O caso Wagner |
Friedrich Nietzsche |
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Content |
Prólogo |
O caso Wagner |
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Pós-escrito |
Segundo pós-escrito |
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Prólogo |
Vou me permitir um breve descanso. Não é pura malícia, se neste escrito faço o elogio de Bizet à custa de Wagner. Em meio a várias brincadeiras, apresento uma questão com que não se deve brincar. Voltar as costas a Wagner foi para mim um destino; gostar novamente de algo, uma vitória. Ninguém, talvez, cresceu tão perigosamente junto ao wagnerismo, ninguém lhe resistiu mais duramente, ninguém se alegrou tanto por livrar-se dele. Uma longa história! — Querem uma designação para ela? — Se eu fosse um moralista, quem sabe como a chamaria? Talvez superação de si. — Mas o filósofo não ama os moralistas... E também não ama as palavras bonitas... Que exige um filósofo de si, em primeiro e em último lugar? Superar em si seu tempo, tornar-se “atemporal”. Logo, contra o que deve travar seu mais duro combate? Contra aquilo que o faz um filho de seu tempo. Muito bem! Tanto quanto Wagner, eu sou um filho desse tempo; quer dizer, um décadent: mas eu compreendi isso, e me defendi. O filósofo em mim se defendeu. O que me ocupou mais profundamente foi o problema da décadence — para isso tive razões. “Bem e Mal” é apenas uma variante desse problema. Tendo uma vista treinada para os sinais de declínio, compreende-se também a moral — compreendemos o que se oculta sob os seus mais sagrados nomes e fórmulas de valor: a vida empobrecida, a vontade de fim, o grande cansaço. A moral nega a vida... Para uma tarefa assim, era-me necessária uma disciplina própria — tomar partido contra tudo doente em mim, incluindo Wagner, incluindo Schopenhauer, incluindo os modernos sentimentos de “humanidade”. — Um profundo alheamento, esfriamento, desalento face a tudo o que é temporal e temporâneo: e, como desejo maior, o olhar de Zaratustra, um olho que vê toda a realidade “homem” de uma tremenda distância — abaixo de si... Para um tal objetivo — que sacrifício não seria adequado? que “superação de si”? que “negação de si”? Minha maior vivência foi uma cura. Wagner foi uma de minhas doenças. Não que eu deseje me mostrar ingrato a essa doença. Se nestas páginas eu proclamo a tese de que Wagner é danoso, quero do mesmo modo proclamar a quem, não obstante, ele é indispensável — ao filósofo. Outros poderão passar sem Wagner; mas o filósofo não pode ignorá-lo. Ele tem de ser a má consciência do seu tempo — para isso, precisa ter a sua melhor ciência. Mas onde encontraria ele um guia mais experimentado no labirinto da alma moderna, um mais eloquente perito da alma? Através de Wagner, a modernidade fala sua linguagem mais íntima: não esconde seu bem nem seu mal, desaprendeu todo pudor. E, inversamente, teremos feito quase um balanço sobre o valor do moderno, se ganharmos clareza sobre o bem e o mal em Wagner. — Eu entendo perfeitamente, se hoje um músico diz: “Odeio Wagner, mas não suporto mais outra música”. Mas também compreenderia um filósofo que dissesse: “Wagner resume a modernidade. Não adianta, é preciso primeiro ser wagneriano...”. |
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O caso Wagner |
Carta de Turim, maio de 1888 ridendo dicere severum…[1] |
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1. |
Ontem — vocês acreditarão? — ouvi pela vigésima vez a obra-prima de Bizet.[2] Fiquei novamente até o fim, com suave devoção, novamente não pude fugir. Esse triunfo sobre minha impaciência me espanta. Como uma obra assim aperfeiçoa! Tornamo-nos nós mesmos “obraprima”. — Realmente, a cada vez que ouvi Carmen, eu parecia ser mais filósofo, melhor filósofo do que normalmente me creio: tornando-me tão indulgente, tão feliz, indiano, sedentário... Cinco horas sentado: primeira etapa da santidade! — Posso acrescentar que a orquestração de Bizet é quase a única que ainda suporto? Essa outra orquestração atualmente em voga, a wagneriana, brutal, artificial e “inocente” ao mesmo tempo, e que assim fala simultaneamente aos três sentidos da alma moderna — como me é prejudicial essa orquestração wagneriana! Eu a denomino “siroco”. Um suor desagradável me cobre de repente. O meu tempo bom vai embora. Esta música me parece perfeita. Aproxima-se leve, sutil, com polidez. É amável, não transpira. “O que é bom é leve, tudo divino se move com pés delicados”: primeira sentença da minha estética. Esta música é maliciosa, refinada, fatalista: no entanto permanece popular — ela tem o refinamento de uma raça, não de um indivíduo. É rica. É precisa. Constrói, organiza, conclui: assim, é o contrário do pólipo na música, a “melodia infinita”.[3] Alguém já ouviu num palco entonações mais dolorosamente trágicas? E a maneira como são obtidas! Sem caretas! Sem falsificação! Sem a mentira do grande estilo! — Por fim: esta música trata o ouvinte como pessoa inteligente e até como músico — e também nisso é o oposto de Wagner, que, seja o que mais for, era o gênio mais descortês do mundo (Wagner nos trata como se — —, ele repete uma coisa com tal frequência que esperamos — que acreditamos nela). Mais ainda: eu me torno um homem melhor, quando esse Bizet me persuade. E também um músico melhor, um ouvinte melhor. É possível se escutar ainda melhor? — Eu enterro os meus ouvidos sob essa música, eu ouço a sua causa. Parece-me presenciar a sua gênese — estremeço ante os perigos que acompanham alguma audácia, arrebatamme os acasos felizes de que Bizet é inocente. — E, coisa estranha, no fundo não penso nisso, ou não sei o quanto penso nisso. Pois nesse ínterim me passam bem outros pensamentos pela cabeça. Já se percebeu que a música faz livre o espírito? que dá asas ao pensamento? que alguém se torna mais filósofo, quanto mais se torna músico? O céu cinzento da abstração atravessado por coriscos; a luz, forte o bastante para se verem as filigranas; os grandes problemas se dispondo à apreensão; o mundo abarcado com a vista, como de um monte. — Acabo de definir o pathos filosófico. — E de súbito caem-me respostas no colo, uma pequena chuva de gelo e sapiência, de problemas resolvidos... Onde estou? — Bizet me faz fecundo. Tudo o que é bom me faz fecundo. Não tenho outra gratidão, nem tenho outra prova para aquilo que é bom. |
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2. |
Também essa obra redime; não apenas Wagner é um “redentor”.[4] Com ela nos despedimos do Norte úmido, de todos os vapores do ideal wagneriano. A ação já redime. De Mérimée [5] ainda possui a lógica na paixão, a linha mais curta, a dura necessidade: tem sobretudo o que é da zona quente, a secura do ar, a limpidezza no ar. Em todo aspecto o clima muda. Aqui fala uma outra sensualidade, uma outra sensibilidade, uma outra serena alegria. Essa música é alegre, mas não de uma alegria francesa ou alemã. Sua alegria é africana; ela tem a fatalidade sobre si, sua felicidade é curta, repentina, sem perdão. Invejo Bizet por isso, por haver tido a coragem para esta sensibilidade, que até agora não teve idioma na música cultivada da Europa — esta sensibilidade mais meridional, mais morena, mais queimada... Como nos fazem bem as tardes brônzeas da sua felicidade! Olhamos para fora ao ouvi-la: já vimos o mar tão liso? E como a dança moura nos fala de modo tranquilizador! Como, em sua lasciva melancolia, mesmo a nossa insaciabilidade aprende a satisfação! — Finalmente o amor, o amor retraduzido em natureza! Não o amor de uma “virgem sublime”! Nenhum sentimentalismo de Senta! [6] Mas o amor como fado, como fatalidade, cínico, inocente, cruel — e precisamente nisso natureza! O amor, que em seus meios é a guerra, e no fundo o ódio mortal dos sexos! — Não sei de caso em que a ironia trágica que constitui a essência do amor seja expressa de maneira tão rigorosa, numa fórmula tão terrível, como no último grito de don José, que conclui a obra: “Sim! Eu a matei, eu — minha adorada Carmen!” — Uma tal concepção do amor (a única digna de um filósofo) é rara: ela distingue uma obra de arte entre mil. [7] Pois na média os artistas fazem como todos, ou mesmo pior — eles entendem mal o amor. Também Wagner o entendeu mal. Eles acreditam ser desinteressados do amor, por querer o benefício de outro ser, às vezes contra o benefício próprio. Mas em troca desejam possuir o outro ser... Nisso nem mesmo Deus é exceção. Ele está longe de pensar: “que te interessa, se te amo?” [8] — ele se torna terrível, quando o seu amor não é correspondido. L’amour— uma frase verdadeira entre os homens e entre os deuses — est de tous les sentiments le plus égoïste, et par conséquent, lorsqu’il est blessé, le moins généreux (O amor é, de todos os sentimentos, o mais egoísta, e, em consequência, o menos generoso quando é ferido) (B. Constant). [9] |
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3. |
