A Gaia Ciência |
Friedrich Wilhelm Nietzsche |
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Content |
PRÓLOGO |
1. |
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“BRINCADEIRA, ASTÚCIA E VINGANÇA” [4] Prelúdio em rimas alemãs |
1.Convite |
2.Minha felicidade |
3. Intrépido |
4.Diálogo |
5. Aos virtuosos |
6. Prudência mundana |
7.Vademecum — Vadetecum[5] |
8.Na terceira muda |
9. Minhas rosas |
10.O Desprezador |
11. O Provérbio fala |
12. A um amigo da luz |
13. Para dançarinos |
14. O Bravo |
15. Ferrugem |
16.Para cima |
17. Divisa do violento |
18.Almas estreitas |
19. O Sedutor involuntário |
20.A Considerar |
21.Contra A Soberba |
22. Homem e mulher |
23.Interpretação |
24. Remédio para pessimistas |
25.Pedido |
26.Minha Dureza |
27.O Andarilho |
28. Consolo Para Iniciantes |
29. Egoísmo Estelar |
30. O Próximo |
31. O Santo Camuflado |
32.O Cativo |
33. O Solitário |
34. Seneca et hoc genus omne |
35. Gelo |
36.Obras da juventude |
37. Cautela |
38. Fala o devoto |
39. No verão |
40. Sem inveja |
41. Heraclitismo[6] |
42. Princípio dos Refinados |
43. Conselho |
44. A Fundo |
45. Para sempre |
46. Juízos dos fatigados |
47. Ocaso |
48. Contra as leis |
49. Fala o sábio |
50. Cabeça perdida |
51. Desejo beato |
52. Escrevendo com o pé |
53. “Humano, Demasiado humano” Um livro |
54.Ao meu leitor |
55. O Pintor Realista |
56. Vaidade de poeta |
57. Gosto Exigente |
58. O Nariz torcido |
59. A Pena Rabisca |
60. Homens Superiores |
61.Fala O Cético |
62. Ecce Homo |
63. Moral estelar |
LIVRO I |
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LIVRO II |
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LIVRO III |
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LIVRO IV |
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LIVRO V |
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Canções do príncipe Vogelfrei[120] |
A Goethe[121] |
Vocação de Poeta |
No Sul |
A Devota Beppa |
O Barco Misterioso |
Declaração De Amor |
Canção de um Pastor de Cabras Teocrítico[122] |
“Essas almas incertas” |
Tolo em desespero |
Rimus Remedium [A rima como remédio] Ou: Como os poetas doentes se consolam |
“Minha felicidade!” |
Rumo a novos mares |
Sils-Maria |
Ao Mistral |
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PRÓLOGO |
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1. |
Talvez não baste somente um prólogo para este livro; e, afinal, restaria sempre a dúvida de que alguém que não tenha vivido algo semelhante possa familiarizar-se com a vivência deste livro mediante prólogos. Ele parece escrito na linguagem do vento que dissolve a neve: nele há petulância, inquietude, contradição, atmosfera de abril, de maneira que continuamente somos lembrados tanto da proximidade do inverno como da vitória sobre o inverno, a qual virá, tem de vir, talvez já tenha vindo... A gratidão aí emana sem parar, como se tivesse ocorrido o mais inesperado, a gratidão de um convalescente — pois a convalescença era esse inesperado. “Gaia ciência”: ou seja, as saturnais de um espírito que pacientemente resistiu a uma longa, terrível pressão — pacientemente, severa e friamente, sem sujeitar-se, mas sem ter esperança —, e que repentinamente é acometido pela esperança, pela esperança de saúde, pela embriaguez da convalescença. Não surpreende que então venha à luz muita coisa irracional e tola, muita leviana ternura, esbanjada até mesmo em problemas de pelos hirtos e pouco dispostos a deixar-se acariciar e atrair. Todo este livro não é senão divertimento após demorada privação e impotência, o júbilo da força que retorna, da renascida fé num amanhã e no depois de amanhã, do repentino sentimento e pressentimento de um futuro, de aventuras próximas, de mares novamente abertos, de metas novamente admitidas, novamente acreditadas. E quantas coisas não deixei para trás! Esse quê de deserto, exaustão, descrença, enregelamento na própria juventude, essa velhice interposta no lugar errado, essa tirania da dor, superada ainda pela tirania do orgulho que rejeitou as consequências da dor — e consequências são consolos —, esse radical isolamento para se resguardar de um desprezo aos homens que se tornara morbidamente clarividente, essa fundamental limitação ao que é amargo, acre, doloroso no conhecimento, prescrita pela náusea que pouco a pouco nasceu de uma incauta e complacente dieta espiritual — a que chamam de Romantismo —, quem poderia experimentar tudo isso como eu fiz? Mas quem o fizesse me perdoaria certamente mais que um pouco de tolice, desenvoltura, “gaia ciência” — por exemplo, o punhado de canções que agora vêm juntadas a este livro — canções nas quais um poeta, de maneira dificilmente perdoável, zomba de todos os poetas. — Ah, não é apenas nos poetas e seus belos “sentimentos líricos” que este ressuscitado precisa dar vazão a sua malícia: quem sabe que vítima ele não está procurando, que monstruoso tema de paródia o estimulará em breve? “ Incipit tragoedia” [A tragédia começa] — diz o final deste livro perigosamente inofensivo: tenham cautela! Alguma coisa sobremaneira ruim e maldosa se anuncia: incipit parodia, não há dúvida... |
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2 |
