráter do homem perfeitamente inocente e justo, caráter que, quando traz consigo certa delicadeza de atenção, é sempre muito respeitável, até venerável por si mesmo, e dificilmente deixa de ser acompanhado de muitas outras virtudes, como grandes sentimentos para com outras pessoas, grande humanidade e grande benevolência. Trata-se de um caráter suficientemente compreendido e por isso não exige explicação suplementar. Nesta seção, apenas procurarei explicar o fundamento dessa ordem que a Natureza parece ter traçado para a distribuição dos nossos bons serviços, ou para direção e emprego de nossos limitadíssimos poderes de beneficência, em primeiro lugar para com os indivíduos; em segundo lugar, para com as sociedades.

Ver-se-á que a mesma sabedoria infalível, que regula todos os outros elementos da conduta da natureza, orienta também nesse aspecto a ordem de suas recomendações, as quais são sempre mais fortes ou mais fracas, à proporção que nossa beneficência seja mais ou menos necessária, ou possa ser mais ou menos útil.


 
CAPÍTULO I Da ordem em que indivíduos são recomendados por natureza aos nossos cuidados e atenção
Como costumavam dizer os Estóicos, todo homem é primeiro e principalmente recomendado a seu próprio cuidado: e todo homem é certamente, em todos os aspectos, mais adequado e capaz de cuidar de si mesmo do que qualquer outra pessoa. Todo homem sente seus próprios prazeres e dores mais intensamente do que os de outras pessoas. As primeiras são as sensações originais, as últimas, imagens refletidas e simpáticas, dessas sensações. As primeiras podem ser ditas a substância, as outras, a sombra.

Depois de si mesmo, os membros de sua família, os que habitualmente vivem em sua casa, seus pais, filhos, irmãos e irmãs, são naturalmente objetos de seus mais cálidos afetos. São natural e comumente as pessoas sobre cuja felicidade ou desgraça a sua conduta deve ter maior influência. Está mais habituado a simpatizar com elas; conhece melhor como provavelmente tudo as afetará, e sua simpatia por elas é mais precisa e determinada, do que pode ser com a maior parte das outras pessoas. Em suma, é mais próxima do que ele sente por si mesmo.

Ademais, essa simpatia, e as afeições nela fundadas, por natureza dirigem-se mais intensamente para os seus filhos do que para seus pais, e sua ternura pelos primeiros parece em geral um princípio mais ativo do que sua reverência e gratidão pelos pais. No natural estado de coisas, já se observou, a existência do filho, durante algum tempo após ter vindo ao mundo, depende inteiramente do cuidado dos pais; a dos pais não depende naturalmente do cuidado dos filhos. Aos olhos da natureza, ao que parece, uma criança é um objeto mais importante do que um ancião, e suscita uma simpatia bem mais viva e mais universal. E deveria realmente ser assim. Da criança tudo se pode esperar; ou ao menos desejar. Em situações comuns, muito pouco pode-se esperar ou desejar de um ancião. A fragilidade da infância interessa aos afetos dos mais brutais e duros de coração. É somente aos virtuosos e humanos que as fraquezas da velhice não são objeto de desprezo e aversão. Em casos comuns, quando um ancião morre poucos o lamentam muito. Dificilmente quando morre uma criança não fica destroçado o coração de alguém.

As primeiras amizades, as amizades naturalmente contraídas quando o coração é mais suscetível desse sentimento, são aquelas entre irmãos e irmãs. Enquanto permanecem na mesma família, sua concordância é necessária para tranqüilidade e felicidade desta. São capazes de dar mais prazer e dor uns aos outros do que à maior parte das outras pessoas. Sua situação torna a sua simpatia mútua de extrema importância para sua felicidade comum; e, pela sabedoria da natureza, a mesma situação, ao obrigá-los a se acomodarem uns aos outros, torna essa simpatia mais habitual e por isso mais viva, mais distinta e mais determinada.

Os filhos de irmãos e irmãs são naturalmente unidos pela amizade que, depois de se separarem em diferentes famílias, continua a existir entre seus pais. Sua concordância aumenta o prazer dessa amizade, sua discórdia o perturbaria. Embora sejam mais importantes uns para os outros do que para a maioria das outras pessoas, uma vez que raramente vivem na mesma família, são bem menos importantes do que irmãos e irmãs. Como sua simpatia mútua é menos necessária, também é menos habitual, e por isso proporcionalmente mais fraca.

Os filhos de primos, sendo ainda menos unidos, têm ainda menos importância uns para os outros; e o afeto diminui gradualmente na medida em que a relação se torna mais e mais remota.

O que se chama afeição nada é, na realidade, senão simpatia habitual. Nossa preocupação pela felicidade ou desgraça dos que são objetos do que chamamos nossos afetos; nosso desejo de promover uma e evitar a outra, são o real sentimento dessa simpatia habitual, ou as conseqüências necessárias desse sentimento. Estando os parentes usualmente colocados em situações que naturalmente criam essa habitual simpatia, espera-se que um grau adequado de afeto ocorra entre eles. Geralmente descobrimos que de fato isso ocorre; portanto, naturalmente esperamos que ocorra sempre, e por tal razão nos perturba descobrir, em qualquer ocasião, que não é assim. Há uma regra geral estabelecida, de que pessoas aparentadas em certo grau deveriam sempre ser afetadas umas pelas outras de certo modo, e de que há sempre a maior inconveniência, e por vezes até uma espécie de impiedade, em serem afetadas de modos diferentes. Um pai sem afeto paterno, um filho que carece de toda a reverência filial, revelam-se monstruosos, objetos não apenas de ódio, mas de horror.

Embora num caso particular as circunstâncias que comumente produzem esses afetos naturais, como são chamados, possam por algum acidente não ter ocorrido, em certa medida o respeito pela regra geral com freqüência preenche o seu lugar, produzindo algo que, posto que não seja inteiramente igual, pode guardar, todavia, bastante semelhança com aqueles afetos. Um pai tende a ser menos afeiçoado a um filho de quem, por acidente, tenha-se separado desde a infância, e que não retorne a ele senão depois de se ter tornado homem feito. O pai tende a sentir menor ternura paternal pelo filho; o filho, menos reverência filial pelo pai. Irmãos e irmãs, quando educados em países distantes, tendem a sentir uma redução similar do seu afeto. Entre os reverentes e virtuosos, porém, o respeito pela regra geral freqüentemente produzirá algo que, embora de modo algum idêntico, pode ser muito parecido aos afetos naturais. Mesmo durante a separação, o pai e o filho, os irmãos e irmãs, não são de modo algum indiferentes uns aos outros. Todos consideram-se pessoas a quem e de quem se devem certos afetos, e vivem na esperança de poder alguma vez usufruir essa amizade que naturalmente deveria ter sucedido entre pessoas tão próximas. Até se encontrarem, o filho ausente, o irmão ausente, são amiúde o filho ou o irmão favorito. Nunca ofenderam, ou, se o fizeram, foi há tanto tempo, que a ofensa foi esquecida como uma brincadeira infantil que não vale a pena lembrar. Todos os relatos que ouviram um do outro, se transmitidos por pessoas de índole toleravelmente boa, foram extremamente lisonjeiros e favoráveis. O filho ausente, o irmão ausente, não são como os filhos e irmãos comuns, mas um filho perfeito, um perfeito irmão; e cultivam-se as mais românticas esperanças da felicidade a se fruir com a amizade e convívio dessas pessoas. Não raro, quando se encontram, têm tão forte disposição de conceber a simpatia habitual que constitui o afeto familiar, que tendem a imaginar tê-la realmente concebido, portando-se mutuamente como se isso fosse verdade. Receio, porém, que o tempo e a experiência com muita freqüência os desiluda. Após maior convívio familiar, não é raro descobrirem um no outro hábitos, humores e inclinações diferentes dos que esperavam, e aos quais, por falta de simpatia habitual, por falta do real princípio e fundamento do que se chama propriamente afeto familiar, não conseguem agora facilmente se acomodar. Nunca viveram na situação que quase necessariamente força a fácil acomodação, e, embora possam desejar agora sinceramente adotá-la, tornaram-se realmente incapazes de fazer isso. Sua convivência e trato familiar logo se tornam menos agradáveis para eles, e, por esse motivo, menos freqüentes. Podem continuar a viver um com o outro, retribuindo-se mutuamente todos os bons serviços essenciais, e com todas as manifestações externas de decente respeito. Contudo, essa satisfação cordial, essa deliciosa simpatia, essa abertura e informalidade confidenciais, que naturalmente têm lugar no convívio dos que viveram por muito tempo em família, raramente podem usufruir por completo.

Todavia, é apenas entre os reverentes e os virtuosos que a regra geral exerce sua frágil autoridade. Entre os dissipados, os libertinos e os vadios, é inteiramente desrespeitada. Estão tão longe de a respeitar, que muitas vezes só falam dela com o mais indecente escárnio; e uma separação precoce e longa dessa espécie nunca deixa de apartá-los completamente uns dos outros. Entre tais pessoas, o respeito pela regra geral pode, quando muito, produzir uma civilidade fria e afetada (uma semelhança muito frágil com o verdadeiro respeito), e até disso a mais insignificante ofensa, a menor oposição de interesses, dá cabo.

A educação de meninos em grandes escolas distantes, de rapazes em faculdades distantes, de jovens damas em internatos ou conventos distantes, parece ter prejudicado, na sua mais profunda essência, a moral doméstica das camadas sociais mais altas, e conseqüentemente a felicidade doméstica, tanto na França, como na Inglaterra. Desejas educar teus filhos para serem reverentes com seus pais, bondosos e afeiçoados com seus irmãos e irmãs? Coloca-lhes a necessidade de serem filhos reverentes, de serem irmãos e irmãs afetuosos e bondosos: educa-os em tua própria casa. Com conveniência e vantagem podem deixar todos os dias a casa paterna para freqüentar escolas públicas, contanto que sua morada sempre seja o lar. O respeito por ti sempre deve impor uma restrição muito útil sobre sua conduta, e o respeito por eles pode freqüentemente impor uma restrição não menos útil sobre a tua. Certamente nenhuma aquisição que possivelmente resulta do que se chama educação pública compensa de alguma maneira o que quase certa e necessariamente se perde com ela. A educação doméstica é a instituição da natureza, a educação pública, a invenção do homem. Decerto é desnecessário dizer qual provavelmente será a mais sábia.

Em algumas tragédias e romances, encontramos várias cenas belas e interessantes, fundadas sobre o que se chama a força do sangue, ou sobre a maravilhosa afeição que deveriam os parentes próximos conceber uns pelos outros, mesmo antes de saberem que mantinham tais laços. Receio, porém, que essa força do sangue não exista senão em romances e tragédias. E até mesmo em tragédias e romances supõe-se que nunca ocorra entre parentes, senão os naturalmente criados na mesma casa: entre pais e filhos, irmãos e irmãs. Imaginar qualquer misterioso afeto entre primos, ou até entre tias ou tios, sobrinhos ou sobrinhas seria bastante ridículo.

Nas regiões pastoris, e em todas as outras onde a autoridade da lei não é suficiente para garantir perfeita segurança a cada membro do Estado, todos os diferentes ramos da mesma família comumente escolhem morar uns na vizinhança dos outros. Sua associação é freqüentemente necessária para sua defesa comum. São todos, dos superiores aos inferiores, de maior ou menor importância uns para os outros. Sua concórdia fortalece sua associação necessária, sua discórdia sempre a enfraquece e pode destruí-la. Têm mais trato uns com os outros do que com membros de qualquer outra tribo. Os mais remotos membros da mesma tribo reclamam algum laço entre si; e quando todas as circunstâncias são iguais, esperam ser tratados com atenção mais distinta do que a devida aos que não têm tais pretensões. Não faz muitos anos que, nas Highlands da Escócia, o chefe costumava considerar o homem mais pobre de seu clã como seu primo e parente. Dizem que a mesma ampla consideração com parentesco ocorre entre os tártaros, os árabes, os turcomanos, e, creio eu, entre todas as demais nações que estão quase na mesma situação social em que os escoceses das Highlands se encontravam no começo deste século.

Nas regiões comerciais, onde a autoridade da lei é sempre perfeitamente suficiente para proteger o mais humilde dos homens do Estado, os descendentes da mesma família, não tendo tal motivo para manter-se juntos, naturalmente se separam e dispersam, conforme os conduzem interesses ou inclinações. Em breve deixam de ser importantes uns para os outros, e em poucas gerações não apenas perdem todo o cuidado uns pelos outros, mas toda a lembrança de sua origem comum, e do laço que havia entre seus ancestrais. O respeito por parentes distantes torna-se cada vez menor em toda região, conforme esse estado de civilização estiver estabelecido há mais tempo e de modo mais completo. Foi estabelecido há mais tempo e de modo mais completo na Inglaterra do que na Escócia, e os parentes distantes, por conseguinte, são muito mais considerados neste último país do que no primeiro, embora a esse respeito a diferença entre os dois países esteja-se reduzindo a cada dia. Com efeito, em toda região os grandes senhores orgulham-se de recordar e reconhecer seus laços uns com os outros, por mais remotos que sejam. Sua recordação de parentescos tão ilustres lisonjeia bastante o orgulho familiar de todos eles, e não é por afeto, nem por algo semelhante a afeto, mas pela mais frívola e infantil das vaidades, que essa recordação é tão cuidadosamente cultivada. Se algum parente mais humilde, embora, talvez, muito mais próximo, aventura-se a relembrar a esses homens eminentes sua relação com a família destes, raramente deixam de lhe dizer que são maus genealogistas, e muitíssimo mal informados quanto à história de sua própria família. Receio que nessa ordem não devamos esperar uma extraordinária ampliação do chamado afeto natural.

Considero o chamado afeto natural antes o efeito do vínculo moral entre pai e filho, do que do suposto vínculo físico. Na verdade, um marido ciumento, apesar dos laços morais, apesar de ter sido o filho educado em sua casa, com freqüência vê com ódio e aversão a infeliz criança que supõe ser fruto de uma infidelidade da esposa. Essa criança é a lembrança permanente da mais desagradável aventura, de sua própria desonra, e da desgraça de sua família.

Entre as pessoas amáveis, a necessidade ou conveniência de acomodação recíproca muito freqüentemente produz uma amizade semelhante à que tem lugar entre os que nasceram para viver na mesma família. Colegas de ofício, parceiros de comércio, chamam-se irmãos, e muitas vezes sentem-se como se realmente o fossem. Sua concordância é vantajosa para todos e, se forem gente razoavelmente tolerante, são naturalmente inclinados a concordar. Esperamos que façam isso, pois seu desacordo é uma espécie de pequeno escândalo. Os romanos expressavam esse tipo de afeição com a palavra necessitudo, que, pela etimologia, parece denotar que era imposta pela necessidade da situação.

Até as triviais circunstâncias de viver na mesma vizinhança produzem efeito semelhante. Respeitamos o rosto de um homem a quem vemos todo dia, desde que nunca nos tenha ofendido. Os vizinhos podem ser muito convenientes, e podem causar muitos problemas uns para os outros. Se forem boas pessoas, são naturalmente inclinados a concordar. Esperamos sua concordância, pois ser um mau vizinho é uma característica muito ruim. Assim, reconhece-se universalmente que um vizinho tem a primazia de certos cargos, pequenos, mas bons, e não uma outra pessoa qualquer, que não mantém conosco tal vínculo.

Essa disposição natural de acomodar e assimilar, na medida do possível, nossos próprios sentimentos, princípios e emoções aos que vemos estabelecidos e enraizados nas pessoas com quem temos a obrigação de conviver e conversar é a causa dos contagiosos efeitos da boa e da má companhia. O homem que se associa principalmente aos sábios e virtuosos, embora talvez não se torne nem sábio nem vituoso, não pode deixar de conceber um certo respeito, pelo menos pela sabedoria e pela virtude; e o homem que se associa principalmente a libertinos e dissolutos, embora talvez não se torne ele próprio libertino e dissoluto, em breve deverá pelo menos perder seu horror original à libertinagem e à dissolução dos costumes. A semelhança dos caracteres familiares, os quais vemos com tanta freqüência transmitidos através de várias gerações, talvez se deva em parte a essa disposição de nos assemelharmos àqueles com quem temos a obrigação de viver e conversar. No entanto, a característica familiar, como o semblante familiar, não parece ser inteiramente devida ao vínculo moral, mas também em parte ao vínculo físico. É certo que o semblante familiar se deve inteiramente ao último.

Mas de todas as afeições por um indivíduo, a que se funda inteiramente na estima e aprovação da sua boa conduta e comportamento, a que muita experiência e longo conhecimento confirmam, sem dúvida é a mais respeitável. Tais amizades, originando-se não de uma simpatia forçada, não de uma simpatia que se ostenta e se torna habitual pelo bem da conveniência e da acomodação, mas de uma simpatia natural, de um sentimento involuntário de que as pessoas a quem nos afeiçoamos são objetos próprios e naturais de estima e aprovação, podem existir somente entre homens de virtude. Apenas homens de virtude podem sentir inteira confiança na conduta e comportamento uns dos outros, pois isso lhes assegura a todo momento que jamais se ofenderão ou serão ofendidos mutuamente. O vício é sempre caprichoso, só a virtude é regular e ordenada. Uma vez que a afeição fundada no amor da virtude é certamente a mais virtuosa das afeições, é, portanto, também a mais feliz, bem como a mais permanente e mais segura. Tais amizades não precisam se confinar a uma só pessoa, ao contrário, podem abarcar com segurança todos os sábios e os virtuosos com quem estamos longa e intimamente familiarizados, e em cuja sabedoria e bondade podemos, por essa razão, confiar inteiramente. Os que desejariam confinar a amizade a duas pessoas parecem confundir a sábia segurança da amizade com o ciúme e a insensatez do amor. As intimidades precipitadas, ingênuas e tolas dos jovens, fundadas de praxe numa frágil semelhança de caráter que não mantém relação alguma com a boa conduta, talvez num gosto pelos mesmos estudos, mesmas diversões, mesmas distrações, ou em sua concordância quanto a algum princípio ou opinião singular que não os comumente adotados; aquelas intimidades que uma extravagância inicia, e a que uma extravagância põe fim, por mais agradáveis que possam aparentar enquanto duram, de modo algum merecem o nome sagrado e venerável de amizade.

Porém, de todas as pessoas que a natureza indica para nossa peculiar beneficência, não há nenhuma a quem esta pareça mais adequadamente se dirigir do que àquelas de cuja beneficência já tivemos experiência. A natureza, que formou os homens para aquela bondade recíproca tão necessária para a sua felicidade, torna todo homem objeto peculiar de bondade para pessoas para quem ele mesmo já foi bondoso. Embora a gratidão dessas pessoas nem sempre corresponda à sua beneficência, o senso de seu mérito e a solidária gratidão do espectador imparcial sempre corresponderão. A indignação geral de outras pessoas contra a baixeza dessa ingratidão por vezes até aumentará o senso geral de seu mérito. Nunca um homem benevolente perdeu todos os frutos de sua benevolência. Se nem sempre os colhe das pessoas de quem deveria colhê-los, raramente deixa de os colher dez vezes mais de outras pessoas. Bondade gera bondade; e, se ser amado por nossos irmãos é o grande objeto de nossa ambição, o caminho mais certo para alcançá-lo será mostrar, por intermédio de nossa conduta, que realmente os amamos.

A seguir às pessoas que são recomendadas a nossa beneficência ou por seu vínculo conosco, ou por suas qualidades pessoais, ou ainda por seus serviços passados, vêm as indicadas, não de fato para o que se chama nossa amizade, mas para nossa atenção benevolente e bons serviços, os que se distinguem pela sua situação extraordinária – demasiadamente afortunados e demasiadamente infortunados, os ricos e poderosos e os pobres e desgraçados. A distinção em estratos, a paz e ordem da sociedade, estão em grande medida fundadas sobre o respeito que naturalmente concebemos pelos primeiros. O alívio e consolo da miséria humana dependem inteiramente da nossa compaixão pelos últimos. Mas a paz e a ordem da sociedade são ainda mais importantes que o alívio dos miseráveis. Nosso respeito pelos eminentes, portanto, é mais capaz de ofender pelo excesso, e a nossa solidariedade pelos miseráveis, pela falta. Os moralistas nos exortam à caridade e à compaixão, advertem-nos contra a fascinação da grandeza. Com efeito, essa fascinação é tão poderosa que os ricos e eminentes com excessiva freqüência são preferidos aos sábios e virtuosos. A natureza julgou sabiamente que a distinção em estratos, a paz e a ordem da sociedade, repousariam mais seguramente sobre a clara e palpável diferença de nascimento e fortuna do que sobre a diferença invisível, e muitas vezes incerta, de sabedoria e virtude. Os olhos indiscerníveis da grande populaça podem bem perceber os primeiros, mas é com dificuldade que o bom discernimento dos sábios e virtuosos pode às vezes distinguir os últimos. Na ordem de todas essas recomendações, fica igualmente evidente a benevolente sabedoria da natureza.

Talvez seja desnecessário observar que a combinação de duas ou mais dessas causas motrizes de bondade aumenta a bondade. O favor e parcialidade que naturalmente concebemos pela eminência, quando não há inveja no caso, aumentam muito se unidos à sabedoria e virtude. Se, malgrado essa sabedoria e virtude, o homem eminente se precipita num desses infortúnios, perigos e aflições, a que os de posição elevada são com freqüência os mais expostos, interessa-nos muito mais profundamente sua fortuna do que a de uma pessoa igualmente virtuosa, mas de situação mais humilde. Os mais interessantes temas de tragédias e romances são os infortúnios de reis e príncipes virtuosos e magnânimos. Se pela sabedoria e vigor de seus esforços safam-se desses infortúnios, recuperando completamente sua antiga superioridade e segurança, não podemos evitar de vê-los com a mais entusiástica e até extravagante admiração. O pesar que sentíamos pela sua aflição, a alegria que sentimos por sua prosperidade, parecem combinar-se para ampliar a admiração parcial que naturalmente concebemos tanto pela posição, quanto pelo caráter.

Quando sucede desses diversos afetos beneficentes delinearem caminhos diferentes, talvez seja completamente impossível determinar por regras precisas em que casos deveríamos seguir uns ou em que casos deveríamos seguir outros. Em que casos a amizade deveria ceder à gratidão ou a gratidão à amizade – em que casos o mais forte de todos os afetos naturais deveria ceder à consideração pela segurança desses superiores, da qual depende a de toda a sociedade, e em que casos o afeto natural pode, sem inconveniência, prevalecer sobre essa consideração – tudo isso deve ser deixado inteiramente à decisão do homem que nosso peito encerra, o suposto espectador imparcial, grande juiz e árbitro de nossa conduta. Se nos colocamos completamente em sua situação, se realmente nos vemos com seus olhos e como ele nos vê, e ouvimos com diligente e reverente atenção o que nos sugere, sua voz nunca nos enganará. Não nos serão necessárias regras casuísticas para dirigir nossa conduta. Muitas vezes é impossível acomodá-las a todas às diferentes nuanças e gradações de circunstância, caráter e situação, às diferenças e distinções que, embora não sejam imperceptíveis, são pela sua sutileza e delicadeza, completamente indefiníveis. Naquela bela tragédia de Voltaire, O órfão da China, enquanto admiramos a magnanimidade de Zamti, o qual está disposto a sacrificar a vida de seu próprio filho a fim de conservar a do único e frágil remanescente de seus antigos soberanos e senhores, não apenas perdoamos, mas amamos a ternura maternal de Idame, que, correndo o risco de revelar o importante segredo de seu marido, reclama seu bebê das cruéis mãos dos Tártaros, aos quais fora entregue.


 
CAPÍTULO II Da ordem em que as sociedades são por natureza recomendadas à nossa beneficência
Os mesmos princípios que orientam a ordem em que os indivíduos são recomendados à nossa beneficência orientam igualmente aquela em que as sociedades nos são recomendadas. As sociedades para as quais a beneficência é ou pode ser mais importante nos são recomendadas primeira e principalmente.

O Estado ou soberania em que nascemos e fomos educados, e sob cuja proteção continuamos a viver é, em casos ordinários, a maior sociedade sobre cuja felicidade ou desgraça nossa boa ou má conduta pode ter muita influência. É por essa razão que por natureza é-nos a mais fortemente recomendada. Comumente, encerra não apenas nós mesmos, mas todos os objetos de nossos mais bondosos afetos, nossos filhos, nossos pais, nossos parentes, nossos amigos, nossos benfeitores, todos a quem naturalmente amamos e mais reverenciamos: e a prosperidade e segurança destes dependem, em certa medida, da prosperidade e segurança dessa sociedade. Portanto, por natureza nos é cara, não apenas por todos os nossos afetos egoístas, mas por todos os nossos afetos particulares e benevolentes. Por conta de nosso vínculo com ela, sua prosperidade e sua glória parecem refletir sobre nós alguma espécie de honra. Quando a comparamos com outras sociedades do mesmo tipo, orgulhamo-nos de sua superioridade, e de algum modo nos mortifica se em qualquer aspecto se mostra inferior. Estamos predispostos a ver todos os caracteres ilustres que produziu no passado (pois a inveja nos torna capazes de prejulgar um pouco os de nossos dias), seus guerreiros, estadistas, poetas, filósofos e todos os tipos de homens de letras, com a mais parcial admiração, colocando-os (às vezes muito injustamente) acima dos de todas as demais nações. O patriota que renuncia à sua vida pela segurança ou até pela vanglória dessa sociedade revela agir com a mais exata conveniência. Revela ver-se à luz em que natural e necessariamente o espectador imparcial o vê, ou seja, como apenas um no meio da multidão, que não é, aos olhos desse juiz equânime, mais importante que qualquer um dentre esta, embora esteja a todo momento obrigado a se sacrificar e devotar à segurança, ao favor e até à glória da maioria. Ainda que esse sacrifício se mostre perfeitamente justo e apropriado, sabemos porém como é difícil fazê-lo, e quão poucas pessoas são capazes de o realizar. Sua conduta, portanto, suscita não apenas nossa inteira aprovação, mas nosso maior espanto e admiração, e parece merecer todos os aplausos que podem ser devidos à maior virtude heróica. O traidor, ao contrário, que em certa situação peculiar imagina-se capaz de promover seu próprio pequeno interesse traindo ao inimigo público o interesse de seu país nativo; que, a despeito do juízo do homem que seu peito encerra, prefere a si, de maneira tão baixa e desavergonhada, em detrimento de todos com quem mantém algum vínculo, revela-se o mais detestável de todos os vilões.

O amor à nossa própria nação com freqüência nos predispõe a ver com o mais malicioso ciúme e inveja a prosperidade e crescimento de qualquer outra nação vizinha. Nações independentes e vizinhas, não tendo um superior comum para decidir suas disputas, vivem todas em contínuo temor e suspeita umas das outras. Cada soberano, esperando pouca justiça de seus vizinhos, tende a tratá-los com tão pouca quanto espera deles. O respeito às leis das nações ou às regras que Estados independentes declaram ou pretextam julgar-se obrigados a observar em suas transações uns com os outros é freqüentemente pouco mais do que mero pretexto ou declaração. Em razão do menor interesse, pela menor provocação, vemos essas regras diariamente serem eludidas ou diretamente violadas sem vergonha ou remorso. Cada nação prevê ou imagina prever sua própria subjugação ante o crescente poder e grandeza de qualquer uma de suas vizinhas; e o mesquinho princípio do preconceito nacional muitas vezes se funda no nobre princípio do amor ao nosso país. A sentença com que Catão, o Velho, teria concluído, segundo se diz, cada discurso que fez no Senado, fosse qual fosse o assunto, “Também sou de opinião que Cartago deve ser destruída”, era a expressão natural do selvagem patriotismo de um espírito forte, porém rude, irado quase à loucura contra uma nação estrangeira que fizera a sua sofrer tanto. A sentença mais humanitária com que se diz que Cipião Nasica concluía todos os seus discursos – “Também sou de opinião que Cartago não deve ser destruída” – era a expressão liberal de um espírito mais aberto e esclarecido, que não sentia sequer aversão pela prosperidade de uma antiga inimiga, agora reduzida a um Estado que já não podia fazer Roma tremer. Tanto a França como a Inglaterra podem ter razão de temer o aumento do poder naval e militar da outra; mas, para cada uma delas, invejar a felicidade e prosperidade interna da outra, o cultivo de suas terras, o progresso de suas manufaturas, a intensificação de seu comércio, a segurança e número de seus portos e ancoradouros, sua proficiência em todas as artes liberais e ciências, certamente está abaixo da dignidade de duas nações de tal porte. Essas são as verdadeiras melhorias do mundo em que vivemos. Beneficiam a humanidade, enobrecem a natureza humana. Cada nação não apenas deveria esforçar-se por ser a melhor nesses avanços, mas por amor aos homens, por promover, em vez de obstruir, a excelência de suas vizinhas. Esses todos são objetos apropriados de emulação nacional, não de preconceito e inveja nacionais.

O amor a nosso próprio país não parece derivar do amor à humanidade. O primeiro sentimento é em tudo independente do segundo, e às vezes parece até predispor-nos a agir inconsistentemente com este. A França pode conter talvez quase três vezes o número de habitantes da Grã-Bretanha. Na grande sociedade dos homens, pois, a prosperidade da França deveria apresentar-se como objeto de muito maior importância do que a da Grã-Bretanha. No entanto, o súdito britânico, que por essa razão preferisse sempre a prosperidade do primeiro país e não a do segundo, não seria considerado bom cidadão da Grã-Bretanha. Não amamos nosso país apenas como parte da grande sociedade dos homens – nós o amamos por si, e independentemente de qualquer consideração desse tipo. A sabedoria que planejou o sistema dos afetos humanos, bem como o de toda outra parte da natureza, parece ter julgado que o interesse da grande sociedade humana seria mais bem promovido se a atenção principal de cada indivíduo se voltasse à porção particular de interesse mais inserida no interior da esfera tanto de suas habilidades, quanto de seu entendimento.

Preconceitos e ódios nacionais raramente se estendem para além de nações vizinhas. Talvez muito frágil e tolamente chamemos os franceses de nossos inimigos naturais; e talvez eles, de modo igualmente frágil e tolo, considerem-nos da mesma forma. Nem nós, nem eles, nutrimos nenhuma espécie de inveja pela prosperidade da China ou do Japão. Porém, muito raramente acontece de nossa boa-vontade em relação a países tão distantes ter muito efeito.

A mais ampla benevolência pública que se pode habitualmente exercer com algum efeito considerável é a dos estadistas, que projetam e formam alianças entre nações vizinhas ou não muito distantes para a conservação, quer do que se chama equilíbrio de poder, quer para a paz e tranqüilidade geral dos Estados que estão dentro do âmbito de suas negociações. Mas os estadistas que planejam e executam esses tratados raramente têm algo em vista senão o interesse de seus respectivos países. Por vezes, de fato, sua visão é mais ampla. O Conde d’Avaux, plenipotenciário da França no Tratado de Münster, estaria disposto a sacrificar sua vida (segundo o Cardeal de Retz, homem não muito crédulo a respeito da virtude de outras pessoas), a fim de restaurar, com esse tratado, a tranqüilidade geral da Europa. O Rei Guilherme parece ter sido um verdadeiro entusiasta da liberdade e independência da maior parte dos Estados soberanos da Europa, o que talvez pudesse ter sido em boa medida estimulado pela sua particular aversão à França, Estado que, em sua época, punha em risco principalmente essa liberdade e independência. Algo do mesmo espírito parece se ter transmitido ao primeiro ministério da Rainha Ana.

Todo Estado independente é dividido em muitas ordens e sociedades diferentes, cada uma das quais com seus poderes, privilégios e imunidades específicos. Todo indivíduo é naturalmente mais afeito à sua ordem ou sociedade particular do que a qualquer outra. Seu próprio interesse, sua própria vaidade, o interesse e a vaidade de muitos de seus amigos e companheiros, estão usualmente muito associados a isso: ambiciona estender seus privilégios e imunidades, zela por defendê-los contra as usurpações de qualquer outra ordem ou sociedade.

Da maneira como cada Estado se divide em diferentes ordens e sociedades que o compõem, e da distribuição particular que se fez de seus respectivos poderes, privilégios e imunidades, depende o que se chama a constituição desse Estado particular.

Da habilidade de cada ordem ou sociedade particular de manter seus próprios poderes, privilégios e imunidades contra as usurpações de todos os demais depende a estabilidade dessa constituição particular. Esta é necessariamente mais ou menos alterada quando qualquer de suas partes subordinadas é ou elevada ou rebaixada de sua posição e condição anteriores.

Todas essas diferentes ordens e sociedades dependem do Estado a que devem sua segurança e proteção. Até mesmo o mais parcial membro dessas sociedades reconhece como verdadeiro que todas estão subordinadas a esse Estado e que foram estabelecidas apenas em subserviência à sua prosperidade e conservação. Contudo, freqüentemente pode ser difícil convencê-lo de que a prosperidade e conservação do Estado requerem alguma diminuição dos poderes, privilégios e imunidades da sua própria ordem ou sociedade. Essa parcialidade, posto seja às vezes injusta, não é por isso inútil. Controla o espírito de inovação. Tende a conservar o que quer que seja o equilíbrio estabelecido entre as diferentes ordens e sociedades em que se divide o Estado, e, embora por vezes aparente obstruir algumas alterações de governo que podem ser modernas e populares no momento, na realidade contribui para a estabilidade e permanência de todo o sistema.

Nos casos ordinários, o amor a nosso país parece trazer em seu bojo dois princípios diferentes: primeiro, certo respeito e reverência pela constituição ou forma de governo realmente estabelecida; segundo, um desejo determinado de tornar a condição de nossos concidadãos tão segura, respeitável e feliz quanto pudermos. Não é cidadão quem não está inclinado a respeitar as leis e a obedecer ao magistrado civil; e certamente não é bom cidadão quem não deseja promover, por todos os meios à sua disposição, o bem-estar de toda a sociedade de seus concidadãos.

Em tempos pacíficos e calmos, esses dois princípios geralmente coincidem, e levam à mesma conduta. O apoio do governo estabelecido parece evidentemente o melhor expediente para manter segura, respeitável e feliz a situação de nossos concidadãos – quando vemos que esse governo realmente os mantém nessa situação. Mas em tempos de descontentamento público, facções e desordem, esses dois princípios diferentes podem delinear caminhos diversos, e até um homem sábio pode tender a julgar que é necessária alguma alteração na constituição ou forma de governo, pois, na sua real condição, revela-se claramente incapaz de manter a tranqüilidade pública. Freqüentemente em tais casos, porém, determinar quando um verdadeiro patriota deveria apoiar e procurar restabelecer a autoridade do velho sistema, e quando deveria fazer concessões a um espírito de inovação mais audacioso, mas não raro mais perigoso, talvez exija um esforço supremo de sabedoria política.

A guerra externa e a facção civil são duas situações que oferecem as mais esplêndidas oportunidades para manifestar-se o espírito público. O herói que serve a seu país com sucesso numa guerra externa satisfaz os desejos de toda a nação, e por isso é objeto de admiração e gratidão universais. Em tempos de desordem civil, os líderes dos partidos em disputa, embora possam ser admirados por metade de seus concidadãos, são comumente execrados pela outra. Seus caracteres e o mérito de seus respectivos serviços se mostram usualmente mais incertos. A glória adquirida pela guerra externa é, por essa razão, quase sempre mais pura e esplêndida do que a que se pode obter na facção civil.

O líder do partido bem-sucedido, todavia, se tem autoridade suficiente para induzir seus amigos a agir com a temperança e moderação apropriadas (e freqüentemente não a tem), pode às vezes prestar a seu país um serviço muito mais essencial e importante do que as maiores vitórias e mais vastas conquistas. Pode restabelecer e melhorar a constituição, e, por causa do próprio caráter muito duvidoso e ambíguo de um líder de partido, pode assumir o maior e mais nobre de todos os caracteres, o de reformador e legislador de um grande Estado; e, pela sabedoria de suas instituições, assegurar a tranqüilidade interna e a felicidade de seus concidadãos por muitas gerações sucessivas.

Em meio à turbulência e desordem da facção, certo espírito de sistema pode misturar-se ao espírito público que se funda sobre o amor à humanidade, sobre uma verdadeira solidariedade com as inconveniências e aflições a que alguns de nossos concidadãos podem estar expostos. Comumente esse espírito de sistema toma a direção do espírito público mais gentil, sempre o animando, e com freqüência inflamando-o até a loucura do fanatismo. Os líderes do partido descontente raramente deixam de oferecer algum plano plausível de reforma que, pretendem eles, não apenas removerá imediatamente as inconveniências e aliviará as aflições de que reclamam, mas evitará em todo o tempo futuro qualquer retorno das mesmas inconveniências e aflições. Por essa razão com freqüência propõem remodelar a constituição, alterando em algumas de suas partes essenciais o sistema de governo sob o qual os súditos de um grande império talvez tenham usufruído, no curso de vários séculos, paz, segurança e até glória. O grande corpo do partido comumente está intoxicado com a imaginária beleza desse sistema ideal, do qual não têm experiência alguma, mas que lhes foi representado com todas as cores mais deslumbrantes em que a eloqüência de seus líderes a pôde pintar. Muitos dos líderes, embora originalmente nada tenham pretendido, senão seu próprio engrandecimento, com o tempo caem no logro de sua própria sofística, ficando tão entusiasmados por essa grande reforma quanto os mais fracos e tolos de seus seguidores. Muito embora os líderes devessem ter conservado suas próprias cabeças livres desse fanatismo – como de fato usualmente fazem –, nem sempre se atrevem a desapontar a expectativa de seus seguidores, pois estão freqüentemente obrigados, ainda que contra seus princípios e consciência, a agir como se partilhassem da ilusão comum. A violência do partido, que recusa todos os paliativos, as temperanças e acomodações razoáveis, freqüentemente nada consegue, pois exige demais; e as inconveniências e aflições que com um pouco de moderação poderiam em boa medida ter sido removidas ou mitigadas restam inteiramente sem esperança de remédio.

O homem cujo espírito público é movido inteiramente pela humanidade e benevolência respeitará os poderes e privilégios estabelecidos, de indivíduos, e sobretudo das grandes ordens e sociedades em que se divide o Estado. Embora possa considerar que alguns são em alguma medida abusivos, vai-se contentar com moderar o que às vezes não consegue aniquilar sem grande violência. Quando não puder dominar os preconceitos arraigados do povo por razão e persuasão, não tentará submetê-los pela força, pois observará religiosamente o que com justiça Cícero chama a divina máxima de Platão, a saber, nunca usar de mais violência com seu país do que com os próprios pais. E então, tanto quanto possível, acomodará seus interesses públicos aos hábitos e preconceitos estabelecidos do povo; e ainda, tanto quanto possível, remediará as inconveniências que podem resultar da ausência dessas regras a que as pessoas são avessas a se submeter. Quando não puder estabelecer o certo, não desdenhará melhorar o errado; mas, como Sólon, quando não puder estabelecer o melhor sistema de leis, empenhar-se-á em estabelecer o melhor que o povo puder tolerar.