Já percebem como essa música me torna melhor? — Il faut méditerraniser la musique (É preciso mediterranizar a música): tenho razões para esta fórmula (Além do bem e do mal, § 255). O retorno à natureza, a saúde, alegria, juventude, virtude! — E no entanto eu fui um dos mais corruptos wagnerianos... Eu fui capaz de levar Wagner a sério... Ah, esse velho feiticeiro! Como nos iludiu! A primeira coisa que a sua arte nos oferece é uma lente de aumento: olhando por ela, não se acredita nos próprios olhos — tudo fica grande, até Wagner fica grande... Que astuta cascavel! Toda a vida ela nos falou ruidosamente em “dedicação”, “fidelidade”, “pureza”, com um elogio à castidade retirouse do mundo depravado! — E nós acreditamos... Mas vocês não me ouvem? Preferem o problema de Wagner ao de Bizet? Também eu não o subestimo, ele tem seu fascínio. O problema da redenção é sem dúvida um problema respeitável. Sobre nenhuma outra coisa Wagner refletiu tão profundamente: sua ópera é a ópera da redenção. Em Wagner, há sempre alguém que deseja ser redimido: ora um homenzinho, ora uma senhorita — este é o problema dele. — E como varia ricamente o seu leitmotiv! Que digressões raras e profundas! Quem, senão Wagner, nos ensinaria que a inocência redime de preferência pecadores interessantes? (O caso de Tannhäuser.) Ou que mesmo o judeu errante é redimido, torna-se sedentário, quando se casa?) (No Navio fantasma.) Ou que velhas mulheres depravadas preferem ser redimidas por jovens castos? (O caso de Kundry.) [10] Ou que donzelas bonitas preferem a redenção por um cavaleiro que seja wagneriano? (O caso dos Mestres cantores.) Ou que também mulheres casadas gostam de ser redimidas por um cavaleiro? (Caso de Isolda.) Ou que o “velho Deus”, depois de haver se comprometido moralmente em todo sentido, é finalmente redimido por um livre-pensador e moralista? (Caso do Anel.) Detenham-se em admirar especialmente esta última, profunda percepção! Vocês a compreendem? Eu — eu me guardo de compreendê-la... Que se possa extrair outros ensinamentos das obras mencionadas, é algo que eu estaria mais disposto a provar que a negar. Que um balé wagneriano possa conduzir alguém ao desespero — e à virtude! (Novamente o caso de Tannhäuser.) Que possa ter as piores consequências o fato de não ir para a cama no momento certo (novamente o caso de Lohengrin). Que não se deve jamais saber exatamente com quem se casou (pela terceira vez, o caso de Lohengrin). — Tristão e Isolda glorifica o marido perfeito que em certo caso tem apenas uma pergunta: “Mas por que não me disseram isso antes? Tão simples!”. Resposta: “Isso não te posso dizer; e o que perguntas, não podes jamais saber.” Lohengrin contém uma solene proscrição da busca e do questionamento. Wagner defende assim a ideia cristã, “Deves crer e precisas crer”. Ser científico é um crime contra o que é mais elevado e mais sagrado... O Navio fantasma prega o sublime ensinamento de que a mulher faz assentar o mais inquieto dos homens, ou, em linguagem wagneriana, o “redime”. Aqui nos permitimos uma pergunta. Supondo isto verdadeiro, seria também desejável? — O que acontece ao “judeu errante” que uma mulher adora e faz assentar? Ele apenas deixa de ser eterno; [11] ele se casa, e não mais nos interessa. — Traduzido para a realidade: o perigo dos artistas, dos gênios — pois estes são os “judeus errantes” — está na mulher; as mulheres adoradoras são sua ruína. Quase nenhum tem caráter bastante para não ser arruinado (“redimido”), ao se sentir tratado como deus — logo ele condescende à mulher. O homem é covarde diante do eterno-feminino: bem o sabem as femeazinhas. — Em muitos casos do amor feminino, e talvez justamente nos mais famosos, o amor é apenas um parasitismo refinado, um aninhar-se numa alma alheia, por vezes até numa carne alheia — ah, e sempre à custa do “hospedeiro”! Sabe-se o destino de Goethe na Alemanha solteirona e moralmente azeda. Ele foi repulsivo para os alemães, e teve admiradores francos apenas entre mulheres judias. [12] Schiller, o “nobre” Schiller, que encheu os ouvidos alemães com grandes palavras — este lhes foi caro ao coração. O que censuravam eles em Goethe? O “monte de Vênus”, e que tivesse escrito os Epigramas venezianos. Klopstock foi o primeiro a lhe pregar um sermão; houve um tempo em que Herder, ao falar de Goethe, usava de preferência a palavra “Príapo”. [13] Mesmo o Wilhelm Meister era tido apenas como sintoma de declínio, “caída na mendicância” moral. Nele, a “ménagerie (coleção) de animais mansos”, a “baixeza” do herói, enfureciam Niebuhr, [14] por exemplo, que afinal irrompe numa queixa que Biterolf poderia cantar: “Nada pode causar impressão mais dolorosa do que um grande espírito que se despoja de suas asas e busca sua virtuosidade em algo bastante inferior, ao renunciar ao sublime”... Mas sobretudo as virgens sublimes se indignaram: cada pequenina corte, toda espécie de “Wartburg” na Alemanha fazia o sinal da cruz para Goethe, para o “espírito impuro” de Goethe. [15] — Essa é a história que Wagner pôs em música. Ele redime Goethe, não há dúvida; mas de maneira a, com argúcia, simultaneamente tomar o partido das virgens sublimes. Goethe é salvo: uma oração o salva, uma virgem sublime o atrai para cima…[16] — O que Goethe teria pensado de Wagner? — Uma vez ele se perguntou acerca do perigo que ameaçava os românticos: a fatalidade romântica. Sua resposta: “sufocar com a ruminação de absurdos morais e religiosos”. Numa palavra: Parsifal — — O filósofo junta um epílogo: Santidade — talvez a última coisa que o povo e as mulheres ainda conseguem ver, dos valores mais altos; o horizonte do ideal para todos os míopes por natureza. Para os filósofos, no entanto, uma simples recusa de compreensão, como todo horizonte, uma espécie de portão fechado onde o seu mundo apenas começa — o seu perigo, seu ideal, sua aspiração... Para dizê-lo de modo mais cortês: La philosophie ne suffit pas au grand nombre. Il lui faut la sainteté (A filosofia não basta para a multidão. Ela necessita da santidade). [17] |
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4. |
Agora contarei a história do Anel. O seu lugar é aqui. Também é uma história de redenção: somente que desta vez é Wagner o redimido. — Durante meia vida Wagner acreditou na Revolução, como só um francês podia acreditar. Ele a procurou na escrita rúnica do mito, e pensou encontrar em Siegfried o revolucionário típico. — “De onde vêm as desgraças do mundo?”, perguntou a si mesmo. Dos “velhos contratos”, respondeu, como todos os ideólogos da Revolução. Mais claramente: de costumes, leis, morais, instituições, de tudo aquilo sobre o qual repousa o velho mundo, a velha sociedade. “Como banir a desgraça do mundo? Como abolir a velha sociedade?” Somente declarando guerra aos “contratos” (à tradição, à moral). Isto é o que faz Siegfried, Ele começa cedo, bem cedo: o seu nascimento já é uma declaração de guerra à moral — ele vem ao mundo de um adultério, de um incesto... Não é da lenda, é de Wagner a invenção desse traço radical; nesse ponto ele corrigiu a lenda... Siegfried continua tal como iniciou: segue apenas o primeiro impulso, lança por terra tudo recebido, toda reverência, todo temor. O que o aborrece, abate com a espada. Ataca desrespeitosamente as velhas divindades. Sua empresa maior, porém, consiste em emancipar a mulher — “salvar Brunilda”... Siegfried e Brunilda; o sacramento do amor livre; o advento da era dourada; o crepúsculo de ídolos da velha moral — o infortúnio foi abolido... Por longo tempo a nave de Wagner seguiu contente esse curso. Sem dúvida, Wagner buscava nele o seu mais elevado objetivo. — Que aconteceu então? Um acidente. A nave foi de encontro a um recife; Wagner encalhou. O recife era a filosofia schopenhaueriana; Wagner estava encalhado numa visão de mundo contrária. O que havia ele posto em música? O otimismo. Wagner se envergonhou. Além disso, um otimismo para o qual Schopenhauer havia criado um adjetivo mau — o otimismo infame. Ele envergonhou-se novamente. Meditou por longo tempo, sua situação parecia desesperada... Enfim vislumbrou uma saída: o recife no qual naufragara, e se ele o interpretasse como objetivo, como intenção oculta, como verdadeiro sentido de sua viagem? Naufragar ali — isso era também uma meta. Bene navigavi, cum naufragium feci... (Naveguei bem, ao naufragar). [18] E ele traduziu o Anel em schopenhaueriano. Tudo vai torto, tudo afunda, o novo mundo é tão ruim quanto o velho — o nada, a Circe [19] indiana, nos acena... Brunilda, que segundo a antiga intenção se despediria com uma canção de louvor ao amor livre, deixando ao mundo esperanças de uma utopia socialista, com a qual “tudo fica bom”, agora tem outra coisa a fazer. Deve primeiro estudar Schopenhauer, tem de pôr em versos o quarto livro do Mundo como vontade e representação. Wagner estava redimido... Em toda seriedade, esta foi uma redenção. O benefício que Wagner deve a Schopenhauer é imensurável. Somente o filósofo da décadence revelou o artista da décadence a si mesmo... |
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5. |
O artista da décadence — eis a palavra. E aqui começa a minha seriedade. Estou longe de olhar passivamente, enquanto esse décadent nos estraga a saúde — e a música, além disso! Wagner é realmente um ser humano? Não seria antes uma doença? Ele torna doente aquilo em que toca — ele tornou a música doente — Um típico décadent, que se sente necessário com seu gosto corrompido, que o reivindica como um gosto superior, que sabe pôr em relevo sua corrupção, como lei, como progresso, como realização. E não lhe opõem resistência. Seu poder de sedução cresce desmesuradamente, nuvens de incenso o rodeiam, o mal-entendido a seu respeito chama-se “Evangelho” — ele não se limitou a convencer somente os pobres de espírito! Sinto o desejo de abrir um pouco a janela. Ar! Mais ar! [20] Que na Alemanha as pessoas se enganem a respeito de Wagner não me surpreende. O contrário me surpreenderia. Os alemães prepararam para si um Wagner que podem venerar: eles jamais foram psicólogos, são gratos por compreender mal. Mas que também em Paris as pessoas se enganem a respeito de Wagner! Lá, onde são psicólogos mais que tudo! E em São Petersburgo, onde suspeitam coisas de que nem mesmo em Paris se tem ideia! Como Wagner deve ter afinidade com a décadence europeia em geral, para não ser percebido por ela como décadent! Ele pertence a ela: é seu protagonista, seu maior nome... Colocá-lo nas nuvens é honrar a si mesmo. — Pois o fato de não lhe oporem resistência já é, em si, um sinal de décadence. O instinto está debilitado. O que se deveria evitar, atrai. Leva-se aos lábios o que conduz mais rapidamente ao abismo. — Querem um exemplo? Basta observar o régime que se prescrevem os anêmicos, artríticos ou diabéticos. Definição do