Mas deixemos o sr. Nietzsche de lado: que temos nós com o fato de o sr. Nietzsche haver recuperado a saúde?... Para um psicólogo, poucas questões são tão atraentes como a da relação entre filosofia e saúde, e, no caso de ele próprio ficar doente, levará toda a sua curiosidade científica para a doença. Pois, desde que se é uma pessoa, tem-se necessariamente a filosofia de sua pessoa: mas há aqui uma notável diferença. Num homem são as deficiências que filosofam, no outro, as riquezas e forças. O primeiro necessitada sua filosofia, seja como apoio, tranquilização, medicamento, redenção, elevação, alheamento de si; no segundo ela é apenas um formoso luxo, no melhor dos casos a volúpia de uma triunfante gratidão, que afinal tem de se inscrever, com maiúsculas cósmicas, no firmamento dos conceitos. Mas naquele outro caso, mais frequente, em que as crises fazem filosofia, como em todos os pensadores doentes — e talvez os pensadores doentes predominem na história da filosofia —: que virá a ser do pensamento mesmo que é submetido à pressãoda doença? Eis a questão que interessa aos psicólogos: e aqui o experimento é possível. De modo análogo ao do viajante que planeja acordar numa determinada hora e tranquilamente se entrega ao sono: assim nós, filósofos, ficando doentes, nos sujeitamos à doença de corpo e alma por algum tempo — como que fechamos os olhos para nós mesmos. E, tal como ele sabe que alguma coisa não dorme, que algo conta as horas e o despertará, também sabemos nós que o momento decisivo nos encontrará despertos — que alguma coisa saltará e surpreenderá o espírito em flagrante, quero dizer, em fraqueza, recuo, rendição, endurecimento, ensombrecimento ou como quer que se chamem os estados doentios do espírito, que em dias saudáveis têm contra si o orgulhodo espírito (pois ainda é válido aquele antigo ditado: “O espírito orgulhoso, o cavalo e o pavão são os três bichos mais altivos desse mundo”). Após uma tal interrogação de si mesmo, experimentação consigo mesmo, aprendemos a olhar mais sutilmente para todo o filosofar que houve até agora; adivinhamos melhor os involuntários desvios, vias paralelas, pontos de repouso, pontos solaresdo pensamento, aos quais os pensadores que sofrem são levados e aliciados justamente por sofrerem; sabemos agora para onde o corpodoente, com a sua necessidade, inconscientemente empurra, impele, atrai o espírito — para sol, sossego, brandura, paciência, remédio, bálsamo em todo e qualquer sentido. Toda filosofia que põe a paz acima da guerra, toda ética que apreende negativamente o conceito de felicidade, toda metafísica e física que conhece um finale, um estado final de qualquer espécie, todo anseio predominantemente estético ou religioso por um Além, Ao-lado, Acima, Fora, permitem perguntar se não foi a doença que inspirou o filósofo. O inconsciente disfarce de necessidades fisiológicas sob o manto da objetividade, da ideia, da pura espiritualidade, vai tão longe que assusta — e frequentemente me perguntei se até hoje a filosofia, de modo geral, não teria sido apenas uma interpretação do corpo e uma má-compreensãodo corpo. Por trás dos supremos juízos de valor que até hoje guiaram a história do pensamento se escondem más-compreensões da constituição física, seja de indivíduos, seja de classes ou raças inteiras. Podemos ver todas as ousadas insânias da metafísica, em particular suas respostas à questão do valorda existência, antes de tudo como sintomas de determinados corpos; e, se tais afirmações ou negações do mundo em peso, tomadas cientificamente, não têm o menor grão de importância, fornecem indicações tanto mais preciosas para o historiador e psicólogo, enquanto sintomas do corpo, como afirmei, do seu êxito ou fracasso, de sua plenitude, potência, soberania na história, ou então de suas inibições, fadigas, pobrezas, de seu pressentimento do fim, sua vontade de fim. Eu espero ainda que um médico filosófico, no sentido excepcional do termo — alguém que persiga o problema da saúde geral de um povo, uma época, de uma raça, da humanidade —, tenha futuramente a coragem de levar ao cúmulo a minha suspeita e de arriscar a seguinte afirmação: em todo o filosofar, até o momento, a questão não foi absolutamente a “verdade”, mas algo diferente, como saúde, futuro, poder, crescimento, vida... |
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3 |
— Vê-se que eu não gostaria de despedir-me ingratamente daquele tempo de severa enfermidade, cujo benefício ainda hoje não se esgotou para mim: assim como estou plenamente cônscio das vantagens que a minha instável saúde me dá, em relação a todos os robustos do espírito. Um filósofo que percorreu muitas saúdes e sempre as torna a percorrer passou igualmente por outras tantas filosofias: ele não pode senão transpor seu estado, a cada vez, para a mais espiritual forma e distância — precisamente esta arte da transfiguração é filosofia. A nós, filósofos, não nos é dado distinguir entre corpo e alma, como faz o povo, e menos ainda diferenciar alma de espírito. Não somos batráquios pensantes, não somos aparelhos de objetivar e registrar, de entranhas congeladas — temos de continuamente parir nossos pensamentos em meio a nossa dor, dando-lhes maternalmente todo o sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento, consciência, destino e fatalidade que há em nós. Viver — isto significa, para nós, transformar continuamente em luz e flama tudo o que somos, e também tudo o que nos atinge; não podemosagir de outro modo. E no que toca à doença: não estaríamos quase tentados a perguntar se ela é realmente dispensável para nós? Apenas a grande dor é o extremo liberador do espírito, enquanto mestre da grande suspeita, que de todo U faz um X, um autêntico e verdadeiro X,[1] isto é, a antepenúltima letra... Apenas a grande dor, a lenta e prolongada dor, aquela que não tem pressa, na qual somos queimados com madeira verde, por assim dizer, obriga a nós, filósofos, a alcançar nossa profundidade extrema e nos desvencilhar de toda confiança, toda benevolência, tudo o que encobre, que é brando, mediano, tudo em que antes púnhamos talvez nossa humanidade. Duvido que uma tal dor “aperfeiçoe” —; mas sei que nos aprofunda. Seja que aprendemos a lhe opor nosso orgulho, nosso escárnio, nossa força de vontade, fazendo como o índio que, embora supliciado, obtém desforra de seu torturador com a malícia da sua língua; seja que ante a dor nos retiramos para o Nada oriental — denominado Nirvana —, para o mudo, rígido, surdo entregar-se, esquecer-se, apagar-se: desses longos e perigosos exercícios de autodomínio retornamos uma outra pessoa, com algumas interrogações mais, sobretudo com a vontade de ora em diante questionar mais, mais profundamente, severamente, duramente, maldosamente, silenciosamente do que até então se questionou. A confiança na vida se foi; a vida mesma tornou-se um problema. — Mas não se creia que isso torne alguém necessariamente sombrio. Mesmo o amor à vida é ainda possível — apenas se ama diferente. É o amor a uma mulher da qual se duvida... Mas o fascínio de tudo o que é problemático, a alegria com o X, nesses homens mais espirituais, mais espiritualizados, é muito grande para que essa alegria não torne sempre a assomar, num claro ardor, acima de toda a aflição do que é problemático, de todo o perigo da incerteza, e até do ciúme daquele que ama. Conhecemos uma nova felicidade... |
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4 |
Por fim, para que o essencial não deixe de ser registrado: de tais abismos, de tal severa enfermidade, também da enfermidade da grave suspeita voltamos renascidos, de pele mudada, mais suscetíveis, mais maldosos, com gosto mais sutil para a alegria, com língua mais delicada para todas as coisas boas, com sentidos mais risonhos, com uma segunda, mais perigosa inocência na alegria, ao mesmo tempo mais infantis e cem vezes mais refinados do que jamais fôramos antes. Oh, como repugna agora a fruição, a grosseira, surda, parda fruição, tal como a entendem os fruidores, nossos “homens cultos”, nossos ricos e governantes! Com que malícia escutamos agora o barulho de grande feira com que o homem “culto” e citadino se deixa violentar por arte, livros e música até sentir “prazeres espirituais”, não sem ajuda de bebidas espirituais! Como agora nos fere os ouvidos o grito teatral da paixão, como se tornou estranho ao nosso gosto esse romântico tumulto e emaranhado de sentidos que o populacho culto adora, e todas as suas aspirações ao excelso, elevado, empolado! Não, se nós, convalescentes, ainda precisamos de uma arte, é de uma outraarte — uma ligeira, zombeteira, divinamente imperturbada, divinamente artificial, que como uma clara chama lampeje num céu limpo! Sobretudo: uma arte para artistas, somente para artistas! Nós nos entendemos melhor, depois, quanto ao que primeiramente se requer para isso, a jovialidade, qualquer jovialidade, meus amigos! também como artistas —: pretendo demonstrá-lo. Algumas coisas sabemos agora bem demais, nós, sabedores: oh, como hoje aprendemos a bem esquecer, a bem nãosaber, como artistas! E no tocante a nosso futuro: dificilmente nos acharão nas trilhas daqueles jovens egípcios que à noite tornam inseguros os templos, abraçam estátuas e querem expor à luz, desvelar, descobrir, tudo absolutamente que por boas razões é mantido oculto.[2] Não, esse mau gosto, essa vontade de verdade, de “verdade a todo custo”, esse desvario adolescente no amor à verdade — nos aborrece: para isso somos demasiadamente experimentados, sérios, alegres, escaldados, profundos... Já não cremos que a verdade continue verdade, quando se lhe tira o véu... Hoje é, para nós, uma questão de decoro não querer ver tudo nu, estar presente a tudo,compreender e “saber” tudo. “É verdade que Deus está em toda parte?”, perguntou uma garotinha à sua mãe; “não acho isso decente” — um sinal para os filósofos!... Deveríamos respeitar mais o pudorcom que a natureza se escondeu por trás de enigmas e de coloridas incertezas. Talvez a verdade seja uma mulher que tem razões para não deixar ver suas razões? Talvez o seu nome, para falar grego, seja Baubo?…[3] Oh, esses gregos! Eles entendiam do viver! Para isto é necessário permanecer valentemente na superfície, na dobra, na pele, adorar a aparência, acreditar em formas, em tons, em palavras, em todo o Olimpo da aparência! Esses gregos eram superficiais — por profundidade! E não é precisamente a isso que retornamos, nós, temerários do espírito, que escalamos o mais elevado e perigoso pico do pensamento atual e de lá olhamos em torno, nós, que de lá olhamos para baixo? Não somos precisamente nisso — gregos? Adoradores das formas, dos tons, das palavras? E precisamente por isso — artistas? Ruta, próximo a Gênova, outono de 1886 |