O homem de sistema, ao contrário, é capaz de ser muito sábio em seu próprio conceito, e freqüentemente está tão enamorado da suposta beleza de seu plano ideal de governo, que não pode tolerar o menor desvio de qualquer de suas partes. Perseverará em estabelecê-lo completamente, em todas as suas partes, sem levar em conta nem os grandes interesses, nem os fortes preconceitos que possam se opor a isso; parece imaginar que pode dispor os diferentes membros de uma grande sociedade com a mesma facilidade com que dispõe as diferentes peças sobre um tabuleiro de xadrez; não considera que as peças sobre o tabuleiro não têm outro princípio de movimento senão o que a mão lhes imprime, mas que, no grande tabuleiro de xadrez da sociedade humana, cada peça isolada tem um princípio de movimento próprio, inteiramente diferente do que a legislatura pode escolher imprimir-lhe. Se esses dois princípios coincidirem e agirem na mesma direção, o jogo da sociedade humana prosseguirá fácil e harmonicamente, e é muito provável que seja feliz e bem-sucedido. Se forem opostos ou diferentes, o jogo prosseguirá de maneira miserável, e a sociedade estará a todo momento no maior grau de desordem.

Alguma idéia geral e até sistemática de perfeição da política e da lei certamente pode ser necessária para orientar as opiniões do estadista. Mas insistir em estabelecer, e estabelecer de uma só vez, a despeito de toda a oposição, tudo o que essa idéia possa parecer exigir, com freqüência deve constituir o mais alto grau de arrogância. É erigir seu próprio juízo como supremo critério de certo e errado. Isso é presumir de único homem sábio e digno da nação, e imaginar que seus concidadãos devessem acomodar-se a ele, em vez de suceder o contrário. É por essa razão que de todos os especuladores políticos os príncipes e soberanos são os mais perigosos. Essa arrogância lhes é perfeitamente familiar. Não têm dúvida alguma da imensa superioridade de seu próprio juízo. Quando tais reformadores reais e imperiais condescendem, portanto, em contemplar a constituição do país confiada ao seu governo, raramente vêem algo tão errado quanto obstáculos que por vezes possam se opor à execução de sua própria vontade. Desprezam a divina máxima de Platão, e consideram o Estado como algo criado para eles, não eles para o Estado. O grande objeto de sua reforma será, pois, remover os obstáculos, reduzir a autoridade da nobreza, retirar os privilégios de cidades e províncias, e tornar os maiores indivíduos e as maiores ordens do Estado tão incapazes de se opor ao seu domínio, como os mais fracos e mais insignificantes.


 
CAPÍTULO III Da benevolência universal
Embora nossos eficazes bons serviços raramente possam ser estendidos para qualquer sociedade mais ampla do que nosso próprio país, nossa boa-vontade não está circunscrita por nenhuma fronteira, e pode, pois, abarcar a imensidão do universo. Não podemos formar a idéia de um ser inocente ou sensato cuja felicidade não desejemos, ou por cuja desgraça, quando claramente concebida pela imaginação, não teríamos algum grau de aversão. A idéia de um ser nocivo, embora sensato, naturalmente provoca nosso ódio, mas a má-vontade que, nesse caso, temos com ele é realmente efeito de nossa benevolência universal. É efeito da solidariedade que sentimos pela miséria e ressentimento daqueles outros seres inocentes e sensatos, cuja felicidade sua malícia perturba.

Essa benevolência universal, por mais nobre e generosa que seja, não pode constituir a fonte de uma felicidade sólida para um homem que não esteja plenamente convencido de que todos os habitantes do universo, os mais mesquinhos e os mais superiores, estão sob o cuidado e a proteção imediatos do grande Ser benevolente e onisciente que dirige todos os movimentos da natureza, e que está determinado, pelas suas próprias inalteráveis perfeições, a sempre manter nela a maior quantidade possível de felicidade. Ao contrário, para essa benevolência universal, a mera suspeita de um mundo órfão deve ser a mais melancólica de todas as reflexões, qual seja, o pensamento de que todas as regiões desconhecidas do espaço infinito e incompreensível possam estar ocupadas com nada mais, senão com interminável miséria e desventura. Todo o esplendor da maior prosperidade jamais poderá iluminar a tristeza com que uma idéia tão terrível deve necessariamente obscurecer a imaginação; tampouco toda a dor da mais aflitiva adversidade jamais poderá secar num homem sábio e virtuoso a alegria que necessariamente brota da convicção, habitual e profunda, quanto à verdade do sistema contrário.

A todo momento o homem sábio e virtuoso está disposto a sacrificar seu próprio interesse particular ao interesse público de sua própria ordem ou sociedade. Ademais, a todo momento está disposto a que o interesse de sua ordem ou sociedade seja sacrificado ao interesse maior do Estado ou da Soberania da qual é apenas parte subordinada. Deveria, pois, estar igualmente disposto a que todos esses interesses inferiores fossem sacrificados ao interesse maior do universo, ao interesse da grande sociedade de todos os seres sensatos e inteligentes, dos quais o próprio Deus é administrador e diretor imediato. Se está profundamente marcado pela convicção habitual e plena de que esse Ser benevolente e onisciente não pode admitir em seu sistema de governo nenhum mal parcial que não seja necessário para o bem universal, deve considerar todos os infortúnios que possam se abater sobre ele, seus amigos, sua sociedade ou seu país, como necessários para a prosperidade do universo, e, portanto, como algo a que não apenas deveria se submeter com resignação, mas como algo que ele próprio, se conhecesse todas as relações e dependências das coisas, deveria ter desejado sincera e devotadamente.

Essa magnânima resignação à vontade do grande Diretor do universo tampouco parece estar, de algum modo, além do alcance da natureza humana. Bons soldados, que amam e confiam em seu general, freqüentemente marcham com mais alegria e alarido para a posição desesperada da qual jamais esperam retornar, do que para outra onde não houvesse dificuldade nem perigo. Enquanto marcham para esta última, não poderiam experimentar outro sentimento que não o da inércia do dever comum; ao marcharem para a primeira, sentem que estão realizando o mais nobre esforço que um homem é capaz de realizar. Sabem que seu general não lhes teria ordenado que fossem a essa posição, se não fosse necessário para segurança do exército, para o êxito da guerra; sacrificam alegremente seus próprios pequenos sistemas à prosperidade de um sistema maior; despedem-se afetuosamente de seus camaradas, desejando-lhes toda a felicidade e êxito, e caminham não apenas com obediência submissa, mas não raro com gritos da mais alegre exultação, para aquela posição fatal, embora esplêndida e honrosa, que lhes é indicada. Nenhum condutor de exército pode merecer confiança mais ilimitada, afeto mais ardente e entusiasmado, do que o grande Condutor do universo. Quer nos maiores desastres públicos, quer nos privados, um homem sábio deveria considerar que a ele mesmo, a seus amigos e compatriotas, apenas ordenou-se a estação desolada do universo; que se não fosse necessário para o bem do todo, não teriam recebido essa ordem; e que é seu dever submeter-se não apenas com humilde resignação a esse destino, mas esforçar-se por abraçá-lo com alegria e alacridade. Certamente um homem sábio deveria ser capaz de fazer o que um bom soldado está sempre pronto a fazer.

A idéia desse ser divino, cuja benevolência e sabedoria fabricaram e conduziram desde toda a eternidade a imensa máquina do universo para que produzisse, em todos os tempos, a maior quantidade possível de felicidade, é sem dúvida de longe o mais sublime de todos os objetos da contemplação humana. Em comparação a este, todo outro pensamento mostra-se necessariamente insignificante. Acreditamos que o homem inteiramente absorto nessa sublime contemplação raramente deixa de ser objeto de nossa mais elevada veneração; e ainda que sua vida seja tão-somente contemplativa, não raro o consideramos com uma espécie de respeito religioso, muito superior àquele com que divisamos o mais ativo e útil servidor da república (commonwealth). As meditações de Marco Antonino, que giram principalmente em torno desse tema, talvez tenham contribuído mais para que todos admirassem seu caráter, do que todos os diferentes acordos de seu reinado justo, misericordioso e beneficente.

Porém, a administração do grande sistema do universo, o cuidado da felicidade universal de todos os seres racionais e sensatos, é negócio de Deus, e não do homem. Ao homem está reservado um departamento bem mais humilde, mas mais adequado à fraqueza de seus poderes e à estreiteza de sua compreensão: o fato de estar absorto na contemplação do mais sublime jamais pode servir de desculpa para negligenciar o departamento mais humilde; e não deve-se expor à acusação que, segundo se diz, Avídio Cássio lançou, talvez injustamente, contra Marco Antonino, de que, enquanto se entregava a especulações filosóficas, contemplando a prosperidade do universo, negligenciava a do Império romano. A mais sublime especulação do filósofo contemplativo dificilmente compensa a negligência do menor dever ativo.


 
SEÇÃO III Do autodomínio
O homem que age de acordo com as regras da perfeita prudência, da justiça estrita e da benevolência adequada pode ser considerado perfeitamente virtuoso. Mas o mais perfeito conhecimento dessas regras não basta para capacitá-lo a agir dessa maneira; suas próprias paixões podem muito facilmente induzi-lo – às vezes impelindo-o, outras seduzindo-o – a violar todas as regras que ele mesmo, em seus momentos de sobriedade e lucidez, aprova. O mais perfeito conhecimento, se não for amparado pelo mais perfeito autodomínio, nem sempre o capacitará a cumprir o seu dever.

Alguns dos melhores dos antigos moralistas parecem ter considerado as paixões como divididas em duas classes diferentes: primeiro, as paixões que, para serem refreadas por um só momento, exigem um considerável esforço de autodomínio; e, segundo, as que são facilmente refreadas por um momento ou até por um breve período, mas que, por suas súplicas contínuas e quase incessantes, podem, no curso de uma vida, induzir a grandes desvios.

Medo e cólera, a que vêm se misturar e associar outras paixões, constituem a primeira classe. O amor ao sossego, ao prazer, ao aplauso e a muitas outras satisfações egoístas constituem a segunda. O medo incomum e a cólera violenta são muitas vezes difíceis de refrear, mesmo por um só momento. O amor ao sossego, ao prazer, ao aplauso, e a outras satisfações egoístas sempre é facilmente refreado por um momento ou até por um breve período de tempo; mas, por suas súplicas contínuas, não raro nos induz a muitas fraquezas de que depois com muita razão nos envergonharemos. Pode-se dizer que o primeiro conjunto de paixões com freqüência nos impele, e o outro nos seduz para longe de nosso dever. O domínio do primeiro era denominado, pelos antigos moralistas acima aludidos, coragem, vigor e força de espírito; o último, temperança, decência, modéstia e moderação.

O domínio dos dois conjuntos de paixões, independentemente da beleza que deriva de sua utilidade, de nos capacitar a agir em todas as ocasiões segundo os ditames da prudência, da justiça e da benevolência apropriada, possui beleza própria, e parece merecer por si só certo grau de estima e admiração. Num caso, a força e grandeza do esforço suscita certo grau de estima e admiração; no outro, a uniformidade, a igualdade e infatigável constância desse esforço.

O homem que, no perigo, na tortura, na proximidade da morte, conserva inalterada a sua tranqüilidade e não permite que lhe escape uma palavra ou gesto que não esteja inteiramente conforme aos sentimentos do mais indiferente espectador, necessariamente conquista um alto grau de admiração. Se sofre pela causa da liberdade e justiça, pelo bem da humanidade e amor ao país, a mais terna compaixão pelos seus sofrimentos, a mais forte indignação contra a injustiça de seus perseguidores, a mais cálida e solidária gratidão por suas intenções beneficentes, o mais alto senso do seu mérito, tudo isso se reúne e mescla com a admiração de sua magnanimidade, e muitas vezes inflamam esse sentimento, tornando-o uma entusiástica e arrebatada veneração. Muitos dos heróis da história antiga e moderna, os quais são lembrados com o mais peculiar agrado e afeto, são os que morreram no cadafalso pela causa da verdade, liberdade e justiça, e que ali se portaram com a desenvoltura e dignidade que lhes convinha. Tivessem os inimigos de Sócrates permitido-lhe morrer quieto em sua cama, é possível que até a glória desse grande filósofo nunca tivesse adquirido o brilhante esplendor que conservou durante todos os séculos posteriores. Na história inglesa, quando examinamos as ilustres cabeças esculpidas por Vertue e Howbraken, imagino que dificilmente haverá alguém que não sinta que o machado, símbolo de decapitação que se grava sob as mais ilustres – como as de Sir Tomás Morus, Raleigh, Russel, Sydney, etc. –, derrama uma verdadeira dignidade e importância sobre os caracteres a que se afixa, muito superiores ao que possam obter de todos os fúteis ornamentos heráldicos que por vezes os acompanham.

Essa magnanimidade não confere lustre apenas aos caracteres de homens inocentes e virtuosos. Lança algum grau de consideração favorável mesmo sobre os maiores criminosos; e quando um assaltante ou bandoleiro é levado ao cadafalso e lá se porta com decência e firmeza, embora aprovemos inteiramente seu castigo, com freqüência não podemos evitar de lamentar que um homem em posse de tão grandes e nobres poderes fosse capaz de tão vis enormidades.

A guerra é a grande escola tanto para adquirir, quanto para exercer essa espécie de magnanimidade. Como se diz, a morte é a rainha dos terrores, e o homem que conquistou o medo da morte provavelmente não perderá a presença de espírito na iminência de qualquer outro mal natural. Na guerra, os homens se familiarizam com a morte, e com isso necessariamente se curam do supersticioso horror com que a encaram os fracos e inexperientes. Consideram-na simplesmente como a perda da vida, e objeto de tanta aversão quanto a vida sucede ser de desejo; também aprendem por experiência que muitos perigos aparentemente grandes não são tão grandes quanto parecem, e que com coragem, diligência e presença de espírito, há muitas vezes uma boa probabilidade de se desembaraçarem honrosamente de situações em que a princípio não viam esperança. Assim, diminui em grande medida o terror da morte, e aumenta a confiança ou esperança de escapar a ela. Aprendem a exporse ao perigo com menos relutância, ficam menos preocupados em safar-se dele, e menos aptos a perder a presença de espírito enquanto estiverem nele. É esse habitual desprezo pelo perigo e pela morte que enobrece a profissão de soldado, e lhe confere, na concepção natural da humanidade, posição e dignidade superiores às de qualquer outra profissão. O exercício habilidoso e bem-sucedido dessa profissão no serviço ao país parece ter constituído o traço mais distintivo do caráter dos heróis favoritos em todas as épocas.

Uma grande façanha bélica, embora empreendida contra todos os princípios de justiça, e levada adiante sem qualquer consideração com a humanidade, às vezes nos interessa e até conquista algum grau de certa estima pelos vis caracteres que a conduzem. Interessam-nos até mesmo as façanhas dos Bucaneiros, e lemos com alguma estima e admiração a história dos homens mais vis que, em busca dos mais criminosos propósitos, suportaram durezas maiores, superaram dificuldades maiores e encontraram perigos maiores do que talvez quaisquer outros de que nos relate o curso comum da história.

Em muitas ocasiões o domínio da cólera se mostra não menos generoso e nobre do que o do medo. A expressão apropriada de justa indignação compõe muitas das mais esplêndidas e admiráveis passagens da eloqüência, tanto antiga quanto moderna. As Filípicas de Demóstenes, as Catilinárias de Cícero, derivam toda a sua beleza da nobre propriedade com que essa paixão se expressa. Mas essa justa indignação nada mais é que cólera refreada e adequadamente moderada àquilo de que o espectador imparcial pode partilhar. A paixão ruidosa e explosiva que o excede é sempre odiosa e ofensiva, e nos importa, não o homem irado, mas o homem com quem este está irado. Em muitas ocasiões, a nobreza do perdão revela-se superior até mesmo à mais perfeira propriedade do ressentimento. Quando a parte ofensora admite adequadamente, ou mesmo sem admiti-lo, quando o interesse público requer que os inimigos mais mortais se unam para cumprimento de algum dever importante, o homem que consegue pôr de lado toda a animosidade e agir com confiança e cordialidade para com a pessoa que mais dolorosamente o ofendeu parece merecer com justiça nossa mais elevada admiração.

Mas o domínio da cólera nem sempre se mostra sob cores tão esplêndidas. O medo é o contrário da cólera, e com freqüência é o motivo que a controla e, nesses casos, a baixeza do motivo retira toda a nobreza do controle. A cólera incita ao ataque, e às vezes, quando é saciada, deixa à mostra uma sorte de coragem e superioridade diante do medo. Saciar a cólera é por vezes objeto de vaidade; saciar o medo, jamais. Entre seus inferiores, ou entre os que não se atrevem a resistir-lhes, os homens vaidosos e fracos não raro afetam ser ostensivamente passionais, e supõem que, assim, mostram o que se chama de valor. Um fanfarrão conta muitas histórias de sua própria insolência, que não são verdadeiras, e imagina que com isso se torna, se não mais amável e respeitável, pelo menos mais formidável diante de sua platéia. Os costumes modernos que, em alguns casos, encorajam a vingança privada, por favorecerem a prática do duelo, talvez contribuam muito, nos tempos modernos, para tornar a restrição da cólera pelo medo ainda mais desprezível do que do contrário poderia parecer. Há sempre algo digno no domínio do medo, seja qual for o motivo sobre o qual este se funda. O mesmo não ocorre no que se refere ao domínio da cólera: a menos que se funde inteiramente sobre o senso de decência, de dignidade, de conveniência, nunca é perfeitamente agradável.

Agir de acordo com os ditames da prudência, da justiça e da beneficência apropriada, parece não ter grande mérito se não existe a tentação de agir de outra forma. Mas agir com fria deliberação em meio aos maiores perigos e dificuldades; observar religiosamente as sagradas regras de justiça, a despeito quer dos imensos interesses que nos possam tentar, e das maiores ofensas que nos possam instigar a violá-las; nunca tolerar que a benevolência de nosso temperamento seja enfraquecida ou desencorajada pela malignidade e a ingratidão dos indivíduos com quem possa ter sido praticada, é característica da mais elevada sabedoria e virtude. O autodomínio não é apenas em si mesmo uma grande virtude, mas dele todas as outras virtudes parecem derivar seu principal brilho.

O domínio do medo, o domínio da cólera, são sempre grandes e nobres poderes. Quando orientados por justiça e benevolência, não são apenas grandes virtudes, como também aumentam o esplendor dessas outras virtudes. Todavia, às vezes podem ser orientados por motivos muito diversos e, nesse caso, embora ainda grandes e respeitáveis, podem ser excessivamente perigosos. A mais intrépida bravura pode ser empregada na causa das maiores injustiças. Entre grandes provocações, a aparente tranqüilidade e o bom humor ocultam às vezes a mais determinada e cruel decisão de vingança. A força de espírito exigida para essa dissimulação, embora sempre e necessariamente contaminada pela baixeza da falsidade, têm-na admirado com freqüência muitos homens de discernimento nada desprezível. A dissimulação de Catarina de Médicis é muitas vezes celebrada pelo profundo historiador Dávila; a de Lorde Digby, depois Conde de Bristol, pelo grave e consciencioso Lorde Clarendon; a do primeiro Ashley, Conde de Shaftesbury, pelo judicioso Sr. Locke. Até Cícero parece considerar que esse caráter enganador, embora de fato não seja altamente digno, não é inadequado a certa flexibilidade de maneiras, a qual julga em geral agradável e respeitável. Exemplifica-o com os caracteres do Ulisses de Homero, do ateniense Temístocles, do espartano Lisandro, e do romano Marco Crasso. Esse caráter de sombria e profunda dissimulação ocorre mais comumente em tempos de grande desordem pública – em meio à violência da dissensão e guerra civil. Quando a lei se tornou em grande medida impotente, quando a mais perfeita inocência é incapaz, por si só, de assegurar segurança, a consideração pela autodefesa obriga a maior parte dos homens a recorrer à sagacidade, à eloqüência, e à aparente acomodação ao que seja por enquanto o partido dominante. Além disso, esse caráter falso é freqüentemente acompanhado da mais fria e determinada coragem. O exercício apropriado da falsidade impõe coragem, pois a morte é comumente a conseqüência certeira da detecção. Pode ser empregada indistintamente, seja para exasperar, seja para apaziguar as furiosas animosidades das facções adversas, as quais impõem a necessidade de admiti-la; e embora às vezes seja útil, é pelo menos igualmente passível de ser excessivamente perniciosa.

O domínio das paixões menos violentas e turbulentas parece muito menos passível de abuso por algum propósito pernicioso. Temperança, decência, modéstia e moderação, são sempre amáveis, e raramente são orientadas para alguma má finalidade. É da incansável constância desses esforços mais brandos para dominar-se que a amável virtude da castidade, as respeitáveis virtudes da diligência e da frugalidade extraem todo o brilho sóbrio que as acompanha. A conduta de todos os que se contentam em seguir pelas humildes trilhas da vida privada e pacífica retira do mesmo princípio a maior parte da beleza e graça que lhe pertencem; beleza e graça que, embora muito menos fulgurantes, nem sempre são menos agradáveis do que as que acompanham as ações mais esplêndidas do herói, do estadista, ou do legislador.

Tendo em vista o que já se afirmou em várias partes deste discurso no que se refere à natureza do autodomínio, julgo desnecessário entrar em mais detalhes sobre aquelas virtudes. Observarei apenas, por ora, que o ponto de conveniência, o grau de qualquer paixão que um espectador imparcial aprovaria, está diferentemente situado nas diversas paixões. Em algumas paixões o excesso é menos desagradável do que a falta; e em tais paixões o ponto de conveniência parece localizar-se no alto, ou mais próximo do excesso do que da falta. Em outras paixões, a falta é menos desagradável do que o excesso; e em tais paixões o ponto de conveniência parece localizar-se embaixo, ou mais próximo da falta do que do excesso. As primeiras são as paixões com que o espectador está mais disposto, as últimas, as com que está menos disposto a simpatizar. As primeiras são também as paixões cuja sensação ou sentimento imediato é agradável à pessoa principalmente atingida, as últimas, as que lhe são desagradáveis. Pode-se estabelecer, como regra geral, que as paixões com que o espectador está mais inclinado a simpatizar e nas quais, por isso, se diz que o ponto de conveniência está localizado no alto, são aquelas cuja sensação ou emoção imediata é mais ou menos agradável à pessoa primeiramente atingida; e que, ao contrário, as paixões com que o espectador está menos disposto a simpatizar e em que, por essa razão, o ponto de conveniência está localizado embaixo, são aquelas cuja sensação ou emoção imediata é mais ou menos desagradável, ou até dolorosa para a pessoa primeiramente atingida. Essa regra geral, até onde puder observar, não admite uma só exceção. Poucos exemplos bastarão a um só tempo para explicá-la e para demonstrar sua veracidade.

A disposição para afetos que tendem a unir os homens em sociedade, em humanitarismo, bondade, afeto natural, amizade, estima, pode às vezes ser excessiva. Contudo, até o excesso dessa disposição torna um homem interessante aos olhos de todos. Embora censuremos esse excesso, ainda o consideramos com compaixão ou até bondade, nunca com desgosto. É mais digno de pena que de raiva. Em muitas ocasiões, tolerar tais afetos excessivos não é, para a própria pessoa, apenas agradável, como ainda delicioso. Com efeito, em muitas ocasiões, o excesso a expõe a uma verdadeira e sincera aflição, sobretudo se está voltado para objetos indignos, o que com freqüência ocorre. Mesmo nessas ocasiões, entretanto, um espírito bem disposto considera-o com a mais delicada piedade, e sente imensa indignação contra os que afetam desprezá-la pela sua fraqueza e imprudência. A falta dessa disposição, ao contrário, chamada dureza de coração, se torna o homem insensível aos sentimentos e aflições dos outros, torna os outros igualmente insensíveis aos dele; e, excluindo-o da amizade de todo o mundo, também o exclui dos melhores e mais confortadores prazeres sociais.

Ao contrário, a disposição para afetos que afastam os homens uns dos outros, como se tendessem a romper os laços da sociedade humana; a disposição para a cólera, ódio, inveja, malícia, vingança, é muito mais capaz de ofender pelo seu excesso do que pela sua falta. O excesso torna um homem infeliz e desgraçado aos seus próprios olhos, e objeto do ódio, às vezes até de horror, aos olhos dos outros. Raramente se reclama da falta. Esta, entretanto, pode ser imperfeita. A ausência de indignação apropriada é a principal falta do caráter vigoroso, e em muitas ocasiões torna o homem incapaz de proteger de insultos e injustiças a si ou a seus amigos. Mesmo aquele princípio, em cujo excesso e imprópria orientação consiste a odiosa e detestável paixão da inveja, pode ser imperfeito. A inveja é a paixão que vê com maligno desgosto a superioridade dos que realmente têm direito a toda a superioridade que possuem. Porém, o homem que, em questões importantes, tolera mansamente que outras pessoas, não tendo direito a tal superioridade, ergam-se acima dele ou se ponham na sua frente é condenado, justamente, como medíocre. Habitualmente essa fraqueza se funda sobre indolência, às vezes sobre afabilidade, aversão à oposição, ao alvoroço e às súplicas, e, ademais, sobre uma espécie de magnanimidade mal interpretada, que, imaginando-se capaz de seguir desprezando a vantagem que ora despreza, tão facilmente sucumbe. Mas tal fraqueza habitualmente é acompanhada de muito arrependimento e remorso, e o que de início possuía certa aparência de magnanimidade, muitas vezes cede lugar, por fim, à mais maligna inveja e a um ódio à superioridade – a que podem realmente ter direito os que uma vez a alcançaram –, pelo mero fato de a terem alcançado. A fim de se viver confortavelmente no mundo, é sempre necessário defender tanto nossa dignidade e posição como nossa vida ou nossa fortuna.

Nossa sensibilidade a perigo e aflição pessoais, bem como a sensibilidade à provocação pessoal, tende a ofender mais pelo excesso do que pela falta. Nenhum caráter é mais desprezível do que o de um covarde – nenhum caráter mais admirado do que o do homem que enfrenta a morte com intrepidez, e conserva sua tranqüilidade e presença de espírito perante os mais terríveis perigos. Estimamos o homem que suporta a dor e até mesmo a tortura com virilidade e firmeza, e podemos ter pouca consideração por quem, deixando-se abater, abandona-se a gritos inúteis e lamentações afeminadas. Um temperamento irritadiço, sendo excessivamente sensível a qualquer pequena contrariedade, torna um homem miserável a seus próprios olhos, e ofensivo aos olhos dos outros. Um temperamento calmo não permite que pequenas ofensas ou pequenos desastres, incidentes ao curso habitual dos negócios humanos, perturbem sua tranqüilidade; e, em meio aos males naturais e morais que infestam o mundo, não se abate tolerando um pouco de ambos, é uma bênção para o próprio homem, e dá a todos os seus companheiros conforto e segurança.

Porém, embora nossa sensibilidade, quer às nossas próprias ofensas, quer aos nossos infortúnios, seja geralmente muito intensa, pode também ser muito fraca. O homem que se ressente pouco de seus próprios infortúnios menos ainda deve ressentir-se dos alheios, e está menos predisposto a consolá-los. O homem que se ressente pouco das ofensas que lhe fazem deve necessariamente ressentir-se menos ainda das que fizerem a outras pessoas, estando menos disposto a proteger ou vingá-las. A insensibilidade obtusa dos fatos da vida humana necessariamente extingue toda a atenção aguda e determinada para com a conveniência de nossa própria conduta, a qual constitui a verdadeira essência da virtude. Podemos nos preocupar pouco com a conveniência de nossas ações se somos indiferentes aos eventos que delas possam resultar. O homem que sente plenamente a aflição da calamidade que o assolou, que sente toda a baixeza da injustiça que lhe infligiram, mas que sente de maneira ainda mais intensa o que a dignidade de seu próprio caráter exige; que não se deixa guiar por paixões indisciplinadas, as quais sua situação poderia naturalmente inspirar, pois governa todo o seu comportamento e conduta de acordo com as emoções contidas e retificadas que o grande habitante, o grande semideus dentro de seu peito prescreve e aprova; tal homem é o único de virtude real, único objeto real e apropriado de amor, respeito e admiração. Insensibilidade e essa nobre firmeza, esse elevado domínio de si que se fundamenta sobre o senso de dignidade e conveniência, estão tão longe de ser exatamente a mesma coisa que, à medida que a primeira tem lugar, o mérito do segundo é, em muitos casos, inteiramente removido.

Ainda que a total falta de sensibilidade à ofensa pessoal, ao perigo e aflição pessoais remova nessas situações todo o mérito do autodomínio, contudo, essa sensibilidade pode ser demasiado aguda e freqüentemente o é. Quando o senso de conveniência, quando a autoridade do juiz que o peito encerra consegue dominar a extrema sensibilidade, essa autoridade sem dúvida deve se mostrar muito nobre e muito grande. Mas exercê-la pode ser fatigante demais – pode haver muito a se fazer. É com grande esforço que o indivíduo porta-se perfeitamente bem, pois a contenda entre os dois princípios, a hostilidade dentro do peito, pode ser demasiado violenta para ser em tudo congruente com a tranqüilidade e felicidade interior. O homem sábio, a quem a natureza dotou dessa sensibilidade excessivamente aguda, e cujos sentimentos demasiado vigorosos não foram suficientemente embotados e endurecidos pela educação precoce e pelo exercício apropriado, tanto quanto permitirem o dever e a conveniência, evitará as situações para as quais não é perfeitamente adequado. O homem cuja constituição frágil e delicada o torna demasiado sensível à dor, às durezas e à toda sorte de sofrimento físico, não deveria abraçar arbitrariamente a profissão de soldado. O homem com sensibilidade excessiva à ofensa não deve engajar-se precipitadamente em contendas entre facções. Embora o senso de conveniência seja forte o bastante para dominar todas essas sensibilidades, o conflito deve sempre perturbar a compostura do espírito. Nessa desordem, o discernimento nem sempre pode manter sua acurácia e precisão habituais, e ainda que sempre deseje agir de modo apropriado, pode muitas vezes agir com tal precipitação e imprudência, que mais tarde há de se envergonhar para sempre. Certa intrepidez, certa firmeza de nervos e resistência de constituição, sejam naturais ou adquiridas, são sem dúvida os melhores preparativos para todos os grandes esforços do autodomínio.

Embora a guerra e a facção sejam certamente as melhores escolas para formar todo homem nessa dureza e firmeza de temperamento, embora sejam os melhores remédios para curá-lo das fraquezas opostas, contudo, se o dia do juízo sucedesse ocorrer antes de ter aprendido completamente a lição, antes de o remédio ter tempo de produzir seu efeito adequado, as conseqüências poderiam não ser agradáveis.

Do mesmo modo, nossa sensibilidade aos prazeres, diversões e gozos da vida humana podem ofender quer pelo excesso, quer pela falta. Dos dois, porém, o excesso parece menos desagradável do que a falta. Tanto para o espectador quanto para a pessoa diretamente afetada, uma forte propensão para a alegria certamente agrada mais do que uma insensibilidade embotada aos objetos de divertimento e distração. Encanta-nos a alegria da juventude, ou mesmo os folguedos da infância, e logo nos cansamos da gravidade superficial e sem gosto que com excessiva freqüência acompanha a velhice. Quando essa propensão não é, com efeito, refreada pelo senso de conveniência, quando é inadequada ao tempo ou lugar, à idade ou situação da pessoa, quando para satisfazê-la negligencia ou seu interesse ou seu dever, é com justiça censurada como excessiva e como prejudicial tanto ao indivíduo, como à sociedade. Na maioria desses casos, porém, critica-se principalmente menos a força da propensão para a alegria, que a fraqueza do senso de conveniência e dever. Um jovem que não tenha gosto pelas diversões e distrações naturais e adequadas à sua idade, que não fala senão de seu livro ou seus negócios, desagrada por seu formalismo e pedantismo; e não lhe damos crédito por sua abstinência, nem mesmo de prazeres impróprios, para a qual parece ter tão pouca inclinação.

O princípio da auto-estima pode ser muito elevado e, igualmente, muito baixo. É tão agradável julgarmo-nos favoravelmente, e tão desagradável julgarmo-nos medíocres, que a própria pessoa não duvida de que algum grau de excesso deve ser menos desagradável do que qualquer grau de falta. Mas talvez se pense que para o espectador imparcial as coisas devam se mostrar de modo bastante diverso, e que para ele a falta deva sempre ser menos desagradável do que o excesso. Certamente criticamos nossos companheiros muito mais pelo último do que pela primeira. Quando são arrogantes conosco, ou se colocam em preeminência em relação a nós, sua auto-estima mortifica a nossa. Nosso orgulho e vaidade nos incitam a acusá-los de orgulho e vaidade, e cessamos de ser os espectadores imparciais de sua conduta. Mas, quando os mesmos companheiros toleram que qualquer outro homem arrogue-se uma superioridade que não possui, não apenas os censuramos, mas muitas vezes os desprezamos como ignóbeis. Ao contrário, quando entre outras pessoas sobressaem um pouco mais, e ascendem a uma altura que julgamos desproporcional ao seu mérito, embora não aprovemos inteiramente sua conduta, isso tudo com freqüência nos diverte; e se o caso não for de inveja, quase sempre desagradam-nos muito menos do que se se tivessem deixado cair abaixo da sua posição adequada.

Ao estimarmos nosso próprio mérito, ao julgarmos nosso próprio caráter e conduta, há dois padrões diferentes com os quais naturalmente os comparamos. O primeiro é a idéia de exata conveniência e perfeição, na medida em que cada um de nós é capaz de compreender essa idéia. O outro é aquele grau de aproximação com essa idéia que habitualmente se obtém no mundo, e que a maior parte de nossos amigos e companheiros, rivais e competidores, pode ter realmente atingido. Muito raramente (inclino-me a pensar que nunca) tentamos julgar a nós mesmos sem atentarmos de um modo ou de outro para esses dois diferentes padrões. Mas a atenção de diferentes homens, e até do mesmo homem em distintos momentos, muitas vezes se divide muito desigualmente entre tais padrões, dirigindo-se, algumas vezes, principalmente para um, algumas vezes para outro.

Na medida em que nossa atenção se dirige para o primeiro critério, o mais sábio e melhor de nós nada pode ver em seu próprio caráter e conduta, senão fraqueza e imperfeição; não consegue descobrir fundamento algum para arrogância e presunção, mas inúmeras razões para humildade, remorso e arrependimento. Na medida em que nossa atenção se dirige para o segundo, podemos ser afetados de um modo ou de outro, sentindo-nos realmente acima ou realmente abaixo do padrão a que nos comparamos.

O homem sábio e virtuoso dirige sua principal atenção para o primeiro padrão – a idéia da exata conveniência e perfeição. Existe no espírito de todo homem uma idéia desse tipo, gradualmente formada de suas observações sobre o caráter e conduta, tanto de si mesmo, como de outras pessoas. Trata-se do trabalho lento, gradual e progressivo do grande semideus dentro do peito, o grande juiz e árbitro da conduta. Essa idéia está mais ou menos delineada com precisão em todo homem, suas cores são mais ou menos justas, seus contornos, desenhados com maior ou menor exatidão, segundo a delicadeza e acurácia da sensibilidade com que aquelas observações foram feitas, e segundo o cuidado e atenção empregados ao fazê-las. No homem sábio e virtuoso, foram feitas com a mais aguda e delicada sensibilidade, e o mais extremo cuidado e atenção foram empregados ao fazê-las. Todo dia melhora-se algum traço, todo dia corrige-se alguma falha. Este homem estudou essa idéia mais do que outras pessoas, compreende-a mais distintamente, formou dela uma imagem muito mais correta, e está muito mais profundamente enamorado de sua singular e divina beleza, esforçando-se então o mais possível para assimilar seu próprio caráter a esse arquétipo de perfeição. Imita, contudo, a obra de um divino artista, que jamais poderá ser igualada. Sente o êxito imperfeito de todos os seus melhores esforços, e vê com dor e aflição os distintos traços em que a cópia mortal fracassa perante o original imortal; recorda, preocupado e humilhado, as vezes em que, por falta de atenção, falta de discernimento e falta de moderação, violou, em palavras e ações, em conduta e conversa, as regras exatas da perfeita conveniência, afastando-se, desse modo, do modelo segundo o qual desejara moldar seu próprio caráter e conduta. Quando dirige sua atenção para o segundo padrão – o grau de excelência que seus amigos e conhecidos comumente atingiram –, pode de fato sentir sua própria superioridade; todavia, como sua principal atenção sempre se dirige para o primeiro padrão, necessariamente a primeira comparação humilha-o muito mais do que jamais poderia elevá-lo a segunda. Nunca está tão eufórico para lançar um olhar insolente aos que estão realmente abaixo dele, pois sente tão bem sua própria imperfeição, conhece tão bem a dificuldade para se aproximar da longínqua retidão, que não consegue olhar com desprezo a imperfeição, ainda maior, de outras pessoas. Longe de ser insultado pela inferioridade destas, divisa-a com a mais indulgente comiseração, e, por meio de seu conselho e de seu exemplo, está sempre disposto a promover o progresso delas. Se por acaso são superiores a ele em qualquer qualidade particular (pois quem é tão perfeito que não tenha muitos superiores em muitas qualidades diversas?), não lhes inveja a superioridade, pois, sabendo quão difícil é exceder-se, estima e honra sua excelência, e nunca deixa de atribuir a esta a plena medida de aplauso de que é digna. Em suma, todo o seu espírito está profundamente marcado, todo o seu comportamento e postura nitidamente estampados com o caráter da sua verdadeira modéstia, de uma estima muito moderada de seu próprio mérito, e, ao mesmo tempo, de um senso completo do mérito de outras pessoas.