vegetariano: um ser que necessita de uma dieta fortificante. Perceber o nocivo como nocivo, poder proibir-se algo nocivo, é ainda um sinal de juventude, de força vital. Os exaustos são atraídos pela coisa nociva: o vegetariano, pelos vegetais. [21] A própria doença pode ser um estimulante da vida: mas é preciso ser sadio o bastante para esse estimulante! — Wagner aumenta a exaustão: por isso atrai os débeis e exaustos. Oh, a felicidade de cascavel do velho mestre, ao ver que o procuravam justamente as “criancinhas”! [22] Eis o ponto de vista que destaco: a arte de Wagner é doente. Os problemas que ele põe no palco — todos problemas de histéricos —, a natureza convulsiva dos seus afetos, sua sensibilidade exacerbada, seu gosto, que exigia temperos sempre mais picantes, sua instabilidade, que ele travestiu em princípios, e, não menos importante, a escolha de seus heróis e heroínas, considerados como tipos psicológicos (— uma galeria de doentes!): tudo isso representa um quadro clínico que não deixa dúvidas. Wagner est une névrose (Wagner é uma neurose). Talvez nada exista de tão conhecido hoje, ao menos nada foi tão bem estudado, quanto o caráter proteico da degenerescência, que aqui se fez crisálida de arte e artista. Nossos médicos e fisiólogos têm em Wagner seu caso mais interessante, ou no mínimo um caso muito completo. Precisamente porque nada é mais moderno do que esse adoecimento geral, essa tardeza e superexcitação do mecanismo nervoso, Wagner é o artista moderno par excellence, o Cagliostro da modernidade. [23] Em sua arte se encontra, misturado da maneira mais sedutora, aquilo de que o mundo hoje tem mais necessidade — os três grandes estimulantes dos exaustos: o elemento brutal, o artificial e o inocente (idiota). [24] Wagner é uma grande corrupção para a música. Ele percebeu nela um meio para excitar nervos cansados — com isso tornou a música doente. Não é pouco seu talento na arte de aguilhoar os totalmente exaustos, de chamar à vida os semimortos. Ele é o mestre do passe hipnótico, mesmo os mais fortes ele derruba como touros. O sucesso de Wagner — seu sucesso junto aos nervos, e em consequência junto às mulheres — transformou o mundo dos músicos ambiciosos em seguidores da sua arte oculta. E não só os ambiciosos, também os sagazes... Hoje se faz dinheiro apenas com música doente; nossos grandes teatros vivem de Wagner. |
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6. |
— Permito-me novamente uma recreação. Vamos supor que o sucesso de Wagner tomasse corpo e forma, que ele, disfarçado de musicólogo filantropo, circulasse entre jovens artistas. Como acham que ele se manifestaria? Meus amigos, diria, troquemos algumas palavras. É mais fácil fazer música ruim do que música boa. E se além disso fosse também mais vantajoso? Mais efetivo, convincente, entusiasmante, seguro? Mais wagneriano? — Pulchrum est paucorum hominum (O belo pertence a poucos). Mau! Nós compreendemos o latim, e compreendemos também nosso interesse. O belo tem seus espinhos: nós o sabemos. Logo, para que beleza? Por que não o grandioso, o elevado, o gigantesco, o que move as massas? — Repito: é mais fácil ser gigantesco do que belo; nós o sabemos... Conhecemos as massas, conhecemos o teatro. Os melhores entre os que assistem, jovens alemães, Siegfrieds de cornos e outros wagnerianos, necessitam do que é elevado, profundo, irresistível. Disso nós somos capazes. E os demais que também assistem, os cretinos da cultura, os pequenos esnobes, os eternamente femininos, os de feliz digestão, em suma, o povo — necessitam igualmente do elevado, do profundo, do irresistível. Tudo tem a mesma lógica. “Quem nos arrebata é forte; quem nos eleva é divino; quem nos faz intuir é profundo.” — Decidamos, caros músicos; nós queremos arrebatá-los, queremos eleválos, queremos fazê-los intuir. Disso tudo ainda somos capazes. Quanto ao fazer intuir: eis o ponto de partida do nosso conceito de “estilo”. Sobretudo nenhum pensamento! Nada mais comprometedor que um pensamento! Mas sim o estado anterior ao pensamento, o amontoar de pensamentos não nascidos, a promessa de pensamentos futuros, o mundo como era antes de Deus criá-lo — a recrudescência do caos... O caos faz intuir... Falando na linguagem do mestre: infinitude, mas sem melodia. No que toca a arrebatar as pessoas, isto já se relaciona com a fisiologia. Estudemos sobretudo os instrumentos. Alguns deles convencem até as entranhas (— eles abrem as portas, para falar como Händel), outros encantam a medula espinhal. A cor do som é decisiva; o que soa é indiferente. É esse ponto que devemos refinar! Por que nos desperdiçarmos? Sejamos, no timbre, característicos até a loucura! Nosso espírito ganhará o crédito, se os nossos timbres insinuarem enigmas! Exasperemos os nervos, acabemos com eles, utilizemos raio e trovão — isto arrebata... Sobretudo a paixão arrebata. — Vamos nos entender acerca da paixão. Nada é mais barato que a paixão! Pode-se dispensar todas as virtudes do contraponto, nada é preciso aprender — a paixão sempre se sabe! A beleza é difícil: cuidado com a beleza!... Mais ainda com a melodia! Injuriemos, meus amigos, injuriemos, se de fato vemos como sério nosso ideal, injuriemos a melodia! Nada mais perigoso que uma bela melodia! Nada corrompe mais certamente o gosto! Estamos perdidos, caros amigos, se voltam a ser amadas as belas melodias!... Princípio básico: a melodia é imoral. Demonstração: Palestrina. [25] Aplicação prática: Parsifal. A ausência de melodia chega a santificar... E eis a definição de paixão. Paixão — ou a ginástica do feio na corda da enarmonia. — Ousemos ser feios, caros amigos! Wagner ousou! Vamos revolver intrepidamente a lama das mais ingratas harmonias! Não poupemos as mãos! Somente assim nos tornamos naturais... Um último conselho, que talvez resuma tudo. — Sejamos idealistas! Isto é, se não a coisa mais sagaz, certamente a mais sábia que podemos fazer. Para elevar os homens, é preciso ser excelso. Vaguemos por entre as nuvens, aliciemos o infinito, disponhamos ao redor os grandes símbolos! Sursum! Bumbum! — não há conselho melhor. O “peito dilatado” seja nosso argumento, o “belo sentimento” nosso porta-voz. A virtude prevalece até mesmo em relação ao contraponto. “Como não seria bom aquele que nos faz melhor?”, assim raciocinou desde sempre a humanidade. Então melhoremos a humanidade! — é o meio de tornarse bom (de tornar-se até mesmo “clássico” — Schiller tornou-se “clássico”). A procura pelo baixo excitamento dos sentidos, pela assim chamada beleza, tirou o nervo aos italianos: continuemos alemães! Mesmo a relação de Mozart com a música — disse Wagner para nos confortar — era, no fundo, frívola... Não admitamos jamais que a música “sirva à recreação”; que “distraia”; que “dê prazer”. Jamais devemos dar prazer! Estamos perdidos, se houver um retorno da concepção hedonista da arte... Isto é péssimo século XVIII... Contra isso nada seria mais aconselhável, diga-se de passagem, que uma dose de — hipocrisia, sit venia verbo (com perdão da palavra). Isso empresta dignidade. E escolhamos a hora em que convém lançar olhares negros, suspirar abertamente, suspirar cristãmente, pôr à mostra a grande compaixão cristã. “O homem está corrompido: quem o redime? o que o redime?” — Não vamos responder. Sejamos prudentes. Lutemos contra a nossa ambição, que gostaria de fundar religiões. Mas ninguém pode duvidar que nós o redimimos, que unicamente a nossa música redime... (ensaio de Wagner, “Religião e arte”). |
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7. |
Basta! Basta! Receio que terão claramente reconhecido, sob esses traços alegres, a sinistra realidade — o quadro de um declínio da arte, um declínio também do artista. Este último, um declínio de caráter, poderia talvez ser expresso provisoriamente com esta fórmula: o músico agora se faz ator, sua arte se transforma cada vez mais num talento para mentir. Terei oportunidade (num capítulo da minha obra principal que levará o título de “Fisiologia da estética”) [26] de mostrar mais detalhadamente como essa metamorfose geral da arte em histrionismo é uma expressão de degenerescência fisiológica (mais precisamente, uma forma de histerismo), tanto quanto cada corrupção e fraqueza da arte inaugurada por Wagner: por exemplo, a instabilidade da sua ótica, que obriga (a todo instante) a mudar de posição diante dela. Nada se compreende de Wagner, ao distinguir nele apenas um arbitrário jogo da natureza, um capricho e um acaso. Ele não era um gênio “incompleto”, “desafortunado”, “contraditório”, como já foi dito. Wagner era algo perfeito, um típico décadent, no qual não há “livre-arbítrio”, cada feição tem sua necessidade. Se algo é interessante em Wagner, é a lógica com que um defeito fisiológico progride passo a passo, de conclusão em conclusão, como prática e procedimento, como invasão nos princípios, como crise do gosto. No momento me deterei apenas na questão do estilo. — Como se caracteriza toda décadence literária? Pelo fato de a vida não mais habitar o todo. A palavra se torna soberana e pula fora da frase, a frase transborda e obscurece o sentido da página, a página ganha vida em detrimento do todo — o todo já não é um todo. [27] Mas isto é uma imagem para todo estilo da décadence: a cada vez, anarquia dos átomos, desagregação da vontade, “liberdade individual”, em termos morais — estendendo à teoria política, “direitos iguais para todos”. A vida, a vivacidade mesma, a vibração e exuberância da vida comprimida nas mais pequenas formações, o resto pobre de vida. Em toda parte paralisia, cansaço, entorpecimento ou inimizade e caos: uns e outros saltando aos olhos, tanto mais ascendemos nas formas de organização. O todo já não vive absolutamente: é justaposto, calculado, postiço, um artefato. Em Wagner se encontra no início a alucinação: não de sons, mas de gestos. Ele busca