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“BRINCADEIRA, ASTÚCIA E VINGANÇA” [4] Prelúdio em rimas alemãs |
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1.Convite |
Coragem com meu alimento, comedores! Amanhã o seu gosto já lhes será melhor E depois de amanhã será bom! Se então quiserem mais — Minhas sete velhas receitas Me serão sete novas audácias. |
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2.Minha felicidade |
Depois que cansei de procurar Aprendi a encontrar. Depois que um vento me opôs resistência Velejo com todos os ventos. |
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3. Intrépido |
Onde você estiver, cave bem fundo! Lá embaixo está a fonte! Deixe que gritem os homens escuros: “Lá embaixo é sempre — inferno!”. |
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4.Diálogo |
A. Estava eu doente? Estou agora são? Quem foi o meu médico? Como pude esquecer tudo! B. Agora sim, creio que está são: Pois sadio é quem esquece. |
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5. Aos virtuosos |
Também nossas virtudes devem ter os pés ligeiros: Como os versos de Homero, é preciso que venham e vão! |
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6. Prudência mundana |
Não fique no rés do chão! Não suba alto demais! O mundo parece mais belo À meia altura. |
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7.Vademecum — Vadetecum[5] |
Atraem-no meu jeito e minha língua, Você me segue, vem atrás de mim? Siga apenas a si mesmo fielmente: — Assim me seguirá — com vagar! com vagar! |
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8.Na terceira muda |
Já se enruga e racha a minha pele, Já com novo ímpeto anseia Por terra a cobra que está em mim, Por mais terra que já tenha devorado. Já rastejo entre relva e pedra, Faminto, em tortuoso caminho, Para comer o que sempre comi, Você, sustento de cobra, você, terra! |
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9. Minhas rosas |
Sim, minha felicidade quer fazer feliz, Toda felicidade quer fazer feliz! Querem vocês colher minhas rosas? Terão de curvar-se e esconder-se Entre rochas e espinheiros, E com frequência lamber os dedinhos! Pois minha felicidade é traquinas! Pois minha felicidade é maldosa! — Querem mesmo colher minhas rosas? |
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10.O Desprezador |
Muita coisa deixo cair e escorrer, E por isso me acham vocês um desprezador. Quem bebe de taças demasiado cheias Deixa muito cair e escorrer — Nem por isso considerem o vinho pior. |
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11. O Provérbio fala |
Agudo e suave, grosseiro e fino, Familiar e estranho, impuro e limpo, Local de encontro de tolos e sábios: Tudo isso sou e quero ser, Pomba, serpente e porco a um tempo! |
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12. A um amigo da luz |
Não querendo cansar a vista e o senso, Persiga o sol pela sombra! |
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13. Para dançarinos |
Gelo liso É paraíso Para quem sabe dançar. |
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14. O Bravo |
Melhor uma inimizade inteira Que uma amizade emendada! |
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15. Ferrugem |
Também é preciso ferrugem: não basta ser afiado! Senão sempre dirão: “É jovem demasiado!”. |
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16.Para cima |
“Qual a melhor maneira de subir esse monte?” Apenas suba, não pense! |
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17. Divisa do violento |
Nunca pedir! Nada de lamúrias! Simplesmente pegar, sempre pegar! |
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18.Almas estreitas |
Eu abomino as almas estreitas; Não têm nada de bom, nem nada de mau. |
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19. O Sedutor involuntário |
Atirou no ar palavras vazias, Por distração — e abateu assim uma mulher. |
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20.A Considerar |
dupla dor é mais fácil de carregar Do que a dor única: quer arriscar? |
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21.Contra A Soberba |
Não se encha de ar: senão basta Uma alfinetada para o estourar. |
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22. Homem e mulher |
“Tome a mulher por quem bate seu coração!” — Assim pensa o homem; a mulher não toma, rouba. |
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23.Interpretação |
Se me explico, me implico: Não posso a mim mesmo interpretar. Mas quem seguir sempre o seu próprio caminho Minha imagem a uma luz mais clara também levará. |
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24. Remédio para pessimistas |
Queixa-se de que nada lhe agrada? Ainda aqueles caprichos, meu amigo? Vendo-o praguejar, chorar, escarrar, Perco a paciência e a alegria. Ouça meu conselho! Decida-se um dia A engolir um belo e gordo sapo Rapidamente e sem olhar! — A sua dispepsia ele vai curar! |