Em todas as artes liberais e inventivas, na pintura, na poesia, na música, na retórica, na filosofia, o grande artista sempre sente a real imperfeição de suas melhores obras, e é mais sensível do que qualquer outro homem de como lhes falta a perfeição ideal de que forma alguma concepção e imita tão bem quanto pode, embora desespere de algum dia a igualar. Somente o artista inferior sempre está perfeitamente contente com seu próprio desempenho. Quase não concebe essa perfeição ideal, na qual pensou muito pouco; e é principalmente às obras de outros artistas, de nível talvez ainda inferior, que transige em comparar suas obras. Boileau, o grande poeta francês (em algumas de suas obras talvez não seja inferior ao maior poeta do mesmo gênero, seja antigo ou moderno), costumava dizer que nenhum grande homem jamais se satisfez plenamente com suas próprias obras. Seu conhecido, Santeuil (autor de versos latinos que, graças a esse trabalho de colegial, tinha a fraqueza de imaginar-se poeta), assegurou-lhe que sempre sentia-se plenamente satisfeito com a sua própria obra. Com uma ambigüidade talvez maliciosa, Boileau respondeu-lhe que certamente ele era o único grande homem que já experimentara tal sensação. Ao julgar suas próprias obras, Boileau as comparava ao padrão de perfeição ideal relativo ao seu ramo particular de arte poética, e presumo que o tenha meditado de modo tão profundo e o concebido tão distintamente quanto é possível um homem fazer. Santeuil, ao julgar suas próprias obras, provavelmente as comparou principalmente às de outros poetas latinos de seu tempo, e certamente estava longe de ser inferior à grande maioria deles. Mas manter e rematar, se posso dizer assim, a conduta e convívio de toda uma vida à semelhança dessa perfeição ideal é certamente muito mais difícil do que avançar igual semelhança em qualquer dos produtos de uma arte engenhosa. O artista senta-se diante de sua obra quando está imperturbável, ocioso, em plena posse e reminiscência de toda a sua habilidade, experiência e conhecimento. O homem sábio deve manter a conveniência de sua conduta na saúde e doença, no êxito e na frustração, na hora da fadiga e da indolência sonolenta, bem como no momento de mais desperta atenção. Os mais súbitos e inesperados assaltos de dificuldade e aflição jamais o devem surpreender. A injustiça de outras pessoas jamais deve incitá-lo à injustiça. A violência da facção jamais o deve confundir. Todas as durezas e perigos da guerra jamais o podem desanimar, nem estarrecer.

Entre as pessoas que, estimando seu próprio mérito, julgando seu próprio caráter e conduta, dirigem a maior parte de sua atenção para o segundo padrão, para o grau ordinário de excelência que os outros homens comumente alcançam, há algumas que real e justificadamente se sentem muito acima dele, e que assim são reconhecidas por todo espectador inteligente e imparcial. Porém, como sua atenção sempre se dirija principalmente não para o padrão do ideal, mas para o de perfeição ordinária, tais pessoas têm pouco senso de suas próprias fraquezas e imperfeições. Têm pouca modéstia, com freqüência são altivas, arrogantes e presunçosas, grandes admiradoras de si mesmas, e grandes contemptoras de outros. Embora seus caracteres sejam em geral menos corretos, e seu mérito muito inferior aos do homem de real e modesta virtude, contudo, sua excessiva presunção, fundada sobre sua excessiva admiração de si, ofusca a multidão e muitas vezes prevalece até mesmo sobre os que são muito superiores à multidão. O freqüente – e não raro admirável – êxito dos mais ignorantes charlatães e impostores, sejam civis ou religiosos, demonstra suficientemente com que facilidade se abusa da multidão com as mais extravagantes e infundadas pretensões. Mas quando essas pretensões estão amparadas em altíssimo grau de sólido e real mérito, quando são exibidas com todo o esplendor que a ostentação pode lhes conferir, quando estão amparadas em elevada posição e grande poder, quando com freqüência são praticadas com sucesso, e por isso vêm acompanhadas das ruidosas aclamações da multidão, até mesmo o homem de sóbrio discernimento pode deixar-se levar pela admiração geral. O próprio rumor dessas tolas aclamações contribui muitas vezes para confundir seu entendimento; e embora apenas divise esses grandes homens a certa distância, freqüentemente se dispõe a adorá-los com uma sincera admiração, até mesmo superior à admiração com que revelam adorar a si próprios. Quando o caso não é de inveja, todos sentimos prazer em admirar e, por essa razão, naturalmente nos dispomos, em nossas fantasias, a tornar, em todos os aspectos, completos e perfeitos os caracteres que, em muitos aspectos, são tão dignos de admiração. Talvez os homens sábios compreendam e até desvelem, com algum grau de escárnio, a admiração que os grandes homens sentem por si mesmos, e, conhecendo-os de perto, secretamente sorriem das elevadas pretensões, muitas vezes vistas com reverência, quase adoração, por pessoas mais afastadas. Em todas as épocas, porém, a maioria dos homens têm buscado para si mesmos a mais ruidosa fama, a mais ampla reputação – fama e reputação, ademais, que com freqüência transmitiram-se até à mais remota posteridade.

Grande êxito no mundo, grande autoridade sobre sentimentos e opiniões da humanidade, raramente foram obtidos sem algum grau dessa excessiva admiração de si. Os mais esplêndidos caracteres, os homens que realizaram as ações mais ilustres, que provocaram as maiores revoluções, tanto nas circunstâncias quanto nas opiniões dos homens; os mais bem-sucedidos guerreiros, os maiores estadistas e legisladores, os eloqüentes fundadores e líderes das mais numerosas e bemsucedidas seitas e partidos – muitos destes não se distinguiram mais por seu imenso mérito do que por um grau de presunção e de admiração de si inteiramente desproporcional até mesmo em relação a esse imenso mérito. Talvez essa presunção fosse necessária não apenas para incitá-los a empresas em que um espírito mais sóbrio jamais teria pensado, como ainda para conquistar a submissão e obediência de seus seguidores, necessária para manter tais empresas. Assim, quando coroada de êxito, tal presunção muitas vezes os traiu, levando-os a uma vaidade quase próxima da insanidade e da insensatez. Alexandre, o Grande, revela não apenas ter desejado que outros o imaginassem um deus, mas ter-se fortemente inclinado a imaginar-se como tal. Em seu leito de morte – a menos divina de todas as situações – exigiu dos amigos que sua velha mãe Olímpia tivesse a honra de ser incluída na respeitável lista de divindades na qual ele próprio havia muito fora inserido. Diante da respeitosa admiração de seguidores e discípulos, diante do aplauso universal do público, após o oráculo, que provavelmente seguira a voz desse aplauso, tê-lo pronunciado como o mais sábio dos homens, a grande sabedoria de Sócrates, ainda que não o fizesse imaginar-se um deus, não foi, contudo, suficientemente grande para o impedir de imaginar que possuía a secreta e freqüente intimidade com um Ser invisível e divino. A sensata cabeça de César não era tão perfeitamente sensata a ponto de impedi-lo de regozijar-se demasiadamente com sua divina genealogia, oriunda da deusa Vênus; e de receber, diante do templo de sua pretensa tataravó, sem se erguer do assento, o Senado Romano, quando essa ilustre corporação vinha apresentar-lhe algum decreto conferindo-lhe as mais extravagantes honrarias. Essa insolência, acompanhada de alguns outros atos de vaidade quase infantil, pouco provável num entendimento a um só tempo tão agudo e amplo, ao exasperar o ciúme político, parece ter estimulado seus assassinos, e apressado a execução de sua trama. A religião e os costumes dos tempos modernos pouco encorajam nossos grandes homens a se imaginarem deuses ou até mesmo profetas. Contudo, o êxito, associado a grande favor popular, tão freqüentemente transtorma as cabeças dos mais poderosos, que chegam a atribuir a si próprios uma importância e habilidade muito superiores às que realmente possuem e, por causa dessa presunção, chegam a precipitar-se em muitas aventuras imprudentes e por vezes ruinosas. Trata-se de uma característica quase peculiar ao grande Duque de Marlborough, a de que em dez anos de um ininterrupto e esplêndido êxito – de que dificilmente outro general poderia jactar-se – jamais tenha traído uma única palavra ou expressão precipitada. Penso que não se pode atribuir a mesma frieza moderada e o mesmo autodomínio a nenhum outro grande guerreiro dos últimos tempos – nem ao Príncipe Eugênio, nem ao falecido Rei da Prússia, nem ao grande Príncipe de Condé, nem mesmo a Gustavo Adolfo. Talvez Turenne tenha-se aproximado mais disso, embora diversos procedimentos de sua vida demonstrem suficientemente que sua moderação de modo algum era tão perfeita quanto a do grande Duque de Marlborough.

Nos humildes projetos da vida privada, bem como nas ambiciosas e altivas buscas por postos elevados, grandes habilidades e empreendimentos que são bem-sucedidos no começo freqüentemente encorajaram empreendimentos que, no fim, necessariamente conduziram à bancarrota e à ruína.

A estima e admiração que todo espectador imparcial concebe pelo mérito real dessas pessoas brilhantes, magnânimas e pobres, por ser um sentimento justo e bem fundamentado, é também constante e permanente, independendo por completo de sua boa ou má fortuna. O mesmo não ocorre com a admiração que o espectador imparcial é capaz de conceber pela excessiva auto-estima e presunção. Enquanto têm bom êxito, com efeito, não raro o conquistam e sobrepujam inteiramente. O êxito encobre de seus olhos não apenas a grande imprudência, mas muitas vezes a grande injustiça desses empreendimentos; e, longe de censurar-lhes essa falha de caráter, com freqüência a vê com a mais entusiástica admiração. Quando malogram, entretanto, as coisas mudam de cores e de nomes. O que antes era heróica magnanimidade readquire sua própria designação de precipitação extravagante e loucura; e o negrume da avidez e injustiça, que antes se ocultava sob o esplendor da prosperidade, salta às vistas, e borra todo o brilho de seu empreendimento. Se em vez de ganhar, César tivesse perdido a batalha de Farsália, nesse momento considerariam seu caráter pouco melhor do que o de Catilina, e talvez mesmo o mais fraco dos homens visse sua empresa contra as leis do seu país em cores ainda mais negras do que um Catão, com toda a animosidade de um partidário. Seu verdadeiro mérito, a justeza de seu gosto, a simplicidade e elegância de seus escritos, a propriedade de sua eloqüência, sua habilidade na guerra, seus recursos na aflição, seu discernimento calmo e frio no perigo, sua fiel afeição aos amigos, sua generosidade inigualável com seus inimigos, teriam sido todos admitidos, do mesmo modo como o verdadeiro mérito de Catilina, que possuía muitas grandes qualidades, é reconhecido até hoje. Mas a insolência e injustiça de sua ambição insaciável teria obscurecido e extinguido a glória de todo esse verdadeiro mérito. Nesse, bem como em outros aspectos já mencionados a fortuna exerce grande influência sobre os sentimentos morais dos homens, e, conforme for favorável ou adversa, pode tornar o mesmo caráter objeto de amor e admiração generalizados, ou de ódio e desprezo universais. Essa grande desordem em nossos sentimentos morais, porém, não deixa de ter sua utilidade, e nessa, assim como em muitas outras ocasiões, podemos admirar a sabedoria de Deus, mesmo que seja na fraqueza e loucura do homem. Nossa admiração pelo êxito funda-se sobre o mesmo princípio do nosso respeito pela riqueza e poder, e é igualmente necessária para estabelecer a distinção de posições e a ordem da sociedade. Por essa admiração pelo êxito, somos ensinados a submeter-nos mais facilmente aos superiores que nos forem reservados pelo curso dos assuntos humanos; a considerar com reverência, e às vezes até com uma espécie de afeto respeitoso, essa violência afortunada a que não mais somos capazes de resistir – não apenas a violência de caracteres esplêndidos como os de um César ou um Alexandre, mas freqüentemente a dos mais brutais e selvagens bárbaros, a de um Átila, um Gêngis-Cã, ou um Tamerlão. Para todos esses poderosos conquistadores, a grande populaça está naturalmente predisposta a erguer os olhos com uma admiração espantada, embora sem dúvida muito fraca e tola. Essa admiração, contudo, ensina-os a aquiescer com menos relutância ao governo que uma força irresistível lhes impõe, e de que relutância alguma os poderia livrar.

Ainda que na prosperidade o homem de auto-estima excessiva às vezes possa apresentar-se avantajado em relação ao homem de virtude correta e modesta; ainda que o aplauso da multidão e dos que vêem a ambos apenas à distância seja muitas vezes mais ruidoso em favor de um do que jamais será em favor de outro; no entanto, tudo somado, o prato da balança talvez penda, em todos os casos, muito mais para o último que para o primeiro. O homem que não se atribui, nem deseja que outros lhe atribuam, nenhum mérito além do que realmente lhe pertence não receia a humilhação, não teme ser desmascarado, pois repousa, contente e seguro, sobre a genuína verdade e solidez de seu próprio caráter. Seus admiradores podem não ser muito numerosos, nem muito ruidosos em seus aplausos, porém o sábio que o avistar de perto e que o conhecer melhor muito há de admirá-lo. Para um homem realmente sábio, a aprovação judiciosa e ponderada de um único sábio concede mais satisfação interior do que todos os ruidosos aplausos de dez mil admiradores ignorantes, embora entusiásticos. Que faça suas as palavras de Parmênides que, enquanto lia um discurso filosófico perante uma assembléia pública em Atenas, observou que toda a gente, salvo Platão, o deixara; não obstante continuou a leitura, afirmando que Platão sozinho lhe bastava como audiência.

O mesmo não ocorre com o homem de auto-estima excessiva. Quanto mais de perto o avistarem os sábios, tanto menos hão de admirá-lo. Em meio à embriaguez da prosperidade, à estima sóbria e justa dos sábios faltará tanto a extravagância da admiração que cultiva por si mesmo, que a considerará como mera malignidade e inveja. Suspeita de seus melhores amigos; a companhia destes se lhe torna ofensiva, afasta-os de sua presença, e muitas vezes recompensa seus favores não apenas com ingratidão, mas com crueldade e injustiça; abandona sua confiança a aduladores e traidores que fingem incensar sua vaidade e presunção; e o caráter que a princípio, embora falho em alguns aspectos, era de modo geral amável e respeitável, torna-se por fim desprezível e odioso. Em meio à embriaguez da prosperidade, Alexandre matou Clito por ter preferido as façanhas de seu pai às suas próprias; mandou matar Calístenes sob torturas, por ter-se recusado a admirá-lo à maneira persa, e assassinou o grande amigo de seu pai, o venerável Parmênio, pela mais infundada suspeita, tendo primeiro mandado à tortura, e em seguida ao cadafalso, o único filho que restava àquele ancião, depois que todos os outros haviam morrido a seu serviço. Era esse o Parmênio a quem Filipe costumava referir-se, dizendo que os atenienses eram muito afortunados, pois podiam encontrar a cada ano dez generais, enquanto ele, ao longo de toda a sua vida, jamais pudera encontrar nenhum outro senão Parmênio. Esse era o Parmênio sobre cuja vigilância e atenção sempre repousava com confiança e segurança, costumando dizer, em seus momentos de alegria e júbilo: “Vamos beber, amigos, podemos fazê-lo com segurança, porque Parmênio nunca bebe.” Era esse mesmo Parmênio com cuja presença e conselhos, dizia-se, Alexandre obtivera todas as suas vitórias; e sem cuja presença e conselhos jamais teria conseguido uma só. Os amigos humildes, admiradores e aduladores, a quem Alexandre legou o poder e a autoridade, dividiram seu império entre si e, depois de terem então roubado a herança de sua família e parentes, mataram todos os sobreviventes, fossem homens ou mulheres.

Freqüentemente não só perdoamos a excessiva auto-estima dos esplêndidos caracteres nos quais divisamos grande e distinguida superioridade em relação ao nível comum da humanidade, como também deles partilhamos e com eles simpatizamos integralmente. Dizemos que são espirituosos, magnânimos, e nobres – palavras cujo significado implica um considerável grau de louvor e admiração. Todavia, não podemos partilhar da excessiva auto-estima dos caracteres em que não podemos discernir uma tão distinguida superioridade e tampouco com ela simpatizar. Enoja-nos e nos revolta, e não é sem dificuldade que a perdoamos ou suportamos. Chamamo-la orgulho ou vaidade – duas palavras cujo significado implica, a última sempre, e a primeira, na maioria das vezes, um grau considerável de censura.

No entanto, esses dois vícios, ainda que em alguns aspectos sejam semelhantes, porque modificações da excessiva auto-estima, em muitos aspectos são bastante diferentes um do outro.

O homem orgulhoso é sincero e, no fundo do seu coração, está convencido de sua superioridade, posto que às vezes seja difícil adivinhar em que se fundamenta essa convicção. Deseja que não o vejas sob outra luz, senão sob a que, ao colocar-se na tua situação, realmente se enxerga; nada exige de ti além do que considera justo. Se demonstras não respeitá-lo como ele mesmo se respeita, fica mais ofendido do que mortificado, e seu ressentimento não é menos indignado do que o seria se realmente fosse ofendido. Nem mesmo então ousa explicar as bases de suas próprias pretensões: desdenha cortejar a sua estima; afeta até mesmo desprezá-la, e empenha-se em manter sua pretensa posição menos fazendo-te perceber a superioridade dele, que tua própria torpeza; parece desejar não tanto suscitar a tua estima por ele, mas mortificar a tua estima por ti mesmo.

O homem vaidoso não é sincero e, no fundo do seu coração, raramente está convencido da superioridade que deseja que lhe atribuas. Quer que o vejas em cores muito mais esplêndidas que aquelas em que, ao colocar-se na tua situação, e ao supor que saibas tudo o que ele sabe, realmente pode ver-se a si mesmo. Portanto, se demonstras vê-lo em cores diferentes, talvez as suas verdadeiras cores, fica muito mais mortificado do que ofendido. Aproveita todas as oportunidades para expor os motivos pelos quais reclama de ti a atribuição desse caráter, quer exibindo de modo ostensivo e desnecessário as boas qualidades e habilidades que possui em grau razoável, quer, às vezes, mediante falsas pretensões às qualidades que, ou não possui em grau nenhum, ou em grau tão pequeno que se pode muito bem dizer que não as possui em grau algum. Longe de desprezar a tua estima, corteja-a com a mais ansiosa perseverança. Longe de desejar mortificar tua auto-estima, fica feliz em cultivá-la, na esperança de que em troca cultives a dele. Lisonjeia para ser lisonjeado; estuda como agradar, e esforça-se por subornar-te para que tenhas boa opinião dele mediante polidez e complacência, e por vezes até com préstimos reais e essenciais, ainda que talvez os exponha com desnecessária ostentação.

O homem vaidoso vê o respeito prestado à posição e fortuna, e deseja usurpá-lo, bem como o prestado aos talentos e virtudes. Assim, suas roupas, sua equipagem, seu modo de viver, anunciam uma posição e uma fortuna maiores do que as que realmente possui; e, a fim de manter, no começo de sua vida, essa tola impostura por alguns poucos anos, não raro se vê reduzido à pobreza e aflição muito antes do fim da vida. Na medida em que pode persistir nessa despesa, entretanto, sua vaidade delicia-se em ver a si mesmo, não sob a luz em que o verias se soubesse tudo o que ele sabe, mas sob a luz em que ele imagina que te induziu a enxergá-lo pelo seu tato. De todas as ilusões da vaidade, talvez essa seja a mais comum. Estrangeiros obscuros que visitam outros países, ou quem, vindo de uma província remota, visita por breve tempo a capital de seu próprio país, muito freqüentemente tentam praticá-la. A insensatez dessa tentativa, embora sempre seja imensa e muito indigna de um homem de bom-senso, pode não ser inteiramente tão grande nessas, como em muitas outras ocasiões. Se a estada é curta, é possível que escapem de uma desmoralização e, depois de cultivarem sua vaidade por uns poucos meses ou anos, podem retornar a seus lares, e reparar com parcimônia futura o desperdício de sua passada profusão.

O homem orgulhoso raramente pode ser acusado dessa insensatez. Seu senso da própria dignidade o torna cauteloso na conservação de sua independência e, caso sua fortuna não seja grande, ainda que deseje apresentar-se com decência, estuda meios de ser frugal e atento em todas as suas despesas. A ostentação dispendiosa do homem vaidoso lhe é sobremaneira ofensiva, talvez porque ofusque a sua própria. Provoca sua indignação, como presunção insolente de uma posição inteiramente indevida; e jamais fala desta sem a cobrir das mais ásperas e severas censuras.

O homem orgulhoso nem sempre se sente à vontade na companhia de seus iguais, e menos ainda na de seus superiores. Não consegue deixar de lado suas sublimes pretensões, pois o semblante e conversa dessa companhia o intimidam de tal maneira, que não se atreve a expô-las; recorre à companhia mais humilde, pela qual tem pouco respeito, que não escolheria de bom grado, e que de modo algum lhe agrada – a de seus inferiores, seus bajuladores, seus dependentes; raramente visita seus superiores, ou se o faz é antes para mostrar que tem direito a viver em tal companhia, do que por qualquer verdadeira satisfação que lhe causem. É como diz Lorde Clarendon a respeito do Conde de Arundel: de vez em quando este ia à Corte porque apenas lá poderia encontrar um homem mais importante que ele; mas que ia muito raramente, porque lá encontrara um homem mais importante que ele.

O caso é outro quando se trata do homem vaidoso. Este corteja a companhia de seus superiores, tanto quanto o homem orgulhoso a evita. Parece pensar que o esplendor deles reflete um esplendor sobre os que sempre estão à sua volta. Freqüenta as cortes de reis e as recepções (levees) dos ministros, dando-se ares de ser candidato a fortuna e privilégios, quando na realidade possui uma felicidade muito mais preciosa – se a soubesse saborear – de não ser um deles; gosta de ser admitido nas mesas dos eminentes, e mais ainda de exagerar quando em presença de outros a familiaridade com que o honram por lá; associa-se o mais que pode à gente da moda, aos que supostamente dirigem a opinião pública – os espirituosos, os cultos, os populares; e rejeita a companhia de seus melhores amigos, sempre que a corrente muito incerta dos favores públicos suceda de fluir contra eles em qualquer aspecto. Com as pessoas a quem deseja recomendar-se, nem sempre emprega meios muito delicados para alcançar esse fim: ostentação desnecessária, pretensões infundadas, anuência constante, bajulação freqüente, embora em geral agradável e jovial, e, muito raramente, a bajulação grosseira e fastidiosa de um parasita. O homem orgulhoso, ao contrário, jamais bajula, e freqüentemente sequer é muito cortês com alguém.

Mas, apesar de todas as suas infundadas pretensões, a vaidade é quase sempre uma paixão alegre e jovial e, muitas vezes gentil; o orgulho é sempre uma paixão grave, sombria e severa. Até mesmo as falsidades do homem vaidoso são inocentes, pois têm o propósito de elevar-se a si próprio, não de rebaixar os outros. Para fazer justiça ao homem orgulhoso, é preciso dizer que raramente humilha-se até a baixeza da falsidade. Mas, quando o faz, de modo algum suas falsidades são tão inocentes. São todas danosas, pois têm o propósito de rebaixar outras pessoas. Está cheio de indignação pela superioridade, a qual julga injusta, que lhes é concedida: considera-as com malignidade e inveja e, falando delas, muitas vezes esforça-se o mais que pode para atenuar e reduzir toda e qualquer razão sobre a qual deve-se fundar a superioridade delas. Ainda que raro invente as histórias depreciativas que circulam sobre essas pessoas, freqüentemente se compraz em espalhá-las, e não lhe desgosta repeti-las, algumas vezes até com exagero. As piores falsidades da vaidade são o que podemos chamar de bazófias; as do orgulho, sempre que se rebaixa à falsidade, são de compleição oposta.

Nosso desgosto pelo orgulho e vaidade geralmente nos predispõe a colocar as pessoas a quem acusamos desses vícios antes abaixo do que acima do nível comum. Nesse juízo, porém, penso que geralmente estamos errados, e que tanto o homem orgulhoso como o vaidoso freqüentemente (talvez na maioria das vezes) estão bastante acima desse nível, embora nem tão acima como um deles realmente pensa estar, ou como o outro deseja que tu penses que ele está. Se os comparamos às suas pretensões, podem parecer objetos justos de desprezo. Mas, se os compararmos ao que a maior parte de seus rivais e competidores realmente são, podem mostrar-se bem diferentes, muito acima do nível comum. Quando há real superioridade, freqüentemente o orgulho é acompanhado de muitas virtudes respeitáveis – verdade, integridade, um alto senso de honra, amizade cordial e constante, a mais inflexível firmeza e resolução; e a vaidade, de muitas virtudes amáveis – humanidade, polidez, um desejo de agradar em todos os pequenos assuntos, e por vezes uma real generosidade nos grandes – uma generosidade, entretanto, que freqüentemente deseja expor-se em cores mais esplendorosas do que pode. No século passado, os franceses foram acusados de vaidade por seus rivais e inimigos; os espanhóis, de orgulho; e as nações estrangeiras foram levadas a considerar um o povo mais amável, o outro, o mais respeitável.

As palavras vaidoso e vaidade nunca são tomadas num bom sentido. Às vezes dizemos de um homem, quando falamos dele com bom humor, que ele é melhor ainda pela sua vaidade, ou que sua vaidade é mais divertida do que ofensiva; mas ainda assim a consideramos uma fraqueza, e um aspecto ridículo de seu caráter.

As palavras orgulhoso e orgulho, ao contrário, às vezes são tomadas no bom sentido. Freqüentemente dizemos de um homem que ele é orgulhoso demais, ou que possui orgulho demasiado nobre, para suportar fazer algo mesquinho. Nesse caso, confunde-se orgulho com magnanimidade. Aristóteles, filósofo que certamente conhecia o mundo, ao esboçar o caráter do homem magnânimo, retrata-o com muitos traços que, nos dois últimos séculos, comumente eram atribuídos ao caráter espanhol: que era cauteloso em todas as suas resoluções; lento e até mesmo relutante em todas as suas ações; que sua voz era grave, seu discurso, cauteloso, seu passo e movimento lentos; que se mostrava indolente e até relaxado, de modo nenhum disposto a fazer alarido por pequenas questões, mas a agir com a mais determinada e vigorosa resolução em todas as ocasiões grandes e ilustres; que não era amante do perigo, ou inclinado a expor-se a perigos pequenos, mas a grandes perigos; e que, quando se expunha ao perigo, era com total desconsideração pela própria vida.

O homem orgulhoso comumente está satisfeito demais consigo mesmo para pensar que seu caráter precise de qualquer reparo. O homem que se sente perfeito naturalmente despreza toda melhoria. Sua auto-suficiência e o absurdo conceito de sua própria superioridade comumente o acompanham da juventude até a mais avançada idade, e morre, como diz Hamlet, com todos os seus pecados sobre sua cabeça, sem comunhão ou extrema-unção.

O contrário ocorre freqüentemente, quando se trata do homem vaidoso. O desejo de que outros nos estimem e admirem, por qualidades e talentos que são objetos naturais e próprios de estima e admiração, é o real amor à verdadeira glória – paixão que, se não é a melhor da natureza humana, é certamente uma das melhores. Muito freqüentemente, a vaidade nada mais é que uma tentativa de usurpar prematuramente a glória, antes de ser devida. Embora teu filho menor de vinte e cinco anos seja apenas um pretensioso, não desespera de que antes dos quarenta se torne um homem muito sábio e digno, e verdadeiramente capaz em todos os talentos e virtudes para os quais talvez ora seja apenas um dissimulador exibicionista e vazio. O grande segredo da educação é dirigir a vaidade para objetos apropriados. Nunca tolera que teu filho avalie-se pelas realizações triviais, mas nem sempre desencoraja suas pretensões às verdadeiramente importantes. Não as pretenderia se não desejasse seriamente possuí-las. Encoraja esse desejo; fornece-lhe todos os meios para facilitar a aquisição, e não te ofendas demais se de vez em quando ele assumir ares de a ter conseguido um pouco antes da hora.

Tais são, digo eu, as características distintivas do orgulho e da vaidade, quando cada uma delas age segundo seu caráter próprio. Porém, o homem orgulhoso muitas vezes é vaidoso; o homem vaidoso é muitas vezes orgulhoso. Nada pode ser mais natural do que o homem que se julga muito melhor do que realmente é desejar que outras pessoas julguem-no melhor ainda; ou que o homem, que deseja que outras pessoas julguem-no melhor do que ele mesmo se julga, julgar-se, ao mesmo tempo, muito melhor do que de fato é. Uma vez que esses dois vícios freqüentemente se mesclam no mesmo caráter, necessariamente suas características se confundem; e às vezes encontramos a ostentação superficial e impertinente da vaidade reunida à mais maligna e ridícula insolência do orgulho. Por essa razão, algumas vezes nos atrapalhamos ao classificar um caráter especial, não sabendo se o devemos colocar entre os orgulhosos ou entre os vaidosos.

Homens de mérito consideravelmente acima do nível comum podem tanto se subestimar como se superestimar. Ainda que não sejam muito dignos, freqüentemente estão longe de ser desagradáveis em companhia privada. Todos os seus companheiros sentem-se muito à vontade junto de um homem tão perfeitamente modesto e despretensioso. Todavia, se esses companheiros não têm mais discernimento e mais generosidade do que o comum, ainda que sejam gentis para com ele, é raro que lhe tenham muito respeito, e o calor de sua gentileza muito raramente basta para compensar a frieza de seu respeito. Homens de discernimento meramente comum nunca atribuem a uma pessoa um valor mais alto do que esta revela atribuir-se. Dizem que pa-rece duvidar de que seja perfeitamente adequada para tal situação ou cargo, e por isso imediatamente dão a preferência a qualquer estúpido que não alimente dúvidas quanto às suas próprias qualificações. Embora tenham discernimento, se lhes falta generosidade, nunca deixam de tirar vantagem da simplicidade dessa pessoa, e de assumir com relação a ela uma superioridade impertinente, a que de modo algum têm direito. Seu bom temperamento pode capacitá-la a tolerar isso por algum tempo, mas finalmente se cansa, não raro quando já é demasiado tarde, quando a posição que devia assumir está irrecuperavelmente perdida e usurpada, em conseqüência de sua própria hesitação, por algum de seus companheiros mais atrevidos, embora bem menos meritórios. Um homem com esse caráter terá sido muito afortunado ao escolher seus primeiros companheiros se, passando pelo mundo, sempre encontra um tratamento justo por parte daqueles a quem, por sua gentileza passada, pode ter alguma razão de considerar seus melhores amigos; e uma juventude excessivamente despretensiosa e pouco ambiciosa freqüentemente é seguida de uma velhice insignificante, queixosa e descontente.

As pessoas infelizes, a quem a natureza formou bastante abaixo do nível comum, às vezes parecem atribuir-se um valor ainda mais baixo do que realmente possuem. Às vezes essa humildade parece mergulhá-las na idiotia. Quem quer que tenha-se dado o trabalho de examinar os idiotas atentamente, descobrirá que em muitos deles as faculdades do entendimento não são em absoluto mais fracas do que em várias outras pessoas as quais, embora sabidamente embotadas e estúpidas, não são consideradas idiotas. Muitos idiotas, que receberam uma instrução comum, aprenderam a ler, escrever e contar razoavelmente bem. Muitas pessoas jamais consideradas idiotas, a despeito da mais cuidadosa instrução, e a despeito de terem, em sua idade avançada, suficiente espírito para tentar aprender o que na infância sua instrução não lhes ensinou, nunca conseguiram obter em grau razoável uma só dessas três habilidades. Por um orgulho instintivo, contudo, elevam-se ao mesmo nível de seus iguais em idade e situação, e, com coragem e firmeza, mantêm adequada sua posição entre seus companheiros. Por um instinto oposto, o idiota sente-se inferior a todos os companheiros a quem o apresentares. Maus-tratos, aos quais é muito exposto, podem lançá-lo aos mais violentos ataques de cólera e fúria. Mas nenhum trato agradável, nenhuma gentileza ou tolerância podem animá-lo a conversar contigo como teu igual. Se ao menos puderes fazê-lo conversar contigo, verás, porém, que muitas vezes suas respostas são bastante pertinentes, e até sensatas. Mas estão sempre marcadas com uma nítida consciência de sua imensa inferioridade.

O idiota parece encolher-se, como se se afastasse de teu olhar e da tua conversa, e, ao colocar-se na tua situação, parece sentir que, apesar de tua aparente condescendência, não podes evitar de o considerar imensamente inferior. Alguns idiotas, talvez a grande maioria deles, parecem ser assim, principal ou inteiramente por certa estupidez ou torpor das faculdades do entendimento. Mas há outros em que essas faculdades não parecem mais estúpidas ou entorpecidas do que em muitas outras pessoas não consideradas idiotas. O orgulho instintivo, necessário para provê-las de uma igualdade com seus irmãos, parece, todavia, faltar totalmente aos primeiros, não aos últimos.

Portanto, o grau de auto-estima que mais contribui para a felicidade e contentamento da própria pessoa parece também o mais agradável ao espectador imparcial. O homem que se estima como deveria, e não mais do que deveria, raramente deixa de obter de outros toda a estima que julga ser-lhe devida. Não deseja mais do que lhe é devido, e fia-se nisso com total satisfação.

O homem orgulhoso e o homem vaidoso, ao contrário, estão sempre insatisfeitos. Um é atormentado por indignação pela superioridade, que julga injusta, de outras pessoas; outro, teme continuamente a vergonha que prevê resultaria do desmascaramento de suas infundadas pretensões. Até as extravagantes pretensões do homem de real magnanimidade, quando amparadas por esplêndidas habilidades, virtudes e, sobretudo, pela boa fortuna, impõem-se à multidão, cujos aplausos pouco lhe importam, embora não se imponham aos homens sábios, cuja aprovação só pode valorizar, e cuja estima está tão preocupado em obter. Percebe que decifraram, suspeita de que desprezem, sua excessiva presunção; e muitas vezes sofre o cruel infortúnio de tornar-se, primeiro, inimigo invejoso e secreto, e finalmente, declarado, furioso e vingativo, das mesmas pessoas cuja amizade lhe teria proporcionado imensa felicidade usufruir com insuspeita segurança.

Embora nosso desgosto para com os orgulhosos e vaidosos freqüentemente nos predisponha a posicioná-los antes abaixo que acima de seu lugar apropriado, muito raramente nos aventuramos a tratá-los mal, a menos que nos instigue uma impertinência particular e pessoal. Em casos comuns, esforçamo-nos, para nosso próprio bem, para aquiescer e, conforme pudermos, para acomodar-nos à sua loucura. Mas ao homem que se subestima, a não ser que tenhamos mais discernimento e mais generosidade do que a maioria dos homens, é raro deixarmos de fazer pelo menos toda a injustiça que ele faz a si mesmo, e freqüente fazermos injustiça ainda maior. Este não apenas é muito mais infeliz, quanto a seus próprios sentimentos, do que os orgulhosos ou os vaidosos, como também muito mais passível a toda a sorte de ofensas por parte das outras pessoas. Em quase todos os casos, é melhor ser um pouco orgulhoso demais, do que demasiado humilde em qualquer aspecto; e, quanto ao sentimento de auto-estima, algum grau de excesso parece, tanto para a própria pessoa, como para o espectador imparcial, ser menos desagradável do que qualquer grau de falta.

Nessa, como em toda outra emoção, paixão e hábito, o grau mais agradável ao espectador imparcial é, portanto, também o mais agradável para a própria pessoa; e conforme o excesso ou a falta seja menos ofensiva para o primeiro, assim também um ou outro será, proporcionalmente, menos desagradável para a última.


 
CONCLUSÃO DA SEXTA PARTE
A preocupação com nossa própria felicidade nos recomenda a virtude da prudência; a preocupação com a de outras pessoas, as virtudes da justiça e da beneficência – uma das quais nos impede de prejudicar, a outra nos leva a promover aquela felicidade. Independentemente de qualquer consideração com o que são ou deveriam ser, ou o que seriam em certas condições os sentimentos de outras pessoas, a primeira dessas três virtudes originalmente nos é recomendada por nossos afetos egoístas, as outras duas, pelos benevolentes. O respeito aos sentimentos de outras pessoas, contudo, advém para impor e orientar a prática de todas essas virtudes, de modo que homem algum, no curso de sua vida inteira, ou de considerável parte dela, jamais trilhou de maneira constante e uniforme os caminhos da prudência, justiça e beneficência apropriada, sem que sua conduta fosse principalmente orientada por um respeito aos sentimentos do suposto espectador imparcial, do grande morador do peito, grande juiz e árbitro da conduta. Se no curso do dia nos desviamos em qualquer aspecto das regras que este nos prescreve; se excedemos ou relaxamos nossa frugalidade; se excedemos ou relaxamos nossa diligência; se por paixão ou descuido prejudicamos em algum aspecto o interesse ou felicidade de nosso vizinho; se negligenciamos uma oportunidade clara e adequada de promover esse interesse e essa felicidade, é esse morador que, à noite, chama-nos para prestarmos conta de todas essas omissões e violações, e freqüentemente suas censuras nos fazem corar internamente, tanto por nossa insensatez e desatenção para com nossa própria felicidade, quanto pela indiferença e desatenção talvez ainda maiores pela felicidade de outras pessoas.

Embora as virtudes da prudência, justiça e beneficência possam em diferentes ocasiões ser-nos recomendadas quase igualmente por meio de dois princípios distintos, as virtudes do autodomínio, por outro lado, nos são recomendadas, na maioria das ocasiões, principal e quase inteiramente por meio de um princípio: o senso de conveniência, a consideração dos sentimentos do suposto espectador imparcial. Sem a restrição que esse princípio impõe, toda a paixão geralmente acudiria precipitadamente, se me permitem dizer assim, sua própria satisfação. A cólera seguiria as sugestões de sua própria fúria, o medo, as de suas próprias violentas agitações. Nenhuma consideração de tempo ou lugar poderia induzir a vaidade a abster-se da mais ruidosa e impertinente ostentação; ou a volúpia, da mais descarada, indecente e escandalosa indulgência. O respeito pelo que são ou deveriam ser ou seriam, em certas condições, os sentimentos de outras pessoas é o único princípio que, na maioria das ocasiões, mantém em temor reverencial todas aquelas paixões rebeldes e turbulentas, adequando-as à modulação e temperamento de que o espectador imparcial pode partilhar, e com que pode simpatizar.

Em tais ocasiões, com efeito, essas paixões são refreadas não tanto por um senso da sua inconveniência, como por prudentes considerações das más conseqüências que podem seguir de se indultá-las. Nesses casos, embora refreadas, as paixões nem sempre são subjugadas, e freqüentemente permanecem à espreita no peito, com toda a sua fúria original. O homem cuja cólera é refreada pelo medo nem sempre a deixa de lado, mas apenas reserva sua satisfação para uma ocasião mais segura. Porém, o homem que, relatando a outro a ofensa que lhe infligiram, sente imediatamente a fúria de sua paixão esfriar e acalmar-se por simpatia com os sentimentos mais moderados de seu companheiro – o qual de imediato adota esses sentimentos mais moderados – e passa a ver essa ofensa, não nas cores negras e atrozes em que a contemplara originalmente, mas à luz muito mais branda e clara em que seu companheiro naturalmente a vê; assim não apenas refreia, como ainda em certa medida subjuga a sua ira. A paixão realmente se torna menor do que era antes, e menos capaz de açular nele a violenta e sanguinária vingança que a princípio pensara realizar.

Todas as paixões refreadas pelo senso de conveniência são, em certo grau, moderadas e subjugadas por ele. Mas as que são refreadas apenas por considerações de prudência de qualquer espécie são, ao contrário, freqüentemente inflamadas pela contenção, e algumas vezes (muito depois de sofrer a provocação, e quando ninguém mais pensa nisso) explodem de maneira absurda e inesperada, com dez vezes mais fúria e violência.