então a semiótica de sons para os gestos. Querendo admirá-lo, observemo-lo a trabalhar nisso: como separa, como obtém pequenas unidades, como as anima, lhes dá relevo e as torna visíveis. Mas aqui se esgota sua força: o resto nada vale. Como é pobre, leigo e canhestro o seu modo de “desenvolver”, sua tentativa de fazer entrelaçar o que não se teceu naturalmente! Suas maneiras lembram nisso as dos frères Goncourt, [28] que em geral são próximos ao estilo de Wagner: sente-se quase compaixão por tamanha escassez. O fato de Wagner travestir em um princípio a sua incapacidade de criar formas orgânicas, o fato de ele decretar um “estilo dramático”, onde decretamos apenas a sua inaptidão para um estilo qualquer, corresponde a um ousado costume que sempre o acompanhou: ele estabelece um princípio onde lhe falta uma faculdade (— à diferença do velho Kant, diga-se de passagem, que amava uma outra ousadia: estabelecer no homem uma “faculdade’’, onde a ele, Kant, faltava um princípio...). Repetindo: Wagner é admirável e encantador somente na invenção do mínimo, na criação do detalhe — nisso terá toda a razão quem o proclamar um mestre de primeira ordem, nosso maior miniaturista da música, que num espaço mínimo concentra uma infinitude de sentido e doçura. Sua riqueza de cores, de penumbras, de segredos da luz agonizante, vicia de tal modo, que em seguida os outros músicos parecem demasiado robustos. — Se querem me dar crédito, não se deveria julgar Wagner por aquilo que hoje agrada nele. Isso foi inventado para convencer as massas, diante disso nos sobressaltamos, como à vista de um afresco demasiado impudente. Que importância tem para nós a exasperante brutalidade da abertura de Tannhäuser? Ou o circo da Valquíria? Tudo o que da música de Wagner se tornou popular, também fora do teatro, é de gosto dúbio e corrompe o gosto. A marcha de Tannhäuser parece-me suspeita de bonomia; a abertura do Navio fantasma é algum barulho por nada; o prelúdio de Lohengrin deu o primeiro exemplo, um tanto insidioso, um tanto evidente, de como hipnotizar também com a música (não me agrada a música cuja ambição não vai além de persuadir os nervos). Mas, não considerando o Wagner magnetizador e pintor de afrescos, há ainda um outro Wagner, que acumula pequenas preciosidades: nosso grande melancólico da música, cheio de olhares, branduras e palavras de consolo que ninguém anunciara, o mestre nos tons de uma felicidade sombria e lânguida... Um léxico das mais íntimas palavras de Wagner, pequenas coisas de cinco a dez compassos, pura música que ninguém conhece... Wagner tinha a virtude dos décadents, a compaixão. |
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8. |
— “Muito bem! Mas como se pode estragar o gosto com esse décadent, não sendo por acaso um músico, não sendo por acaso também um décadent?” — Pelo contrário! Como não se pode? Tentem fazê-lo. — Não sabem quem é Wagner: um grandíssimo ator! Existe no teatro influência mais profunda, de maior peso?Observem esses jovens — tesos, pálidos, inertes! São wagnerianos; nada entendem de música — e no entanto Wagner os domina... A arte de Wagner pressiona como cem atmosferas: dobrem-se, não há outra coisa a fazer... O ator Wagner é um tirano, seu pathos derruba qualquer gosto, qualquer resistência. — Quem possui tal força persuasiva nos gestos, quem, senão ele, vê os gestos tão seguramente e antes de tudo? A maneira como o pathos wagneriano retém seu fôlego, o não-querer-livrar-se de um sentimento extremo, a aterradora demora em estados em que só o instante já sufoca! Era Wagner de fato um músico? Em todo caso, ele era algo mais: um incomparável histrio, o maior mímico, o mais espantoso gênio teatral que tiveram os alemães, nosso encenador par excellence. Ele pertence a outro lugar, não à história da música: não se deve confundi-lo com os grandes da música. Wagner e Beethoven: isto é uma blasfêmia — e por fim uma injustiça mesmo para com Wagner... Também como músico ele foi apenas o que foi absolutamente: ele tornou-se músico, tornou-se poeta porque o tirano dentro dele, seu gênio de ator, a isso o obrigou. Nada se percebe de Wagner, enquanto não se perceba o seu instinto dominante. Wagner não era músico por instinto. Ele o demonstrou ao abandonar toda lei e, mais precisamente, todo estilo na música, para dela fazer o que ele necessitava, uma retórica teatral, um instrumento da expressão, do reforço dos gestos, da sugestão, do psicológico-pitoresco. Nisso podemos tê-lo como inventor e inovador de primeira ordem — ele aumentou desmesuradamente a capacidade de expressão da música: ele é o Victor Hugo da música como linguagem. [29] Sempre com o pressuposto de se ter como válido que a música possa, em dadas circunstâncias, não ser música, porém linguagem, instrumento, ancilla dramaturgica (criada da dramaturgia). A música de Wagner, sem a proteção do gosto teatral — um gosto muito tolerante —, é simplesmente música ruim, talvez a pior que jamais se tenha feito. Quando um músico não consegue mais contar até três, torna-se “dramático”, torna-se “wagneriano”... Wagner praticamente descobriu que magia se pode exercer ainda com uma música decomposta e, por assim dizer, tornada elementar. Sua consciência disso é quase inquietante, tal como sua percepção instintiva de não carecer das leis superiores, do estilo. O elementar basta — som, movimento, cor, em suma, a sensualidade da música. Wagner não calcula jamais como músico, a partir de alguma consciência musical: ele quer o efeito, nada senão o efeito. E conhece aquilo sobre o qual quer agir! — Nisso ele é tão inconsiderado como Schiller, como todo homem de teatro, e possui o mesmo desprezo pelo mundo que tem a seus pés!... Alguém é ator pelo fato de ter uma percepção à frente dos outros homens: o que deve ter efeito de verdade não pode ser verdadeiro. Esta frase foi dita por Talma: [30] ela contém toda a psicologia do ator, ela contém — não duvidemos! — também a sua moral. A música de Wagner nunca é verdadeira. — Mas é tida como verdadeira: e assim tudo está em ordem. Enquanto se é ingênuo, e além disso wagneriano, considera-se Wagner um prodígio de opulência e dissipação, um latifundiário no reino do som. Admira-se nele o que os jovens franceses admiram em Victor Hugo, a “magnanimidade real”. Depois admira-se tanto um como outro por motivos inversos: como mestres e modelos de economia, como anfitriões sagazes. Ninguém se lhes compara, em matéria de apresentar uma mesa principesca com dispêndio modesto. — O wagneriano, com seu estômago crédulo, chega a saciar-se do alimento que o mestre o faz enxergar. Nós, porém, que dos livros e da música exigimos sobretudo substância, estamos mal servidos em mesas apenas “representadas”, e nos vemos em situação pior. Falando mais claro: Wagner não nos dá o bastante para mastigar. Seu recitativo — pouca carne, alguns ossos e muito caldo —, eu o batizei de alla genovese: com o que não pretendo ter lisonjeado os genoveses, absolutamente, mas sim o velho recitativo, o recitativo secco. No que toca ao leitmotiv de Wagner, falta-me toda compreensão culinária. Sendo pressionado, eu o reconheceria talvez como palito de dentes ideal, como oportunidade de livrar-se de restos de comida. Restam as árias de Wagner. — E agora não direi mais palavra. |
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9. |
Também ao esboçar o enredo Wagner é sobretudo ator. O que primeiro lhe ocorre é uma cena de efeito absolutamente seguro, uma autêntica actio com um alto-relevo de gestos, uma cena que transtorna — esta ele pensa em profundidade, dela é que tira os personagens. Todo o resto vem disso, conforme uma economia técnica que não tem motivos para ser sutil. Não é o público de Corneille que Wagner deve poupar: apenas um século XIX. Acerca da “única coisa necessária” Wagner pensaria aproximadamente o mesmo que um ator de hoje: uma série de cenas fortes, cada uma mais forte que a outra — e, entre elas, muita estupidez sagaz. Ele inicialmente procura garantir para si mesmo o efeito de sua obra, começa com o terceiro ato, prova para si a obra pelo seu efeito final. Tendo por guia um tal sentido de teatro, não se corre o perigo de inadvertidamente criar um drama. O drama requer a lógica dura: mas que importava para Wagner a lógica? Repetindo: não é o público de Corneille que ele tinha de poupar: apenas alemães! Sabe-se que problema técnico faz o dramaturgo aplicar toda a energia e frequentemente suar sangue: dar necessidade aos nós do enredo e também à solução, de sorte que as duas coisas sejam possíveis apenas de um único modo, deem a impressão de liberdade (princípio do menor dispêndio de energia). Ora, isso é o que menos fez Wagner suar sangue; está fora de dúvida que ele despende o mínimo de energia com nós e resolução. Tomemos qualquer “nó” de Wagner e o examinemos ao microscópio — será inevitável rir, aposto. Nada mais divertido que o nó de Tristão, a menos que seja o dos Mestres cantores. Wagner não é um dramaturgo, não nos deixemos enganar. Ele amava o termo “drama”: isso é tudo — ele sempre amou as belas palavras. Todavia, a palavra “drama”, nos seus escritos, é apenas um mal-entendido (— e uma esperteza: Wagner sempre afetou superioridade ante a palavra “ópera” —); mais ou menos como a palavra “espírito”, no Novo Testamento, não passa de um mal-entendido. — Ele não era psicólogo bastante para o drama; fugia instintivamente à motivação psicológica — como? colocando sempre a idiossincrasia no lugar dela... Muito moderno, não? muito parisiense! muito décadent!... Os nós que Wagner realmente sabe desatar, com ajuda de invenções dramáticas, são de espécie bem diferente, diga-se de passagem. Darei um exemplo. Suponhamos que Wagner necessite de uma voz feminina. Um ato inteiro sem voz de mulher — não é possível! Mas nenhuma das “heroínas” está livre no momento. Que faz Wagner? Ele emancipa a mais velha mulher do mundo, Erda: “Levante-se, velha avó! A senhora tem de cantar!”