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25.Pedido |
Conheço o espírito de muitos homens Mas não sei quem sou eu mesmo! Meu olhar é demasiado próximo de mim — Não sou o que vejo e o que vi. Eu seria de maior proveito para mim Se de mim pudesse estar mais longe. Não tão distante quanto meu inimigo, claro! Já o amigo mais próximo está longe demais — Mas entre nós dois há o meio caminho! Adivinham vocês o meu pedido? |
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26.Minha Dureza |
Tenho de passar por cem degraus, Tenho de subir e escuto vocês falarem: “Você é duro; então somos feitos de pedra?” — Tenho de passar por cem degraus, E ninguém quer ser degrau. |
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27.O Andarilho |
“Mais nenhum caminho! Apenas abismo e silêncio!” — Assim você quis! Sua vontade deixou o caminho! Agora ande, andarilho! Tenha o olhar frio e claro! Perdido estará, se acreditar no perigo. |
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28. Consolo Para Iniciantes |
Vejam a criança em meio aos porcos que grunhem, Desamparada, com os dedos dos pés dobrados! Aprenderá algum dia a se erguer e andar? Não receiem! Logo, creio, Poderão vê-la dançar! Quando se puser sobre as duas pernas Também se porá de cabeça para baixo. |
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29. Egoísmo Estelar |
Se, recipiente redondo, eu não rodasse Em volta de mim mesmo sem parar, Como aguentaria correr atrás do Sol ardente sem me queimar? |
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30. O Próximo |
Não gosto de ter o próximo perto: Que vá para longe e para bem alto! Se não, como se tornaria ele meu astro? — |
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31. O Santo Camuflado |
Para que sua felicidade não nos atormente, Você se cobre de apetrechos do Diabo, De diabólica astúcia e indumentária. Em vão! Pois no seu olhar Reluz a santidade! |
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32.O Cativo |
A. Ele para e escuta: o que o perturba? Que coisa lhe zumbe aos ouvidos? Que foi que o atingiu? B. Como todos os que usaram grilhões, Em toda parte ele ouve — grilhões a tinir. |
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33. O Solitário |
Para mim é odioso seguir e também guiar. Obedecer? Não! E tampouco — governar! Quem não é terrível para si, a ninguém inspira terror: E somente quem inspira terror é capaz de comandar. Para mim já é odioso comandar a mim mesmo! Gosto, como os animais da floresta e do mar, De por algum tempo me perder, De permanecer num amável recanto a cismar, E enfim me chamar pela distância, Seduzindo-me para — voltar a mim. |
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34. Seneca et hoc genus omne |
[Sêneca e os de sua espécie] Escreve e escreve seu palavreado Insuportavelmente sábio, Como se devesse primum scribere, Deindephilosophari [primeiro escrever, depois filosofar]. |
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35. Gelo |
Sim, às vezes faço gelo: Gelo é útil para a digestão! Tivessem vocês muito a digerir, Como gostariam de meu gelo! |
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36.Obras da juventude |
O Alfa e o Ômega da minha sabedoria Deixaram aqui seus ecos: mas o que ouço? Agora já não soam da mesma forma, Escuto somente os perenes Ah! e Oh! Da minha juventude. |
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37. Cautela |
Por aquela região não aconselho viajar; E se você tem espírito, seja duplamente cuidadoso! Você é chamado, é amado e enfim despedaçado: São espíritos fanáticos —: ali não há espírito! |
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38. Fala o devoto |
Deus nos ama, porque nos criou! — “O homem criou Deus!” — respondem vocês, sutis. E não deveria amar o que criou? Deveria negá-lo, porque o criou? Isso manqueja, tem o casco fendido do Diabo. |
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39. No verão |
Com o suor de nosso rosto Devemos comer nosso pão? Com suor é melhor nada comer, Na opinião de médicos sábios. A estrela de Sírio acena: o que há? O que quer dizer seu aceno de fogo? Com o suor de nosso rosto Devemos beber nosso vinho! |
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40. Sem inveja |
Sim, não há inveja em seu olhar: e vocês o louvam por isso? Ele não olha em torno, à procura de seus louvores; Ele tem o olhar de águia, visa o que está longe, Ele não os enxerga! — vê apenas astros e estrelas. |
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41. Heraclitismo[6] |
Toda a felicidade que há na terra, Meus amigos, vem da luta! Sim, a amizade requer Os vapores da pólvora! Em três coisas se unem os amigos: São irmãos na miséria, Iguais ante o inimigo, E livres diante da morte! |
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42. Princípio dos Refinados |
Melhor na ponta dos pés Do que de quatro! Melhor pela fechadura Do que por portas abertas! |
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43. Conselho |
É à glória que você aspira? Então atente para a lição: Em boa hora e livremente renuncie À honra! |
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44. A Fundo |
Um pesquisador, eu? Oh, não use a palavra! — Sou somente pesado — de muitos quilos! Eu caio, caio sem parar E enfim chego ao fundo! |