Mas a cólera, bem como todas as demais paixões, pode em muitas oportunidades ser muito adequadamente refreada por considerações de prudência. Algum esforço de vigor e autodomínio é até necessário para esse tipo de contenção; e o espectador imparcial pode por vezes vê-la com aquela espécie de fria estima devida à espécie de conduta que considera assunto de vulgar prudência, mas jamais com a afetuosa admiração com que examina as mesmas paixões, quando são moderadas e subjugadas pelo senso de conveniência, a um grau de que possa partilhar prontamente. Na primeira espécie de contenção, o espectador imparcial pode amiúde discernir algum grau de conveniência e, se quiseres, até mesmo de virtude; trata-se, porém, de conveniência e virtude de ordem muito inferior às que, na segunda espécie, sempre sente com arrebatamento e admiração.

As virtudes da prudência, justiça e beneficência, não tendem a produzir senão os mais agradáveis efeitos. A consideração desses efeitos, na medida em que os recomenda originalmente ao agente, recomendará posteriormente ao espectador imparcial. Em nossa aprovação do caráter do homem prudente, sentimos com complacência peculiar a segurança que este deve sentir enquanto anda sob a salvaguarda dessa calma e deliberada virtude. Em nossa aprovação do caráter do homem justo, sentimos com igual complacência a segurança que todos os ligados a ele, seja em vizinhança, em sociedade, em negócios, devem obter de sua escrupulosa preocupação por nunca ferir nem ofender ninguém. Em nossa aprovação do caráter do homem beneficente, partilhamos da gratidão de todos os que estão dentro da esfera de seus bons serviços, e concebemos, como eles, o mais elevado senso de seu mérito. Em nossa aprovação de todas essas virtudes, nosso senso de seus efeitos agradáveis, de sua utilidade, seja para quem as exerce, seja para outros, associa-se ao nosso senso de sua conveniência, e sempre constitui uma parte considerável, freqüentemente a maior, dessa aprovação.

Às vezes, porém, não tem parte em nossa aprovação das virtudes do autodomínio a complacência com seus efeitos, ou freqüentemente tem uma parte muito pequena. Esses efeitos podem por vezes ser agradáveis, por vezes desagradáveis; e embora nossa aprovação seja sem dúvida mais intensa no primeiro caso, não é de modo algum inteiramente destruída no segundo. A mais heróica bravura pode ser empregada indiferentemente, ou na causa da justiça, ou da injustiça; e embora sem dúvida seja muito mais amada e admirada no primeiro caso, ainda parece uma grande e respeitável qualidade até mesmo no segundo. Nessa e em todas as demais virtudes do autodomínio, a qualidade esplêndida e deslumbrante parece ser sempre a grandeza e constância do empenho, e o forte senso de conveniência necessário para fazer e manter esse empenho. Muitas vezes os efeitos são porém muito pouco considerados.


 
SÉTIMA PARTE DOS SISTEMAS DE FILOSOFIA MORAL

 
SEÇÃO I Das questões que deveriam ser examinadas numa teoria dos sentimentos morais
Se examinarmos as mais célebres e notáveis dentre as diversas teorias a respeito da natureza e origem de nossos sentimentos morais, veremos que quase todas elas coincidem em alguma parte ou outra com o que venho me esforçando em considerar; e que, se tudo o que já foi dito for plenamente levado em conta, não será difícil explicar qual visão ou aspecto da natureza levou cada autor particular a formar seu sistema particular. Talvez todo sistema de moralidade que gozou de alguma reputação no mundo derive fundamentalmente de um ou outro dos princípios que venho tratando de desdobrar. Como nesse aspecto todos se fundam sobre princípios naturais, estão todos em certa medida corretos. Porém, como muitos deles derivam de uma visão parcial e imperfeita da natureza, há também muitos errados em alguns aspectos.

Ao tratar dos princípios de moral é necessário considerar duas questões. Primeiro, em que consiste a virtude – ou o tom do temperamento, e o teor da conduta que constitui o caráter excelente e louvável, caráter que seja objeto natural de estima, honra e aprovação? E, segundo, por que poder ou faculdade do espírito esse caráter, seja ele qual for, se recomenda a nós? Ou, em outras palavras, como, e por que meios, sucede ao espírito preferir um teor de conduta a outro; denominar um o correto e o outro, o errado; considerar um objeto de aprovação, honra e recompensa e, o outro, de vergonha, censura e castigo?

Examinamos a primeira questão quando consideramos se a virtude consiste na benevolência, como imagina o Dr. Hutcheson, ou em agir de acordo com as diferentes relações que mantemos, como supõe o Dr. Clarke, ou na sábia e prudente busca de nossa própria real e sólida felicidade, como tem sido opinião de outros.

Examinamos a segunda questão quando consideramos se o caráter virtuoso, seja este o que for, é-nos recomendado pelo amor de si, o qual nos faz perceber que esse caráter, em nós ou em outros, é mais tendente a promover nosso interesse particular; ou pela razão, a qual nos indica a diferença entre um caráter e outro, da mesma maneira que o faz entre verdade e falsidade; ou por um poder peculiar de percepção, chamado senso moral, que esse caráter virtuoso satisfaz e agrada, assim como o contrário repugna e desagrada; ou, por último, por algum outro princípio na natureza humana, tal como uma modificação da simpatia, ou coisa semelhante.

Começarei considerando os sistemas que se formaram a respeito da primeira dessas questões, e em seguida procederei ao exame dos que dizem respeito à segunda.


 
SEÇÃO II Das diferentes descrições quanto à natureza da virtude

 
INTRODUÇÃO
As diferentes descrições quanto à natureza da virtude, ou do temperamento de espírito que constitui o caráter excelente e louvável, podem ser reduzidas a três classes diferentes. De acordo com alguns, o temperamento virtuoso não consiste em nenhuma espécie de afetos, mas no conveniente governo e direção de todos os nossos afetos, que podem ser virtuosos ou viciosos, segundo os objetos que buscam e o grau de veemência com que os buscam. Segundo esses autores, portanto, a virtude consiste na conveniência.

De acordo com outros, a virtude consiste na busca judiciosa de nosso interesse e felicidade particulares, ou no conveniente governo e direção dos afetos egoístas que visam unicamente a esse fim. Na opinião desses autores, portanto, a virtude consiste na prudência.

Outro grupo de autores faz a virtude consistir somente nos afetos que visam à felicidade de outros, não nos que visam à nossa. De acordo com estes, portanto, a benevolência desinteressada é o único motivo que pode imprimir a qualquer ação o caráter de virtude.

É evidente que o caráter de virtude ou deve ser atribuído indiferentemente a todos os nossos afetos que sejam apropriadamente governados e dirigidos, ou deve ser confinado a uma classe ou divisão de afetos. A grande divisão de nossos afetos é em egoístas e benevolentes. Portanto, se o caráter de virtude não pode ser atribuído indiferentemente a todos os nossos afetos que estejam sob governo e direção apropriados, deve confinar-se ou aos que visam diretamente a nossa felicidade privada, ou aos que visam diretamente à dos outros. Se, portanto, a virtude não consiste em conveniência, deve consistir ou em prudência ou em benevolência. Além dessas três, é quase impossível imaginar alguma outra descrição da natureza da virtude. Tratarei de mostrar doravante como todas as outras descrições, aparentemente diferentes de qualquer uma dessas, na realidade coincidem com uma ou outra destas.


 
CAPÍTULO I Dos sistemas que fazem a virtude consistir na conveniência
De acordo com Platão, Aristóteles e Zenão, a virtude consiste na conveniência da conduta, ou na adequação do afeto por que agimos ao objeto que o suscita.

I. No sistema de Platão, a alma é considerada algo como um pequeno estado ou república, composto de três diferentes faculdades ou ordens.

A primeira é a faculdade de julgar – faculdade que determina não apenas quais os meios apropriados para se atingir qualquer fim, mas também quais os fins adequados de se buscar, e que grau de valor relativo devemos atribuir a cada um deles. A essa faculdade, Platão chamou, muito apropriadamente, de Razão, e a considerou como a que tinha o direito de ser o princípio governante do todo. Está claro que, sob essa denominação, compreendia não apenas a faculdade pela qual julgamos verdade e falsidade, mas aquela pela qual julgamos a conveniência ou inconveniência de desejos e afetos.

As diferentes paixões e apetites, súditos naturais desse princípio governante, ainda que capazes de se rebelar contra seu senhor, foram por ele reduzidas a duas diferentes classes ou ordens. A primeira consistiria das paixões fundadas no orgulho e no ressentimento, ou no que os escolásticos chamam a parte irascível da alma; ambição, animosidade, amor à honra e horror à vergonha, desejo de vitória, de superioridade, de vingança, em resumo, todas as paixões que se supõe se originem de algo ou algo denotem que, segundo uma metáfora de nossa língua, comumente chamamos espírito, ou fogo natural. A segunda consistiria das paixões fundadas no amor ao prazer, ou no que os escolásticos chamavam a parte concupiscente da alma. Compreende todos os apetites do corpo, o amor ao bem-estar e segurança, e de todas as satisfações sensuais.

É raro interrompermos o plano de conduta que o princípio governante prescreve, e que nos momentos de lucidez estabelecêramos para nós mesmos como o mais próprio para buscar. Se isso ocorre, é porque nos incitou um ou outro desses dois diferentes grupos de paixões – seja uma ambição ou um ressentimento ingovernáveis, seja as importunas súplicas de bem-estar e prazer presentes. Posto que essas duas ordens de paixões tenham tal capacidade de nos extraviar são, contudo, consideradas partes necessárias da natureza humana; a primeira das quais nos foi concedida para que nos defendêssemos das ofensas para que afirmássemos nossos postos e dignidade no mundo, para nos fazer visar ao que é nobre e honroso, e distinguir os que agem da mesma maneira; a segunda, para prover o apoio e as necessidades do corpo.

Na força, acurácia e perfeição do princípio governante depositou-se a virtude essencial da prudência, que, segundo Platão, consistiria num discernimento claro e justo, fundado em idéias gerais e científicas dos fins adequados que se devem buscar, e dos meios adequados para atingi-los.

Quando o primeiro grupo de paixões, as da parte irascível da alma, obtivesse o grau de força e firmeza que as capacitaria, sob orientação da razão, a desprezar todos os perigos na busca do que era honroso e nobre, constituiria a virtude da coragem e da magnanimidade. Essa ordem de paixões, segundo esse sistema, seria de natureza mais generosa e nobre do que a outra. Em muitas ocasiões, eram consideradas auxiliares da razão, para controlar e refrear os apetites inferiores e brutais. Observou-se que muitas vezes nos zangamos conosco mesmos, freqüentemente tornamo-nos objetos de nosso próprio ressentimento e indignação, se o amor ao prazer nos incita a fazer algo que reprovamos, pois dessa maneira a parte irascível de nossa natureza é convocada a assistir à racional contra a concupiscente.

Quando essas três diferentes partes de nossa natureza estivessem em perfeito acordo entre si, quando nem as paixões irascíveis, nem as concupiscentes, visassem a uma gratificação que a razão não aprovasse, e quando a razão nada ordenasse, senão o que estas de bom grado executariam; essa feliz serenidade, essa perfeita e completa harmonia da alma, constituiria a virtude que na linguagem dos gregos se expressa por uma palavra que habitualmente traduzimos por Temperança, mas que poderia ser mais apropriadamente traduzida como boa índole, ou sobriedade, e moderação do espírito.

De acordo com esse sistema, a Justiça, a última e maior das quatro virtudes cardeais, teria lugar quando cada uma dessas três faculdades do espírito se confinassem a sua função apropriada, sem tentar invadir qualquer uma das outras; quando a razão dirigisse e a paixão obedecesse, quando cada paixão cumprisse seu dever apropriado, exercesse-se em relação a seu objeto apropriado, com facilidade e sem relutância, e com o grau de energia e força adequado ao valor do que buscava. Nisso consistiria a virtude completa, a perfeita conveniência de conduta, que Platão, seguindo alguns antigos pitagóricos, denominou Justiça.

Deve-se observar que a palavra grega que expressa justiça possui vários significados diferentes, e na medida em que o termo correspondente em todas as outras línguas tem, até onde sei, o mesmo, deve haver alguma afinidade natural entre esses vários significados. Num sentido, diz-se que fazemos justiça a nosso vizinho quando nos abstemos de lhe causar qualquer mal positivo, e não o prejudicamos diretamente, nem em sua pessoa, nem em suas posses, nem em sua reputação. Essa é a justiça que abordei acima, cuja observância pode ser extorquida pela força, e cuja violação expõe ao castigo. Em outro sentido, diz-se que não fazemos justiça a nosso vizinho, salvo se sentirmos por ele todo o amor, respeito e estima que seu caráter, sua situação e sua relação conosco tornam adequado e apropriado sentirmos, e salvo se agirmos em conformidade com isso. Nesse sentido diz-se que cometemos injustiça contra o homem de mérito que mantenha um relacionamento conosco, mesmo quando nos abstemos de o prejudicar em qualquer aspecto, se não nos empenhamos em servi-lo, e em o colocar na situação em que o espectador imparcial gostaria de vê-lo. O primeiro sentido da palavra coincide com o que Aristóteles e os escolásticos chamam justiça comutativa, e com o que Grotius chama de justitia expletrix, a qual consiste em abster-se do que é de outrem, e em fazer voluntariamente o que com propriedade podemos ser forçados a fazer. O segundo sentido da palavra coincide com o que alguns chamaram justiça distributiva, e com a justitia attributrix de Grotius, a qual consiste em beneficência, adequada, no uso conveniente do que é nosso, e na sua destinação aos propósitos de caridade ou generosidade a que, em nossa situação, é mais adequado destiná-lo. Nesse sentido, justiça compreende todas as virtudes sociáveis. Às vezes o termo justiça se emprega ainda em outro sentido, ainda mais amplo do que qualquer um dos anteriores, embora muito semelhante ao último; sentido que, até onde sei, também existe em todas as línguas. Nesse último sentido se diz que somos injustos quando não parecemos valorizar nenhum objeto particular com o grau de estima, ou buscá-lo com o grau de fervor que, aos olhos do espectador imparcial, revela merecer, ou é naturalmente adequado a suscitar. Assim, diz-se que cometemos injustiça contra um poema ou quadro se não os admiramos o bastante, e diz-se que lhes fazemos mais do que justiça quando os admiramos em demasia. Da mesma maneira, diz-se que cometemos injustiça contra nós mesmos se não nos mostramos atentos o suficiente para com algum objeto particular de nosso próprio interesse. Nesse último sentido, o que se chama justiça significa a mesma coisa que exata e perfeita conveniência de conduta e comportamento, e compreende não apenas as funções da justiça comutativa e distributiva, como de toda outra virtude, da prudência, coragem, temperança. É claramente nesse último sentido que Platão compreende o que chama justiça, e que, portanto, segundo ele, inclui a perfeição de toda espécie de virtude.

Essa é a descrição que Platão oferece da natureza da virtude, ou do temperamento do espírito que constitui objeto apropriado de louvor e aprovação. De acordo com o autor, consiste no estado de espírito em que toda a faculdade se confina à sua própria esfera, sem invadir nenhuma outra, e desempenha sua função apropriada com o grau preciso de força e vigor que lhe cabe. É evidente que sua descrição coincide em todos os aspectos com o que dissemos acima sobre a conveniência da conduta.

II. De acordo com Aristóteles, a virtude consiste no hábito da mediania, conforme a reta razão. Toda a virtude particular, segundo ele, reside numa espécie de meio entre dois vícios opostos, dos quais um ofende por ser excessivamente, outro por ser insuficientemente afetado por uma espécie particular de objeto. Assim, a virtude da fortaleza ou coragem reside no meio entre os vícios opostos de covardia e precipitação presunçosa, uma das quais ofende por ser excessivamente, outra por ser insuficientemente afetada pelos objetos de medo. Assim também a virtude da frugalidade reside no meio entre avareza e prodigalidade, uma das quais consiste num excesso, outra numa falta da atenção adequada aos objetos de interesse particular. Da mesma maneira, a magnanimidade reside num meio entre o excesso de arrogância e a falta de pusilanimidade, das quais uma consiste num sentimento demasiado extravagante, outra num sentimento demasiado fraco, de nosso próprio valor e dignidade. É desnecessário observar que essa descrição da virtude guarda uma correspondência bastante precisa com o que acima se disse a respeito da conveniência e inconveniência da conduta.

De acordo com Aristóteles, com efeito, a virtude não consistiria tanto nesses afetos moderados e corretos, como no hábito dessa moderação. A fim de compreender isso, deve-se observar que a virtude pode ser considerada quer como qualidade da ação, quer como qualidade da pessoa. Considerada como qualidade da ação, consiste, mesmo segundo Aristóteles, na razoável moderação do afeto de que procede essa ação, seja essa disposição habitual à pessoa ou não. Considerada como qualidade de uma pessoa, consiste no hábito dessa razoável moderação, em ter-se tornado disposição usual e costumeira do espírito. Assim, a ação que procede de um acesso ocasional de generosidade é sem dúvida uma ação generosa, mas o homem que a realiza não é necessariamente uma pessoa generosa, porque pode ser a única ação dessa espécie que já realizou. O motivo e disposição de coração a partir de que se realizou essa ação pode ter sido bastante justo e apropriado; mas, como esse estado de ânimo feliz parece ter sido antes efeito de humor acidental do que de qualquer coisa constante ou permanente no caráter, não pode refletir grande honra sobre o executor. Quando chamamos um caráter de generoso ou caridoso, ou virtuoso em qualquer aspecto, queremos dizer que a disposição expressa por cada um desses nomes é a disposição usual e costumeira da pessoa. Porém, ações isoladas de qualquer espécie, por mais apropriadas e adequadas, têm pouca relevância para mostrar que é esse o caso. Se uma só ação foi suficiente para marcar o caráter de qualquer virtude na pessoa que a realizou, o mais indigno dos homens poderia reclamar para si todas as virtudes, pois não existe homem que, em algumas ocasiões, não tenha agido com prudência, justiça, temperança e coragem. Ainda que ações isoladas, por mais louváveis que sejam, tragam pouco louvor à pessoa que as realiza, uma só ação viciosa, realizada por alguém cuja conduta é habitualmente muito regular, diminui grandemente, e por vezes destrói por inteiro, nossa opinião sobre sua virtude. Uma só ação dessa espécie mostra suficientemente que os seus hábitos não são perfeitos, e que se deve confiar menos nele do que, segundo a sua seqüência habitual de comportamento, seríamos capazes de imaginar.

Ademais, quando fez a virtude consistir em hábitos práticos, Aristóteles provavelmente tinha em vista opor-se à doutrina de Platão, o qual parece ser de opinião que sentimentos justos e juízos razoáveis quanto ao mais adequado a se fazer ou evitar bastavam para constituir a mais perfeita virtude. De acordo com Platão, a virtude poderia ser considerada como uma espécie de ciência, e nenhum homem poderia ver clara e demonstrativamente o certo e o errado, sem agir de acordo. A paixão poderia nos fazer agir contrariamente a opiniões duvidosas e incertas, não a julgamentos claros e evidentes. Aristóteles, ao contrário, era de opinião que nenhuma convicção do entendimento seria capaz de vencer hábitos inveterados, e que a boa moral não se devia ao conhecimento, mas à ação.

III. De acordo com Zenão, fundador da doutrina estóica, todo animal seria por natureza recomendado a seus próprios cuidados, e dotado do princípio do amor de si, para que se esforçasse em conservar não apenas a sua existência, como todas as diferentes partes de sua natureza, na melhor e mais perfeita condição de que seria capaz.

O amor de si do homem abarcaria, se assim posso dizer, o seu corpo e todos os seus diferentes membros, seu espírito e todas as suas diversas faculdades e poderes, e desejaria a conservação e manutenção de tudo isso em sua melhor e mais perfeita condição. Portanto, fosse o que fosse que tendesse a manter esse estado de existência, a natureza lhe indicaria como escolha adequada; e o que quer que tendesse a destruí-lo, ser-lhe-ia indicado como adequado para se recusar. Assim, saúde, força, agilidade e bem-estar do corpo, bem como as comodidades externas que os poderiam promover; riqueza, poder, honras, respeito e estima daqueles com quem vivemos, ser-nosiam naturalmente indicados como coisas desejáveis, cuja posse seria preferível à falta. De outro lado, doença, enfermidade, deformidade, dor física, bem como todos os incômodos externos que tendem a ocasionar ou intensificar qualquer uma delas, tal como pobreza, falta de autoridade, desprezo ou ódio daqueles com quem vivemos, da mesma maneira nos seriam indicados como coisas a serem afastadas e evitadas. Em cada uma dessas duas classes opostas, haveria objetos que se apresentariam, mais do que outros da mesma classe, como de escolha ou rejeição. Assim, na primeira classe, a saúde se mostraria evidentemente preferível à força, e a força à agilidade, reputação, preferível ao poder, e poder à riqueza. E assim também, na segunda classe, dever-se-ia evitar mais a doença do que deformidade do corpo, a ignomínia mais do que a pobreza, e a pobreza mais do que a perda de poder. Virtude e conveniência de conduta consistiriam em escolher e rejeitar todos os diferentes objetos e circunstâncias conforme a natureza os convertesse em objetos de menor ou maior escolha ou rejeição; em selecionar sempre, entre os diversos objetos de escolha que nos fossem apresentados, o que mais se deveria escolher, quando não os pudéssemos obter todos; e em selecionar ainda, entre os vários objetos de rejeição que nos fossem oferecidos, o que menos se deveria evitar, quando não estivesse em nosso poder evitar todos. Ao escolhermos e rejeitarmos com esse discernimento justo e acurado, ao atribuir desse modo a cada objeto o grau preciso de atenção que merecer, de acordo com a posição que ocupariam nessa escala natural de coisas, manteríamos, segundo os Estóicos, a perfeita retidão de conduta que constituiria a essência da virtude. Isso era o que chamavam viver harmoniosamente, viver segundo a natureza, e obedecer às leis e normas que a natureza ou o Autor da natureza prescrevera para nossa conduta.

Até aqui, a idéia estóica de conveniência e virtude não difere muito da de Aristóteles e dos antigos Peripatéticos.

Entre os objetos primários que a natureza nos recomendou como desejáveis, estaria a prosperidade de nossa família, de nossos parentes, de nossos amigos, nosso país, a humanidade, e do universo em geral. Além disso, a natureza nos teria ensinado que, assim como a prosperidade de dois era preferível à de um só, a de muitos, a de todos, deveria ser infinitamente mais preferível. Que nós seríamos apenas um e, conseqüentemente, sempre que nossa prosperidade fosse incoerente, quer com o todo, quer com qualquer parte significativa do todo, deveria dar lugar, até mesmo em nossa própria escolha, ao que foi tão amplamente preferível. Uma vez que todos os eventos deste mundo foram conduzidos pela providência de um Deus sábio, poderoso e bom, poderíamos ter certeza de que tudo o que ocorreu tendia para a prosperidade e perfeição do todo. Portanto, se nos atingisse a pobreza, a doença, ou qualquer outra calamidade, antes de tudo, deveríamos empenhar os nossos maiores esforços, tanto quanto permitissem a justiça e nosso dever para com outros, para fugir a essa desagradável circunstância. No entanto, se depois de tudo o que fizéssemos, viéssemos a descobrir que não haveria saída, deveríamos serenar, pois a ordem e perfeição do universo exigiram que entrementes continuássemos nessa situação. E como a prosperidade do todo até a nós deveria mostrar-se preferível à parte tão insignificante que somos, nossa situação, fosse qual fosse, deveria tornar-se, a partir desse momento, objeto de nosso agrado, caso mantivéssemos a completa conveniência e retidão de sentimento e conduta em que consistiria a perfeição de nossa natureza. Se, na verdade, surgisse alguma oportunidade de nos livrarmos, seria nosso dever abraçá-la. Seria evidente que a ordem do universo não mais exigia nossa permanência naquela situação, e o grande Diretor do mundo claramente nos convocaria a deixá-la, apontando com nitidez o rumo que devêssemos tomar. O mesmo ocorreria quando se tratasse da adversidade de nossos parentes, amigos e do nosso país. Sem violar alguma obrigação mais sagrada, se estivesse em nosso poder evitar ou liquidar sua calamidade, decerto nosso dever seria fazê-lo. A conveniência da ação, a regra que Júpiter nos dera para dirigirmos nossa conduta, evidentemente exigiria isso de nós. Mas, se tampouco isso estivesse em nosso poder, deveríamos então considerar esse evento como o mais afortunado que possivelmente teria ocorrido, porque estaríamos certos de que tendia mais para a prosperidade e ordem do todo – o que nós mesmos, se fôssemos sábios e equânimes, deveríamos desejar mais que tudo. Seria considerar nosso interesse final como parte desse todo, cuja prosperidade não deveria ser apenas o objeto principal, mas o único objeto de nosso desejo.

“Em que sentido”, diz Epíteto, “se diz que algumas coisas são conformes à nossa natureza, e outras contrárias? É no sentido em que nos consideramos separados e apartados de todas as outras coisas. Pois desse modo pode-se dizer que é conforme a natureza do pé estar sempre limpo. Mas se o consideras como um pé, e não algo apartado do resto do corpo, deve caber-lhe às vezes atolar-se na lama, às vezes pisar em espinhos, e às vezes ainda ser cortado para bem de todo o corpo; e caso se recuse a isso, não será mais um pé. Também assim deveríamos conceber o que nos diz respeito. O que és tu? – um homem. Se te consideras separado e apartado, é agradável à tua natureza viver até a velhice, ser rico e ter saúde. Mas se te consideras como um homem, e como parte de um todo, em razão desse todo às vezes te caberá ficar doente, às vezes ser exposto à inconveniência de uma viagem marítima, às vezes sofrer de carências, e por fim, talvez, morrer antes da hora. Então por que te queixas? Não sabes que, quando fazes isso, assim como o pé deixa de ser pé, deixas de ser homem?

Um homem sábio nunca se queixa do destino da Providência, nem julga que o universo é confuso quando ele mesmo está em desordem. Não se vê como um todo, separado e apartado de qualquer outra parte da natureza, que precisa ser cuidado por si e em si; vê-se à luz em que imagina que o grande gênio da natureza humana e do mundo o vê; introduz-se, se assim posso dizer, nos sentimentos desse Ser divino, e considera-se um átomo, uma partícula de um imenso e infinito sistema, de que se deve dispor segundo a conveniência do todo. Confiante na sabedoria que dirige todos os eventos da vida humana, seja qual for a sorte que lhe couber, aceitá-la-á com alegria e satisfação, pois, se conhecesse todas as relações e as dependências entre diferentes partes do universo, teria desejado essa mesma sorte. Seja esta a vida, está satisfeito de viver; seja esta a morte, uma vez que a natureza não mais deve ter necessidade de sua presença aqui, vai de boa vontade aonde lhe indicam. “Aceito”, disse um filósofo cínico cujas doutrinas eram, nesse aspecto, semelhantes às dos Estóicos, “aceito com igual alegria e satisfação qualquer fortuna que me couber – riqueza ou pobreza, prazer ou dor, saúde ou doença, tudo é igual; tampouco desejaria que os deuses de algum modo alterassem meu destino. Se lhes pudesse pedir algo além do que sua bondade já me concedeu, pediria que me informassem de antemão o que desejam fazer comigo, para que eu possa de bom grado colocar-me nessa situação, e demonstrar o contentamento com que abraço a sorte que me cabe.” “Se vou navegar”, diz Epíteto, “escolho o melhor navio e o melhor piloto, e aguardo, tanto quanto me permitirem minha situação e meu dever, o clima mais favorável. Prudência e conveniência, os princípios que os deuses me deram para dirigir minha conduta, exigem que eu faça isso, mas nada exigem além disso; e se, mesmo assim, advém uma tempestade a que nem a força do navio, nem a habilidade do piloto sejam capazes de resistir, não me deixo perturbar pelos efeitos. Tudo o que me era possível fazer já está feito. Os diretores de minha conduta nunca me ordenaram que fosse miserável, ansioso, desalentado ou amedrontado. Se nos afogaremos ou se chegaremos a um porto, é problema de Júpiter, não meu. Deixo-o inteiramente à sua determinação, nem interrompo o meu repouso considerando de que modo provavelmente decidirá, pois receberei o que vier com igual indiferença e segurança.”

Dessa perfeita confiança na benevolente sabedoria que governa o universo, e da completa resignação à ordem que essa sabedoria julgar adequado estabelecer, seguiria necessariamente que, para o sábio estóico, grande parte dos eventos da vida humana deveriam lhe ser indiferentes. Sua felicidade consistiria inteiramente, primeiro, na contemplação da felicidade e perfeição do grande sistema do universo, do bom governo da grande república de deuses e homens, de todos os seres racionais e sensatos; e, segundo, em desincumbir-se de seu dever, agir adequadamente nos assuntos dessa grande república, não se importando se tal sabedoria lhe atribuiu um pequeno papel. A conveniência ou inconveniência de seus esforços poderiam lhe ser de grande relevância. O êxito ou malogro desses esforços poderiam não ter relevância alguma – não poderiam suscitar apaixonada alegria ou dor, apaixonado desejo ou aversão. Se preferiu alguns eventos a outros, se algumas situações foram objetos de sua escolha e outros de sua rejeição, não foi porque considerasse que uns de algum modo eram melhores que outros, ou julgasse que sua própria felicidade seria mais completa na situação que se denomina afortunada que na considerada aflitiva, mas porque a conveniência da ação, a regra que os deuses lhe deram para dirigir sua conduta, exigiria que assim escolhesse e rejeitasse. Todos os seus afetos estariam absorvidos e engolfados em dois grandes afetos: no afeto relativo ao cumprimento de seu dever, e no que diz respeito à maior felicidade possível para todos os seres racionais e sensatos. Para satisfazer esse último afeto, abandonar-se-ia com a mais perfeita segurança à sabedoria e poder do grande Superintendente do universo. Sua única preocupação seria quanto à satisfação do primeiro, não quanto ao evento, mas quanto à conveniência de seus próprios esforços. Fosse qual fosse o evento, confiaria a um poder e sabedoria superiores promover o grande fim que ele mesmo tanto desejaria promover.

Uma vez familiarizados plenamente com a conveniência de se escolher ou de se rejeitar – ainda que tal conveniência nos seja originalmente indicada, como se recomendada e apresentada à nossa familiaridade pelas coisas e para o bem das coisas escolhidas ou rejeitadas –, a ordem, a graça, a beleza que discerníssemos nessa conduta, a felicidade que dela resultasse, necessariamente pareceria, aos nossos olhos, possuir valor muito superior ao da real obtenção de todos os diferentes objetos de escolha, ou ao da real aversão a todos os objetos de rejeição. Da observação dessa conveniência originou-se a felicidade e a glória; de negligenciá-la, a miséria e desgraça da natureza humana.

Mas para um homem sábio, alguém cujas paixões foram perfeitamente subjugadas pelos princípios que governam a sua natureza, a exata observação dessa conveniência seria igualmente fácil em todas as ocasiões. Na prosperidade, agradeceria a Júpiter por ter-lhe proporcionado circunstâncias fáceis de dominar, em que haveria pouca tentação de fazer o mal. Na adversidade, igualmente agradeceria ao diretor desse espetáculo da vida humana por ter-lhe oposto um vigoroso atleta, sobre quem a vitória seria mais gloriosa e igualmente certa embora provavelmente a disputa fosse mais violenta. Como se envergonhar dessa aflição, a nós causada sem que tenhamos cometido falha alguma, apesar de agirmos com perfeita conveniência? Portanto, nenhum mal existe, ao contrário, um imenso bem e proveito. Um homem corajoso exulta nos perigos em que, malgrado não se ter precipitado, a fortuna o envolvera. Tais perigos oferecem-lhe a oportunidade de praticar a intrepidez heróica, e nessa prática frui o exaltado deleite, que resulta da consciência de uma conveniência superior e de merecida admiração. Quem é senhor de todos os seus empenhos não tem aversão a medir sua força e atividade com o mais forte. E, da mesma maneira, quem é senhor de todas as suas paixões não teme nenhuma circunstância em que o Superintendente do universo possa julgar adequado colocá-lo. A generosidade desse Ser divino o proveu de virtudes que o tornam superior a toda situação. Se for prazer, possui temperança para se abster; se for dor, possui constância para suportá-la; se for perigo ou morte, possui magnanimidade e fortaleza para desprezá-los. Os eventos da vida humana nunca o encontrarão despreparado, ou confuso quanto a manter a conveniência de sentimento e conduta que, em seu próprio entendimento, constitui ao mesmo tempo sua glória e sua felicidade.

Aos Estóicos a vida humana apresentava-se como um jogo de grande habilidade, em que, porém, haveria uma mescla de acaso, ou do que se entende vulgarmente por acaso. Em tais jogos a aposta é comumente uma ninharia, e todo o prazer do jogo decorre de se jogar bem, de se jogar com lealdade e habilidade. Se, malgrado toda a sua habilidade, por influência do acaso sucedesse ao jogador perder, a perda deveria ser antes motivo de alegria do que de grave sofrimento. Não blefou; nada fez de que devesse envergonhar-se; saboreou inteiramente todo o prazer do jogo. Se, ao contrário, o mau jogador, malgrado todas as suas asneiras, igualmente vencer, seu êxito não pode lhe dar senão pouca satisfação. Mortifica-o a lembrança de todos os erros cometidos. Mesmo durante o jogo, é incapaz de saborear parte do prazer que este pode lhe proporcionar. Por ignorar as regras do jogo, cada uma de suas jogadas é quase sempre precedida de sentimentos desagradáveis, como medo, dúvida e hesitação, e comumente sucedida da mortificação por descobrir que nos lances cometera uma grande asneira, completando-se assim o círculo desagradável de suas sensações. Para os Estóicos, a vida humana, com todas as vantagens que possivelmente a acompanham, deveria ser considerada apenas como mera aposta de dois centavos – questão insignificante demais para merecer qualquer preocupação. Nossa única preocupação deveria dizer respeito não à aposta, mas ao método apropriado de se jogar. Se depositamos nossa felicidade em vencer a aposta, depositamo-la em algo que dependeria de causas que estariam acima de nosso poder, e fora de nosso controle. Necessariamente expusemo-nos a perpétuo medo e desconforto, e freqüentemente a decepções dolorosas e mortificantes. Se a depositamos em jogar bem, em jogar com lealdade, em jogar sábia e habilmente, na conveniência de nossa conduta, depositamo-la em algo que, com disciplina, educação e atenção apropriadas, poderia estar inteiramente em nosso poder, e sob nosso controle. Nossa felicidade estaria perfeitamente segura, além do alcance da fortuna. O evento de nossas ações, se estivesse fora de nosso poder, também estaria fora de nosso interesse, e nunca poderíamos sentir medo ou ansiedade por isso, e tampouco sofrer qualquer frustração dolorosa ou mesmo significativa.

A própria vida humana, bem como todas as diferentes vantagens ou desvantagens que a acompanhem, poderiam, diziam os Estóicos, ser objeto próprio ou de nossa escolha ou de nossa rejeição, de acordo com várias circunstâncias. Se em nossa situação real houvesse mais circunstâncias agradáveis do que contrárias à natureza – mais circunstâncias que fossem objetos de escolha do que de rejeição –, nesse caso a vida inteira seria objeto próprio de escolha, e a conveniência da conduta exigiria que permanecêssemos vivos. Se, de outro lado, em nossa situação real houvesse, sem nenhuma esperança provável de reparo, mais circunstâncias contrárias que agradáveis à natureza – mais circunstâncias que fossem objeto de rejeição do que de escolha –, a própria vida, nesse caso, se tornaria, para um homem sábio, objeto de rejeição, e não seria apenas livre para abandoná-la, como ainda a conveniência da conduta, a regra que os deuses lhe deram para dirigir sua conduta, lhe exigiria que assim fizesse. “Ordenam-me que não permaneça em Nicópolis”, diz Epíteto. “Não permaneço lá. Ordenam-me que não permaneça em Atenas. Não permaneço em Atenas. Ordenam-me que não permaneça em Roma. Não permaneço em Roma. Ordenam-me que permaneça na pequena e rochosa ilha de Gyarae. Vou e permaneço lá. Mas em Gyarae a casa é enfumaçada. Se a fumaça for moderada eu a suportarei e ficarei lá. Se for excessiva, irei a uma casa de onde nenhum tirano poderá me remover. Sempre me lembro de que a porta está aberta, de que posso sair quando quiser e recolher-me àquela casa hospitaleira que em todo o tempo está aberta; pois, além de minha miserável vestimenta, além do meu corpo, vivente algum tem poder sobre mim.” Se tua situação é em tudo desagradável – se tua casa é enfumaçada demais, diziam os Estóicos, sai por todos os meios, mas sai sem reclamar, murmurar ou lamentar-se. Sai calmo, satisfeito, alegre, agradecendo aos deuses, que, por sua bondade infinita, abriram o seguro e quieto porto da morte, sempre pronto para receber-nos do tempestuoso oceano da vida humana; que prepararam esse sagrado, esse inviolável, esse grande asilo, sempre aberto, sempre acessível – inteiramente além do alcance da ira e injustiça humana, e grande o bastante para abrigar todos os que desejam e os que não desejam recolher-se aí; um asilo que tira de todo homem qualquer pretensão de queixa, ou até de imaginar que possa haver qualquer mal na vida humana, exceto o que pode sofrer por sua própria loucura e fraqueza.

Nos poucos fragmentos de sua filosofia que chegaram até nós, os Estóicos por vezes falam em deixar a vida com tal graça, até mesmo com tal leviandade, que, se considerássemos essas passagens em si mesmas, poderiam induzir-nos a acreditar que imaginavam pudéssemos com conveniência deixá-la sempre que nos inspirasse, arbitrária e caprichosamente, o menor desgosto ou desconforto. “Quando ceias com tal pessoa”, diz Epíteto, “queixas-te das longas histórias que esta te conta sobre suas guerras da Mísia. ‘Então, meu amigo’, diz ela, ‘tendo-te narrado como tomei uma colina em tal lugar, conto-te agora como fui sitiado em tal lugar.’ Mas se não desejares ser incomodado com suas longas histórias, não aceita sua ceia. Se aceitares, não terás pretensão alguma de te queixares de suas longas histórias. Dá-se o mesmo com o que chamas os males da vida humana. Nunca te queixes de algo de que está sempre em teu poder livrar-se.” Malgrado essa graça e até mesmo essa leviandade de expressão, porém, a alternativa de deixar a vida ou permanecer nela seria, segundo os Estóicos, questão da mais grave e importante deliberação. Jamais deveríamos deixá-la antes de o poder superintendente, o qual originalmente nela nos colocou, claramente nos ter convocado. Deveríamos, entretanto, considerarmo-nos convocados não meramente no termo indicado e inevitável da vida humana. Sempre que a providência desse Poder superintendente tornasse toda nossa condição na vida objeto próprio de rejeição mais que de escolha, a grande regra que Ele nos dera para a direção de nossa conduta exigiria que a deixássemos. Dir-se-ia então que ouviríamos a voz respeitável e benevolente desse Ser divino, chamando-nos claramente a fazer isso.