. Erda canta. [31] Wagner alcançou seu propósito. Imediatamente elimina a velha senhora. “Para que surgiu mesmo? Retire-se! Tenha a bondade de continuar dormindo!” — Em suma: uma cena repleta de calafrios mitológicos, que dá pressentimentos ao wagneriano... — “Mas o conteúdo dos textos de Wagner! seu conteúdo mítico, seu conteúdo eterno!” — Pergunta: como se testa esse conteúdo, esse eterno conteúdo? — O químico responde: traduzam Wagner para o real, para o moderno, — sejamos ainda mais cruéis! Para o burguês! O que sucede então a Wagner? — Cá entre nós, eu experimentei fazer isso. Nada mais ameno, nada mais recomendável para passeios do que contar Wagner em escala menor: [32] por exemplo, Parsifal como estudante de teologia, tendo cursado o ginásio (— isto sendo indispensável para a pura tolice). Que surpresas não temos então! Acreditam vocês que as heroínas wagnerianas, todas e cada uma delas, chegam a se confundir com Madame Bovary, tão logo lhes retiramos a casca heroica? E inversamente se compreende que Flaubert poderia ter traduzido sua heroína em escandinavo ou cartaginês e a oferecido então a Wagner, mitologizada, como libreto. Sim, em geral Wagner parece não ter se interessado por outros problemas que não aqueles que hoje interessam aos pequenos décadents de Paris. Sempre a alguns passos do hospital! Problemas bem modernos, bem metropolitanos! não tenham dúvida!... Já perceberam (é parte desta associação de ideias) que as heroínas de Wagner jamais têm filhos? Elas não podem... O desespero com que Wagner atacou o problema de fazer Siegfried nascer revela como eram modernos seus sentimentos nesse ponto. — Siegfried “emancipa a mulher” — mas sem esperança de progenitura. — Por fim, um fato que nos desconcerta: Parsifal é o pai de Lohengrin! Como é que ele fez isso? Devemos lembrar-nos de que “a castidade opera milagres”?... Wagnerus dixit princeps in castitate auctoritas (Dito por Wagner, a autoridade maior em castidade). |
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10. |
Uma palavra sobre os escritos de Wagner: eles são, entre outras coisas, uma escola de sagacidade. O sistema de procedimentos que Wagner manipula pode ser aplicado a uma centena de outros casos — quem tem ouvidos, ouça. Talvez eu tenha direito ao reconhecimento público, se der uma formulação precisa dos três mais valiosos procedimentos. Tudo o que Wagner não pode fazer é condenável. Wagner poderia fazer bem mais: mas não quer — por rigor de princípios. Tudo o que Wagner pode fazer, ninguém imitará, ninguém mostroulhe como fazer, não se deve imitar... Wagner é divino... Essas três frases são a quintessência da literatura de Wagner; o resto é — “literatura”. — Até agora, nem toda música teve necessidade de literatura: convém procurar aqui a razão suficiente para isso. Seria que é muito difícil compreender a música de Wagner? Ou ele temia o oposto, que ela fosse compreendida muito facilmente — que não a achassem difícil o bastante? De fato, toda a sua vida ele repetiu uma frase: que sua música não significava apenas música! E sim mais! Infinitamente mais!.. “Não apenas música” — músico algum fala assim. Digo mais uma vez, Wagner não era capaz de criar a partir do todo, [33] não tinha escolha, tinha que fazer fragmentos, “motivos”, gestos, fórmulas, duplicações e centuplicações; ele permaneceu orador, enquanto músico — por isso teve que pôr o “isto significa” em primeiro plano. “A música é apenas um meio”: esta era a sua teoria, esta era, sobretudo, a única prática para ele possível. Mas músico nenhum pensa desse modo. — Wagner precisava de literatura para convencer todo o mundo a levar seriamente, levar profundamente a sua música, “porque significava coisas infinitas”; durante a vida ele foi o comentador da “ideia”. — O que significa Elsa? Mas não há dúvida: Elsa é o “inconsciente espírito do povo” (— “percebendo isto, tornei-me necessariamente um completo revolucionário” —). Recordemos que Wagner era jovem no tempo em que Hegel e Schelling seduziam os espíritos; que ele adivinhou, que ele tocou com as mãos o que somente os alemães levam a sério — “a ideia”, ou seja, algo obscuro, incerto, cheio de pressentimentos; que a clareza é uma objeção para os alemães, e a lógica, uma refutação. Com dureza, Schopenhauer acusou de desonesta a época de Hegel e de Schelling — com dureza, e também com injustiça: ele próprio, o velho falsário [34] pessimista, em nada foi mais “honesto” que seus contemporâneos mais famosos. Deixemos de fora a moral: Hegel é um gosto... E um gosto não só alemão, mas europeu! — Um gosto que Wagner compreendeu — a cuja altura ele se sentiu! o qual ele eternizou! — Ele apenas o aplicou à música — inventou para si um estilo de “significado infinito” — tornouse o herdeiro de Hegel... A música como “ideia”— —. E como foi compreendido Wagner! — A mesma espécie de homens que se exaltou com Hegel se exalta hoje com Wagner; na sua escola se escreve até hegeliano! — Foi compreendido sobretudo pelos jovens alemães. As palavras “infinito” e “significado” já bastavam para eles se sentirem incomparavelmente bem. Não foi pela música que Wagner atraiu os jovens, mas pela “ideia”: — é o que há de enigmático em sua arte, o brincar de esconder-se atrás de centenas de símbolos, a policromia do ideal, o que seduz e conduz esses jovens a Wagner; é o seu gênio para formar nuvens, seu vaguear, voltear e arremessar pelos ares, seu em-toda-parte e em-nenhum-lugar, exatamente aquilo com que, a seu tempo, Hegel os conquistou e aliciou! — Em meio à multiplicidade, abundância e arbitrariedade de Wagner eles estão como justificados para si mesmos — “redimidos’’ —. Eles ouvem, trêmulos, como na arte dele os grandes símbolos que vêm de uma nebulosa distância ressoam com suave estrondo; eles não se irritam se nela as coisas ficam temporariamente cinza, medonhas e frias. Pois todos e cada um deles, como o próprio Wagner, têm afinidade com o mau tempo, o tempo alemão! Wotan é seu deus: mas Wotan é o deus do mau tempo... Eles estão certos, esses jovens alemães, tal como agora são: como poderiam eles sentir falta do que nós, outros, nós, alciônicos, sentimos falta em Wagner — la gaya scienza; [35] os pés ligeiros; engenho, [36] fogo, graça; a grande lógica; a dança das estrelas; a espiritualidade petulante; os tremores de luz do Sul; o mar liso — perfeição… |
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11. |
— Já expliquei qual o lugar de Wagner — não é na história da música. No entanto, que significa ele nessa história? A ascensão do ator na música: um acontecimento capital, que dá o que pensar, e talvez também o que temer. Expresso numa fórmula: “Wagner e Liszt”. A retidão dos músicos, a sua “autenticidade”, jamais foi posta à prova de modo assim tão perigoso. É uma coisa evidente: o grande sucesso, o sucesso de massa, não está mais com os autênticos — é preciso ser ator para obtêlo! — Victor Hugo e Richard Wagner — eles significam a mesma coisa: que em culturas em declínio, onde quer que as massas tenham a decisão, a autenticidade se torna supérflua, desvantajosa, inconveniente. Apenas o ator ainda desperta o grande entusiasmo. — Com isso chega, para o ator, a idade de ouro — para ele e para todos afins à sua espécie. Com flautas e tambores, Wagner marcha à frente de todos os artistas da exposição, da representação, do virtuosismo; de início ele convenceu os chefes de orquestra, os maquinistas e os cantores. Sem esquecer os músicos de orquestra: — ele os “redimiu” do tédio... O movimento que Wagner criou alastra-se até mesmo para o campo do conhecimento: disciplinas inteiras a ele aparentadas emergem lentamente de séculos de escolástica. Para dar um exemplo, destaco em especial os méritos de Riemann [37] no tocante à rítmica, o primeiro a estabelecer a validade do conceito de pontuação também na música (infelizmente com uma palavra feia: ele o chama de “fraseamento” (Phrasierung)). Estes são, reconheço gratamente, os melhores entre os admiradores de Wagner, os mais dignos de respeito — eles simplesmente têm razão em admirar Wagner. O mesmo instinto une uns aos outros, enxergam nele o seu tipo mais elevado, sentem-se transformados em potência, em grande potência, desde que ele os inflamou com seu próprio ardor. Pois foi nisso, se foi em algum ponto, que a influência de Wagner mostrou-se realmente benéfica. Nunca se pensou, se pretendeu e se trabalhou tanto nessa esfera. Wagner imbuiu todos esses artistas de uma nova consciência: o que agora requerem de si, exigem de si, jamais requereram de si antes de Wagner — eram demasiado modestos para isso. Um novo espírito vigora no teatro, desde que o espírito de Wagner o governa: exige-se o mais difícil, repreende-se duramente, raramente se louva — o bom, o excelente é tido como regra. Gosto não é mais necessário; nem mesmo voz. Canta-se Wagner apenas com voz arruinada: o efeito disso é “dramático”. Mesmo o talento é excluído. O espressivo [38] a todo custo, tal como exige o ideal wagneriano, o ideal da décadence, combina mal com o talento. Pede apenas virtude — isto é, treino, automatismo, “abnegação”. Nem gosto, nem voz, nem talento: o palco de Wagner precisa somente de uma coisa — teutões!... Definição do teutão: obediência e pernas longas... É algo de profunda significação que o aparecimento de Wagner coincida com o do Reich [39]: os dois eventos provam a mesma coisa: obediência e pernas longas. — Jamais se obedeceu tão bem, jamais se comandou tão bem. Os chefes de orquestra wagnerianos, em particular, são dignos de uma era que a posteridade um dia chamará, com timorata reverência, de era clássica da guerra. Wagner sabia comandar; também nisso foi grande mestre. Ele comandava como implacável vontade de si, como disciplina duradoura de si: Wagner, que oferece talvez o maior exemplo de autoviolentação na história das artes (— mesmo Alfieri, [40] de resto seu parente mais próximo, é superado. Observação de um turinense). |