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45. Para sempre |
“Venho hoje porque hoje me convém” — Acha todo aquele que vem para sempre. Que lhe importa o falatório do mundo: “Você vem muito cedo! Você vem tarde demais!” |
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46. Juízos dos fatigados |
Amaldiçoam o Sol todos os cansados; Para eles o valor das árvores é — a sombra! |
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47. Ocaso |
“Ele cai, ele afunda” — zombam vocês agora; A verdade é que ele desce até vocês! Sua felicidade excessiva foi para ele desgraça, Sua luz excessiva busca a escuridão que os rodeia. |
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48. Contra as leis |
Do meu pescoço, a partir de hoje Pende o relógio das horas: A partir de hoje cessa o curso dos astros, O Sol, o canto dos galos e o evoluir das sombras, O que uma vez me anunciava o tempo Está agora mudo, cego e surdo: — Toda natureza para mim silencia Ao tique-taque do relógio e da lei. |
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49. Fala o sábio |
Estranho para o povo, mas para ele útil, Sigo minha trilha, ora sol, ora nuvem — Sempre acima deste povo! |
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50. Cabeça perdida |
Ela agora tem espírito — como pôde achá-lo? Por ela um homem perdeu o entendimento. Sua cabeça era rica, antes desse passatempo: Foi-se para o Demônio sua cabeça — não! para a mulher! |
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51. Desejo beato |
“Que todas as chaves Rapidamente se percam E em cada fechadura Possa girar a gazua!” Assim pensa, a todo instante, Todo aquele que é — gazua. |
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52. Escrevendo com o pé |
Não escrevo somente com a mão: O pé também dá sua contribuição. Firme, livre e valente ele vai Pelos campos e pela página. |
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53. “Humano, Demasiado humano” Um livro |
Tímido e triste ao olhar para trás, Confiante no futuro, quando confia em si mesmo: Ó pássaro, devo incluí-lo entre as águias? É você o mocho favorito de Minerva? |
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54.Ao meu leitor |
Bons dentes e bom estômago — Eis o que lhe desejo! Se der conta de meu livro, Certamente se dará comigo! |
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55. O Pintor Realista |
“Fiel à natureza inteira!” — Como faz ele então: Desde quando a natureza acabouna imagem? Pois é infinita a mais ínfima parcela do mundo! — Afinal, deste ele pinta o que lhe agrada E o que lhe agrada? O que é capaz de pintar! |
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56. Vaidade de poeta |
Deem-me cola: pois madeira Eu próprio arranjarei! Não é coisa pouca pôr sentido Em quatro rimas tolas! |
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57. Gosto Exigente |
Pudesse eu escolher Teria um cantinho meu Em pleno Paraíso: Melhor ainda — em frente à sua porta! |
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58. O Nariz torcido |
O nariz olha insolente Para o mundo, as narinas inflam — É por isso que, rinoceronte sem chifre, Você sempre cai para a frente, homenzinho orgulhoso! E sempre juntos se encontram: Nariz torcido e orgulho em pé. |
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59. A Pena Rabisca |
A pena rabisca: que inferno! Estarei condenado a garatujar? — Então recorro audacioso ao tinteiro E escrevo sinuosos rios de tinta. Como tudo flui, tão largo e tão pleno! Como me sai bem tudo o que faço! É verdade que a escrita não é legível — Que importa? Quem lê o que escrevo, enfim? |
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60. Homens Superiores |
Este se eleva — é preciso louvá-lo! Mas aquele sempre vem de cima! Ele vive alheio ao louvor mesmo, Ele é de cima! |
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61.Fala O Cético |
Metade de sua vida passou, O ponteiro avança, a sua alma treme! Há muito ela vagueia, Procura e não encontra — e hesita agora? Metade de sua vida passou: E não foi mais que erro e dor até o momento! Que busca você ainda? Por quê? — — Justamente isso eu busco — a razão por quê! |
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62. Ecce Homo |
Sim, eu sei de onde sou! Insaciável como o fogo Eu ardo e me consumo. Tudo o que toco vira flama E tudo o que deixo, carvão: Sou fogo, não há dúvida. |
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63. Moral estelar |
Predestinada a um trajeto estelar, Que lhe importa, estrela, a escuridão? Atravesse feliz este tempo! A miséria de hoje lhe seja estranha! Seu brilho pertence a um mundo distante: Para você é pecado a compaixão! Para você há um só mandamento: seja pura! |
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LIVRO I |
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1. |