Essa a razão por que, de acordo com os Estóicos, poderia constituir dever de um homem sábio abandonar a vida ainda que fosse perfeitamente feliz, ao passo que poderia constituir dever de um homem fraco continuar vivo, ainda que fosse necessariamente desgraçado. Se houvesse, na situação do homem sábio, mais circunstâncias que fossem objetos naturais antes de rejeição do que de escolha, toda situação se tornaria objeto de rejeição, e a regra que os deuses lhe deram para a direção de sua conduta exigiria que tal homem abandonasse a vida tão depressa quanto suas circunstâncias particulares tornassem conveniente. Estaria, porém, perfeitamente feliz, mesmo durante o tempo em que julgasse apropriado continuar vivo; colocaria sua felicidade não em obter os objetos de sua escolha ou em evitar os de sua rejeição, mas em escolher sempre, e sempre rejeitar, com exata conveniência; não no êxito, mas na adequação de seus esforços e de sua prática. Se na situação do homem fraco, ao contrário, houvesse mais circunstâncias que fossem objetos naturais antes de escolha do que de rejeição, toda sua situação se tornaria objeto apropriado de escolha, e seria seu dever continuar vivo. Seria, porém, infeliz, por ignorar como se valer das circunstâncias. Dessem-lhe as melhores cartas, e não saberia jogar, e não poderia usufruir de uma satisfação real, durante ou no fim do jogo, não importando como este terminasse.

Ainda que talvez os Estóicos, mais que outras seitas dos filósofos antigos, insistissem na eventual conveniência da morte voluntária, cuida-se de uma doutrina comum a todos eles, até mesmo aos pacíficos e indolentes Epicuristas. Durante a época em que floresceram os fundadores de todas as principais seitas da filosofia antiga, durante a Guerra do Peloponeso, e muitos anos após seu término, todas as diferentes repúblicas da Grécia se viram perturbadas internamente pelas mais furiosas facções, e envolvidas externamente nas mais sanguinárias guerras, em que cada uma buscava não apenas superioridade ou domínio, mas extirpar completamente todos os seus inimigos, ou, o que não era menos cruel, reduzi-los à mais vil de todas as condições – a escravidão doméstica –, vendendo-os, homem, mulher e filho, como cabeças de gado, pela melhor oferta do mercado. Ademais, a pequena dimensão da maioria desses Estados não tornava muito improvável que cada um deles sucumbisse à calamidade que com tanta freqüência, talvez até mesmo naquele momento, infligira ou ao menos tentara infligir a alguns de seus vizinhos. Nesse estado desordenado de coisas, a mais perfeita inocência, associada à mais elevada posição e aos maiores serviços públicos, não poderiam assegurar a um homem que, mesmo em casa e entre seus próprios parentes e concidadãos, a qualquer momento, pela prevalência de alguma facção hostil e enfurecida, não seria condenado ao castigo mais cruel e ignominioso. Se fosse feito prisioneiro de guerra, ou se a cidade de que era membro fosse conquistada, seria exposto, se possível, a ofensas e insultos ainda maiores. Mas todo homem naturalmente, ou antes necessariamente, familiariza sua imaginação com as aflições às quais prevê que sua situação freqüentemente o exponha. É impossível que um marujo não pense amiúde em tempestades e naufrágios, em afundar no mar, em como provavelmente se sentiria e como agiria em tais ocasiões. Seria igualmente impossível que um patriota ou herói grego não familiarizasse sua imaginação com todas as diversas calamidades a que, por sua situação, sabia-se exposto freqüente ou antes constantemente. Do mesmo modo como um selvagem da América prepara sua canção fúnebre e considera como agir se cair nas mãos dos inimigos, que o matarão sob as mais demoradas torturas e em meio a insultos e escárnio de todos os espectadores, um patriota ou herói grego não podia evitar de freqüentemente empregar seus pensamentos na consideração do que haveria de sofrer e fazer no exílio, no cativeiro, se fosse reduzido à escravidão, se o levassem ao cadafalso. Mas os filósofos de todas as diferentes seitas com muita justiça representavam a virtude, isto é, a conduta sábia, justa, firme e temperante, não apenas como o mais provável caminho para a felicidade – mesmo nesta vida –, como ainda a mais certa e infalível. Essa conduta, porém, nem sempre podia eximir quem a seguisse de todas as calamidades incidentes sobre a precária situação dos negócios públicos; e às vezes até mesmo o expusesse a tais calamidades. Esforçavam-se, portanto, para mostrar que a felicidade era inteiramente, ou pelo menos em grande medida, independente da fortuna; inteiramente, para os Estóicos, em grande medida, para os filósofos Acadêmicos e Peripatéticos. A conduta sábia, boa e prudente era, em primeiro lugar, a mais provável para assegurar êxito em toda espécie de empreendimentos; e, segundo, ainda que não alcançasse êxito, não deixaria o espírito sem consolo. O homem virtuoso poderia ainda usufruir a perfeita aprovação de seu próprio peito, e poderia ainda sentir que, por mais desfavoráveis que fossem as coisas de fora, dentro tudo era calmo, pacífico e harmonioso. Além disso, comumente poderia confortar-se com a certeza de possuir o amor e a estima de todo o espectador inteligente e imparcial, que não poderia deixar quer de admirar sua conduta, quer de lamentar seu infortúnio.

Ao mesmo tempo, tais filósofos se esforçaram para mostrar que os maiores infortúnios de que a vida humana era passível podiam ser mais facilmente tolerados do que se imaginava habitualmente. Esforçaram-se por assinalar os confortos que um homem poderia usufruir ainda se reduzido à pobreza, se forçado ao exílio, se exposto à injustiça do clamor popular, se labutasse, cego e surdo, no extremo da velhice, quando a morte se aproxima. Assinalaram também as considerações que poderiam contribuir para manter a constância sob as agonias da dor, até mesmo da tortura, na doença, no sofrimento – pela perda de filhos, pela morte de amigos e parentes, etc. Os poucos fragmentos que nos restam do que os antigos filósofos escreveram sobre esses temas formam, talvez, um dos mais instrutivos e interessantes legados da antiguidade. O valor e o vigor de suas doutrinas estabelecem um maravilhoso contraste com o tom desanimado, lamentoso e choroso de alguns sistemas modernos.

Assim, enquanto os filósofos antigos esforçavam-se para desse modo sugerir toda a consideração que, como diz Milton, poderia armar o peito empedernido com obstinada paciência, como se fora com três camadas de aço, laboravam para convencer seus seguidores de que acima de tudo não haveria nem poderia haver algum mal na morte; e que, se a qualquer momento a situação se tornasse tão difícil que a constância não mais a tolerasse, o remédio estaria à mão, a porta, aberta, e quando desejassem poderiam sair sem medo. Se não houvesse um mundo além deste, diziam, a morte não poderia ser um mal; e, se houvesse outro mundo, os deuses deveriam também estar lá, de modo que um homem justo não poderia temer mal algum enquanto estivesse sob sua proteção. Numa palavra, tais filósofos preparam uma canção fúnebre, se assim posso dizer, que os patriotas e heróis gregos poderiam usar nas ocasiões apropriadas; e, de todas as diferentes seitas, penso que devemos admitir que sem dúvida os Estóicos prepararam a canção de maior ânimo e valor.

No entanto, o suicídio não parece ter sido muito comum entre os gregos. À exceção de Clêmenes, não me recordo por ora de algum patriota ou herói bastante ilustre da Grécia que tenha morrido pela sua própria mão. A morte de Aristômenes é tão anterior ao período da verdadeira história quanto a de Ajax. A história comum da morte de Temístocles, embora se insira no período histórico, traz na face todas as marcas da mais romântica fábula. De todos os heróis gregos cujas vidas foram descritas por Plutarco, Clêmenes parece ter sido o único que pereceu dessa maneira. Terâmines, Sócrates e Fócio, a quem certamente não faltava coragem, suportaram a prisão e submeteram-se pacientemente à morte a que a justiça de seus concidadãos os condenou. O bravo Eumenes permitiu que seus próprios soldados amotinados o entregassem a seu inimigo Antígono, e deixaram-no morrer à míngua, sem que tentasse qualquer violência. O galante Filopêmen tolerou ser aprisionado pelos messênios, foi lançado numa masmorra, e supõe-se que tenha sido secretamente envenenado. Diz-se, com efeito, que vários filósofos teriam morrido dessa maneira, mas suas vidas foram descritas de maneira tão tola, que se deve pouquíssimo crédito à maior parte das histórias que contam sobre eles. Há três diferentes relatos da morte de Zenão, o Estóico. De acordo com o primeiro, depois de gozar por noventa e oito anos da mais perfeita saúde, sucedera a Zenão cair, quando saía de sua escola; e embora não sofresse outro dano, senão quebrar ou deslocar um de seus dedos, batia no solo com a mão, dizendo, conforme as palavras da Niobe, de Eurípides: “Estou indo, por que me chamas? ” e imediatamente foi para casa, e enforcou-se. Era de esperar que com essa idade avançada pudesse ter tido um pouco mais de paciência. Segundo um outro relato, na mesma idade, e como resultado de um acidente semelhante, Zenão deixara-se morrer de fome. O terceiro relato dá conta de que aos setenta e dois anos de idade Zenão morrera de morte natural – relato que é de longe o mais provável dos três, e que, ademais, está apoiado na autoridade de um contemporâneo, o qual tivera todas as oportunidades de estar bem informado: Perseu, originalmente escravo e depois amigo e discípulo de Zenão. O primeiro relato é dado por Apolônio de Tiro, que sobressaiu por volta da época de Augusto César, entre duzentos e trezentos anos após a morte de Zenão. Não conheço o autor do segundo relato. Apolônio, ele mesmo um Estóico, provavelmente julgou que morrer desse modo, por sua própria mão, honraria o fundador de uma seita que tanto falava em morte voluntária. Homens de letras, embora com freqüência sejam mais comentados depois da morte do que os maiores príncipes ou estadistas de seu tempo, geralmente em vida são tão obscuros e insignificantes, que raro os historiadores contemporâneos registram suas aventuras. Os historiadores de épocas posteriores, a fim de satisfazer a curiosidade pública, mas não dispondo de documentos autênticos que confirmassem ou contradissessem suas narrativas, parecem ter seguidamente urdido esses relatos conforme sua própria imaginação, quase sempre com uma grande mescla do fantástico. Nesse caso particular, o fantástico, ainda que não o confirme autoridade alguma, parece ter prevalecido sobre o provável, ainda que o confirme o melhor. Diógenes Laércio dá claramente preferência à história de Apolônio. Luciano e Lactâncio revelam, ambos, dar crédito à história da idade avançada e da morte violenta.

A voga da morte voluntária parece ter predominado mais entre os orgulhosos romanos do que entre os vivazes, engenhosos e obsequiosos gregos. Mesmo entre os romanos, a voga parece não ter-se estabelecido nos primeiros séculos da República, também chamados de séculos virtuosos. A história usual da morte de Régulo, embora seja provavelmente uma fábula, jamais poderia ter sido inventada, caso se supusesse que poderia recair qualquer desonra sobre esse herói, por submeter-se pacientemente às torturas que os cartagineses lhe teriam infligido. Nos séculos posteriores da República, entendo que alguma desonra se seguiria dessa submissão. Nas diferentes guerras civis que precederam a queda da república, muitos dos homens eminentes de todos os partidos em disputa preferiram perecer pelas próprias mãos a cair nas dos inimigos. A morte de Catão, celebrada por Cícero e censurada por César, tema de controvérsia muito séria entre talvez dois dos mais ilustres advogados a que o mundo jamais assistiu, imprimiu um caráter de esplendor nesse método de morrer, que este parece ter conservado por vários séculos depois. A eloqüência de Cícero era superior à de César. O partido dos que a admiravam prevaleceu grandemente sobre o dos que a censuravam, e os amantes da liberdade muitos séculos depois respeitavam Catão por ser o mais venerável mártir do partido republicano. “O líder de um partido”, observa o Cardeal de Retz, “pode fazer o que deseja, pois enquanto mantiver a confiança de seus amigos, jamais errará” – máxima cuja verdade Sua Eminência várias vezes teve a oportunidade de experimentar. Ao que parece, a suas outras virtudes Catão acrescentava a de ser um excelente amigo da bebida. Seus inimigos o acusavam de embriaguez, “mas”, diz Sêneca, “quem objetar esse vício a Catão descobrirá que é muito mais fácil provar como a embriaguez é uma virtude do que como Catão poderia ser dependente de qualquer vício”.

Sob os imperadores, esse método de morrer parece ter sido voga durante muito tempo. Nas epístolas de Plínio, encontramos um relato de várias pessoas que escolheram morrer dessa maneira mais por vaidade e ostentação, que por uma razão que se mostraria, inclusive ao sóbrio e judicioso Estóico, apropriada ou necessária. Mesmo as senhoras, que raramente ficam atrás em seguir a voga, parecem ter freqüentemente escolhido, da maneira mais desnecessária, morrer assim, e, a exemplo das damas de Bengala, em alguns casos acompanhar seus maridos até a tumba. O predomínio dessa voga certamente ocasionou muitas mortes que de outro modo não teriam ocorrido. No entanto toda a destruição que isso – talvez o mais extremo de todos os afãs de vaidade e impertinência humana – poderia provocar provavelmente nunca seria muito grande.

O princípio do suicídio, que nos ensinaria em certas ocasiões a considerar essa violenta ação como objeto de aplauso e aprovação, em tudo parece um refinamento da filosofia. A natureza, em sua condição perfeita e saudável, nunca parece nos incitar ao suicídio. Há, com efeito, uma espécie de melancolia (doença à qual a natureza humana, entre suas outras calamidades, está infelizmente sujeita), que parece vir acompanhada do que se pode chamar de um irresistível apetite para a autodestruição. Freqüentemente se tem notícia de que essa doença, a despeito de grande prosperidade externa, e até mesmo de sérios e profundamente inculcados sentimentos religiosos, conduziu suas desgraçadas vítimas a esse fatal extremo. Os infelizes que perecem dessa maneira miserável são objetos apropriados não de censura, mas de comiseração. Tentar punilos, quando estão além do alcance da punição humana, não é mais absurdo do que injusto. Tal punição só pode recair sobre os amigos e parentes que sobreviveram, os quais são sempre inteiramente inocentes, e para os quais a perda de seu amigo dessa maneira desgraçada deve sempre, por si só, ser uma pesadíssima calamidade. A natureza, em sua condição perfeita e saudável, incita-nos, em todas as ocasiões, a evitar a aflição; em muitas, a nos defendermos desta, ainda que com o risco, ou mesmo a certeza, de perecermos nessa defesa. Mas, quando fomos incapazes de nos defender da aflição, tampouco perecemos nessa defesa, nenhum princípio natural, nenhuma consideração pela aprovação do suposto espectador imparcial, do juízo do homem que nosso peito encerra, parece nos convocar para, destruindo-nos, escaparmos a essa aflição. Somente a consciência de nossa própria fraqueza, nossa própria incapacidade de suportar a calamidade com vigor e firmeza apropriadas, pode nos levar a essa resolução. Não me lembro de ter lido ou ouvido falar sobre algum selvagem americano que, após ser aprisionado por uma tribo hostil, tenha-se matado para evitar ser morto sob tortura, entre insultos e zombaria de seus inimigos. Para ele, a glória reside em suportar esses tormentos com vigor, e em tirar a desforra desses insultos com dez vezes mais desprezo e zombaria.

Porém, pode-se considerar esse desprezo pela vida e morte e, ao mesmo tempo, a mais completa submissão à ordem da Providência – o mais pleno contentamento com todo evento que a corrente dos assuntos humanos possivelmente poderia calcular –, como as duas doutrinas fundamentais sobre as quais repousa toda a estrutura da moral estóica. Epíteto, independente e audacioso, mas muitas vezes severo, pode ser considerado o grande apóstolo da primeira dessas doutrinas – o brando, humano e benevolente Antonino, o da segunda.

O escravo emancipado de Epafridito, que em sua juventude estivera sujeito à insolência de um senhor brutal, que na idade adulta, por ciúme e capricho de Domiciano, fora banido de Roma e Atenas e obrigado a morar em Nicópolis; e que, pelo mesmo tirano, poderia ser a qualquer momento mandado a Gyarae, ou talvez assassinado, apenas pôde conservar sua tranqüilidade porque nutria em seu espírito o mais soberano desprezo pela vida humana. Nunca exulta demasiadamente, e por isso sua eloqüência jamais é tão vivaz como quando representa a futilidade e insignificância de todos os prazeres e sofrimentos da vida.

O imperador de boa índole, soberano absoluto de toda a parte civilizada do mundo, o qual certamente não tinha uma razão especial para reclamar da porção que lhe coubera, delicia-se em expressar seu contentamento com o curso ordinário das coisas, e em apontar belezas mesmo nas partes em que observadores vulgares são incapazes de ver alguma. “Existe uma conveniência e até uma graça cativante”, observa ele, “tanto na idade avançada, bem como na juventude, e a fraqueza e decrepitude de uma são tão adequadas à natureza como a florescência e vigor da outra. Ademais, a morte é apenas o fim apropriado da velhice do mesmo modo como a juventude é da infância, ou a idade adulta da juventude.” “Assim como freqüentemente dizemos”, comenta, em outra ocasião, “que o médico prescreve a tal homem que ande a cavalo, a outro, que tome banho frio, ou ande descalço, também deveríamos dizer que a natureza, grande condutor e médico do universo, prescreve para esse homem uma enfermidade, ou a amputação de um membro, ou a perda de um filho. Pelas prescrições de médicos comuns, o paciente engole muita poção amarga, sofre muita operação dolorosa. Porém, na esperança bastante incerta de que isso tenha como conseqüência a saúde, submete-se de bom grado a tudo. Da mesma maneira, o paciente pode ter esperança de que as mais severas prescrições do grande Médico da natureza contribuirão para a sua saúde, sua prosperidade e felicidade finais; e pode estar inteiramente seguro de que não apenas contribuem, mas são indispensáveis para a saúde, prosperidade e felicidade do universo, para a promoção e avanço do grande plano de Júpiter. Não fosse assim, o universo jamais as teria produzido; seu Arquiteto e seu Condutor onisciente jamais teria permitido que ocorressem. Assim, todas, mesmo as menores partes coexistentes do universo, estão perfeitamente adaptadas umas às outras, e todas contribuem para compor um sistema imenso e coerente; do mesmo modo, todos, mesmo aparentemente os mais insignificantes dos sucessivos eventos que resultam um do outro, são partes, e partes necessárias, da grande cadeia de causas e efeitos que não teve começo, e que não terá fim; e, como todos resultam necessariamente da disposição e trama originais do todo, são todos essencialmente necessários, não apenas para prosperidade desse todo, mas para sua continuação e conservação. Quem não abraça cordialmente tudo o que lhe sucede, quem lamenta isso lhe ter sucedido, quem deseja que isso não lhe tivesse sucedido, deseja, na medida de suas forças, parar o movimento do universo, romper a grande cadeia de sucessão – por cujo progresso unicamente tal sistema pode continuar e conservar-se –, e deseja, por causa de um pequeno conforto privado, perturbar e decompor toda a máquina do mundo.” “Oh, mundo”, diz em outra passagem, “todas as coisas que me convêm são as que te convêm. Nada é muito cedo ou muito tarde para mim se for oportuno para ti. Tudo é fruto para mim, se trazido pela tua estação. De ti vêm todas as coisas; em ti estão todas as coisas; para ti todas as coisas são. Um homem diz, Ah, amada cidade de Cecropes! Não dirás, Oh, amada cidade de Deus?”

Dessas doutrinas muito sublimes, os Estóicos, ou pelo menos alguns deles, tentaram deduzir todos os seus paradoxos.

O sábio estóico esforçou-se por partilhar dos prospectos do grande Superintendente do universo, e ver as coisas à mesma luz em que esse Ser divino as contemplaria. Para o grande Superintendente do universo, no entanto, todos os diferentes eventos que o curso da Sua providência pode produzir, os que para nós parecem os maiores e os menores, a explosão de uma bolha, como diz o Sr. Pope, e a de um mundo, por exemplo, seriam perfeitamente iguais, igualmente partes da grande cadeia que Ele predestinara desde toda a eternidade, igualmente efeitos da mesma infalível sabedoria, da mesma universal e ilimitada benevolência. Da mesma maneira, para o sábio estóico, todos esses diferentes eventos seriam perfeitamente iguais. No curso desses eventos, com efeito, um pequeno departamento, o qual ele próprio tinha pouco poder de dirigir e administrar, fora-lhe destinado. Nesse departamento se esforçaria por agir da maneira mais apropriada possível, e conduzir-se de acordo com as ordens que entendia lhe teriam prescrito. Mas não cultivaria um interesse preocupado ou passional quer pelo êxito, quer pela frustração de seus mais fiéis esforços. A maior prosperidade e a completa destruição desse pequeno departamento, desse pequeno sistema que de algum modo fora confiado à sua custódia, seriam perfeitamente indiferentes a ele. Se tais eventos dependessem dele, teria escolhido um, e rejeitado outro; mas, como dele não dependessem, acreditaria numa sabedoria superior, e estaria perfeitamente satisfeito, pois o evento produzido, fosse qual fosse, seria igual ao que ele mesmo teria desejado, grave e devotadamente se conhecesse todas as relações e dependências das coisas. Tudo o que fizesse sob a influência e direção desses princípios seria igualmente perfeito; e se estendesse o dedo para dar o exemplo de que comumente faziam uso, realizaria uma ação em todos os aspectos tão meritória, tão digna de louvor e admiração, como quando pusera sua vida a serviço do país. Do mesmo modo como para o grande Superintendente do universo os maiores e menores esforços do seu poder, a formação e dissolução do mundo, a formação e dissolução de uma bolha, seriam igualmente fáceis, igualmente admiráveis, e igualmente efeitos da mesma divina sabedoria e benevolência, para o sábio estóico, o que chamaríamos a grande ação não exigiria mais esforço do que a pequena, seria igualmente fácil, procederia exatamente dos mesmos princípios, não seria mais meritória, em nenhum aspecto, nem digna de maior grau de louvor e admiração.

Todos os que alcançaram esse estado de perfeição seriam igualmente felizes, assim como todos os que no menor aspecto fracassaram, não importa o quanto se tenham aproximado de tal estado, seriam igualmente miseráveis. Assim como o homem que estivesse apenas uma polegada abaixo da superfície da água não respiraria mais que o que estivesse cem jardas abaixo, diziam, o homem que não subjugasse inteiramente todas as suas paixões privadas, parciais e egoístas; que não possuísse outro desejo determinado senão o da felicidade universal; que não emergisse completamente do abismo de miséria e desordem em que o lançara sua ansiedade para saciar essas paixões privadas, parciais e egoístas, não poderia respirar mais o ar puro da liberdade e independência, e tampouco usufruir mais a segurança e felicidade do homem sábio, do que quem estivesse mais distante dessa condição. Assim como todas as ações do homem sábio seriam perfeitas, e igualmente perfeitas, todas as ações do homem que não atingira essa suprema sabedoria seriam falhas, e, segundo pretendiam alguns dos Estóicos, igualmente falhas. Assim como uma verdade, diziam eles, não poderia ser mais verdadeira, nem uma falsidade mais falsa que outra, uma ação honrosa não poderia ser mais honrosa, nem uma ação vergonhosa mais vergonhosa do que outra. Assim como, ao atirar contra um alvo, o homem que errasse por uma polegada erraria tanto como o que errara por cem jardas, o homem que, na ação que nos parece a mais insignificante, agisse de maneira imprópria e sem razão suficiente falharia tanto como o que praticasse, aos nossos olhos, a ação mais importante; por exemplo, o homem que, de maneira imprópria e sem razão suficiente, matasse um galo erraria tanto como o que assassinasse seu pai.

Se o primeiro dos dois paradoxos se mostra suficientemente grave, o segundo é claramente demasiado absurdo para merecer qualquer consideração séria. Na verdade, é tão absurdo que é impossível não suspeitar de que deva ter sido, em alguma medida, mal compreendido ou mal apresentado. Seja como for, não posso me permitir acreditar que Zenão ou Cleantes, homens, segundo se diz, cuja eloqüência era tão simples quanto sublime, pudessem ser os autores desses ou da maioria dos paradoxos estóicos, os quais são em geral meros sofismas impertinentes, e honram tão pouco o seu sistema, que não os descreverei mais. Inclino-me a imputá-los antes a Crisipo, de fato discípulo e seguidor de Zenão e Cleantes, embora, considerando tudo o que nos foi transmitido a seu respeito, pareça ter sido apenas um dialético pedante, sem nenhum gosto ou elegância. Crisipo pode ter sido o primeiro a reduzir suas doutrinas a um sistema escolástico ou técnico de definições, divisões e subdivisões artificiais – talvez um dos mais eficientes expedientes para extinguir todo grau de bom-senso que possa haver em alguma doutrina moral ou metafísica. Pode-se supor facilmente que tal homem compreendesse de maneira excessivamente literal algumas expressões vivazes de seus mestres, descrevendo a felicidade do homem de virtude perfeita, e a infelicidade de todo que carecesse de tal caráter.

Os Estóicos em geral parecem admitir que poderia haver um grau de proficiência nos que não lograssem promover a perfeita virtude e felicidade. Distribuíram esses proficientes em diferentes classes, segundo o grau de seu progresso, e chamaram as virtudes imperfeitas que os supunham capazes de exercer não de retidões, mas de propriedades, adequações, atos decentes e convenientes, para os quais se poderia atribuir uma razão plausível ou provável, o que Cícero expressa com o termo latino officia, e Sêneca, penso que com mais exatidão, com o de convenientia. A doutrina das virtudes imperfeitas, mas atingíveis, parece ter constituído o que podemos chamar de moralidade prática dos Estóicos. É esse o assunto dos Ofícios de Cícero, e seria também, segundo se diz, de outro livro, escrito por Marco Bruto, mas que se perdeu.

O plano e sistema que a natureza esboçou para nossa conduta parece ser inteiramente distinto daquele da filosofia estóica.

Por natureza, os eventos que afetam imediatamente o pequeno departamento em que nós mesmos possuímos alguma administração e direção, que afeta imediatamente a nós, a nossos amigos, nosso país, são os eventos que mais nos interessam, e que principalmente suscitam nossos desejos e aversões, nossas esperanças e medos, nossas alegrias e tristezas. Fossem essas paixões demasiado veementes – o que aliás tendem a ser em grande medida –, a natureza providenciaria um remédio e correção apropriados. A presença real ou até imaginária do espectador imparcial, a autoridade do homem dentro do peito, está sempre disponível para as sujeitar ao tom e temperamento de moderação apropriados.

Se, malgrado nossos mais fiéis esforços, todos os eventos que podem afetar esse pequeno departamento provassem ser os mais infelizes e desastrosos, a natureza de modo algum nos deixaria sem consolo. Este pode ser retirado não apenas da completa aprovação do homem que nosso peito encerra, mas, se possível, de um princípio ainda mais nobre e generoso – de uma firme confiança na e de uma submissão reverente à sabedoria benevolente que dirige todos os eventos da vida humana, a qual, podemos estar certos, jamais toleraria que esses infortúnios ocorressem se não fossem indispensáveis ao bem do todo.

A natureza não nos prescreveu essa sublime contemplação como o grande negócio e ocupação de nossas vidas. Apenas no-la indica como consolo de nossos infortúnios. É a filosofia estóica que a prescreve como o grande negócio e ocupação de nossas vidas. Tal filosofia nos ensina a não nos interessarmos determinada e ansiosamente por nenhum evento exterior à boa disposição de nossos espíritos e à conveniência de nossa própria escolha e rejeição, salvo por aqueles que dizem respeito a um departamento onde não temos, nem deveríamos ter, nenhuma espécie de administração ou direção – o departamento do grande Superintendente do universo. Pela perfeita apatia que essa filosofia nos prescreve, por esforçar-se não apenas por moderar, mas por erradicar todos os nossos afetos privados, parciais e egoístas, por impedir-nos de sentir por tudo que nos possa ocorrer, nossos amigos, nosso país, sequer as solidárias e reduzidas paixões do espectador imparcial, empenha-se em nos tornar inteiramente indiferentes e desinteressados quanto ao êxito ou fracasso de todas as coisas que a natureza nos prescreveu como negócio e ocupação apropriados de nossas vidas.

Pode-se dizer que os raciocínios da filosofia, embora possam confundir e deixar perplexo o entendimento, jamais podem romper a conexão necessária que a natureza estabeleceu entre as causas e seus efeitos. As causas que naturalmente suscitam nossos desejos e aversões, nossas esperanças e medos, nossas alegrias e tristezas, apesar de todos os raciocínios do Estoicismo, certamente produziriam em cada indivíduo, segundo o grau de sua sensibilidade real, seus efeitos apropriados e necessários. Os juízos do homem que o peito encerra, porém, poderiam ser bastante afetados por esses raciocínios, e poderiam ensinar esse grande inquilino a tentar impor a todos os nossos afetos privados, parciais e egoístas uma tranqüilidade mais ou menos perfeita. Orientar os juízos desse inquilino é o grande propósito de todos os sistemas de moralidade. Está fora de dúvida que a filosofia estóica exerceu enorme influência sobre o caráter e conduta de seus seguidores, e, embora às vezes os possa incitar a uma violência desnecessária, que sua tendência geral foi estimulá-los às ações da mais heróica magnanimidade e da mais ampla benevolência.

IV. Há, além desses sistemas antigos, alguns modernos, segundo os quais a virtude consiste na conveniência, ou na adequação do afeto por que agimos à causa ou objeto que os suscita. Há o sistema do Dr. Clark, que faz a virtude residir em agir segundo as relações das coisas, em regular nossa conduta segundo a adequação ou incongruência que possa haver na aplicação de certas ações a certas coisas, ou a certas relações; ou do Sr. Woollaston, que a faz residir em agir segundo a verdade das coisas, segundo sua natureza e essência apropriadas, ou em tratá-las como o que realmente são, e não como o que não são; e o sistema de milorde Shaftesbury, que a faz residir em manter um equilíbrio apropriado dos afetos, e não permitir a nenhuma paixão que exceda sua esfera apropriada. Todos esses sistemas são descrições mais ou menos imprecisas da mesma idéia fundamental.

Nenhum desses sistemas oferece ou sequer pretende oferecer qualquer medida precisa ou distinta pela qual essa adequação ou conveniência do afeto possa ser averiguada ou julgada. Tal medida precisa e distinta não pode ser encontrada em parte alguma, senão nos sentimentos solidários do espectador imparcial e bem-informado.

Além disso, na medida do possível, a descrição da virtude que cada um desses sistemas oferece ou pelo menos pretende oferecer – pois alguns dos autores modernos não são muito felizes em seu modo de se expressar – é sem dúvida bastante justa. Não há virtude sem conveniência, onde quer que haja conveniência, algum grau de aprovação será devido. Ainda assim essa descrição é imperfeita. Pois ainda que a conveniência seja um ingrediente essencial em toda ação virtuosa, nem sempre é o único. Ações beneficentes têm entre si outra qualidade pela qual parecem não apenas merecer aprovação, como também recompensa. Nenhum desses sistemas explica de modo fácil ou suficiente o grau superior de estima que parece devido a tais ações, ou a diversidade de sentimento que naturalmente suscitam. Tampouco a descrição do vício é mais completa. Pois, da mesma maneira, ainda que a inconveniência seja um ingrediente necessário em toda ação viciosa, nem sempre é o único; e não raro há o mais alto grau de absurdo e inconveniência nos atos mais inofensivos e insignificantes. Ações deliberadas, de tendência perniciosa para quem vive conosco, possuem além de sua inconveniência, uma qualidade particular, pela qual se mostram merecedoras não apenas de desaprovação, como de punição, e ademais objetos não apenas de desgosto, como de ressentimento e vingança. Nenhum desses sistemas explica de modo fácil e suficiente o grau superior de abominação que sentimos por tais ações.


 
CAPÍTULO II Dos sistemas que fazem a virtude consistir na prudência
O mais antigo dos sistemas que fazem a virtude consistir na prudência, e de que chegaram a nós alguns resquícios consideráveis, é o de Epicuro, de quem se diz, porém, que teria pego de empréstimo todos os princípios dominantes de sua filosofia a alguns de seus antecessores, especialmente a Aristipo. Mas, apesar dessa alegação de seus inimigos, é muito provável que pelo menos a maneira de aplicar esses princípios fosse inteiramente própria de Epicuro.

De acordo com Epicuro, o prazer e a dor do corpo seriam os únicos objetos fundamentais de desejo e aversão naturais. Que tais seriam sempre os objetos naturais dessas paixões, julgava desnecessário provar. Poder-se-ia dar a impressão, com efeito, de que às vezes se evitaria o prazer, não, entretanto, por se tratar de prazer, mas porque ao usufruirmo-lo perderíamos o direito a um prazer maior, ou nos exporíamos a alguma dor, a qual deveríamos evitar mais do que desejar esse prazer. Da mesma maneira, às vezes se poderia dar a impressão de que a dor seria desejável, não, porém, por se tratar de dor, mas porque ao suportarmo-la poderíamos evitar uma dor maior, ou obter algum prazer muito mais intenso. Que a dor e o prazer do corpo, portanto, fossem sempre os objetos naturais de desejo e aversão, Epicuro considerava demasiado evidente. E não julgava menos evidente que fossem os únicos objetos fundamentais dessas paixões. Tudo o mais que se desejasse ou se evitasse seria, de acordo com Epicuro, por conta de sua tendência a produzir uma ou outra dessas sensações. A tendência a obter prazer tornaria desejáveis a riqueza e o poder, assim como a tendência contrária a produzir dor tornaria a pobreza e a insignificância objetos de aversão. Honra e reputação seriam valorizados porque a estima e amor daqueles com quem vivemos teriam extrema relevância, seja para obter prazer, seja para nos defender da dor. Ignomínia e infâmia, ao contrário, deveriam ser evitados, porque o ódio, desprezo e ressentimento daqueles com quem vivemos destruiriam toda a segurança, e necessariamente nos exporiam a grandes males corpóreos.

De acordo com Epicuro, todos os prazeres e dores do espírito derivariam fundamentalmente dos prazeres e dores do corpo. O espírito ficaria feliz ao pensar nos prazeres passados do corpo, e esperaria que outros também viessem; e ficaria infeliz ao pensar nas dores que o corpo suportara anteriormente, e temeria dores iguais ou maiores no porvir.

No entanto, embora derivassem fundamentalmente dos prazeres e dores do corpo, os do espírito seriam muito mais intensos que seus originais. O corpo teria apenas a sensação do instante presente, ao passo que o espírito sentiria também o passado e o futuro, um, por lembrança, o outro, por antecipação, e conseqüentemente ambos sofreriam e usufruiriam muito mais. Quando estamos sob intensa dor física, observou Epicuro, sempre descobrimos, se atentamos a isso, que não é o sofrimento do instante presente o que principalmente nos atormenta, mas a lembrança agonizante do passado, ou o terror ainda mais terrível do futuro. Tomada em si mesma, e isolada de tudo o que vem antes e segue depois dela, a dor de cada instante é uma banalidade indigna de consideração. Pode-se afirmar, porém, que é tudo o que o corpo já sofreu. Da mesma maneira, quando usufruímos um grande prazer, sempre descobrimos que a sensação do corpo, a sensação do instante presente, é apenas uma pequena parte de nossa felicidade. Nosso prazer se origina principalmente da alegre recordação do passado, ou da antecipação ainda mais jubilosa do futuro, de modo que sempre vem do espírito a maior contribuição para o divertimento.

Uma vez que nossa felicidade e desgraça dependeriam, portanto, principalmente do espírito, se essa parte de nossa natureza estivesse bem disposta, se nossos pensamentos e opiniões fossem o que deveriam ser, pouco importaria a maneira como nosso corpo seria afetado. Embora sob grande dor física, poderíamos ainda usufruir considerável parcela de felicidade, se nossa razão e juízo mantivessem sua superioridade. Poderíamos nos entreter com a recordação do passado e com as esperanças de prazer futuro; poderíamos abrandar o rigor de nossas dores, recordando o que, mesmo nessa situação, fomos obrigados a suportar. Pensaríamos então que essa era apenas corpórea, uma dor do instante presente, a qual por si mesma nunca poderia ser muito grande; que toda a agonia sofrida em face do horror a que a dor prosseguisse fora efeito de uma opinião do espírito, a qual poderia ser corrigida por sentimentos mais justos, pela consideração de que, caso nossas dores fossem violentas, provavelmente seriam de curta duração; e, caso fossem prolongadas, provavelmente seriam moderadas, e permitiriam vários intervalos de bem-estar; e, de qualquer maneira, que estaria sempre à mão, pronta para nos aliviar, a morte, a qual segundo Epicuro, por extinguir toda a sensação, fosse de dor ou de prazer, não poderia ser considerada como um mal. Dizia ele que, quando nós somos, a morte não é, e quando a morte é, nós não somos; por essa razão, a morte nada pode ser para nós.

Se em si mesma a sensação real de dor positiva deveria ser tão pouco temida, a do prazer deveria ser ainda menos desejada. Naturalmente a sensação de prazer seria muito menos pungente do que a de dor. Se, por conseguinte, essa última poderia roubar tão pouco da felicidade de um espírito bem-disposto, a outra dificilmente podia lhe acrescentar alguma coisa. Quando o corpo estivesse livre de dor e o espírito, de medo ou ansiedade, a sensação acrescida de prazer corpóreo poderia ter pouca importância; e embora pudesse diversificar, não poderia propriamente aumentar a felicidade dessa situação.

No bem-estar do corpo e na segurança ou tranqüilidade do espírito consistiria, pois, de acordo com Epicuro, o mais perfeito estado da natureza humana, a mais completa felicidade que o homem seria capaz de usufruir. Obter essa grande finalidade do desejo natural seria o único objeto de todas as virtudes, as quais, ainda segundo Epicuro, não seriam desejáveis por si sós, mas por sua tendência a causar essa situação.

Por exemplo, embora para essa filosofia a prudência seja causa e princípio de todas as virtudes, não seria desejável por sua própria conta. O estado de espírito cuidadoso, laborioso e circunspecto, sempre alerta e sempre atento às mais distantes conseqüências de cada ação, seria prazeroso ou agradável não por si mesmo, mas por sua tendência a promover o maior bem, e manter afastado o maior mal.