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12. |
Perceber que nossos atores são mais dignos de admiração do que nunca não significa ignorar-lhes a periculosidade... Mas quem ainda tem dúvidas quanto ao que quero — quanto às três exigências a que desta vez minha ira, minha preocupação, meu amor à arte deram voz? Que o teatro não se torne senhor das artes. Que o ator não se torne sedutor dos autênticos. Que a música não se torne uma arte da mentira. Friedrich Nietzsche |
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Pós-escrito |
— A seriedade das últimas palavras me autoriza a publicar, neste ponto, algumas frases de um trabalho inédito, que ao menos não deixam dúvidas quanto à minha seriedade neste assunto. Esse trabalho é intitulado: O preço que pagamos por Wagner. A adesão a Wagner custa caro. A respeito disso, um obscuro sentimento existe ainda hoje. Mesmo o sucesso de Wagner, sua vitória, não arrancou pela raiz este sentimento. Mas antes ele era forte, era terrível, era como um sombrio ódio — por quase três quartos da vida de Wagner. A resistência que ele encontrou em nós, alemães, não pode ser estimada e reverenciada o bastante. Resistia-se a ele como a uma doença, não com motivos — não se refuta uma doença —, mas com inibição, suspeita, contrariedade, desgosto, com negra seriedade, como se nele um grande perigo espreitasse. Os senhores teóricos da estética se desmascararam quando, vindo de três escolas da filosofia alemã, fizeram uma absurda guerra com “se” e “pois” aos princípios de Wagner — que importava a ele princípios, mesmo os próprios! — Os alemães mesmos tiveram suficiente razão nos instintos para se proibir todo “se” e “pois”. Um instinto fica debilitado quando racionaliza a si mesmo: pois ao racionalizar a si mesmo se debilita. Havendo indícios de que, não obstante o caráter geral da décadence europeia, subsiste na natureza alemã um certo grau de saúde, um faro instintivo para o que é nocivo e ameaçador, esta surda resistência a Wagner é, entre eles, o que eu menos gostaria de ver subestimado. Ela nos honra, ela permite até mesmo uma esperança: tanta saúde a França não teria mais a esbanjar. Os alemães, os retardadores por excelência na história, são hoje o mais atrasado entre os povos de cultura [41] da Europa: isso tem sua vantagem — de tal modo são relativamente o mais jovem. A adesão a Wagner custa caro. Apenas recentemente os alemães desaprenderam uma espécie de temor a ele — a vontade de livrar-se dele lhes vinha em cada ocasião. — Ainda é lembrada uma curiosa circunstância em que mais uma vez, bem no final, bem inesperadamente, esse velho sentimento reapareceu? Ocorreu no funeral de Wagner que a primeira Sociedade Wagner alemã, a de Munique, depositou em seu túmulo uma coroa, cuja inscrição tornou-se imediatamente famosa. “Redenção para o Redentor!” — dizia ela. Todos admiraram a elevada inspiração que havia ditado essa frase, assim como o gosto que era prerrogativa dos seguidores de Wagner: mas muitos (coisa singular!) fizeram-lhe a mesma pequena correção: “Redenção do Redentor!” — Respiramos aliviados. — A adesão a Wagner custa caro. Vamos avaliá-lo por seu efeito na cultura. A quem o seu movimento pôs em primeiro plano? O que cultivou e multiplicou sempre? — Antes de tudo a presunção do leigo, do imbecil em arte. Esse organiza agora associações, esse quer impor seu “gosto”, esse gostaria mesmo de fazer-se juiz in rebus musicis et musicantibus (em matéria de música e músicos). Em segundo lugar: uma indiferença cada vez maior face a todo treinamento severo, nobre e consciencioso a serviço da arte; em vez disso, a crença no gênio ou, em bom alemão: o diletantismo insolente (— a fórmula se acha nos Mestres cantores). Por último e pior: a teatrocracia —, o desvario de uma fé na preeminência do teatro, num direito à supremacia do teatro sobre as artes, sobre a arte... Mas é preciso dizer cem vezes aos wagnerianos o que o teatro é: sempre algo abaixo da arte, sempre algo secundário, tornado grosseiro, algo torcido, ajeitado, mentido para as massas! Também Wagner nada mudou nisso: Bayreuth [42] é ópera grandiosa — e nem sequer boa ópera... O teatro é uma forma de demolatria [43] em matéria de gosto, o teatro é uma rebelião das massas, um plebiscito contra o bom gosto... É precisamente isto o que demonstra o caso Wagner: ele ganhou a multidão — ele estragou o gosto, ele estragou [44] até para a ópera o nosso gosto! — A adesão a Wagner custa caro. O que faz ela do nosso espírito? Wagner liberta o espírito? É próprio dele toda ambiguidade, todo duplo sentido, tudo o que persuade os incertos, sem torná-los conscientes do que são persuadidos. Desse modo, Wagner é um sedutor em grande estilo. Nada existe de cansado, de caduco, de vitalmente perigoso e de caluniador do mundo, entre as coisas do espírito, que a sua arte não tenha secretamente tomado em proteção — é o mais negro obscurantismo, o que ele esconde nos mantos de luz do ideal. Ele incensa todo instinto niilista (— budista), e o transveste em música, ele incensa todo cristianismo, toda forma de expressão religiosa da décadence. Abram seus olhos: tudo o que jamais cresceu no solo da vida empobrecida, toda a falsificação que é a transcendência e o Além [45] tem na arte de Wagner o seu mais sublime advogado — não por fórmulas: Wagner é muito sagaz para se exprimir em fórmulas —, mas por uma persuasão da sensualidade, que por sua vez torna o espírito cansado e gasto. A música como Circe... Nisto o seu último trabalho é sua maior obra-prima. Na arte da sedução o Parsifal sempre manterá a sua categoria, como o golpe de gênio em matéria de sedução... Eu admiro essa obra, gostaria de tê-la realizado eu mesmo; à falta disso, eu a compreendo... Wagner nunca esteve mais inspirado do que no fim. O refinamento na conjunção de beleza e enfermidade vai tão longe aí, que ela quase põe na sombra a arte anterior de Wagner: — que fica parecendo clara demais, sadia demais. Compreendem isso? A saúde, a claridade tendo efeito de sombra? quase como objeção?... A tal ponto já nos tornamos puros tolos…Jamais houve um mestre maior em vagos aromas hieráticos — jamais viveu um conhecedor igual de todos os ínfimos infinitos, todos os tremores e transes, todos os feminismos do dialeto [46] da felicidade! — Bebam, meus amigos, bebam os filtros dessa arte! Em nenhuma outra parte acharão modo mais agradável de enervar seu espírito, de esquecer sua virilidade sob um arbusto de rosas... Ah, esse velho mago! Esse Klingsor de todos os Klingsors! [47] Como ele assim faz a guerra contra nós! nós, os espíritos livres! Como ele indulgencia toda covardia da alma moderna, com seus tons de feiticeira! [48] — Jamais houve um tal ódio mortal ao conhecimento! — É preciso ser cínico para não se deixar seduzir; é preciso ser capaz de morder, para não cair em adoração. Muito bem, velho sedutor! O cínico te adverte — cave canem…[49] A adesão a Wagner custa caro. Eu observo os jovens que ficaram longamente expostos a essa infecção. O efeito mais imediato, relativamente inofensivo, é a corrupção do gosto. Wagner atua como a ingestão continuada de álcool. Ele embota, ele obstrui o estômago. Efeito específico: degeneração do senso rítmico. O wagneriano denomina “rítmico”, afinal, o que eu, usando um provérbio grego, chamo de “mover o pântano”. Bem mais perigosa é a corrupção dos conceitos. O jovem se torna um imbecil — um “idealista”. Está além da ciência; nisto se acha à altura do mestre. E faz-se de filósofo; escreve Folhas de Bayreuth; resolve todos os problemas em nome do Pai, do Filho e do Mestre Santo. [50] O mais inquietante, porém, é a corrupção dos nervos. Percorra-se uma cidade à noite: em toda parte se ouve [51] instrumentos violentados com solene furor — gritos selvagens mesclamse a eles. Que sucede? — Os jovens adoram a Wagner... Bayreuth lembra um asilo hidroterápico. — Típico telegrama de Bayreuth: bereits bereut (já me arrependi). —Wagner é ruim para os jovens; é fatídico para as mulheres. O que é, clinicamente falando, uma wagneriana? — Parece-me que toda a seriedade é pouca, quando um médico põe esta alternativa de consciência para uma jovem mulher: um ou outro. — Mas elas já escolheram. Não se pode servir a dois senhores, quando um deles se chama Wagner. Ele redimiu a mulher; em troca, a mulher construiulhe Bayreuth. Completo sacrifício, completa devoção: nada tem que não possa lhe dar. A mulher se empobrece em favor do mestre, torna-se comovente, fica nua diante dele. — A wagneriana — a mais graciosa ambiguidade que existe atualmente: ela encarna a causa de Wagner — no signo dela triunfa a causa dele... Ah, esse velho saqueador! Ele nos rouba os jovens, ele rouba até nossas mulheres e as arrasta para a sua caverna... Ah, esse velho Minotauro! [52] O que já nos custou! A cada ano são levados cortejos das mais belas jovens e rapazes ao seu labirinto, para que ele os devore — a cada ano a Europa inteira entoa: “para Creta! para Creta!”...[53] |
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Segundo pós-escrito |