Os mestres da finalidade da existência. — Não importa se contemplo os homens com olhar bom ou ruim, sempre os vejo ocupados numa só tarefa, todos e cada um em particular: fazendo o que ajuda à conservação da espécie humana. E não por um sentimento de amor a tal espécie, mas simplesmente porque nada, neles, é mais antigo, mais forte, mais inexorável, mais insuperável do que esse instinto — porque ele é precisamente a essênciada linhagem e rebanho que somos. Se, com a miopia habitual, a cinco passos de distância, logo dividimos claramente os próximos em pessoas úteis e nocivas, boas e más, num balanço em grande escala, numa reflexão mais demorada acerca do todo suspeitamos dessa clara divisão e afinal a deixamos de lado. Até a pessoa mais nociva pode ser a mais útil, no que toca à conservação da espécie; pois mantém em si ou, por sua influência, em outras, impulsos sem os quais a humanidade teria há muito se estiolado ou corrompido. O ódio, a alegria com o mal alheio, a ânsia de rapina e domínio e tudo o mais que se chama de mau: tudo é parte da assombrosa economia da conservação da espécie, certamente uma economia pródiga, dispendiosa e, no conjunto, extremamente insensata: — mas que, de modo comprovado, até o momento conservou nossa estirpe. Não sei mais se você, caro próximo e semelhante, é capazde viver em detrimento da espécie, ou seja, de forma “irracional” e “má”; o que poderia ser nocivo à espécie já se extinguiu talvez há milênios e está entre as coisas que nem Deus pode mais conceber. Siga os seus melhores ou os seus piores desejos e, sobretudo, pereça! Em ambos os casos você provavelmente ainda é, de algum modo, fomentador e benfeitor da humanidade, e por isso tem direito a seus apologistas — mas também a seus detratores! Mas você nunca achará quem possa zombar de você, indivíduo, também no que tem de melhor, fazendo-o perceber, tanto quanto exigiria a verdade, sua ilimitada miséria de rã e de mosca![7] Rir de si mesmo, como se deveria rir para fazê-lo a partir da verdade inteira— para isso os melhores não tiveram bastante senso de verdade até hoje, e os mais talentosos tiveram pouco gênio! Talvez ainda haja um futuro também para o riso! Quando a tese de que “a espécie é tudo, o indivíduo, nada” houver se incorporado à humanidade e a cada um, em cada instante, estiver livre o acesso a essa derradeira libertação e irresponsabilidade. Talvez então o riso tenha se aliado à sabedoria, talvez haja apenas “gaia ciência”. Por enquanto ainda é bem diferente, por enquanto a comédia da existência ainda não se “tornou consciente” de si mesma, por enquanto este é ainda o tempo da tragédia, o tempo das morais e religiões. Que significa o aparecimento sempre renovado dos fundadores de morais e religiões, dos incitadores da luta pelas avaliações morais, dos mestres dos remorsos e das guerras religiosas? Que significam esses heróis nesse palco? Pois até agora foram eles os heróis, e todo o resto, que momentaneamente era o que se podia ver e estava próximo, serviu apenas de preparação para esses heróis, como mecanismo e bastidor ou no papel de confidentes e camareiros. (Os poetas, por exemplo, foram sempre os camareiros de alguma moral.) — É evidente que esses trágicos também trabalham no interesse da espécie, ainda que pensem trabalhar no interesse de Deus e como seus enviados. Também eles promovem a vida da espécie, ao promover a fé na vida. “Vale a pena viver” — clama cada um deles — “Há algo significativo nesta vida, ela tem algo por trás de si, embaixo de si, atenção!” Este impulso que age igualmente nos homens mais elevados e nos mais vis, o impulso à conservação da espécie, surge de tempo em tempo como razão e paixão do espírito; traz então um esplêndido cortejo de motivos ao redor, e com toda a força quer fazer esquecer que no fundo é impulso, instinto, tolice, ausência de motivo. A vida deveser amada, pois —! O ser humano devepromover a si e ao próximo, pois —! E quaisquer que sejam e venham a ser futuramente esses Deves e Pois! Para que tudo o que ocorre necessariamente e por si, sempre e sem nenhuma finalidade, apareça doravante como tendo sido feito para uma finalidade e seja plausível para o ser humano, enquanto razão e derradeiro mandamento — para isso entra em cena o mestre da ética, como mestre da finalidade da existência; para isso ele inventa uma segunda, uma outra existência, e com sua nova mecânica tira essa velha, ordinária existência de seus velhos, ordinários eixos. Sim, ele não quer absolutamente que riamosda existência, tampouco de nós — e tampouco dele; para ele o indivíduo é sempre o indivíduo,[8] algo primordial, derradeiro e imenso, para ele não há espécie, não há somas, não há zeros. Por mais tolas e entusiasmadas que sejam suas invenções e avaliações, por mais que ele julgue erradamente o curso da natureza e negue suas condições: — e todas as éticas foram sempre tão tolas e antinaturais que cada uma delas arruinaria a humanidade, caso se apoderasse dela — ainda assim! acada vez que o “herói” entrava em cena algo de novo era alcançado, essa horrível contrapartida do riso, essa profunda comoção de muitos indivíduos ao pensar: “Sim, vale a pena viver! sim, vale a pena que eu viva!” — a vida, eu, você, todos nós mutuamente, voltamos a ser interessantespor algum tempo. — É inegável que a longo prazocada um desses grandes mestres da finalidade foi até agora vencido pelo riso, a razão e a natureza: a breve tragédia sempre passou e retrocedeu afinal à eterna comédia do existir, e as “ondas de incontáveis risos” — nas palavras de Ésquilo[9] — devem finalmente se abater sobre os maiores desses trágicos também. Mas, apesar de todo esse riso corretor, a natureza humana foi mudada por esse aparecimento sempre renovado dos mestres da finalidade da existência — ela passou a ter uma necessidade mais, a necessidade justamente da aparição sempre renovada de tais mestres e doutrinas da “finalidade”. O homem tornou-se gradualmente um animal fantástico, que mais que qualquer outro tem de preencher uma condição existencial: ele temde acreditar saber, de quando em quando, por queexiste, sua espécie não pode florescer sem uma periódica confiança na vida! Sem fé na razão da vida! E sempre de novo, de quando em quando, a estirpe humana decretará: “Existe algo de que não se pode mais rir em absoluto!”