Ademais, abster-se do prazer, controlar e restringir nossas paixões naturais pelo deleite, o que estaria a cargo da temperança, jamais poderia ser desejável por si. Todo o valor dessa virtude resultaria de sua utilidade, de nos capacitar a adiar o deleite presente em benefício de outro maior que viria, ou de evitar uma dor maior que poderia sobrevir-lhe. Em suma, a temperança nada seria senão prudência relativa ao prazer.

Suportar o trabalho, tolerar a dor, ser exposto a perigo ou morte, situações em que a firmeza com freqüência nos conduziria, seriam certamente menos ainda objetos de desejo natural. Apenas para evitar males maiores as escolheríamos. A submissão ao trabalho teria como propósito evitar vergonha e dor maiores que a da pobreza, e nos exporíamos ao perigo e à morte em defesa de nossa liberdade e propriedade, meios e instrumentos de prazer e felicidade, ou em defesa de nosso país, cuja segurança necessariamente compreenderia a nossa própria. A firmeza nos tornaria capazes de fazer tudo isso com alegria, como o melhor a fazer em nossa situação presente, e nada mais seria, na realidade, do que prudência, bom juízo e presença de espírito ao apreciar adequadamente a dor, o trabalho e o perigo, sempre escolhendo o menor para evitar o maior.

O mesmo ocorre com a justiça. Abster-se do que é de outro não seria desejável por sua própria conta, pois certamente para ti não seria melhor que eu possuísse o que é meu, do que tu o possuísses. Deves, contudo, abster-te de tudo o que me pertence, porque do contrário provocarás o ressentimento e indignação dos homens. A segurança e a tranqüilidade de teu espírito serão inteiramente destruídas. Ficarás tomado de medo e consternação ao pensares no castigo que, imaginarás, os homens estão sempre prontos a te infligir, e do qual nenhum poder, nenhuma arte, nenhum segredo, jamais bastará, em tua própria imaginação, para proteger-te. A outra espécie de justiça, que consiste em oferecer préstimos adequados a diferentes pessoas, segundo as várias relações que vizinhos, parentes, amigos, benfeitores, superiores ou iguais possam ter conosco, é recomendada pelas mesmas razões. Agir adequadamente em todas essas diferentes relações granjeia-nos a estima e amor dos que conosco vivem, assim como agir de modo inverso suscita seu desdém e ódio. Por meio da primeira ação naturalmente asseguramos nosso próprio bem-estar e tranqüilidade, objetos fundamentais de nossos desejos; por meio da segunda, necessariamente pomos tais objetos em risco. Portanto, a virtude da justiça, a mais importante das virtudes, nada mais é do que a conduta judiciosa e prudente com relação a nosso próximo.

Tal é a doutrina de Epicuro quanto à natureza da virtude. Pode parecer extraordinário que esse filósofo, descrito como pessoa das mais amáveis maneiras, jamais observasse que, seja qual for a tendência dessas virtudes ou dos vícios contrários relativos a nosso bem-estar e segurança físicos, os sentimentos que naturalmente suscitam em outros são objetos de um desejo ou aversão muito mais passionais do que todas as suas outras conseqüências; que, para o espírito bem-disposto, mais vale ser amável, respeitável, ser objeto apropriado de estima do que todo o bem-estar e segurança que o amor, respeito e estima podem nos granjear; que, ao contrário, é mais terrível ser odioso, desprezível, ser objeto apropriado de indignação, do que tudo o que podemos sofrer em nosso corpo em decorrência de ódio, desprezo e indignação; e, conseqüentemente, que nosso desejo por um caráter e nossa aversão pelo outro não podem se originar de uma consideração dos efeitos que cada um deles provavelmente produzirá em nosso corpo.

Sem dúvida, esse sistema é em tudo inconsistente com o que me esforcei por demonstrar. Não é difícil, porém, descobrir de que fase, se assim posso dizer, de que visão particular ou aspecto da natureza essa descrição das coisas deriva sua probabilidade. Pela sábia invenção do Autor da natureza, a virtude é em todas as ocasiões ordinárias, mesmo as relativas a esta vida, uma sabedoria real, e o meio mais certo e imediato de obter segurança e vantagem. Nosso êxito ou malogro em nossas empresas devem depender grandemente da boa ou má opinião que comumente cultivam a nosso respeito e da disposição geral dos que conosco convivem, seja para nos ajudar, seja para se oporem a nós. Mas o melhor meio, o mais seguro, mais fácil e mais imediato de conquistarmos os juízos vantajosos de outros, evitando os desfavoráveis, é certamente tornarmonos objetos apropriados dos primeiros, e não dos últimos. “Desejas”, disse Sócrates, “a reputação de bom músico? O único meio seguro de obtê-la é tornar-se um bom músico. Da mesma maneira, desejarias ser considerado capaz de servir ao seu país como general ou estadista? Também nesse caso o melhor meio é adquirir realmente a arte e experiência da guerra e do governo, e tornar-se realmente apto a ser general ou estadista. E, da mesma maneira, se queres que te suponham sóbrio, temperante, justo e equânime, o melhor meio de adquirir essa reputação é tornar-se sóbrio, temperante, justo e equânime. Se podes realmente tornar-te amável, respeitável e apropriado objeto de estima, não temas, pois em breve obterás o amor, o respeito e a estima daqueles com quem vives.” Uma vez que a prática da virtude é, portanto, geralmente tão vantajosa, e a do vício tão contrária ao nosso interesse, a consideração dessas tendências opostas indubitavelmente imprime beleza e conveniência adicionais numa, e uma renovada deformidade e inconveniência na outra. Temperança, magnanimidade, justiça e beneficência, vêm a ser assim aprovadas, não apenas por seus próprios caracteres, mas pelo caráter adicional da mais elevada sabedoria e mais verdadeira prudência. E, da mesma maneira, os vícios contrários da intemperança, pusilanimidade, injustiça e malevolência ou egoísmo sórdido, são desaprovados não apenas por seus caracteres próprios, mas pelo caráter adicional da mais míope insensatez e fraqueza. Em toda virtude, Epicuro revela ter atentado unicamente a essa espécie de conveniência. É o que mais tende a ocorrer aos que se empenham em persuadir outros à regularidade de conduta. Quando os homens, por intermédio de sua prática, e talvez também de suas máximas, claramente mostram que a beleza natural da virtude não exerce, provavelmente, muito efeito sobre eles, como é possível comovê-los, senão representando a insensatez de sua conduta, e o quanto eles próprios acabarão por fim sofrendo por ela?

Acumulando todas as virtudes sob essa conveniência, Epicuro permitiu, ademais, uma propensão – natural a todos os homens, embora os filósofos sejam particularmente capazes de a cultivar com especial afeição, por ser o grande meio de exibir sua inventividade – a explicar todas as aparições, partindo do menor número possível de princípios. E sem dúvida permitiu que essa propensão fosse ainda mais longe, quando atribuiu todos os objetos primários do desejo e aversão naturais aos prazeres e dores do corpo. O grande patrono da filosofia atomista, que extraía tanto prazer de deduzir todos os poderes e qualidades dos corpos a partir dos mais óbvios e familiares – a figura, o movimento e a organização das pequenas partes da matéria – sem dúvida sentia uma satisfação similar ao explicar, da mesma maneira, todos os sentimentos e paixões do espírito, a partir dos mais óbvios e familiares.

O sistema de Epicuro concorda com os de Platão, Aristóteles e Zenão ao fazer que a virtude consista em agir da maneira mais adequada para se obterem objetos primários de desejo natural. Diverge de todos eles em dois outros aspectos: primeiro, na descrição dos objetos primários de desejo natural; segundo, na descrição da excelência da virtude, ou da razão pela qual essa qualidade devia ser estimada.

Os objetos primários de desejo natural consistiriam, segundo Epicuro, em prazer e dor do corpo, e nada mais; ao passo que, para os três outros filósofos, haveria muitos outros objetos, tais como o conhecimento, a felicidade de nossos parentes, dos amigos, de nosso país, que seriam em última instância desejáveis por si mesmos.

Segundo Epicuro, a virtude também não mereceria ser buscada por si mesma, nem seria em si um dos objetos fundamentais de apetite natural; seria desejável apenas graças à sua tendência a evitar dor e proporcionar bem-estar e prazer. Na opinião dos outros três, ao contrário, a virtude seria desejável não apenas como meio de proporcionar os outros objetos primários do desejo natural, mas como algo que em si mesmo seria mais valioso do que todos estes. Pensavam que, sendo o homem nascido para a ação, sua felicidade deve consistir não apenas no que há de agradável nas suas paixões passivas, mas sobretudo na conveniência de seus esforços ativos.


 
CAPÍTULO III Dos sistemas que fazem a virtude consistir na benevolência
O sistema que faz a virtude consistir na benevolência é bastante antigo, embora, segundo julgo, nem tanto quanto todos os que já descrevi. Parece ter sido a doutrina da maioria dos filósofos que, por volta e depois da era de Augusto, chamaram-se Ecléticos, os quais pretendendo seguir principalmente as opiniões de Platão e Pitágoras, são por esse motivo comumente conhecidos como neoplatônicos.

De acordo com tais autores, a benevolência ou amor seria o único princípio da ação na natureza divina, e dirigiria a prática de todos os outros atributos. A sabedoria da Divindade seria empregada em descobrir os meios de realizar esses fins que Sua bondade sugeria, enquanto Seu infinito poder se exerceria ao executá-los. A benevolência, entretanto, ainda seria o atributo supremo e dominante, ao qual os demais seriam subservientes, e do qual em última instância derivaria toda a excelência ou toda a moralidade, se me permitem dizer assim, das operações divinas. Toda a perfeição e virtude do espírito humano consistiria em alguma semelhança ou participação nas perfeições divinas, e, conseqüentemente, em ser repleto do mesmo princípio de benevolência e amor que influenciaria todas as ações da Divindade. Apenas ações humanas que procederiam desse motivo seriam verdadeiramente louváveis, ou poderiam, aos olhos da Divindade, reclamar qualquer mérito. Somente por atos de caridade e amor poderíamos imitar, conforme nos conviesse, a conduta de Deus; poderíamos expressar nossa humilde e devotada admiração por Suas perfeições infinitas; poderíamos, por abrigarmos em nossos espíritos o mesmo princípio divino, tornar nossos próprios afetos mais semelhantes a Seus atributos divinos, e assim nos convertermos em objetos mais apropriados do Seu amor e estima, até por fim alcançarmos o convívio e comunicação imediatos com a Divindade, aos quais essa grande filosofia teria como objeto nos alçar.

Muitos dos antigos Pais da Igreja Cristã estimavam sobremaneira esse sistema, de modo que, após a Reforma, adotaram-no vários teólogos de reconhecida piedade e erudição, e de amável conduta, sobretudo o Dr. Ralph Cudworth, o Dr. Henry More e o Sr. John Smith de Cambridge. Mas de todos os patronos desse sistema, sejam antigos ou modernos, o falecido Dr. Hutcheson certamente foi, de longe, o mais agudo, o mais distinto, o mais filosófico, e, o que é ainda mais importante, o mais sóbrio e judicioso.

Que a virtude consiste na benevolência é uma noção confirmada por muitas manifestações na natureza humana. Já se observou que a benevolência apropriada é o mais gracioso e agradável de todos os afetos; que nos é recomendado por uma dupla simpatia; que, como sua tendência é necessariamente beneficente, torna-se objeto apropriado de gratidão e recompensa, e que, por tudo isso, mostra, aos nossos sentimentos naturais, possuir mérito superior a todos os demais. Também se observou que até mesmo as fraquezas da benevolência não nos são muito desagradáveis, enquanto as de todas as outras paixões nos são sempre extremamente repulsivas. Quem não abomina a excessiva malícia, o excessivo egoísmo, ou o excessivo ressentimento? Mas a mais excessiva condescendência, mesmo à amizade parcial, não é tão ofensiva. Apenas as paixões benevolentes podem exercer-se sem consideração ou atenção para com a conveniência e ainda assim conservar algo de cativante. Há algo de agradável até mesmo na mera boa-vontade instintiva, que continua a fazer bons préstimos sem refletir uma só vez se com essa conduta se torna objeto apropriado de censura ou aprovação. O mesmo não ocorre com as outras paixões. A partir do momento em que ficam abandonadas, a partir do momento em que não as acompanha o senso de conveniência, cessam de ser agradáveis.

Assim como a benevolência confere às ações que procedem dela uma beleza superior a todas as demais, a falta dela, e muito mais a tendência contrária, comunica uma deformidade peculiar a tudo que evidencie tal disposição. Ações perniciosas com freqüência são puníveis apenas porque mostram falta de suficiente atenção para com a felicidade de nosso vizinho.

Além de tudo isso, o Dr. Hutcheson observou que, quando se descobre algum outro motivo para uma ação que se suporia proceder de afetos benevolentes, na medida em que se acreditasse que tal motivo a influenciou, diminuiria nosso senso do mérito da ação. Caso se descobrisse que uma ação, a qual se suporia proceder da gratidão, tivesse se originado da expectativa de um novo favor, ou caso o que se julgasse proceder de espírito público viesse a se revelar oriundo da esperança de recompensa financeira, essa descoberta destruiria inteiramente toda noção do mérito ou do caráter louvável de qualquer dessas ações. Portanto, uma vez que a mescla de algum motivo egoísta, a exemplo de uma liga com metal inferior, diminuiria ou removeria inteiramente o mérito que do contrário pertenceria a uma ação, seria evidente, imaginava o Dr. Hutcheson, que a virtude deveria consistir unicamente em benevolência pura e desinteressada.

Inversamente, descobrir que se originaram de um motivo benevolente ações que se supõe proceder, no mais das vezes, de um motivo egoísta aumenta fortemente nosso senso de seu mérito. Se déssemos crédito a alguém que se esforçasse por ampliar sua fortuna apenas para conceder préstimos amigáveis e para retribuir adequadamente seus benfeitores, deveríamos tãosomente amar e estimá-lo mais ainda. E essa observação pareceria confirmar ainda mais a conclusão segundo a qual apenas a benevolência poderia imprimir a qualquer ação o caráter de virtude.

Finalmente, imaginava o Dr. Hutcheson que a prova evidente da justeza de sua descrição da virtude estaria em que em todas as disputas de casuístas sobre a retidão da conduta, o bem público, observou ele, seria o critério ao qual se refeririam constantemente; por intermédio disso se reconheceria universalmente que tudo o que tendesse a promover a felicidade dos seres humanos seria correto, louvável e virtuoso, e o contrário, errado, censurável e vicioso. Nos últimos debates sobre obediência passiva e direito de resistência, o único ponto de controvérsia entre homens de bom-senso dizia respeito a se, quando se invadissem privilégios, mais males se seguiriam da submissão universal ou de insurreições temporárias. Nenhuma só vez, disse o Dr. Hutcheson, se questionou se o que em sua totalidade tenderia mais para felicidade dos seres humanos não seria também moralmente bom.

Portanto, uma vez que a benevolência seria o único motivo que poderia conferir a uma ação o caráter de virtude, quanto maior a benevolência evidenciada por qualquer ação, tanto maior o louvor que deveria lhe pertencer.

As ações que visassem à felicidade de uma grande comunidade, na medida em que demonstrariam uma benevolência mais ampla do que as ações que visassem apenas à felicidade de um sistema menor, seriam proporcionalmente as mais virtuosas. O mais virtuoso de todos os afetos, por conseguinte, seria o que abarcasse como seus objetos a felicidade de todos os seres inteligentes. Ao contrário, o menos virtuoso dos afetos a que poderia em qualquer aspecto pertencer o caráter de virtude seria o que visasse apenas à felicidade de um indivíduo, tal como a de um filho, irmão, amigo.

Em orientar todas as nossas ações para promover o maior bem possível, em submeter todos os afetos inferiores ao desejo da felicidade geral da humanidade, em considerar-se apenas como um dentre muitos, cuja prosperidade não se deveria buscar além do que fosse consistente com a felicidade do todo ou além do que conduzisse a esta, constituiria a perfeição da virtude.

O amor de si seria um princípio que jamais poderia ser virtuoso em nenhum grau ou sentido. Seria vicioso sempre que obstruísse o bem geral. Quando não tivesse outro efeito, senão fazer o indivíduo cuidar de sua própria felicidade, seria apenas inocente e, embora não merecesse elogio algum, tampouco incorreria em alguma censura. As ações benevolentes que fossem realizadas, malgrado algum motivo de interesse próprio, seriam, por essa razão, as mais virtuosas. Demonstrariam a força e vigor do princípio benevolente.

O Dr. Hutcheson estava tão longe de admitir o amor de si como motivo em qualquer caso de uma ação virtuosa, que até uma consideração do prazer da auto-aprovação, do confortável aplauso de nossas próprias consciências, diminuiria, segundo ele, o mérito de uma ação benevolente. Julgava tratar-se de um motivo egoísta, o qual, na medida em que contribuísse para qualquer ação, demonstraria a fraqueza da benevolência pura e desinteressada, a única capaz de inculcar na conduta do homem o caráter de virtude. Nos juízos comuns dos homens, porém, essa atenção para com a aprovação de nosso espírito está tão longe de ser considerada como o que pode, em qualquer aspecto, diminuir a virtude de alguma ação, que a vemos antes como o único motivo que merece o nome de virtuoso.

Tal é a descrição que esse amável sistema oferece sobre a natureza da virtude, sistema cuja tendência peculiar é a de alimentar e amparar no coração humano o mais nobre e agradável de todos os afetos, não apenas por equilibrar a injustiça do amor de si, mas em alguma medida por desencorajar inteiramente esse princípio, representando-o como algo que jamais poderia refletir honra sobre quem influenciasse.

Se alguns dos outros sistemas que já descrevi não explicam suficientemente de onde surge a peculiar excelência da suprema virtude da beneficência, este parece ter o defeito contrário, a saber, o de não explicar suficientemente de onde surge nossa aprovação das virtudes inferiores da prudência, vigilância, circunspecção, temperança, constância, firmeza. O desígnio e a meta de nossos afetos, os efeitos beneficentes ou danosos que tendem a produzir, são as únicas qualidades para que se atenta nesse sistema. Sua conveniência e inconveniência, sua adequação e inadequação à causa que os suscita são inteiramente descuidadas.

Também a consideração de nossa felicidade e interesse privados apresenta-se, em muitas ocasiões, como um princípio de ação bastante louvável. Supõe-se que os hábitos de economia, diligência, discernimento, atenção e aplicação de pensamento, sejam geralmente cultivados por motivos de interesse próprio ao mesmo tempo em que se julgam qualidades muito louváveis, dignas da estima e aprovação de todos. A mescla de um motivo egoísta, é verdade, com freqüência parece embotar a beleza das ações que deveriam se originar de um afeto benevolente. A causa disso, entretanto, não se deve a que o amor de si jamais possa constituir o motivo de uma ação virtuosa, mas a que nesse caso particular o princípio benevolente aparenta carecer de seu grau devido de força, e ser em tudo inadequado a seu objeto. Por isso, o caráter parece claramente imperfeito, e em geral merece antes censura do que louvor. A mescla de um motivo benevolente numa ação a que apenas o amor de si deveria bastar para incitar não é tão apta, com efeito, a diminuir nosso senso de sua conveniência ou da virtude de quem a pratica. Não estamos dispostos a suspeitar que a alguém falte egoísmo. Esse não é, de maneira alguma, o lado fraco da natureza humana, nem aquele cuja falta nos deve parecer suspeita. Mas se realmente existisse um homem que, não fosse por consideração com sua família e amigos, não cuidaria adequadamente de sua saúde, sua vida ou sua fortuna, a que apenas a autoconservação bastaria para o incitar, tal homem seria, sem dúvida, fraco, embora de uma fraqueza amável, a qual torna a pessoa antes objeto de piedade do que de desprezo ou ódio. Ainda assim, porém, essa fraqueza diminuiria em certa medida a dignidade e respeitabilidade de seu caráter. Desaprova-se universalmente a despreocupação ou falta de economia, todavia não porque procederia de falta de benevolência, mas de falta da atenção apropriada aos objetos de interesse próprio.

Embora o critério pelo qual os casuístas freqüentemente determinam o que é certo e errado na conduta humana seja a tendência para o bem-estar ou desordem da sociedade, disso não se segue que o respeito ao bem-estar da sociedade seja o único motivo virtuoso de ação. Segue-se apenas que, como em qualquer competição, devia garantir o equilíbrio contra a prevalência de qualquer outro motivo.

Talvez a benevolência seja o único princípio de ação da Divindade, e há vários argumentos bastante plausíveis que tendem a nos persuadir disso. Não é fácil conceber por que outro motivo um Ser independente e inteiramente perfeito, que nada precisa de externo, e cuja felicidade é completa em si mesma, poderia agir. Mas, seja qual for o caráter da Divindade, uma criatura de tal modo imperfeita como o homem, cuja conservação da existência exige tantas coisas exteriores, não raro deve agir por muitos outros motivos. A condição da natureza humana seria particularmente dura se os afetos, os quais, pela própria natureza de nosso ser, deviam seguidamente influenciar nossa conduta, jamais pudessem mostrar-se virtuosos ou dignos da estima e recomendação de alguém.

Esses três sistemas, o que faz a virtude residir na conveniência, o que a faz residir na prudência, e o que a faz consistir na benevolência, são as principais descrições que se ofereceram da natureza da virtude. Todas as outras descrições da virtude, por mais diferentes que possam aparentar, são facilmente redutíveis a um ou outro deles.

O sistema que faz a virtude residir na obediência à vontade da Divindade pode ser incluído entre os que a fazem consistir na prudência, ou entre os que a fazem consistir na conveniência. Quando se pergunta por que deveríamos obedecer à vontade da Divindade, essa questão, que seria ímpia e absurda ao extremo, se ensejada por se duvidar de que lhe devamos obediência, pode admitir apenas duas respostas diversas. É preciso afirmar que devemos obedecer à vontade da Divindade pois Ele é um ser de infinito poder, que nos recompensará eternamente se o fizermos ou do contrário nos punirá eternamente; ou deve-se afirmar que, independentemente de toda consideração com nossa própria felicidade ou com recompensas ou castigos de qualquer espécie, há uma congruência e adequação na obediência da criatura ao seu criador, na submissão de um ser limitado e imperfeito a outro de infinita e incompreensível perfeição. Além dessas duas, é impossível conceber outra resposta a essa questão. Se a primeira resposta for a apropriada, a virtude consistirá na prudência, na busca adequada de nosso próprio interesse e felicidade finais, razão pela qual somos obrigados a obedecer à vontade da Divindade. Se a resposta apropriada for a segunda, a virtude deverá consistir na conveniência, pois o motivo de nossa obrigação de obedecer é a adequação ou congruência dos sentimentos de humildade e submissão à superioridade do objeto que os suscita.

O sistema que faz a virtude residir na utilidade coincide, por sua vez, com o que a faz consistir na conveniência. De acordo com esse sistema, todas as qualidades do espírito agradáveis ou vantajosas, seja para a própria pessoa, seja para outras, são aprovadas como virtuosas, e as contrárias, desaprovadas como viciosas. Mas o caráter agradável ou útil de qualquer afeto depende do grau em que lhe é permitido subsistir. Todo afeto é útil quando se confina a certo grau de moderação; e todo afeto é desvantajoso quando excede seus limites apropriados. Portanto, de acordo com esse sistema, a virtude consiste não em qualquer afeto, mas no grau apropriado de todos os afetos. A única diferença entre este e o que venho procurando estabelecer é fazer da utilidade, e não da simpatia ou afeto correspondente do espectador, a medida natural e original desse grau apropriado.


 
CAPÍTULO IV Dos sistemas licenciosos
Todos os sistemas que até aqui descrevi supõem a existência de uma distinção real e essencial entre vício e virtude, não importando em que consistam tais qualidades. Há uma diferença real e essencial entre a conveniência e inconveniência de qualquer afeto, entre benevolência e qualquer outro princípio de ação, entre prudência real e insensatez cega ou temeridade precipitada. De modo geral todos esses sistemas também contribuem para encorajar a disposição louvável, e desencorajar a censurável.

Talvez seja verdade que alguns deles tendam em certa medida a romper o equilíbrio dos afetos, e dar ao espírito um pendor particular por alguns princípios de ação além da proporção que lhes é devida. Os sistemas antigos, que fazem a virtude residir na conveniência, parecem recomendar principalmente as virtudes eminentes, temíveis e respeitáveis, as virtudes do governo e domínio de si; firmeza, magnanimidade, independência quanto à fortuna, desprezo por todos os acidentes exteriores, por dor, pobreza, exílio e morte. É nesses grandes esforços que a mais nobre conveniência da conduta se revela. Pouco enfatizam, em compensação, as virtudes brandas, amáveis e gentis, todas as virtudes da humanidade indulgente; ao contrário, com freqüência as vêem, notadamente os Estóicos, como meras fraquezas, as quais caberia a um homem sábio não refugiar em seu peito.

Por outro lado, o sistema benevolente, a despeito de adotar e encorajar em grande medida todas as virtudes mais brandas, parece negligenciar inteiramente qualidades do espírito mais legítimas e respeitáveis. Nega-lhes até mesmo o nome de virtudes. Chama-as habilidades morais, e as trata como qualidades que não merecem a mesma espécie de estima e aprovação devida ao que se denomina propriamente de virtude. Trata todos esses princípios de ação, os quais visam apenas ao nosso próprio interesse, de maneira ainda pior, se isso é possível. Esse sistema pretende que, em vez de terem mérito próprio, tais princípios diminuem o mérito da benevolência, quando cooperam com esta; e assevera que jamais se poderá sequer supor que a prudência, quando empregada apenas para promover o interesse privado, seja virtude.

O sistema, por sua vez, que faz a virtude consistir apenas na prudência, a despeito de encorajar fortemente os hábitos de cautela, vigilância, sobriedade e moderação judiciosa, parece degradar igualmente tanto as virtudes amáveis, como as respeitáveis, despindo as primeiras de toda a sua beleza, e as últimas de toda a sua grandeza.

Porém, não obstante essas imperfeições, a tendência geral de cada um desses três sistemas é encorajar os melhores e mais louváveis hábitos do espírito humano, de modo que seria bom para a sociedade se os homens em geral, ou mesmo os poucos que pretendem viver segundo qualquer regra filosófica, regulassem sua conduta pelos preceitos de qualquer um deles. Em cada um podemos aprender algo a um tempo valioso e peculiar. Se fosse possível inspirar, por preceito e exortação, firmeza e magnanimidade ao espírito, os antigos sistemas de conveniência pareceriam suficientes para fazê-lo. Ou se fosse possível, pelos mesmos meios, reduzi-las a humanidade e despertar os afetos de bondade e amor geral para com os que conosco convivem, alguns dos quadros que o sistema benevolente nos apresenta poderiam parecer capazes de produzir esse efeito. Podemos aprender com o sistema de Epicuro, embora certamente o mais imperfeito dos três, o quanto a prática, seja das virtudes amáveis, seja das respeitáveis, é favorável ao nosso próprio interesse, nosso próprio bem-estar, segurança e sossego, até mesmo nesta vida. Uma vez que Epicuro fez a felicidade residir na obtenção de bem-estar e segurança, empenhou-se de modo particular em mostrar que a virtude não era meramente o melhor meio e o mais certo, mas o único possível para se adquirirem esses bens inestimáveis. Os bons efeitos da virtude sobre nossa tranqüilidade interior e paz de espírito são o que outros filósofos principalmente celebraram. Epicuro, sem negligenciar esse tópico, enfatizou sobretudo a influência dessa qualidade amável sobre nossa prosperidade externa e segurança. Por essa razão seus escritos foram tão estudados no mundo antigo por homens de todas as correntes filosóficas. É dele que Cícero, o grande inimigo do sistema epicurista, empresta suas provas mais agradáveis, a saber, de que somente a virtude basta para assegurar a felicidade. Sêneca, embora um estóico, a seita que mais se opôs à de Epicuro, cita mais vezes este filósofo do que outro qualquer.

Há, contudo, um outro sistema que parece remover toda a distinção entre vício e virtude, e cuja tendência é, por isso, totalmente perniciosa. Falo no sistema do Dr. Mandeville. Embora as noções desse autor sejam errôneas em quase todos os aspectos, há na natureza humana, todavia, algumas manifestações que, quando vistas de certa maneira, parecem à primeira vista favorecê-las. Estas, descritas e exageradas pela eloqüência viva e bem-humorada, posto que vulgar e rústica do Dr. Mandeville, lançaram sobre suas doutrinas um ar de verdade e probabilidade, muito capaz de lograr os pouco versados.

O Dr. Mandeville considera que tudo o que se faz por senso de conveniência, por respeito ao que é recomendável e louvável, se faz por amor ao louvor e à aprovação, ou, como ele diz, por vaidade. Observa que o homem naturalmente está muito mais interessado em sua própria felicidade do que na de outros, e que é impossível, em seu foro íntimo, preferir realmente a prosperidade destes à sua própria. Quando aparenta preferir a de outros, podemos estar certos de que nos ludibria, e de que está agindo pelos mesmos motivos egoístas de todas as outras vezes. Dentre todas as suas outras paixões egoístas, a vaidade é uma das mais fortes, e sempre fica facilmente lisonjeado e intensamente deliciado com os aplausos dos que o rodeiam. Quando aparenta sacrificar seu próprio interesse pelo de seus companheiros, sabe que essa conduta será imensamente agradável ao amor-próprio destes, e que não deixarão de expressar sua satisfação, dedicando-lhe os mais extravagantes elogios. Em sua opinião, o prazer que espera disso supera o interesse que, a fim de obtê-lo, abandona. Nesse caso, por conseguinte, sua conduta é na realidade tão egoísta, e se deve a uma razão tão mesquinha quanto qualquer outra. Sente-se lisonjeado, entretanto, e lisonjeia-se com a crença de que isso é inteiramente desinteressado, pois, se não acreditasse nisso, não pareceria merecer nenhuma aprovação, nem a seus próprios olhos, nem aos olhos de outros. Portanto, todo o espírito público, toda a preferência por interesse público sobre privado, é, segundo ele, mero logro e impostura sobre a humanidade; e a virtude humana, de que tanto se vangloria, e tanta emulação ocasiona entre os homens, é mero fruto da lisonja causada pelo orgulho.

Não examinarei por ora se as ações mais generosas e de maior espírito público não podem, em certo sentido, ser consideradas como algo que procede do amor de si. A determinação dessa questão não possui, segundo penso, importância alguma para estabelecer a realidade da virtude, pois o amor de si pode ser o mais das vezes um motivo virtuoso de ação. Esforçar-me-ei apenas para mostrar que o desejo de fazer o que é honroso e nobre, de nos convertermos em objetos apropriados de estima e aprovação, não pode, com propriedade, ser chamado de vaidade. Até mesmo o amor por fama e reputação bem fundamentadas, o desejo de obter estima por intermédio do que é realmente estimável, não merece esse nome. O primeiro é o amor à virtude, mais nobre e melhor paixão da natureza humana. O segundo é o amor à verdadeira glória, certamente paixão inferior à primeira, mas que parece vir imediatamente depois dela em dignidade. É culpado de vaidade quem deseja louvor por qualidades que não são louváveis em nenhum grau, ou não o são no grau em que se espera ser louvado por elas, quem determina seu caráter por ornamentos frívolos de vestimenta e equipagem, ou pelas igualmente frívolas aptidões do comportamento ordinário. É culpado de vaidade quem deseja louvor por algo que com efeito o merece, algo, entretanto, que ele sabe perfeitamente não lhe pertencer. O janota fútil, dando-se ares de importância a que não tem direito; o tolo mentiroso ostentando o mérito de aventuras que jamais aconteceram; o bobo plagiador fazendo-se passar por autor de algo a que não pode ter pretensões, são apropriadamente acusados dessa paixão. Também se diz que é culpado de vaidade quem não se contenta com os sentimentos silenciosos de estima e aprovação, quem parece gostar mais de suas expressões e aclamações ruidosas do que dos sentimentos em si, quem nunca está satisfeito senão quando seus próprios louvores ressoam a seus ouvidos, e quem com a mais ansiosa importunidade solicita todas as marcas exteriores de respeito; quem gosta de títulos, elogios, de ser visitado, de ser atendido, de ser notado em lugares públicos com deferência e atenção. Essa paixão frívola é inteiramente distinta de qualquer uma das duas anteriores, e é a paixão dos mais baixos e insignificantes seres humanos, assim como as outras duas são as paixões dos mais nobres e eminentes.

Ainda que essas três paixões, o desejo de nos convertermos em objetos apropriados de honra e estima, ou de nos adequarmos ao que é honroso e estimável; o desejo de alcançar honra e estima por realmente merecermos esses sentimentos; e o frívolo desejo de louvor a qualquer preço, sejam muito diferentes; ainda que as duas primeiras sejam sempre aprovadas, enquanto a última nunca deixe de ser desprezada, há certa remota afinidade entre elas, afinidade esta que, exagerada pela bem-humorada e divertida eloqüência de seu vivaz autor, capacitou-o a ludibriar seus leitores. Há uma afinidade entre vaidade e o amor à verdadeira glória, pois ambas as paixões visam alcançar estima e aprovação. Mas são diferentes na medida em que uma é uma paixão justa, razoável e eqüitativa, enquanto a outra é injusta, absurda e ridícula. O homem que deseja estima por algo realmente estimável nada mais deseja senão aquilo a que com justiça tem direito, e aquilo que não lhe pode ser recusado sem que se cometa alguma espécie de ofensa. Ao contrário, quem a deseja em quaisquer outros termos reclama algo que com justiça não pode reivindicar. O primeiro é facilmente satisfeito, não tende a ter ciúmes ou suspeita de que não o estimemos o bastante, e raramente fica apreensivo por receber muitos sinais exteriores de nossa consideração. O outro, ao contrário, nunca se satisfaz, está cheio de ciúmes e suspeita de que não o estimamos tanto quanto deseja, porque tem alguma secreta consciência de que deseja mais do que merece. Considera a menor negligência na cerimônia uma afronta mortal, uma expressão do mais acabado desprezo. É inquieto e impaciente, perpetuamente teme que tenhamos perdido todo o respeito por ele, razão pela qual está sempre apreensivo por obter novas expressões de estima, e não pode ser acalmado, senão por meio de atenção e adulação contínuas.

Há ainda uma afinidade entre o desejo de adequar-se a algo honroso e estimável e o desejo de honra e estima, entre o amor à virtude e o amor à verdadeira glória. Parecem-se um ao outro não apenas porque ambos visam realmente a tornar-se algo honroso e nobre, mas porque tanto o amor à verdadeira glória como o que se chama propriamente de vaidade mantêm alguma referência com os sentimentos alheios. Assim, não obstante desejar a virtude por si mesma e ser em tudo indiferente ao que sejam de fato as opiniões alheias a seu respeito, o homem de elevada magnanimidade delicia-se ao pensar no que seriam tais opiniões, com a consciência de que, embora não o honrem nem o aplaudam, é ainda assim objeto apropriado de aplauso e honra; e de que os homens não se furtariam a honrá-lo e aplaudi-lo, se fossem lúcidos, francos, coerentes, e adequadamente informados sobre os motivos e circunstâncias de sua conduta. Posto que despreze as opiniões que de fato nutrem a seu respeito, tem em alta conta as que deviam nutrir. O grande e sublime motivo de sua conduta se deve a julgar-se digno desses sentimentos honrosos, e, ademais, seja qual for a idéia que outros pudessem conceber de seu caráter, a sempre ter, ao colocar-se na situação desses outros e considerar não quais eram, mas quais deveriam ser as opiniões destes, uma idéia bastante favorável de si mesmo. Portanto, assim como no amor à virtude subsiste ainda alguma referência, não ao que é, mas ao que com razão e conveniência deveria ser a opinião alheia, também nesse caso subsiste alguma afinidade entre essa opinião e o amor à verdadeira glória. Ao mesmo tempo, porém, há uma grande diferença entre essas paixões. O homem que age unicamente por consideração ao que é correto e adequado fazer-se, por consideração ao que é objeto apropriado de estima e aprovação, ainda que jamais lhe concedessem tais sentimentos, age pelo motivo mais sublime e divino que a natureza humana pode conceber. Por outro lado, embora haja muito o que louvar nos motivos de quem, malgrado deseje aprovação, anseia por obtê-la, tais motivos trazem uma mescla maior de fragilidade humana. Arrisca-se a mortificar-se pela ignorância e injustiça da humanidade, pois sua felicidade fica exposta à inveja de seus rivais e à insensatez do público. Ao contrário, a felicidade do outro está inteiramente assegurada e independe da fortuna e do capricho dos que com ele convivem. Por não considerar que lhe pertençam o desprezo e o ódio que a ignorância dos homens é capaz de lançar sobre si, de modo algum se mortifica por isso. Os homens o desprezam e odeiam por causa de uma falsa noção de seu caráter e conduta. Se o conhecessem melhor, haveriam de estimar e amá-lo. Para falar com propriedade, não é a ele que odeiam e desprezam, mas a outra pessoa, com quem o confundem. Um amigo, a quem encontrássemos num baile de máscaras com os trajes de nosso inimigo, acharia mais graça que razão para mortificar-se caso, confundidos pelo disfarce, externássemos nossa indignação contra ele. Tais são os sentimentos de um homem de real magnanimidade, quando exposto à censura injusta. Raramente sucede à natureza humana, porém, alcançar esse grau de firmeza. Embora ninguém, salvo o mais fraco e indigno ser humano, delicie-se em demasia com a falsa glória, por uma estranha incoerência, a falsa ignomínia com freqüência consegue mortificar os que se mostram mais resolutos e determinados.