— Ao que parece, minha carta se presta a um mal-entendido. Em alguns rostos mostram-se as linhas da gratidão; ouço até mesmo um júbilo moderado. Neste ponto, como em muitos outros, eu prefiro ser compreendido. — Mas desde que um novo bicho ataca nas vinhas do espírito alemão, o verme do Império, a famosa Rhinoxera, [54] já não se compreende nenhuma palavra minha. O Kreuzzeitung mesmo demonstra isso, sem falar do Literarisches Zentralblatt. — Dei aos alemães os mais profundos livros que eles possuem — razão suficiente para que não me entendam palavra... Se neste escrito faço guerra a Wagner — e, incidentalmente, a um “gosto’’ alemão —, se tenho palavras duras para o cretinismo bayreuthiano, a última coisa que desejo é celebrar qualquer outro músico. Outros músicos não contam diante de Wagner. A situação está feia. O declínio é geral. A doença vai fundo. Se Wagner continua sendo o nome para a ruína da música, como Bernini [55] o é para a ruína da escultura, ele não é a causa disso, porém. Ele apenas lhe acelerou o tempo — de maneira tal, sem dúvida, que ficamos horrorizados ante esse súbito precipitar-se abismo abaixo. Ele tinha a ingenuidade da décadence: esta era a sua superioridade. Ele cria nela, não se deteve ante nenhuma lógica da décadence. Os outros hesitam — isso os diferencia. Nada mais!... O que há em comum entre Wagner e “os outros” — vou enumerar: a diminuição da força organizadora; o mau uso dos meios tradicionais, sem a capacidade justificadora, o “a-fim-de”; [56] a falsificação ao imitar grandes formas, para as quais ninguém hoje é bastante forte, orgulhoso, seguro de si, saudável; a vivacidade excessiva no que é ínfimo; o afeto a todo custo; o refinamento como expressão da vida empobrecida; cada vez mais, nervos no lugar da carne. — Conheço apenas um músico que ainda hoje é capaz de esculpir uma abertura a partir de uma peça inteira: e ninguém o conhece…[57] Quem atualmente é famoso não faz, em comparação a Wagner, música “melhor”, mas apenas mais indecisa, apenas mais indiferente: — mais indiferente, porque a metade é suprimida pelo fato de o todo estar presente. Mas Wagner era todo; mas Wagner era toda a corrupção; mas Wagner era o ânimo, a vontade, a convicção na corrupção — que importa Johannes Brahms?... Sua fortuna foi um mal-entendido alemão: tomaram-no por antagonista de Wagner — necessitavam de um antagonista! — Ele não faz música necessária, faz sobretudo música de mais! Quando não se é rico, deve-se ter orgulho bastante para ser pobre!... A simpatia que Brahms inegavelmente desperta aqui e ali, fora desse interesse partidário, mal-entendido partidário, por muito tempo foi um enigma para mim: até que finalmente, quase por um acaso, descobri que ele agia sobre um determinado tipo de gente. Ele tem a melancolia da incapacidade; [58] ele não cria a partir da abundância, ele tem sede da abundância. Não considerando o que ele imita, o que toma emprestado a grandes formas antigas ou exótico-modernas — é um mestre da cópia —, o que resta de mais propriamente seu é a nostalgia... Isto pressentem os nostálgicos, os insatisfeitos de toda espécie. Ele é muito pouco pessoa, muito pouco centro... Isto é compreendido pelos “impessoais”, os periféricos — eles o amam por isso. Em especial ele é o músico de um tipo de mulher insatisfeita. Cinquenta passos adiante, e temos a wagneriana — precisamente como, cinquenta passos além de Brahms, encontramos Wagner—, a wagneriana, um tipo mais pronunciado, mais interessante, sobretudo mais gracioso. Brahms é tocante, enquanto secretamente se exalta ou chora de si mesmo — nisso é “moderno” —; torna-se frio, não mais nos diz respeito, quando herda dos clássicos... Gostam de se referir a Brahms como o herdeiro de Beethoven: não conheço mais cauteloso eufemismo. — Tudo o que na música de hoje reivindica ter “grande estilo” está sendo ou falso para conosco ou falso para consigo. Essa alternativa dá muito o que pensar: ela inclui uma casuística acerca do valor desses dois casos. “Falso para conosco”: o instinto da maioria das pessoas protesta contra isso — elas não querem ser enganadas —; eu mesmo preferiria até esse tipo ao outro (“falso para consigo”). É este o meu gosto. — Expresso de modo mais inteligível, para os “pobres de espírito”: Brahms — ou Wagner... Brahms não é ator. — Boa parte dos outros músicos pode ser incluída no conceito de Brahms. — Nada digo sobre os sagazes macacos de Wagner, sobre Goldmark, por exemplo: quem faz a Rainha de Sabá [59] deveria estar no zoológico — teria o que exibir. — Só o que é pequeno pode hoje ser feito bem, ser feito magistralmente. Apenas nisso é ainda possível a retidão. — Mas nada pode, no principal, curar a música do principal, da fatalidade de ser expressão da contradição fisiológica — de ser moderna. A melhor instrução, o mais consciencioso treino, a intimidade fundamental, até mesmo o isolamento na companhia dos velhos mestres — tudo isso permanece apenas atenuante, ilusório, falando com mais rigor, por não se ter dentro de si o pressuposto disso: seja a forte raça de um Händel, seja a transbordante animalidade de um Rossini. — Nem todos têm o direito a todo professor: isso vale para épocas inteiras. — Não se exclui a possibilidade de que vestígios de gerações mais fortes, homens tipicamente extemporâneos, ainda vivam em algum lugar da Europa: então poderíamos esperar também na música uma tardia beleza e perfeição. No melhor dos casos, o que ainda haveremos de experimentar são exceções. Mas da regra de que a corrupção predomina, de que a corrupção é fatal, nenhum deus há de salvar a música. — |
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1. “Rindo, dizer coisas graves”: citação e paródia de Horácio, Sátiras I, 1,24: (...) ridentem dicere verum quid vetat (“o que nos proíbe de, rindo, dizer coisas verdadeiras?”). |
2. Nietzsche ouviu Carmen pela primeira vez em 27 de novembro de 1881, em Gênova. Depois assistiu a várias apresentações dessa ópera (não sabemos quantas exatamente: “vigésima” é provavelmente força de expressão), inclusive na primavera de 1888, em Turim, quando escrevia O caso Wagner — como atesta uma carta endereçada a Peter Gast em 20 de abril de 1888, na qual diz, em italiano e bem-humoradamente: successo piramidale, tutto Torino carmenizzato! (em Sämtliche Briefe, ed. G. Colli e M. Montinari, DTV/de Gruyter, vol. 8, p. 299; esta carta, juntamente com outras relativas a O caso Wagner e Nietzsche contra Wagner, acha-se no final do presente volume). |
3. “melodia infinita”: expressão do próprio Wagner. |
4. “redentor”: cf. carta de Nietzsche a Peter Gast: “O leitmotiv de meu gracejo ruim, ‘Wagner como Redentor’, refere-se naturalmente à inscrição na coroa da Sociedade Wagner de Munique. ‘Redenção para o Redentor’...” (carta de 11 de agosto de 1888. . |
5. Prosper Mérimée (1803-70. : ficcionista francês, autor da novela Carmen, na qual se baseou Georges Bizet (1838-75. para compor a ópera de mesmo nome. |
6. Senta: protagonista da ópera O navio fantasma, de Wagner. |
7. Walter Kaufmann lembra, a propósito, a admiração de Nietzsche pelo modo como Shakespeare caracterizou Brutus em Júlio César, e o verso de Oscar Wilde em The Ballad of Reading Gaol: For all men kill the thing they love (“Pois todos os homens matam aquilo que amam”). |
8. Citação de Goethe, Anos de aprendizagem de Wilhelm Meister IV, 9, e Poesia e verdade III, 4. |
9. Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830. : político e escritor francês, autor do romance Adolphe. |
10. Kundry: personagem da ópera Parsifal. |
11. Em alemão, “judeu errante” se diz ewige Jude — literalmente, “judeu eterno”. |
12. Nesta passagem sobre a fortuna de Goethe na Alemanha de sua época, Nietzsche é devedor de uma obra que havia lido e da qual havia copiado trechos em seus cadernos: Gedanken über Goethe (Pensamentos sobre Goethe), de Viktor Hehn (Berlim, 1887. . Veja-se, por exemplo, a seguinte frase de Hehn, citada por Colli e Montinari nas notas à sua edição de Nietzsche: “Apenas as mulheres judias (...) foram menos severas e pressentiram algo da grandeza não só poética, mas também moral, de Goethe: pois elas tinham mais sabedoria inata (Mutterwitz im Kopfe) do que as boas e amáveis, mas convencionalmente limitadas (...) habitantes loiras da Baixa Saxônia” (Colli e Montinari, Kritische Studienausgabe, DTV/de Gruyter, vol. 14, pp. 403-4. . |
13. Klopstock (1724-1803. : o mais renomado poeta da geração anterior à de Goethe; Herder (1744-1803. : um dos mais influentes críticos da literatura alemã. |
14. Barthold Georg Niebuhr (1776-1831. : estadista e historiador, autor de História romana; na mesma frase, adiante, Biterolf designa um dos cavaleiros de Tannhäuser. |
15. Wartburg: castelo alemão onde Lutero traduziu a Bíblia; numa de suas paredes há uma mancha de tinta, ocasionada, segundo a tradição, quando o Diabo apareceu a Lutero e este jogou um tinteiro nele. |
16. Alusão aos versos finais do Fausto II, de Goethe; no parágrafo anterior, o “eternofeminino” alude às mesmas célebres linhas. |
17. Citação de Ernest Renan, Vie de Jésus (Paris, 1863. . |
18. Frase de Zenão, pensador estoico grego, conhecida por Nietzsche na citação feita em latim por Schopenhauer, em Parerga e paralipomena. |
19. Circe: personagem de Homero; feiticeira que transforma os companheiros de Ulisses em porcos, no canto X da Odisseia. |
20. No original, Luft, mehr Luft!, paródia das últimas palavras de Goethe, que teriam sido Licht, mehr Licht! (“Luz, mais luz!”). |
21. Em outras passagens de sua obra Nietzsche se manifesta negativamente sobre o vegetarianismo (ver, por exemplo, Ecce homo, II 1. . |
22. Alusão ao Novo Testamento: Mateus 19,14; Marcos 10,14; Lucas, 18,16. |
23. Alessandro Cagliostro: pseudônimo de Giuseppe Balsamo (1743-95. , aventureiro italiano praticante do ocultismo. |
24. “idiota”: no sentido dostoievskiano de ingênuo, inocente, exemplificado no protagonista do romance O idiota. |
25. Palestrina (c. 1526-94. : grande compositor italiano de música sacra. |
26. “Fisiologia da estética”: sabe-se que Nietzsche não chegou a escrever a obra principal que tinha em mente; algumas anotações com esse título, feitas em 1888, foram depois incorporadas ao capítulo “Incursões de um extemporâneo”, de Crepúsculo dos ídolos. |