O Dr. Mandeville não se contenta em representar os motivos frívolos da vaidade como a fonte de todas as ações comumente estimadas virtuosas. Procura assinalar a imperfeição da virtude humana em muitos outros aspectos. Assevera que falta, em cada caso, a completa abnegação a que aspira toda virtude e, ao invés de conquista, comumente nada mais há senão indulgência dissimulada de nossas paixões. Toda vez que nossa reserva relativa ao prazer carece da mais ascética abstinência, o Dr. Mandeville a trata como luxúria e sensualidade grosseiras. De acordo com ele, é luxúria tudo o que excede o absolutamente necessário para conservar a natureza humana, de modo que há vício até mesmo no uso de uma camisa limpa ou de uma moradia confortável. Considera que a indulgência para com a inclinação ao sexo, mesmo na mais legítima união, possua sensualidade idêntica à da mais danosa saciedade dessa paixão, e ridiculariza a temperança e a castidade que podem ser praticadas a um custo tão baixo. Aqui, como em muitas outras ocasiões, o engenhoso sofisma de seu raciocínio é encoberto pela ambigüidade da linguagem. Há algumas de nossas paixões que não possuem outros nomes, senão os que designam o seu grau desagradável e ofensivo. O espectador é mais capaz de notá-las nesse grau do que em outro qualquer. Quando escandalizam seus próprios sentimentos; quando lhe causam alguma espécie de antipatia e desconforto, necessariamente é obrigado a prestar-lhes atenção, e assim naturalmente levado a dar-lhes um nome. Quando coincidem com o estado natural de seu espírito, muito possivelmente as ignora de todo e, ou não lhe dá nome algum ou, se o faz, é um nome que designa antes a sujeição e restrição da paixão, do que o grau em que ainda se permite a subsistência de tal paixão, após tal sujeição e restrição. Daí por que os nomes comuns do amor ao prazer e o amor ao sexo denotam um grau vicioso e ofensivo dessas paixões. As palavras temperança e castidade, por sua vez, parecem designar antes a restrição e sujeição sob as quais são mantidas, do que o grau em que ainda se permite sua subsistência. Portanto, quando o Dr. Mandeville consegue mostrar que ainda subsistem em certo grau, imagina ter demolido inteiramente a realidade das virtudes da temperança e castidade, apresentando-as como meras imposturas que se valeram da desatenção e ingenuidade dos homens. Tais virtudes, no entanto, não exigem uma insensibilidade completa aos objetos das paixões que desejam governar. Visam apenas a restringir a violência dessas paixões, de modo a não ferir o indivíduo, nem perturbar ou ofender a sociedade.

É a grande falácia do livro do Dr. Mandeville representar cada paixão como inteiramente viciosa, em qualquer grau e sentido. É assim que trata como vaidade tudo o que guarde alguma referência com o que são ou deveriam ser os sentimentos alheios; e é por meio desse sofisma que estabelece sua conclusão favorita, de que vícios privados são benefícios públicos. Se o amor à magnificência – um gosto pelas artes elegantes, pelas melhorias na vida humana, por tudo o que seja agradável em roupas, móveis ou equipagem, por arquitetura, escultura, pintura e música – for considerado luxúria, sensualidade e ostentação, mesmo nos homens cuja situação permita, sem inconveniência, a indulgência para com essas paixões, certamente a luxúria, sensualidade e ostentação serão benefícios públicos. No entanto, sem as qualidades às quais julga apropriado atribuir nomes tão infamantes, as artes refinadas jamais poderiam encontrar estímulo, e teriam de languescer por falta de uso. Algumas doutrinas populares ascéticas, que foram correntes antes de sua época e as quais faziam a virtude residir na total extirpação e aniquilação de nossas paixões, constituíram o verdadeiro fundamento desse sistema licencioso. Foi fácil para o Dr. Mandeville provar, primeiro, que essa conquista completa nunca existiu realmente entre os homens; segundo, que se existisse universalmente, seria perniciosa para a sociedade, pois poria termo a toda a indústria e comércio e, de algum modo, a todas as atividades da vida humana. Pela primeira dessas propostas, pareceu provar que não haveria verdadeira virtude, e o que pretendia passar-se por virtude nada mais era senão logro e impostura; pela segunda, que vícios privados seriam benefícios públicos, pois sem eles nenhuma sociedade poderia prosperar ou florescer.

Tal é o sistema do Dr. Mandeville, que de uma feita causou tanto alarido no mundo, e que, embora talvez nunca criasse mais vícios além dos que existiriam sem ele, no mínimo ensinou esse vício oriundo de outras causas a mostrar-se com mais insolência, e a manifestar a corrupção de seus motivos com uma audácia libertina de que jamais teve notícia antes.

Porém, por mais destrutivo que esse sistema possa parecer, jamais poderia ter ludibriado tão grande número de pessoas, nem provocado um alarma tão generalizado entre os amigos dos melhores princípios, se não tivesse em alguns aspectos bordejado a verdade. Um sistema de filosofia natural pode parecer muito plausível, encontrar recepção generalizada no mundo e mesmo assim não ter fundamento sobre a natureza, nem guardar nenhuma espécie de semelhança com a verdade. Por quase todo um século, uma nação muito engenhosa considerou os vértices de Descartes uma explicação bastante satisfatória para as revoluções dos corpos celestes. Entretanto, a humanidade se convenceu com a demonstração de que as supostas causas desses efeitos maravilhosos não apenas não existiam de fato, como eram absolutamente impossíveis, e, caso realmente existissem, não poderiam produzir os efeitos que lhes eram atribuídos. O mesmo não se dá, porém, com os sistemas de filosofia moral, pois um autor que pretenda explicar a origem de nossos sentimentos morais não pode nos enganar de modo tão grosseiro, nem afastar-se tanto de toda a semelhança com a verdade. Quando um viajante descreve um país distante, pode fazer nossa credulidade aceitar a ficção mais infundada e absurda como se fosse o mais certo arrazoado. Mas, ainda que uma pessoa, ao pretender informar-nos do que se passa em nossa vizinhança e dos assuntos da paróquia em que vivemos, também aqui possa nos enganar em muitos aspectos, caso sejamos tão descuidados que não examinemos as coisas com nossos próprios olhos, as maiores falsidades que nos faz aceitar devem, todavia, guardar alguma semelhança com a verdade, e até mesmo trazer em seu bojo uma considerável dose de verdade. Um autor que trate da filosofia natural, que pretenda determinar as causas dos grandes fenômenos do universo, ou explicar os assuntos de um país muito distante, acerca dos quais pode nos contar o que quiser, na medida em que sua narrativa permanecer dentro dos limites da aparente possibilidade, não precisa desesperar de conquistar nossa crença. Mas quando se propõe a justificar a origem de nossos desejos e afetos, de nossos sentimentos de aprovação e desaprovação, pretende explicar não apenas os assuntos da paróquia em que vivemos, como ainda nossos próprios interesses domésticos. Embora também aqui, a exemplo de senhores indolentes que depositam confiança num administrador que os engana, seja bem possível que nos ludibriem, somos incapazes, contudo, de dar crédito a qualquer explicação que não conserve um mínimo de verdade. Ao menos alguns dos artigos precisariam ser justos; mesmo os mais exagerados precisariam ter algum fundamento, do contrário até a inspeção descuidada que nos dispomos a fazer descobriria a fraude.

O autor que determinasse como causa de algum sentimento natural um princípio que ou não mantivesse relação alguma com ele, ou sequer se assemelhasse a um outro princípio que mais tivesse tal relação, soaria absurdo e ridículo mesmo ao mais insensato e inexperiente dos leitores.


 
SEÇÃO III Dos diferentes sistemas que se formaram quanto ao princípio da aprovação

 
INTRODUÇÃO
A questão mais importante em Filosofia Moral, depois da investigação sobre a natureza da virtude, diz respeito ao princípio da aprovação, ao poder ou faculdade do espírito que faz certos caracteres nos serem agradáveis ou desagradáveis, obriga-nos a preferir uma linha de conduta a outra; leva-nos a denominar uma de correta e a outra de errada e a considerar a primeira como objeto de aprovação, honra e recompensa, a outra, de vergonha, censura e castigo.

Há três diferentes explicações acerca desse princípio da aprovação. Segundo alguns, aprovam-se e desaprovam-se as próprias ações, bem como as de outros, apenas por amor a si mesmo ou por alguma opinião sobre sua tendência a fazer-nos felizes ou miseráveis; segundo outros, a razão, a mesma faculdade que nos permite distinguir o verdadeiro do falso, capacita-nos a distinguir o adequado do inadequado, seja em ações, seja em afetos; ainda segundo outros, essa distinção é em tudo o efeito de sentimento e emoção imediatos, e se origina da satisfação ou aversão que a visão de certas ações ou afetos nos inspira. O amor de si, a razão e o sentimento são, pois, as três diferentes fontes atribuídas ao princípio da aprovação.

Antes de proceder ao exame desses diferentes sistemas, devo advertir que o esclarecimento dessa segunda questão, embora de grande importância para a especulação, é irrelevante para a prática. A questão relativa à natureza da virtude necessariamente exerce alguma influência sobre nossas noções de certo e errado em muitos casos particulares. A que se refere ao princípio da aprovação possivelmente não tem tal efeito. Examinar de que artifício ou mecanismo interior se originam essas diferentes noções ou sentimentos é assunto de mera curiosidade filosófica.


 
CAPÍTULO I Dos sistemas que deduzem do amor de si o princípio da aprovação
Nem todos os autores que explicam o princípio da aprovação à luz do amor de si explicam-no da mesma maneira, havendo bastante confusão e imprecisão em todos os seus diferentes sistemas. De acordo com o Sr. Hobbes e muitos de seus seguidores, o homem é impelido a buscar refúgio na sociedade não por amor natural à sua própria espécie, mas porque, faltando-lhe ajuda de outros, é incapaz de subsistir com conforto e segurança. Por essa razão, a sociedade se lhe torna necessária: considera que tudo o que tenda à conservação e bemestar desta tenha uma remota tendência a promover os seus interesses privados e, inversamente, julga tudo o que possa perturbá-la ou destruí-la em alguma medida danoso ou pernicioso para si mesmo. A virtude é o que mais conserva a sociedade humana, e o vício, o que mais a perturba. A primeira, pois, é agradável e o segundo, ofensivo a todo homem, uma vez que uma lhe permite prever prosperidade e o outro, a ruína e desordem do que é tão necessário para o conforto e segurança de sua existência.

Que a tendência da virtude a promover, e do vício a perturbar a ordem da sociedade, quando a consideramos fria e filosoficamente, reflete grande beleza sobre uma, e grande deformidade sobre outra, não pode, como já comentei anteriormente, ser posta em dúvida. A sociedade humana, quando a contemplamos de certo ponto de vista abstrato e filosófico, mostra-se uma imensa máquina, cujos movimentos regulares e harmoniosos produzem inúmeros efeitos agradáveis. E assim como em qualquer outra máquina bela e nobre produzida pelo artifício humano, tudo o que tendesse a tornar seus movimentos mais suaves e fáceis extrairia beleza desse efeito e, ao contrário, tudo o que tendesse a obstruí-los seria, por essa razão, desagradável; também a virtude, como o fino polimento das rodas da sociedade, necessariamente agrada; enquanto o vício, como a ferrugem vil que as faz trepidar e ranger uma sobre as outras, necessariamente ofende. Portanto, essa explicação acerca da origem da aprovação e desaprovação, na medida em que a deriva de uma consideração de ordem social, colide com o princípio que confere beleza à utilidade, já examinado em ocasião anterior; donde esse sistema derivar toda a aparência de probabilidade que possui. Quando esses autores descrevem as inúmeras vantagens que a vida cultivada e social leva sobre a vida selvagem e solitária, quando discorrem sobre a necessidade da virtude e da boa ordem para a manutenção de uma, e demonstram quão infalível, a prevalecer o vício e a desobediência às leis, é a volta da outra vida, o leitor se sente fascinado com a novidade e grandiosidade das visões que se lhe descortinam; vê claramente uma nova beleza na virtude e uma nova deformidade no vício, as quais nunca até então notara; e o mais das vezes a descoberta o delicia de tal modo, que raro tem tempo de refletir que essa visão política, por jamais lhe ter ocorrido antes em sua vida, possivelmente não é o fundamento da aprovação e desaprovação com que se habituou a considerar essas diferentes qualidades.

Por outro lado, quando esses autores deduzem do amor de si o nosso interesse pelo bem-estar da sociedade, e por conseguinte a estima que dedicamos à virtude, não pretendem afirmar que, quando aplaudimos, em nossa época, a virtude de Catão e abominamos a infâmia de Catilina, nossos sentimentos sejam influenciados pela noção de algum benefício que recebemos de um ou de algum prejuízo que sofremos da parte de outro. Não foi por pensarmos, conforme querem esses filósofos, que a prosperidade ou subversão da sociedade nos séculos e nações remotos teria qualquer influência sobre nossa felicidade ou desgraça nos tempos presentes, que estimamos o caráter virtuoso e censuramos o desordeiro. Jamais imaginaram que nossos sentimentos fossem influenciados por qualquer benefício ou prejuízo que realmente supuséssemos redundar de um e outro caráter, se houvéssemos vivido naqueles séculos e países distantes; ou ainda influenciados pelos que poderiam redundar a nós se, em nossos dias, encontrássemos caracteres do mesmo tipo. Em suma, a idéia que tais autores tatearam, embora jamais tenham podido apreendê-la de modo distinto, é a da simpatia indireta que experimentamos pela gratidão ou ressentimento dos que receberam benefícios ou sofreram prejuízos resultantes de caracteres tão opostos; e era isso que confusamente apontavam quando afirmaram que nosso aplauso ou indignação não seriam motivados pelo pensamento de nosso proveito ou sofrimento, mas pela concepção ou imaginação do possível proveito ou sofrimento no caso de termos de atuar numa sociedade com tais sócios.

A simpatia, no entanto, de maneira alguma pode ser considerada um princípio egoísta. É possível alegar, com efeito, que quando simpatizo com a tua dor ou a tua indignação minha emoção se funda sobre o amor de si, porque se origina de se aplicar o teu caso a mim mesmo, de me colocar na tua situação, e assim conceber o que eu sentiria em circunstâncias parecidas. No entanto, embora se diga muito apropriadamente que a simpatia surge de uma troca imaginária de situação com a pessoa diretamente atingida, supõe-se que tal troca imaginária não suceda a mim, em minha própria pessoa e caráter, mas na pessoa com quem simpatizo. Quando presto-te condolências pela morte de teu único filho, não imagino, a fim de que possa partilhar de teu pesar, o que eu, pessoa determinada por tal caráter e profissão, sofreria se tivesse um filho e se esse filho infelizmente morresse; considero o que eu sofreria se realmente fosse tu; e não apenas troco de situação contigo, troco de pessoas e caracteres. Toda a minha aflição, portanto, é por tua causa, não por minha. Por conseguinte, em nada é egoísta. Como se pode considerar paixão egoísta a que sequer se origina da imaginação de algo que se abatesse sobre mim, nem se relacionasse comigo, em minha própria pessoa ou caráter, ao contrário, uma paixão inteiramente ocupada com o que se relaciona a ti? Um homem pode solidarizar-se com uma mulher que está por dar à luz, embora seja impossível que se conceba sofrendo em sua pessoa as dores do parto. De todo o modo, essa descrição da natureza humana que deduz os sentimentos e afetos do amor de si – a qual, apesar do alarido causado no mundo, até onde sei nunca recebeu explicação plena e distinta – parece-me ter surgido de alguma interpretação falsa e confusa do sistema de simpatia.


 
CAPÍTULO II Dos sistemas que fazem da razão o princípio da aprovação
É bem sabido que o Sr. Hobbes defendeu a doutrina segundo a qual o estado da natureza é um estado de guerra, razão por que antes da instituição do governo civil não seria possível a existência de uma sociedade segura ou pacífica entre os homens. Portanto, conservar a sociedade equivaleria, de acordo com o Sr. Hobbes, a manter o governo civil e, inversamente, destruir o governo civil equivaleria a pôr termo à sociedade. Mas a existência do governo civil depende da obediência que se deve ao magistrado supremo. No momento em que este perde sua autoridade, todo o governo chega ao fim. Por isso, assim como a autoconservação ensina os homens a aplaudir tudo o que tenda a promover o bem-estar da sociedade e a censurar o que a pode prejudicar, esse mesmo princípio deveria ensiná-los, se fossem coerentes ao pensar e falar, a sempre aplaudir a obediência ao magistrado civil, e a censurar toda a desobediência e rebelião. As meras idéias de louvável e censurável deviam ser idênticas às de obediência e desobediência. As leis do magistrado civil, por conseguinte, deviam ser consideradas os únicos critérios definitivos do justo e do injusto, do certo e do errado.

Ao propagar essas idéias, a intenção confessa do Sr. Hobbes era sujeitar a consciência dos homens imediatamente ao poder civil, não ao eclesiástico, em cuja turbulência e ambição aprendera a ver, pelo exemplo de seu próprio tempo, a principal causa das desordens da sociedade. Por essa razão, sua doutrina era peculiarmente ofensiva aos teólogos, os quais, por sua vez, não se furtaram a evidenciar com grande aspereza e amargura a indignação que por ele sentiam. Tal doutrina soou igualmente ofensiva a todos os moralistas judiciosos, pois supunha que não haveria uma diferença de natureza entre o certo e o errado, que estes seriam valores mutáveis e variáveis, dependentes da mera vontade arbitrária do magistrado civil. Essa maneira de explicar as coisas foi, portanto, atacada de todos os lados e com toda a sorte de armas, tanto pela razão sóbria, como pela declamação enfurecida.

Para poder refutar uma doutrina tão odiosa, era necessário provar que, previamente a qualquer lei ou instituição positiva, o espírito seria por natureza dotado de uma faculdade por intermédio da qual poderia distinguir em certas ações e afetos as qualidades do certo, do louvável e virtuoso, e em outros as do errado, do censurável e vicioso.

O Dr. Cudworth observou com justeza que a lei não poderia ser a causa primeira dessas distinções, pois, pressupondo-se tal lei, necessariamente, ou bem seria correto obedecê-la e errado desobedecê-la, ou bem indiferente que a obedecêssemos ou desobedecêssemos. A lei cuja obediência ou desobediência nos fosse indiferente não poderia, evidentemente, ser a causa dessas distinções; mas tampouco poderia sê-la a lei a que seria certo obedecer e errado desobedecer, porque até mesmo nesse caso estariam pressupostas as noções ou idéias de certo e errado, e as de que a obediência à lei seria conforme à idéia de certo, e a desobediência, à de errado.

Portanto, uma vez que o espírito possuiria, previamente a qualquer lei, uma noção dessas distinções, pareceria seguir-se, necessariamente, que essa noção derivaria da razão, a qual indicaria a diferença entre certo e errado, assim como o faria entre a verdade e a falsidade; e essa conclusão, verdadeira em certo sentido, embora precipitada em outro, foi mais facilmente aceita na época em que a ciência abstrata da natureza humana estava apenas engatinhando, e antes que os ofícios e poderes das distintas faculdades do espírito humano tivessem sido cuidadosamente examinados e diferenciados uns dos outros. Nos dias em que se engajava com grande calor e veemência nessa controvérsia com o Sr. Hobbes, não se havia pensado em nenhuma outra faculdade da qual se supusesse que tais idéias pudessem se originar. Por esses anos, pois, veio a ser a doutrina em voga a de que a essência da virtude e vício não consistiria na conformidade ou desacordo das ações humanas com a lei de um superior, mas em sua conformidade ou desacordo com a razão, que deste modo foi considerada origem e princípio de aprovação ou desaprovação.

Em certo sentido, é verdade que a virtude consiste na conformidade com a razão, e com muita justiça pode-se considerar essa faculdade, em alguma medida, como causa e princípio de aprovação e desaprovação, e de todos os sólidos julgamentos quanto ao certo e ao errado. É por meio da razão que descobrimos essas regras gerais de justiça, segundo as quais deveríamos regular nossas ações, e por esta mesma faculdade formamos as idéias mais vagas e indeterminadas do que é prudente, do que é decente, do que é generoso ou nobre, idéias que sempre nos acompanham e a cuja conformidade nos esforçamos para modelar, o mais possível, o teor de nossa conduta. As máximas gerais da moralidade se formam, como todas as outras máximas gerais, por experiência e por indução. Observamos numa grande variedade de casos particulares o que agrada ou desagrada às nossas faculdades morais, o que elas aprovam ou desaprovam, e dessa experiência estabelecemos por indução essas regras gerais. Mas a indução sempre tem sido considerada como uma das operações da razão, e por isso se diz com muita propriedade que da razão derivamos todas essas máximas e idéias gerais. Estas regulam grande parte de nossos juízos morais, os quais seriam extremamente incertos e precários se dependessem inteiramente de algo tão exposto a variações, como os sentimentos e emoções imediatos, que os diversos estados de saúde e humor são capazes de alterar de um modo tão essencial. Portanto, assim como nossos mais sólidos juízos relativos a certo e errado são regulados por máximas e idéias derivadas de uma indução da razão, pode-se dizer, com muita propriedade, que a virtude consiste numa conformidade com a razão e, nessa medida, pode-se considerar tal faculdade como causa e princípio de aprovação e desaprovação.

No entanto, ainda que a razão seja sem dúvida a origem das regras gerais de moralidade e de todos os juízos morais que formamos mediante essas regras, é completamente absurdo e ininteligível supor que as primeiras percepções de certo e errado possam ser derivadas da razão, até mesmo nos casos particulares de cuja experiência se formam as regras gerais. Essas percepções primárias, bem como todas as outras experiências sobre que se fundam quaisquer regras gerais, não podem ser objeto de razão, mas de sentido e sentimento imediatos. O modo como se formam as regras gerais de moralidade é descobrindo que numa grande variedade de casos um teor de conduta constantemente nos agrada de certa maneira e um outro, com igual constância, desagrada-nos. Contudo, razão não pode tornar um objeto particular em si mesmo agradável ou desagradável. A razão somente pode mostrar que esse objeto é o meio para se obter algo que seja naturalmente agradável ou desagradável, e que dessa maneira pode torná-lo, por consideração a alguma outra coisa, agradável ou desagradável. Mas nada pode ser agradável ou desagradável por si mesmo, que os sentidos e o sentimento não nos tenham apresentado enquanto tal. Portanto, se em todos os casos particulares necessariamente nos agrada a virtude por si mesma, e se do mesmo modo o vício causa aversão, não pode ser a razão, mas os sentidos e o sentimento imediatos, o que dessa maneira nos reconcilia com uma, e nos afasta do outro.

O prazer e a dor são os grandes objetos de desejo e aversão; mas estes não se distinguem racionalmente, mas por sentidos e sentimento imediatos. Se a virtude, pois, é desejável por si mesma, e se, do mesmo modo, o vício é objeto de aversão, não pode ser a razão, mas sentidos e sentimento imediatos o que originalmente distingue essas diferentes qualidades.

No entanto, como com justiça se pode considerar que em certa medida a razão constitui o princípio da aprovação ou desaprovação, por descuido, pensou-se durante muito tempo que esses sentimentos procedessem originalmente de uma operação daquela faculdade. Coube ao Dr. Hutcheson o mérito de ser o primeiro a distinguir com alguma precisão em que medida se pode dizer que todas as distinções morais procedem da razão, e em que medida se fundamentam em sentidos e sentimentos imediatos. Em sua Illustrations upon the Moral Sense (Ilustrações sobre o senso moral) explicou isso de modo tão cabal, e, em minha opinião, tão incontestável, que se alguma controvérsia ainda persiste sobre esse assunto, só a posso atribuir à desatenção ao que esse cavalheiro escreveu, ou a uma afeição supersticiosa a certas formas de expressão – fraqueza não incomum aos eruditos, sobretudo em matéria tão profundamente interessante como a presente, na qual um homem de virtude nem sempre aceita abandonar até mesmo a propriedade de uma só frase a que se habituou.


 
CAPÍTULO III Dos sistemas que fazem do sentimento o princípio da aprovação
Os sistemas que fazem do sentimento o princípio da aprovação podem dividir-se em duas classes distintas.

I. Segundo alguns, o princípio da aprovação se fundamenta num sentimento de natureza peculiar, num poder especial de percepção que o espírito exerce na presença de certas ações ou afetos; alguns destes afetam essa faculdade de modo agradável, outros, de modo desagradável; os primeiros ficam marcados com os caracteres de certo, louvável e virtuoso, os outros, com os de errado, censurável e vicioso. Tratando-se de um sentimento de natureza peculiar, distinto de todos os outros, na medida em que é efeito de um poder especial de percepção, a tal sentimento dão um nome particular: senso moral.

II. Segundo outros, não é necessário, para explicar o princípio da aprovação, supor a existência de um novo poder de percepção de que até então não se tivesse notícia. Imagina-se que a natureza opere neste, como em todos os outros casos, com a mais rigorosa economia, produzindo uma multidão de efeitos de uma e mesma causa; e a simpatia, poder que sempre foi notado e do qual o espírito está manifestamente dotado, é, pensam eles, suficiente para explicar todos os efeitos atribuídos a essa faculdade especial.

I. O Dr. Hutcheson esmera-se em demonstrar que o princípio da aprovação não estava fundado sobre o amor de si. Também demonstrou que não podia proceder de uma operação racional. Pensou, pois, que nada restava, senão supor que se tratava de uma faculdade de tipo especial, com que a natureza dotou o espírito humano, a fim de produzir esse especial e importante efeito. Excluídos o amor de si e a razão, não lhe ocorreu que poderia haver outra faculdade do espírito já conhecida que pudesse de algum modo satisfazer esse propósito.

Chamou senso moral a esse novo poder de percepção, e o supôs em alguma medida análogo aos sentidos externos. Assim como os corpos que nos cercam, ao afetá-los de certa maneira, aparentam possuir as diferentes qualidades de som, gosto, odor e cor, também os vários afetos do espírito humano, ao tocarem de certa maneira essa faculdade especial, aparentam possuir as diferentes qualidades de amável e odioso, virtuoso e vicioso, certo e errado.

Segundo tal sistema, as várias sensações ou poderes da percepção de que o espírito humano deriva todas as suas idéias simples seriam de duas espécies distintas, uma das quais fora chamada de sensações diretas ou antecedentes, e a outra, de reflexas ou conseqüentes. As sensações diretas seriam as faculdades das quais o espírito derivaria a percepção das espécies de coisas que não pressuporiam a percepção antecedente de nenhuma outra. Assim, sons e cores seriam objetos da sensação direta. Ouvir um som ou ver uma cor não pressupõe a percepção antecedente de alguma outra qualidade ou objeto. As sensações reflexas ou conseqüentes, de outro lado, seriam as faculdades das quais o espírito derivaria a percepção das espécies de coisas que pressuporiam a percepção antecedente de alguma outra. Assim, harmonia e beleza seriam objetos das sensações reflexas, pois para que percebamos a harmonia do som ou a beleza da cor, devemos primeiro perceber o som ou a cor. Considerou-se o senso moral como uma faculdade dessa espécie. A faculdade a que o Sr. Locke chama reflexão, da qual derivou as idéias simples das diferentes paixões e emoções do espírito humano, segundo o Dr. Hutcheson seria uma sensação interna e direta. Por seu turno, a faculdade mediante a qual perceberíamos a beleza ou deformidade, a virtude ou vício das diferentes paixões e emoções seria uma sensação interna e reflexa.

Para sustentar sua doutrina, o Dr. Hutcheson empenhou-se ainda mais para mostrar que seria agradável à analogia da natureza, e que o espírito seria dotado de uma variedade de outras sensações reflexas mediante as quais simpatizamos com a felicidade ou desgraça de nossos semelhantes: o senso de vergonha e honra e o senso de ridículo.

Não obstante todos os esforços que o engenhoso filósofo empreendeu para provar que o princípio da aprovação se funda num poder especial de percepção, de alguma forma análogo ao dos sentidos externos, reconhece que algumas conseqüências de sua doutrina talvez sejam consideradas por muitos como refutação suficiente de si mesmas. Admite que as qualidades pertencentes aos objetos de um sentido não podem ser atribuídas à própria sensação sem se incorrer em grave absurdo. Quem jamais pensou em chamar a sensação de ver de branca ou negra, a sensação de audição, de baixa ou alta, ou a sensação de gosto de amarga ou doce? E, segundo ele, é igualmente absurdo chamar nossas faculdades morais de virtuosas ou viciosas, moralmente boas ou más. Essas qualidades pertencem aos objetos dessas faculdades, não às faculdades mesmas. Portanto, se houvesse um homem tão absurdamente constituído que aceitasse a crueldade e a injustiça como as mais altas virtudes, e rejeitasse a eqüidade e a humanidade como os mais lamentáveis vícios, um espírito assim constituído poderia com efeito ser considerado como pernicioso, seja para o indivíduo, seja para a sociedade, e igualmente estranho, surpreendente e antinatural em si; mas não se poderia, sem incorrer em grave absurdo, denominá-lo vicioso ou moralmente perverso.

Todavia, se víssemos algum homem aclamar e admirar uma execução bárbara e imerecida que fosse ordenada por algum tirano insolente, não nos sentiríamos culpados de grave absurdo ao qualificar de vicioso e moralmente perverso esse comportamento, embora fosse apenas a expressão de faculdades morais depravadas ou de uma absurda aprovação desse horrendo ato, como se fosse nobre, magnânimo e grandioso. Imagino que nosso coração, ao ver tal espectador, esqueceria por um momento sua simpatia pelo sofredor, e não sentiria senão horror e abominação ao pensar em criatura tão infame e execrável. Nós o abominaríamos ainda mais que ao tirano, o qual possivelmente agira tomado pelas intensas paixões do ciúme, medo e ressentimento, e que, por esse motivo, seria mais desculpável. Mas os sentimentos do espectador pareceriam-nos inteiramente insensatos e, portanto, mais perfeita e completamente abomináveis. Não existe perversão de sentimentos ou afetos que nosso coração mais resistisse a compartilhar ou que rejeitasse com mais ódio e indignação do que algum dessa espécie, e, longe de considerar semelhante constituição de espírito como algo simplesmente estranho ou pernicioso e de modo algum vicioso ou moralmente perverso, antes o consideraríamos como o último e mais terrível estágio de depravação moral.

Ao contrário, os sentimentos morais corretos naturalmente se mostram em certo grau louváveis e moralmente bons. O homem cuja censura ou aplauso em toda a ocasião está adequado, com grande precisão, ao valor ou indignidade do objeto, parece merecer certa medida de aprovação moral. Admiramos a delicada precisão de seus sentimentos morais; conduzem nossos próprios juízos e, graças à sua incomum e surpreendente exatidão, até suscitam nossa admiração e aplauso. Certamente não podemos estar sempre certos de que a conduta de uma pessoa como essa corresponda à precisão e acurácia de seus juízos relativos à conduta alheia. A virtude requer hábito e resolução de espírito, bem como delicadeza de sentimento, e infelizmente estas primeiras qualidades às vezes faltam ali onde a última existe com a maior perfeição. Todavia, essa disposição de espírito, ainda que algumas vezes venha acompanhada de imperfeições, é incompatível com o que seja grosseiramente criminal, e é o fundamento mais sólido sobre o qual se poderia construir a superestrutura da perfeita virtude. Há muitos homens bem intencionados que se propõem seriamente executar o que julgam seu dever, mas que, apesar disso, são desagradáveis por conta da rudeza de seus sentimentos morais.

Talvez se possa dizer que, embora o princípio de aprovação não esteja fundado num poder de percepção que seja de algum modo análogo aos sentidos externos, poderia ainda fundar-se em algum sentimento especial que respondesse a esse fim particular e a nenhum outro. Poder-se-ia pretender que aprovação e desaprovação são determinados sentimentos ou emoções que surgem no espírito à vista de certos caracteres e ações, e, assim como ao ressentimento se poderia chamar senso das ofensas, ou à gratidão senso dos benefícios, estas poderiam com muita propriedade receber o nome de senso do certo e do errado, ou senso moral.

Mas essa explicação, embora não seja passível das mesmas objeções que a anterior, está exposta a outras igualmente irrespondíveis.

Em primeiro lugar, sejam quais forem as variações a que uma emoção particular possa estar sujeita, conserva ainda assim os traços gerais que a distinguem como emoção de tal espécie, e esses traços gerais sempre são muito mais impressionantes e notáveis que qualquer variação que possa experimentar em casos particulares. Assim, a ira é uma emoção de espécie particular e, por conseguinte, seus traços gerais sempre são mais perceptíveis que todas as variações que possa experimentar em casos particulares. A ira contra um homem é, sem dúvida, algo diferente da ira contra uma mulher, e esta, por sua vez, difere da ira contra uma criança. Em cada um desses três casos, a paixão da ira em geral admite uma modificação distinta segundo o caráter particular de seu objeto, como o observador atento pode facilmente perceber. Mas, apesar disso, em todos esses casos predominam os traços gerais da paixão. Para distinguir tais traços não é necessária uma observação penetrante; é necessária, ao contrário, uma observação bastante delicada para descobrir suas variações. Todo o mundo cuida das primeiras, quase ninguém observa as últimas. Se aprovação e desaprovação fossem, pois, como gratidão e ressentimento, emoções de uma espécie particular, distintas de todas as demais, seria de esperar que em todas as variações que uma ou outra pudesse sofrer, ainda se conservariam claros, manifestos e facilmente perceptíveis os traços gerais que as caracterizam como emoções de certa espécie particular. Contudo, de fato sucede o contrário. Se atentarmos ao que realmente sentimos quando, em diferentes ocasiões, aprovamos ou desaprovamos algo, descobriremos que nossa emoção num caso é totalmente distinta da emoção de outro caso, e que não é possível perceber traços comuns entre ambas. Assim, a aprovação com que divisamos um sentimento terno, delicado e humano, é bastante distinta daquela que nos ocorre diante de outro sentimento que se nos apresenta grande, ousado e magnânimo. Nossa aprovação de ambos pode, em diferentes ocasiões, ser perfeita e completa, mas um deles nos enternece e o outro nos eleva, e não há semelhança alguma entre as emoções que suscitam em nós. Ora, de acordo com o sistema que venho me esforçando por demonstrar, tal deve, necessariamente, ser o caso. Como as emoções da pessoa a quem aprovamos são, nesses dois casos, opostas umas às outras, e como nossa aprovação surge da simpatia com essas emoções opostas, o que sentimos num caso não pode em nada assemelhar-se ao que sentimos em outro. No entanto, isso não poderia ocorrer se a aprovação consistisse numa emoção peculiar, que nada tivesse em comum com os sentimentos que aprovamos, mas que surgisse ante a presença desses sentimentos, do mesmo modo como qualquer outra paixão surge ante a presença do objeto que lhe é próprio. O mesmo ocorre com relação à desaprovação. O horror que nos inspira a crueldade em nada se assemelha ao desprezo que sentimos pela mesquinharia. É uma espécie muito distinta de discórdia a que sentimos ante a presença desses dois diferentes vícios, entre nosso próprio espírito e o da pessoa cujos sentimentos e conduta observamos.

Em segundo lugar, já observei que não apenas as diferentes paixões ou afetos do espírito humano aprovados ou desaprovados se nos apresentam moralmente bons ou maus, mas que também a aprovação conveniente ou inconveniente se apresenta aos nossos sentimentos naturais com a marca desses mesmos caracteres. Ocorre-me perguntar, portanto, como, segundo esse sistema, aprovamos ou desaprovamos a aprovação conveniente e inconveniente? Imagino que exista apenas uma resposta razoável a essa questão. Deve-se dizer que, quando a aprovação com que nosso próximo observa a conduta de um terceiro coincide com a nossa, aprovamos sua aprovação, e a consideramos em certa medida moralmente boa; ao contrário, quando não coincide com nossos próprios sentimentos, nós a desaprovamos e a consideramos em certa medida moralmente má. Deve-se, por conseguinte, admitir que pelo menos nesse caso a coincidência ou oposição dos sentimentos entre o observador e a pessoa observada constitui aprovação ou desaprovação moral. E se for assim nesse caso, indagaria: por que não em todos os outros? Qual o propósito de imaginar-se um novo poder de percepção para explicar esses sentimentos?

Contra toda explicação do princípio da aprovação que o faz depender de um sentimento peculiar, distinto de todos os demais, eu objetaria: é bastante estranho que esse sentimento, o qual a Providência certamente pretendeu que fosse o princípio governante da natureza humana, até agora tenha passado despercebido, a ponto de sequer receber um nome nos vários idiomas. O termo “senso moral” foi cunhado tardiamente, e ainda não se pode considerá-lo parte da língua inglesa. Apenas recentemente apropriou-se do termo “aprovação” para denotar com peculiaridade coisas dessa espécie. Para falar com propriedade, aprovamos tudo o que nos satisfaz inteiramente: a forma de um edifício, o engenho de uma máquina, o sabor de um prato de carne. O termo “consciência” não denota imediatamente uma faculdade moral que nos permita aprovar ou desaprovar algo. A consciência supõe, na verdade, a existência de alguma faculdade dessa espécie, e significa propriamente a consciência de termos agido conforme ou contrariamente a suas ordens. Quando amor, ódio, alegria, tristeza, gratidão, ressentimento, e tantas outras paixões que se supõem sujeitas a esse princípio, fizeram-se suficientemente importantes para receber títulos pelos quais nos são conhecidas, não é surpreendente que a soberana entre todas elas até aqui fosse tão pouco notada que, salvo uns poucos filósofos, ninguém ainda a tenha julgado digna de receber um nome?

Quando aprovamos algum caráter ou ação, os sentimentos que experimentamos, segundo o sistema acima citado, derivam de quatro fontes, em alguns aspectos diferentes entre si. Primeiro, simpatizamos com os motivos do agente; segundo, participamos da gratidão dos que recebem o benefício de suas ações; terceiro, observamos que sua conduta obedeceu às regras gerais por meio das quais essas duas simpatias geralmente agem; e, por último, se consideramos tais ações como parte de um sistema de conduta que tende a promover a felicidade do indivíduo ou da sociedade, então dessa utilidade poderá resultar certa beleza, não muito distinta da que atribuímos a qualquer máquina bem engendrada. Após eliminar os eventuais casos particulares, e admitir que tudo necessariamente deve proceder de um ou vários desses quatro princípios, gostaria de saber o que mais resta, e concederei prontamente que esse resíduo seja atribuído a um senso moral, ou a qualquer outra faculdade peculiar, contanto que me demonstrem em que precisamente consiste esse resíduo. Talvez se pudesse esperar que, se realmente existisse um princípio peculiar, como se supõe ser esse senso moral, deveríamos senti-lo, em alguns casos particulares, separado e apartado de todos os demais, como com demasiada freqüência sentimos, em toda a sua pureza e sem mescla de outra emoção, a alegria, tristeza, esperança e medo. Mas imagino que isso nem sequer se possa pretender. Nunca ouvi alegar-se nenhum exemplo em que se pudesse dizer que esse princípio agiu por si mesmo, sem mescla alguma de simpatia ou antipatia, de gratidão ou ressentimento, da percepção do acordo ou desacordo de qualquer ação com uma regra estabelecida, ou, muito menos, sem mescla do gosto geral por beleza e ordem que, tanto os objetos inanimados, como os animados, suscitam em nós.

II. Um outro sistema distinto do que venho me esforçando por estabelecer, procura explicar a origem dos nossos sentimentos morais por meio da simpatia. É o que faz a virtude residir na utilidade, e atribui o prazer com que o espectador examina a utilidade de qualquer qualidade à simpatia pela felicidade dos que por ela são afetados. Essa simpatia difere tanto daquela pela qual nos introduzimos nos motivos do agente, como daquela pela qual partilhamos da gratidão das pessoas beneficiadas por seus atos. Trata-se do mesmo princípio pelo qual aprovamos uma máquina bem engendrada. No entanto, nenhuma máquina pode ser objeto de uma ou outra dessas duas simpatias recém-mencionadas. Na quarta parte deste discurso já forneci alguma explicação desse sistema.