27. Num “fragmento póstumo” do início de 1888, que pode ser lido como um esboço desta passagem, encontra-se o nome de Paul Bourget, ensaísta francês admirado por Nietzsche. E já foi observado que esta frase é quase uma tradução do seguinte trecho de Essays de psychologie contemporaine, de Bourget (Paris, 1883. : Une même loi gouverne le développement et la décadence de cet autre organisme qui est le langage. Un style de décadence est celui où l’unité du livre se décompose pour laisser la place à l’indépendence de la page, où la page se décompose pour laisser la place à l’indépendence de la phrase, et la phrase pour laisser la place à l’indépendence du mot (apud Colli e Montinari, KSA, vol. 13, 11 (321)). |
28. Irmãos Concourt: Edmond (1822-96. e Jules (1830-70. , romancistas franceses, famosos principalmente por seus Diários. |
29. “capacidade de expressão”: Sprachvermögen, no original; “linguagem”: Sprache. |
30. François Joseph Talma (1763-1826). : célebre ator francês. |
31. Referência ao 3o ato de Siegfried, em que Wotan invoca Erda, a Terra (Erde, em alemão). |
32. “em escala menor”: verjüngte Proportionen, no original. Nas versões estrangeiras consultadas durante a elaboração desta encontramos: obras (...) remoçadas, proporzioni ringiovanite, oeuvres (...) rajeunies, more youthful proportions. Essas versões foram: a de António M. Magalhães (Porto, Rés Editora, s. d.), a de Ferruccio Masini (Milão, Mondadori Oscar, 1981. , a de JeanClaude Hémery (Paris, Gallimard, 1974. e a de Walter Kaufmann (Nova York, Vintage, 1967. . Há aqui um pequeno erro nas traduções consultadas. O verbo verjüngen significa primariamente “rejuvenescer”; mas também significa, nas artes plásticas, “reduzir”, e é este o sentido em que Nietzsche o usa, como se vê pelo substantivo Proportionen. |
33. No original: konnte nicht aus dem Ganzen schaffen; nas outras versões: não soube criar um todo único , non poteva creare in maniera totale, ne savait pas créer un tout d’une seule spèce, was unable to create from a totality. |
34. “falsário”: Falschmünzer, literalmente, “cunhador de moeda falsa”. |
35. la gaya scienza: “a gaia ciência”, “o alegre saber” — expressão com que se designava, no século XIV, a arte dos trovadores provençais. Nietzsche lhe ampliou o sentido, para caracterizar uma atitude e uma filosofia afirmadoras da vida; por isso um dos seus livros da maturidade se intitula A gaia ciência. Cf. Além do bem e do mal, seção 260, e Ecce homo, capítulo “A gaia ciência”. |
36. “engenho”: tradução que aqui demos a Witz, palavra notoriamente polissêmica, que nos dicionários de alemão-português é também vertida como “espírito, bom senso; graça, agudeza, finura, sutileza; gracejo, remoque, rasgo, chiste, piada, dito gracioso, chalaça, motejo, mote, dito picante”. |
37. Hugo Riemann (1849-1919. : autor de Teoria da pontuação musical e Dicionário de música, obras influentes na época. |
38. Em italiano no original, por isso é grafado com “s”. |
39. Reich: literalmente, “reino”, “império”; Nietzsche se refere ao Estado criado por Bismarck em 1871, que teria fim em 1918, com a derrota alemã na Primeira Grande Guerra e consequente proclamação da República de Weimar. Quando, posteriormente, Hitler denominou o Estado nazista de Terceiro Reich, viu a si mesmo como sucessor de Bismarck e de Carlos Magno, que no século IX fundou o Sacro Império Romano Germânico (que teria sido o primeiro Reich). |
40. Vittorio Alfieri (1749-1803. : dramaturgo italiano; viveu muito tempo em Turim. |
41. die zurückgebliebenste Kulturvolk — nas demais traduções, “o povo de cultura mais retardatário”, popolo civile più arretrato, peuple de culture le plus retardataire, the most retarded civilized nation. Na mesma frase, pouco antes; “retardadores” traduz Verzögerer — “os moderadores”, ritardatori, les ralentisseurs, delayers. Sobre a noção dos alemães como “retardadores da história”, cf. o capítulo sobre O caso Wagner em Ecce homo. |
42. Bayreuth: cidade da Baviera onde Wagner se estabeleceu e fundou um teatro para encenar suas óperas; o primeiro dos festivais de Bayreuth teve lugar em 1876, com a apresentação do Anel dos Nibelungos. |
43. “demolatria”: adoração do povo, da massa. Walter Kaufmann chama a atenção, nesse contexto, para o capítulo 6 da Política, em que Aristóteles critica o “espetáculo”, e principalmente para um trecho das Leis, de Platão (seção 701a), no qual este recorre ao termo teatrocracia, usado por Nietzsche no mesmo parágrafo. |
44. O verbo verderben, aqui usado por Nietzsche, pode significar tanto “estragar” como “corromper”. |
45. “Toda a falsificação que é a transcendência e o Além”: die ganze Falschmünzerei der Transcendenz und des Jenseits: cf. nota da seção 10 relativa a “falsário”, acima. |
46. O nome Parsifal, de origem árabe, significaria “puro tolo”. |
47. “dialeto”: não traduz de fato o original, Idioticon; com esta palavra, assemelhada a Lexicon (“léxico”), Nietzsche quis designar um dicionário que cobre um dialeto particular (a palavra grega idios significa “próprio, particular”; daí idioma e idiomatismos). Os outros tradutores neolatinos recorreram a “léxico dialetal” para verter Idioticon; já o americano preferiu manter a inovação de Nietzsche e esclarecê-la com uma nota. Quanto a “feminismo”, no dialeto nietzschiano designa algo frágil, atraente, sensível (cf., por exemplo, Genealogia da moral, III 27. ou um termo característico da mentalidade ou atitude feminina (cf. galicismo, anglicismo). |
48. Klingsor é um mago, personagem de Parsifal. |
49. “tons de feiticeira”: versão não muito precisa para Zaubermädchen-Töne (Mädchen = garota, Zauber = magia); nas demais traduções, “requebros de sereia”, accenti da fanciulla incantatrice, accents de sirène, tones of magic maidens. |
50. Cave canem: “cuidado com o cão”. A graça transparece quando se recorda a etimologia da palavra cínico: “Do grego kynikós, relativo ao cão. Querem uns que o nome venha de Cinosargos, arrabalde de Atenas onde lecionava o fundador da escola, Antístenes, discípulo de Sócrates. Querem outros que o nome venha do desprezo destes filósofos a todas as conveniências sociais, de sua vida errante e do hábito de atormentar os transeuntes com censuras e zombarias. O cão era, aliás, o emblema da seita. Perguntando alguém um dia a Diógenes por que tomara este nome de cínico, ele respondeu: Adulo os que dão, ladro para os que não dão e mordo os maus” (Antenor Nascentes, Dicionário etimológico da língua portuguesa, Rio de Janeiro, 1932, p. 186. . |
51. “do Mestre Santo”: des heiligen Meisters, em alemão; trocadilho com des heiligen Geistes, “do Espírito Santo”. Na mesma frase, Folhas de Bayreuth (Bayreutber Blätter) designa o periódico mensal das Sociedades Wagner. |
52. Vários gramáticos recomendam que se use o verbo na terceira pessoa do plural, pois este seria um exemplo da “voz passiva sintética”. Mas preferimos aqui o singular, tomando o se como sujeito impessoal, equivalente ao uno espanhol, ao on francês e ao man alemão; cf. Rodrigues Lapa, Estilística da língua portuguesa, São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 164. Outros gramáticos ressaltam o artificialismo da voz passiva sintética: cf. Cláudio Moreno, Guia prático do português correto. Vol. 3: Sintaxe, Porto Alegre: L&PM, 2005, pp. 165-71. |
53. Na mitologia grega, ser com corpo de homem e cabeça de touro, fruto da relação de Pasífae, mulher do rei Minos, de Creta, com um touro presenteado ao rei pelo deus Posêidon. Minos ordenou a Dédalo, artista e arquiteto, que construísse um palácio (chamado Labirinto), de tal forma imenso e confuso que ninguém dele conseguia sair, para ali encerrar o Minotauro. Periodicamente, sete rapazes e sete moças eram lá abandonados, para que o monstro os devorasse, até que um desses jovens, Teseu, matou-o e saiu do palácio com a ajuda de Ariadne (do “fio de Ariadne”). Para mais detalhes, ver o Dicionário da mitologia grega e romana, de Pierre Grimal (2. ed., São Paulo, Martins Fontes, 1993. . |
54. Conforme esclarecimento do próprio Nietzsche, em carta a Peter Gast (reproduzida no Apêndice deste volume), “para Creta!” é um coro de A bela Helena, opereta de Jacques Offenbach. |
55. Palavra cunhada por Nietzsche. Entre os tradutores e comentadores de O caso Wagner, o único a tentar uma explicação para ela foi Walter Kaufmann. Ele constatou uma analogia com a filoxera, tipo de inseto que ataca plantas cultivadas, e descobriu que em 1881 houve uma convenção internacional sobre os meios para combater essa praga, que atingia bastante as videiras do Reno. Concluiu que o termo pode ser traduzido como “peste do Reno”, lembrando que esse rio é um símbolo do nacionalismo alemão e que tem papel importante na tetralogia do Anel dos Nibelungos. Quanto aos dois periódicos mencionados em seguida, Kreuzzeitung é como Nietzsche se refere ao Neue preussische Zeitung, jornal conservador que defendia os interesses dos junkers, a aristocracia rural prussiana (cf. Ecce homo, III 3. ; o Literarisches Zentralblatt era um prestigioso semanário de resenhas. |
56. Bernini (1598-1680. : escultor, arquiteto e pintor italiano. |
57. “o ‘a-fim-de’”: das zum-Zweck, com exceção da inglesa, as demais versões “corrigiram” essa invenção de Nietzsche, ignorando o tom coloquial: “a conformidade com um fim”; l’adattamento a un fine, la conformité a une fin, any for-the-sake-of. |
58. Alusão a Heinrich Köselitz (1854-1918. , amigo e discípulo, que veio a se tornar conhecido pelo pseudônimo que Nietzsche lhe deu: Peter Gast. Sobre o exagerado conceito que Nietzsche dele fazia como artista, ver a entrevista de C. P. Janz no final deste volume. |
59. “a melancolia da incapacidade”: die Melancholie des Unvermögens — esse controverso (ou famigerado) juízo de Nietzsche acerca de Brahms é às vezes citado como “a melancolia da impotência”; mas este vocábulo português tem conotações sexuais que não existem no termo alemão; nos outros tradutores consultados lemos: “a melancolia da impotência”, la melanconia dell’impotenza, la mélancolie de l’impuissance, the melancoly of incapacity. |
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