 
SEÇÃO IV Da maneira como diferentes autores trataram as regras práticas da moralidade
Observou-se na terceira parte deste discurso que as regras da justiça são as únicas regras morais precisas e acuradas, ao passo que as regras de todas as outras virtudes são imprecisas, vagas e indeterminadas; as primeiras podem ser comparadas às regras de gramática, as outras, às que os críticos estabelecem para alcançar o sublime e elegante na composição, razão pela qual antes nos apresentam uma idéia geral da perfeição que deveríamos buscar, do que nos fornecem orientações certas e infalíveis para a obter.

Uma vez que as diversas regras da moralidade admitem esses distintos graus de precisão, os autores que se esforçaram por recolhê-las e compilá-las em sistemas procederam de duas maneiras diferentes: um grupo adotou integralmente o método impreciso a que foi naturalmente orientado pela consideração de uma espécie de virtude; o outro empenhou-se universalmente por introduzir em seus preceitos o tipo de precisão de que apenas alguns deles são suscetíveis. Os primeiros escreveram como críticos, os outros, como gramáticos.

I. Os primeiros, entre os quais podemos incluir todos os antigos moralistas, contentaram-se em descrever de modo geral os diferentes vícios e virtudes, e em apontar a deformidade e desgraça de uma disposição, bem como a propriedade e felicidade da outra, mas não se dispuseram a estabelecer muitas regras precisas que continuassem em vigência, de modo inatacável, em todos os casos particulares. Apenas esforçaram-se por determinar, na medida em que o permite a linguagem, primeiro, em que consiste o sentimento do coração no qual se funda cada virtude particular; que espécie de sentido ou sentimento interno constitui a essência da amizade, da humanidade, da generosidade, da justiça, da magnanimidade, e de todas as demais virtudes, bem como dos vícios que lhe são opostos; e, segundo, qual o modo geral de agir, o tom e teor ordinário de conduta que cada um desses sentimentos nos ordenaria; ou como escolheria agir, em ocasiões comuns, um homem amável, generoso, bravo, justo e humano.

Caracterizar o sentimento do coração sobre o qual se funda cada virtude particular é tarefa que pode ser executada com certo grau de exatidão, embora para tanto seja necessária uma pena a um tempo precisa e delicada. Na verdade, é impossível expressar todas as variações que cada sentimento experimenta ou deveria experimentar, conforme todas as possíveis variações de circunstâncias. Estas são infinitas, de modo que a linguagem carece de nomes para os designar. Por exemplo, o sentimento de amizade que nutrimos por um ancião difere do que nutrimos por um jovem; o que cultivamos por um homem austero difere do que experimentamos por alguém de maneiras mais brandas e gentis e difere, por sua vez, do que temos por alguém de modos alegres e espirituosos. A amizade que concebemos por um homem não nos afeta da mesma maneira como nos afeta a por uma mulher, ainda quando nesse sentimento não se mistura alguma paixão mais grosseira. Que autor poderia enumerar e determinar estas e todas as outras infinitas variações de que é passível esse sentimento? Contudo, é possível determinar, com razoável precisão, o sentimento geral de amizade e de afeição familiar comum a todas essas variações. Embora seja em muitos aspectos incompleto, o retrato que se esboça do sentimento de amizade pode guardar semelhança que nos permita reconhecer o original quando com ele deparamos, e até distingui-lo de outros sentimentos com que mantenha uma semelhança considerável, como, por exemplo, boa-vontade, respeito, estima e admiração.

Mais fácil ainda é descrever em traços gerais o modo comum de ação a que cada virtude nos incitaria. Com efeito, é quase impossível descrever o sentido ou sentimento interno em que se fundamenta, sem realizar algo dessa espécie. A linguagem é incapaz de expressar, por assim dizer, os traços invisíveis de todas as diferentes modificações da paixão tal como se mostram internamente. Não há outro modo de designá-las e distingui-las umas das outras, senão descrevendo os efeitos que produzem, as alterações que ocasionam no semblante, no aspecto e comportamento exterior, as resoluções que sugerem, os atos a que nos incitam. Assim é que, no primeiro livro de seus De Officiis, Cícero esforça-nos para nos ordenar à prática das quatro virtudes cardeais; e que Aristóteles, nas partes práticas de sua Ética, indique-nos os diferentes hábitos pelos quais desejaria que regulássemos nosso comportamento, tais como liberalidade, magnificência, magnanimidade, e até graça e bom humor – qualidades que esse indulgente filósofo julgava dignas de um espaço no catálogo das virtudes, embora a leviandade da aprovação que naturalmente lhes destinamos não pareça dar-lhes direito a nome tão venerável.

Tais obras nos apresentam retratos agradáveis e vivos das maneiras. Por conterem descrições de tal vivacidade, inflamam nosso amor natural à virtude, aumentam nossa abominação ao vício; por causa de suas justas e delicadas observações, com freqüência podem ajudar a um só tempo a corrigir e a determinar nossos sentimentos naturais relativos à conveniência da conduta, e, por sugerirem inúmeros cuidados belos e delicados, a formar-nos para uma justeza de comportamento mais precisa do que poderíamos imaginar sem tal instrução. A ciência que consiste em tratar desse modo as regras da moralidade chama-se, com propriedade, Ética – ciência que, embora como crítica não permita a mais estrita precisão, é, contudo, bastante útil e agradável. Dentre todas as outras ciências, é a mais suscetível dos embelezamentos da eloqüência e, por meio destes, de conferir, se isso é possível, uma nova importância às menores regras do dever. Assim revestidos e adornados, seus preceitos são capazes de produzir sobre a flexibilidade da juventude as mais nobres e duradouras impressões; e, na medida em que coincidem com a magnanimidade natural dessa generosa idade, são capazes, ao menos por algum período, de inspirar as mais heróicas resoluções, tendendo, pois, a estabelecer e confirmar os melhores e mais úteis hábitos de que é suscetível o espírito humano. Tudo o que se possa fazer, por preceito e exortação, para nos estimular à prática da virtude, essa ciência o faz e dessa maneira o transmite.

II. Os moralistas do segundo grupo, entre os quais podemos incluir todos os casuístas da Idade Média e recente da Igreja Cristã, bem como todos os que neste século e no precedente trataram a chamada jurisprudência natural, não se contentando em caracterizar dessa maneira geral o teor de conduta que nos seria recomendável, esforçaram-se por estabelecer regras exatas e precisas para a direção de toda a circunstância de nosso comportamento. Uma vez que a justiça é a única virtude de que se pode propriamente dar tais regras exatas, não admira que a atenção desses dois grupos distintos de autores tenha recaído sobre essa virtude. Tratam-na, porém, de modo bastante diverso.

Os autores que escrevem sobre os princípios da jurisprudência consideram apenas o que a pessoa a quem a obrigação é devida julga seu direito exigir pela força; o que todo espectador imparcial aprovaria tal pessoa exigir, ou o que um juiz ou árbitro, a quem o caso fosse submetido, e que empreendesse fazer-lhe justiça, deveria obrigar ao outro sofrer ou cumprir. Por outro lado, os casuístas examinam menos o que se poderia, com propriedade, exigir pela força, e mais o que o devedor julga-se obrigado a cumprir, em razão do mais sagrado e escrupuloso respeito às regras gerais da justiça, e do mais consciencioso horror a fazer o mal a seu próximo ou a violar a integridade de seu próprio caráter. A finalidade da jurisprudência é prescrever regras para as decisões de juízes e árbitros. A finalidade da casuística é prescrever regras para a conduta de um bom homem. Por observarmos todas as regras da jurisprudência, por supormo-las tão perfeitas, nada mais mereceríamos, senão não estarmos sujeitos a punições externas. Por observarmos as regras da casuística, por supormo-las tais como deveriam ser, teríamos direito a considerável louvor, em razão da exata e escrupulosa delicadeza de nosso comportamento.

Pode suceder com freqüência que um homem bom julgue-se obrigado, por sagrado e consciencioso respeito às regras gerais da justiça, a cumprir muitas coisas as quais seria bastante injusto extorquir dele, ou que qualquer árbitro ou juiz infligisse-lhe pela força. Um exemplo banal: um bandoleiro obriga um viajante, sob ameaça de morte, a prometer-lhe certa soma de dinheiro. Se tal promessa, extorquida dessa maneira por meio da força injusta, deve ser considerada obrigatória, é questão que há muito se debate.

Se a tratamos como mera questão de jurisprudência, a decisão não pode admitir dúvida. Seria absurdo supor que um bandoleiro possa ter direito a usar a força para coagir o outro a cumprir uma promessa. Extorquir a promessa foi um crime merecedor de punição extrema, e extorquir seu cumprimento seria apenas adicionar a prática de um outro crime ao primeiro. Não pode reclamar ter sofrido ofensa quem apenas foi enganado pela pessoa por quem justamente poderia ser assassinado. Supor que um juiz devesse fazer cumprir as obrigações resultantes de tais promessas, ou que o magistrado devesse permitir que essas promessas respaldassem ações legais, seria o mais ridículo absurdo. Se considerarmos essa questão como questão de jurisprudência, portanto, não poderemos ter dúvidas quanto à decisão.

Mas se a tratarmos como questão de casuística, a conclusão não será tão simples. Suscita muito mais dúvida saber se um homem bom, por consciencioso respeito à mais sagrada regra da justiça, a qual ordena a observância de todas as promessas celebradas, deveria julgar-se ou não obrigado a cumprir uma promessa como aquela. Não estará sujeito à disputa considerar-se que nenhum respeito é devido à frustração do infame que põe a outro em tal situação, que nenhuma ofensa se comete contra o assaltante e, conseqüentemente, que nada pode ser extorquido pela força. No entanto, talvez se possa indagar, com mais razão, se nesse caso não se deve algum respeito à própria dignidade e honra, à inviolável santidade do caráter que faz reverenciar a lei da verdade, e abominar tudo o que se aproxima de traição e falsidade. Nesse ponto, os casuístas se dividem. Um partido, formado por autores antigos, como Cícero; modernos, como Puffendorf; Barbeyrac, seu comentador; e, sobretudo, o falecido Dr. Hutcheson – que, na maioria dos casos, de modo algum era um casuísta indefinido –, determina sem hesitação que nenhuma espécie de respeito é devida a tal promessa, e que pensar o contrário é mera fraqueza e superstição. Outro grupo, no qual podemos incluir alguns dos antigos pais da igreja, bem como alguns casuístas modernos muito eminentes, é de outra opinião, e julga obrigatórias todas essas promessas.

Se tratarmos a questão de acordo com os sentimentos comuns da humanidade, descobriremos que se julga devida alguma espécie de respeito até mesmo a uma promessa como aquela, embora seja impossível determinar, por qualquer regra geral, em que medida isso se aplicaria a todos os casos, sem exceção. Não escolheríamos por amigo e companheiro um homem que com bastante liberdade e facilidade fizesse promessas, para logo em seguida violá-las com a mesma sem-cerimônia. Um cavalheiro que prometesse cinco libras a um bandoleiro e não as entregasse incorreria em alguma censura. Se, porém, a soma prometida fosse muito grande, poderia ter mais dúvidas quanto ao melhor a se fazer. Por exemplo, se o pagamento dessa soma arruinasse inteiramente a família do promitente, se fosse tão vultosa que bastasse para promover propósitos mais úteis, pareceria de certa forma criminoso, ou ao menos extremamente impróprio, lançá-la em mãos tão indignas, por causa de um excessivo formalismo. O homem que mendigasse cem mil libras ou, ainda que dispusesse dessa quantia, abrisse mão dela apenas para manter a palavra empenhada a um ladrão, pareceria, ao bom-senso dos homens, absurdo e extravagante no mais alto grau. Essa profusão pareceria incoerente com o seu dever, com o que era devido a si e a outros, e portanto de modo algum autorizaria a promessa assim extorquida. Entretanto, fixar por qualquer regra precisa que grau de respeito se deveria prestar a tal promessa, ou qual a maior quantia devida, é evidentemente impossível. Isso variaria conforme os caracteres das pessoas, conforme suas circunstâncias, a solenidade da promessa, e até conforme os incidentes do confronto; e, caso o promitente fosse tratado com muita da galanteria que se encontra às vezes em pessoas dos caracteres mais perdidos, mais pareceria devido do que em outras ocasiões. Pode-se dizer, de modo geral, que a justa conveniência exige a observância de todas essas promessas, sempre que não for inconsistente com alguns outros deveres mais sagrados, tais como o respeito ao interesse público e àqueles a quem a gratidão, o afeto natural ou as leis da beneficência apropriada nos incitam a mantê-lo. Mas, como já se observou anteriormente, não dispomos de regras precisas para determinar as ações externas devidas por respeito a tais motivos, nem, conseqüentemente, quando aquelas virtudes são inconsistentes com a observância de tais promessas.

Deve-se advertir, porém, que, embora pelas razões mais necessárias, nunca se violam tais promessas sem incorrer em algum grau de desonra. Depois de feitas, podemos nos convencer da inconveniência de sua observância, mas ainda existe algum erro em havê-las feito. É, no mínimo, um desvio das mais altas e nobres máximas da magnanimidade e honra. O bravo homem deveria morrer a fazer uma promessa que não pudesse manter sem tornar-se insensato, ou violar sem cometer ignomínia, pois algum grau de ignomínia sempre acompanha uma situação como essa. Traição e falsidade são vícios tão perigosos, tão terríveis e, ao mesmo tempo, tão fácil e seguramente permitidos, que somos mais ciosos deles do que de quase todos os outros. Por conseguinte nossa imaginação associa a idéia de vergonha a todas as violações da confiança, em todas as circunstâncias e situações. Nesse aspecto, assemelham-se à violação de castidade no belo sexo, virtude da qual, por razões semelhantes, somos excessivamente ciosos: nossos sentimentos por uma não são mais delicados que por outra. A transgressão da castidade significa uma desonra irrecuperável. Nenhuma circunstância, nenhuma súplica, podem desculpála; nenhuma aflição, nenhum arrependimento, expiam-na. Somos tão escrupulosos nesse aspecto, que mesmo um estupro desonra, pois em nossa imaginação a inocência do espírito é incapaz de limpar a sujeira do corpo. O mesmo ocorre com a violação da confiança, mesmo quando foi empenhada solenemente ao mais indigno dos homens. A fidelidade é uma virtude tão necessária que em geral a tributamos devida até mesmo àqueles a quem nada mais se deve, e a quem julgamos legítimo matar e destruir. É inútil à pessoa culpada de transgressão à relação de fidelidade argumentar que prometeu para salvar sua vida, e que rompeu a promessa porque mantê-la seria inconsistente com algum outro dever respeitável. Essas circunstâncias podem aliviar, mas nunca apagam inteiramente essa desonra. Tal pessoa se mostraria culpada de um ato que a imaginação dos homens associa, inseparavelmente, a algum grau de vergonha. Por transgredir uma promessa que jurara solenemente manter, seu caráter, se não se tornou irrecuperavelmente maculado e poluído, ao menos fica marcado com a pecha de ridículo, a qual dificilmente poderá remover. E imagino que ninguém que passasse por uma aventura como essa gostaria de contar sua história.

Esse exemplo pode servir para mostrar em que consiste a diferença entre casuística e jurisprudência, mesmo quando ambas examinam as obrigações relativas às regras gerais de justiça.

Ainda que essa diferença seja real e essencial, ainda que essas duas ciências proponham finalidades bastante distintas, a uniformidade do assunto tornou-as tão semelhantes, que a maioria dos autores cuja intenção manifesta era tratar da jurisprudência demonstrou as diferentes questões que examinam ora conforme os princípios de sua ciência, ora conforme os princípios da casuística, sem distingui-los, e talvez sem se dar conta de quando faziam uma coisa ou quando faziam outra.

A doutrina dos casuístas, porém, não se confina de modo algum à consideração do que o respeito consciencioso às regras gerais da justiça exigiria de nós. Tal doutrina abrange muitas outras partes do dever cristão e moral. O que sobretudo parece ter ocasionado o cultivo dessa espécie de ciência foi o costume da confissão auricular, introduzido pela superstição católica em tempos de barbárie e ignorância. Por essa instituição, os mais secretos atos, mesmo os pensamentos de alguém suspeito de retroceder minimamente das regras da pureza cristã, deviam ser revelados ao confessor. O confessor informava seus penitentes se haviam violado seu dever, em que medida isso se dera, e que penitência lhes caberia sofrer antes que os pudesse absolver em nome da Divindade ofendida.

A consciência, ou até mesmo a suspeita de ter cometido erro, é um peso sobre todo o espírito, e em todos os que não foram endurecidos por antigos hábitos de iniqüidade vem acompanhada de ansiedade e terror. Nessa e em todas as outras aflições, os homens naturalmente anseiam por retirar o fardo que oprime seus pensamentos, revelar a agonia de seu espírito a alguém em cujo sigilo e discrição possam confiar. A simpatia do confidente raro deixa de produzir alívio ao seu desassossego, o que compensa plenamente a vergonha de confessar-se. Serena-os descobrir que não são inteiramente indignos de respeito, e que por mais censurável que seja sua conduta passada, ao menos sua presente disposição é aprovada, o que talvez baste para compensar a outra, ou ao menos para conservar em alguma medida a estima de seu amigo. Em tais épocas de superstição, um clero astuto e numeroso se insinuara na confiança de quase todas as famílias. Possuía a pouca instrução que os tempos poderiam oferecer, e seus costumes, embora em muitos aspectos rudes e desregrados, eram polidos e regulares, se comparados aos das pessoas daquela época. Considerava-se esse clero, portanto, não apenas o grande diretor de todos os deveres religiosos, mas de todos os deveres morais. Sua familiaridade conferia reputação ao afortunado que dela privasse, e qualquer sinal de sua desaprovação bastava para imprimir a mais profunda ignomínia sobre todos os que tivessem o infortúnio de sofrê-lo. Uma vez que o tinham por grande juiz do certo e do errado, naturalmente o consultavam sobre todos os escrúpulos que lhe ocorressem, conferindo boa reputação a qualquer pessoa dar a conhecer que esses homens santos eram seus confidentes em todos esses segredos, e que não davam um passo importante ou delicado em sua conduta sem conselho e aprovação deles. Não era, pois, difícil para o clero estabelecer como regra geral que lhes deviam confiar o que já se tornara voga confiar-lhes, e o que universalmente lhes teriam confiado, a despeito de não se estabelecer tal regra. Qualificar-se para ouvir a confissão tornou-se então parte necessária do estudo de religiosos e teólogos, de modo que foram levados a recolher os chamados casos de consciência, situações delicadas e difíceis, nas quais é difícil determinar onde radica a conveniência da conduta. Imaginavam que tais obras poderiam ser úteis para diretores de consciência e os que seriam dirigidos, donde a origem dos livros de casuística.

Os deveres morais submetidos ao crivo dos casuístas eram principalmente os que em certa medida podem ser definidos por regras gerais, e cuja violação é naturalmente acompanhada de certo grau de remorso, e certo terror a sofrer punições. O desígnio de se instituir a confissão, o que ocasionou suas obras de casuística, era aplacar os terrores de consciência que acompanham a infração desses deveres. Porém, nem toda a falta de virtude vem acompanhada de compunção tão grave, e homem algum roga a seu confessor que o absolva por não ter praticado a ação mais generosa, a mais amável ou a mais magnânima possível de se praticar em suas circunstâncias. Em malogros dessa espécie, comumente não se determina com precisão que regra se viola, a qual, por seu turno, geralmente é de tal natureza que, embora sua observância pudesse conferir direito à honra e recompensa, a violação não parece expor a algum opróbrio, censura positiva, ou punição. Os casuístas parecem ter considerado a prática de tais virtudes como uma espécie de remissão excessiva que, não se podendo exigir de modo demasiado estrito, era desnecessário abordar.

Portanto, as transgressões do dever moral que se apresentavam perante o tribunal do confessor e que, por essa razão, se tornavam conhecidas dos casuístas, eram principalmente de três diferentes espécies.

Primeira, e principalmente, as transgressões das regras da justiça. Compreendem-se por tais regras todas as leis expressas e positivas, de cuja violação naturalmente se segue a consciência de merecer, e o medo de sofrer, o castigo de Deus e dos homens.

Da segunda espécie são as transgressões das regras de castidade. Estas, em todos os casos flagrantes, são as verdadeiras transgressões das regras de justiça, e ninguém que delas seja culpado deixa de cometer a outro a mais imperdoável ofensa. Em casos menos graves, quando não passam de violação do exato decoro que se deveria observar no convívio entre os dois sexos, não podem ser justamente consideradas como violações das regras da justiça. Em geral, porém, trata-se de violações de uma regra bastante clara e, ao menos num dos sexos, tendem a causar ignomínia à pessoa culpada, e, conseqüentemente, são acompanhadas, nos escrupulosos, de algum grau de vergonha e contrição de espírito.

A terceira espécie de transgressão diz respeito às regras de veracidade. Deve-se advertir que a violação da verdade nem sempre é uma transgressão das normas de justiça, embora isso ocorra em muitas ocasiões, e, conseqüentemente, nem sempre são passíveis de expor a castigo externo. O vício da mentira habitual, embora seja a mais miserável mesquinheza, com freqüência a ninguém prejudica e, nesse caso, não se pode reivindicar vingança ou compensação às pessoas ludibriadas ou a outras. No entanto, ainda que a violação da verdade nem sempre resulte em transgressão das leis da justiça, é invariavelmente transgressão de uma regra bastante clara, razão por que naturalmente tende a cobrir de vergonha a pessoa que dela é culpada.

Parece haver nas crianças pequenas uma disposição instintiva a acreditar em tudo o que lhe dizem. A natureza parece ter julgado necessário para sua conservação que, ao menos por certo tempo, depositassem confiança irrestrita nas pessoas a quem cabe o cuidado com sua infância, e das primeiras e mais essenciais fases de sua educação. Sua credulidade, por essa razão, é excessiva e é preciso uma longa experiência da falsidade dos homens para reduzi-las a algum grau de desconfiança e suspeita. Em adultos, os graus de credulidade são, sem dúvida, bastante distintos. Os mais sábios e experientes são geralmente os menos crédulos. Mas raro é o homem menos crédulo do que deveria, e que muitas vezes não dê crédito a contos que não apenas se mostram perfeitamente falsos, como ainda não poderiam parecer-lhe verdadeiros, se os examinasse com um grau muito moderado de reflexão e atenção. A disposição natural é sempre a acreditar. Apenas a sabedoria e experiência adquiridas ensinam a incredulidade, e raramente a ensinam o bastante. O mais sábio e cauteloso de nós com freqüência dá crédito a histórias de que depois ele mesmo se envergonha e se espanta de ter sequer cogitado em nelas acreditar.

Necessariamente, o homem em quem acreditamos é, nas coisas a que lhe damos crédito, nosso guia e conselheiro e erguemos os olhos para ele com certo grau de estima e respeito. Mas, do mesmo modo como, por admirarmos outras pessoas, passamos a desejar ser admirados também, por sermos guiados e aconselhados por outras aprendemos a desejar que nós mesmos nos tornemos guias e conselheiros. E uma vez que nem sempre podemos nos satisfazer meramente com sermos admirados – a menos que, ao mesmo tempo, possamos nos persuadir de sermos em algum grau realmente dignos de admiração –, nem sempre estamos satisfeitos meramente com acreditarem em nós, a menos que, ao mesmo tempo, tenhamos consciência de ser realmente dignos de crédito. Embora o desejo de louvor e de ser louvável sejam muito semelhantes, são não obstante desejos distintos e separados; do mesmo modo, embora o desejo de ser objeto de crença e o de ser digno de crença sejam muito semelhantes, são não obstante igualmente desejos separados e distintos.

O desejo de ser objeto de crença, o desejo de persuadir, de guiar, de dirigir outras pessoas parece ser um dos mais fortes de todos os nossos desejos naturais. Talvez seja o instinto sobre o qual se funda a faculdade do discurso, faculdade característica da natureza humana. Nenhum outro animal possui essa faculdade, e é impossível encontrar em qualquer outro animal o desejo de guiar e dirigir o juízo e a conduta de seus semelhantes. Uma grande ambição, um desejo de verdadeira superioridade, de guiar e dirigir, parece ser inteiramente peculiar ao homem, e o discurso é o grande instrumento da ambição, da verdadeira superioridade, de guiar e dirigir os juízos e a conduta de outras pessoas.

Sempre nos mortifica que não nos dêem crédito, e tal sensação é dobrada quando suspeitamos de que isso ocorre por nos julgarem indignos de crédito, capazes de enganar alguém de modo grave e deliberado. Dizer a um homem que ele mente é a mais mortal de todas as afrontas. Porém todos os que enganam de modo grave e deliberado necessariamente têm consciência de merecer essa afronta, de não ser dignos de crença, e de perder todo o direito ao único crédito que podem extrair de qualquer espécie de bem-estar, conforto ou satisfação na companhia de seus iguais. O homem que por infortúnio imaginasse que ninguém acreditaria numa só palavra por ele proferida se sentiria um pária da sociedade humana, temeria a simples idéia de introduzir-se nessa sociedade ou de apresentar-se diante dela, e dificilmente seria capaz, penso eu, de evitar morrer de desespero. No entanto, é provável que homem algum jamais tenha tido justa razão de alimentar essa humilhante opinião de si mesmo. Inclino-me a acreditar que, para cada mentira grave e deliberada, o mais notório mentiroso conta a verdade pelo menos vinte vezes; e assim como entre os mais cautelosos a disposição de crer consegue prevalecer sobre a de duvidar e desconfiar, também entre os que mais negligenciam a verdade a disposição natural de contá-la prevalece, na maioria das ocasiões, sobre a de enganar, ou, em qualquer aspecto, de alterá-la ou disfarçá-la.

Mortifica-nos quando nos sucede enganar outras pessoas, embora sem intenção, e quando os enganados somos nós. Posto que essa falsidade involuntária com freqüência não indique falta de veracidade, ou do mais perfeito amor à verdade, sempre é, em algum grau, sinal de falta de discernimento, falta de memória, de credulidade inadequada, de algum grau de precipitação e impulsividade. Sempre diminui nossa autoridade para persuadir, e sempre lança algum grau de suspeita sobre nossa capacidade de guiar e orientar. O homem que às vezes perverte por erro, porém, é muito diferente de quem é capaz de enganar deliberadamente. Em muitas ocasiões é possível confiar, com segurança, no primeiro; no outro, muito raramente.

A franqueza e a sinceridade conquistam a confiança. Confiamos no homem que parece disposto a confiar em nós. Julgamos ver claramente a estrada pela qual ele pretende nos conduzir, e abandonamo-nos com prazer à sua orientação e direção. Ao contrário, reserva e sigilo provocam desconfiança. Tememos seguir o homem cujo rumo desconhecemos. Ademais, o grande prazer do convívio e da sociedade surge de certa correspondência entre sentimentos e opiniões, de certa harmonia entre espíritos, que, a exemplo de inúmeros instrumentos musicais, coincidem e mantêm o mesmo ritmo. Essa harmonia tão encantadora, contudo, não pode ser alcançada, salvo se a comunicação entre sentimentos e opiniões for livre. Por isso, todos desejamos sentir como o outro é afetado, penetrar no peito do outro, e observar os sentimentos e afetos que realmente ali subsistem. O homem que nos permite essa paixão natural, que nos convida ao seu coração, que nos abre, por assim dizer, os portões de seu peito, parece praticar a espécie de hospitalidade mais encantadora. Nenhum homem que seja de praxe bem-humorado consegue desagradar, se tem a coragem de expressar seus reais sentimentos como os sente, e porque os sente. É essa sinceridade sem reservas que torna agradável até mesmo a tagarelice de uma criança. Por mais fracas e imperfeitas que sejam as opiniões dos homens de coração aberto, gostamos de compartilhá-las, e de nos esforçar, o mais possível, para rebaixar nosso entendimento ao nível de suas capacidades, e para considerar todo tema à luz particular em que mostram tê-lo considerado. Essa paixão de descobrir os reais sentimentos de outros é naturalmente tão forte, que muitas vezes degenera numa curiosidade importuna e impertinente de inquerir segredos que nossos próximos têm justificadas razões de ocultar; e, em muitas ocasiões, exige prudência e um forte senso de conveniência governar essa, bem como todas as outras paixões da natureza humana, reduzindo-a do plano que qualquer espectador imparcial possa aprovar. Porém, se essa curiosidade é mantida dentro de limites apropriados, e não visa ao que com justa razão se deva ocultar, frustrá-la é por sua vez igualmente desagradável. O homem que se furta às nossas perguntas mais inocentes, que não satisfaz nossas mais inofensivas indagações, que claramente se esconde atrás de uma obscuridade impenetrável, parece construir, por assim dizer, um muro em torno de seu peito. Acudimos para nele entrar com toda a impaciência de uma curiosidade inofensiva, mas sentimo-nos imediatamente empurrados para trás com a mais rude e ofensiva violência.

Embora o homem reservado e discreto raramente seja de caráter amável, não o desrespeitam ou o desprezam. Se parece frio para conosco, somos frios para com ele; uma vez que não o louvamos nem o amamos em demasia, pouco o odiamos ou o censuramos. Raras vezes, no entanto, tem a oportunidade de arrepender-se de sua cautela, antes, geralmente se inclina a valorizar-se pela prudência de sua reserva. Portanto, ainda que sua conduta possa ser muito imperfeita, por vezes até dolorosa, é raro tal homem inclinar-se a propor sua causa perante os casuístas, ou imaginar que tenha qualquer chance de ser absolvido ou aprovado.

O mesmo nem sempre ocorre quando se trata do homem que, por informação falsa, por inadvertência, por precipitação e imprudência, enganou involuntariamente. Ainda que num assunto de pouca relevância, como por exemplo uma pequena novidade comum, trata-se de um verdadeiro amante da verdade, envergonhar-se-á de seu próprio descuido, e jamais deixará de aproveitar a primeira oportunidade para realizar a mais completa confissão. Se o assunto tem alguma relevância, sua contrição é ainda maior e, se de sua desinformação seguiu-se alguma conseqüência infeliz ou fatal, será quase incapaz de algum dia se perdoar. Posto não seja culpado, sente que incorreu no mais alto grau do que os antigos chamavam de piacular, tornando-se ansioso e impaciente por fazer toda a sorte de reparação que estiver em seu poder. Tal pessoa poderia freqüentemente inclinar-se a propor sua causa perante os casuístas, os quais de modo geral lhe são muito favoráveis, pois embora às vezes tenham-no condenado justamente pela sua imprudência, universalmente o absolveram de ignomínia e falsidade.

Mas o homem que com mais freqüência tinha ocasião de consultá-los era o prevaricador, o homem de espírito reservado, que de modo grave e deliberado pretendia enganar, embora ao mesmo tempo desejasse persuadir-se de que realmente dissera a verdade. Com tal homem procediam de várias maneiras. Quando aprovavam intensamente os motivos que o levaram a iludir, por vezes o absolviam. Mas, para fazer-lhes justiça, em geral e com muito mais freqüência o condenavam.

Portanto, os principais temas das obras dos casuístas cuidavam do respeito consciencioso que se deve às regras da justiça; em que medida deveríamos respeitar a vida e a propriedade de nosso próximo; o dever de restituição; as leis da castidade e modéstia, e em que consistiam, de acordo com sua linguagem, os chamados pecados da concupiscência, as regras da veracidade, e a obrigação de cumprir pactos, promessas e contratos de todas as espécies.

De modo geral, pode-se dizer que as obras dos casuístas em vão tentaram orientar, por meio de regras precisas, o que apenas o sentimento e a emoção podem julgar. Como é possível determinar por intermédio de regras o ponto exato em que, em cada caso, um delicado senso de justiça começa a coincidir com uma frívola e fraca escrupulosidade de consciência? Quando o segredo e a reserva começam a transformar-se em dissimulação? Até que ponto se pode ir com uma ironia agradável e em que momento exato começa a degenerar numa detestável mentira? Qual se pode considerar o pico gracioso e agradável da liberdade e do sossego no modo de agir, e quando começa a transformar-se em licenciosidade negligente e impensada? No que diz respeito a todas essas questões, o que num caso seria bom talvez não fosse em outro, e o que constitui a conveniência e felicidade de comportamento varia em cada caso, conforme a menor mudança de situação. Por isso, os livros de casuística em geral são tão inúteis quanto enfadonhos. Mesmo supondo-se que suas demonstrações sejam justas, poderiam ter pouca utilidade para quem as consultasse ocasionalmente, porque, malgrado a multiplicidade de precedentes compilados, precisamente por causa da variedade ainda maior de circunstâncias possíveis, será um acaso se, entre todos esses casos, encontrar-se um exato paralelo com o que se está considerando. Será muito fraco quem, preocupando-se realmente em cumprir seu dever, puder imaginar que achará ocasião para tais precedentes. Quanto a quem negligencia seu dever, provavelmente o estilo desses escritos não lhe despertará muita atenção. Nenhum deles tende a animar-nos a praticar algo generoso e nobre, nenhum deles tende a nos enternecer com o que é humano e gentil. Ao contrário, muitos deles tendem a nos ensinar a usar de chicanas com nossa própria consciência e, por suas vãs sutilezas, servem para autorizar um sem-número de refinamentos evasivos quanto aos mais essenciais artigos de nosso dever. A acurácia frívola que tentam introduzir nos assuntos que não a admitem necessariamente quase traiu seus perigosos erros, tornando, ao mesmo tempo, suas obras secas e desagradáveis, abundantes em distinções metafísicas e abstrusas, e portanto incapazes de suscitar no coração as emoções que os livros de moral têm como principal utilidade suscitar.

Por conseguinte, as duas partes úteis da filosofia moral são a Ética e a Jurisprudência. Dever-se-ia rejeitar inteiramente a casuística. Quanto aos antigos moralistas, ao tratarem dos mesmos assuntos, mostram-se juízes muito melhores, pois nada afetaram dessa exatidão escrupulosa, contentando-se em descrever de maneira geral o sentimento sobre o qual se fundam a justiça, a modéstia, a veracidade, e qual o meio de ação ordinário a que essas virtudes habitualmente nos incitariam.

Vários filósofos, na verdade, intentaram algo semelhante à doutrina dos casuístas. Algo assim se encontra no terceiro livro de De Officiis de Cícero, onde o autor se esforça, como um casuísta, por fornecer regras para nossa conduta em casos demasiado sutis, casos em que é difícil determinar onde reside a exata conveniência. Muitas passagens do mesmo livro mostram ainda que vários outros filósofos anteriores a Cícero intentaram algo parecido. Mas nem Cícero, nem esses outros revelam ter buscado oferecer um sistema completo dessas regras. Apenas pretenderam mostrar como ocorrem situações em que é duvidoso se a maior conveniência da conduta consiste, nos casos ordinários, em observar o que são as regras do dever, ou em retroceder a essas regras.

Todo sistema de lei positiva pode ser considerado uma tentativa mais ou menos imperfeita de se atingir um sistema de jurisprudência natural, ou uma enumeração das regras particulares de justiça. Como jamais aceitarão uns dos outros a violação da justiça, o magistrado público necessita empregar o poder da república para fazer cumprir a prática dessa virtude. Sem essa precaução, a sociedade civil em breve se tornaria um cenário de carnificina e desordem, pois cada homem se vingaria com suas próprias mãos sempre que se imaginasse ofendido. A fim de prevenir a confusão que se seguiria de cada um fazer justiça por si mesmo, em todos os governos que adquiriram uma autoridade considerável, o magistrado empreende fazer justiça a todos, prometendo ouvir e reparar todo o pleito de ofensa. Ainda, em todos os Estados bem governados não apenas indicam-se juízes para decidir as controvérsias dos indivíduos, como prescrevem-se regras para regular as decisões desses juízes; e em geral a intenção dessas regras é coincidir com as da justiça natural. De fato, isso nem sempre ocorre em todos os casos. Às vezes, o que se chama de constituição do Estado, isto é, o interesse do governo; as vezes, o interesse de ordens particulares de homens que tiranizam o governo, pervertem as leis positivas do país, contrariando o que a justiça natural prescreveria. Em alguns países, a rudeza e barbarismo dos homens impedem os sentimentos naturais de justiça de alcançar a acurácia e precisão que, nas nações mais civilizadas, naturalmente atingem. A exemplo de seus costumes, suas leis são grosseiras, rudes e indiscerníveis. Em outros países, a desgraçada constituição de seus tribunais de justiça impede o estabelecimento de qualquer sistema regular de jurisprudência, ainda que os costumes desenvolvidos do povo admitissem o sistema mais acurado. Em nenhum país as determinações da lei positiva coincidem exatamente, em cada caso, com as regras que o senso natural de justiça ditaria. Portanto, embora mereçam a mais nobre autoridade, pois são registros dos sentimentos da humanidade em diferentes épocas e nações, os sistemas de lei positiva nunca podem ser considerados como acurados sistemas das regras da justiça natural.

Poder-se-ia esperar que as argumentações dos advogados sobre as diferentes imperfeições e progressos das leis nos diferentes países proporcionassem uma investigação acerca do que são as regras naturais da justiça, independentemente de toda a instituição positiva. Poder-se-ia esperar que tais argumentações os levassem a visar ao estabelecimento de um sistema do que se poderia chamar, com propriedade, de jurisprudência natural, ou uma teoria dos princípios gerais que deveriam perpassar e fundamentar as leis de todas as nações. No entanto, ainda que a argumentação dos advogados realmente tenha produzido algo dessa espécie, ainda que homem algum tratasse sistematicamente as leis de qualquer país sem entremear suas obras com muitas observações como essa, apenas muito recentemente foi possível pensar em algum desses sistemas gerais, ou tratar em si mesma a filosofia do direito, sem levar em conta as instituições particulares de qualquer nação. Em nenhum dos antigos moralistas encontramos uma tentativa de enumerar de modo específico as regras da justiça. Cícero em seu De Officiis e Aristóteles em sua Ética tratam a justiça com a mesma genelidade com que tratam todas as demais virtudes. Nas Leis de Cícero e de Platão, em que naturalmente seria de esperar algumas tentativas de se enumerarem as regras de eqüidade natural que as leis positivas de todo país deveriam fazer cumprir, nada se encontra nesse sentido. Suas leis se referem à ordem pública, não à justiça. Grotius parece ter sido o primeiro a intentar oferecer ao mundo algo semelhante a um sistema dos princípios que deveriam perpassar e fundamentar as leis de todas as nações, e seu tratado das leis de guerra e paz, apesar de todas as suas imperfeições, talvez seja até hoje a obra mais completa que já se fez sobre esse assunto. Em outro discurso tratarei de explicar os princípios gerais da lei e do governo, e das diferentes revoluções que experimentaram nos diferentes tempos e períodos da sociedade, não apenas no que diz respeito à justiça, mas à ordem e à fazenda pública, ao exército e tudo o mais que seja objeto da lei. Portanto, não me estenderei, nesta obra, sobre as minúcias da história da jurisprudência.


 

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