. E o mais cauteloso dos amigos do humano acrescentará: “Não apenas o riso e a gaia sabedoria, mas também o trágico e sua sublime desrazão fazem parte dos meios e requisitos para a conservação da espécie!”. — E, por conseguinte! Por conseguinte! Por conseguinte! Oh, compreendem-me, meus irmãos? Compreendem essa nova lei do fluxo e refluxo? Também nós temos a nossa hora! |
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2. |
A consciência intelectual. — Continuo tendo a mesma experiência e me rebelando igualmente sem cessar contra ela, não desejo acreditar nela, ainda que me seja palpável: a grande maioria das pessoas não tem consciência intelectual; e frequentemente quis me parecer que se alguém a exige, nas mais populosas cidades, acha-se tão só como no deserto. Cada qual olha para você com olhar estrangeiro e prossegue no uso da sua balança, chamando a isso de bom e àquilo de mau; ninguém se enrubesce, quando você dá a entender que os pesos não estão justos — tampouco há indignação contra você: talvez riam de sua dúvida. Quero dizer: a grande maiorianão acha desprezível acreditar nisso ou naquilo e viver conforme tal crença,sem antes haver se tornado consciente das últimas e mais seguras razões a favor ou contra ela, e sem mesmo se preocupar depois com tais razões — os mais talentosos homens e as mais nobres mulheres também fazem parte dessa grande maioria. Mas que significam bondade, finura e gênio para mim, quando a pessoa que tem essas virtudes tolera em si mesma sentimentos frouxos ao crer e julgar, quando aexigência de certezanão constitui para ela o mais íntimo desejo e a mais profunda necessidade — o que distingue os homens superiores dos inferiores! Em algumas pessoas piedosas encontrei ódio à razão e isso me agradou nelas: ao menos se revelava assim a má consciência intelectual! Mas estar em meio a essa rerum concordia discors [discordante concerto das coisas] e toda a maravilhosa incerteza e ambiguidade da existência enão interrogar, não tremer de ânsia e gosto da interrogação, nem sequer odiar quem interroga, talvez até se divertindo levemente com este — isto é o que percebo como desprezível, e tal percepção é o que busco primeiramente em cada indivíduo: — algum desatino está sempre a me convencer de que todo ser humano tem esta percepção, como ser humano. É minha espécie de injustiça. |
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3. |
Nobre e vulgar. — Às naturezas vulgares todos os sentimentos nobres e magnânimos parecem despropositados e, por isso, inacreditáveis: elas piscam os olhos ao ouvir falar de tais coisas, como se quisessem dizer: “Alguma vantagem deve existir nisso, não podemos enxergar através das paredes” — desconfiam daquele que é nobre, como se ele buscasse o proveito por caminhos sinuosos. Sendo convencidas de que não há intenções e ganhos pessoais, veem o nobre como uma espécie de tolo: desprezam-no na alegria que demonstra e riem do brilho de seu olhar. “Como pode alguém se alegrar por estar em desvantagem, como se pode querer ficar em desvantagem tendo os olhos abertos? A afeição nobre deve estar ligada a uma doença da razão” — assim pensam elas, olhando com menosprezo: tal como menosprezam a alegria que o insano deriva de sua ideia fixa. A natureza vulgar se caracteriza por nunca perder de vista a sua vantagem e pelo fato de este pensamento de uma vantagem e finalidade ser até mais forte que os mais fortes impulsos nela existentes: não permitir que esses impulsos a desencaminhem para ações despropositadas — eis sua sabedoria e seu amor-próprio. Comparada a ela, a natureza superior é a mais insensata:— pois o indivíduo nobre, magnânimo, que se sacrifica, sucumbe mesmo a seus instintos, e em seus melhores momentos a sua razão faz uma pausa. Um animal que, arriscando a própria vida, protege seus filhotes, ou que na época do cio acompanha a fêmea até a morte, não pensa no perigo e na morte, sua razão faz igualmente uma pausa, porque o prazer com suas crias ou com a fêmea e o temor de que lhe roubem esse prazer o domina por completo; ele se torna mais estúpido do que é normalmente, tal como o indivíduo nobre e magnânimo. Este possui alguns sentimentos de prazer e de desprazer tão fortes, que o intelecto tem de silenciar ou de servi-los: o coração lhe toma o lugar da cabeça e fala-se de “paixão”. (Aqui e ali surge também o oposto disso, e como que a “reversão da paixão”, em Fontenelle, por exemplo, a quem certa vez puseram a mão sobre o coração, dizendo: “O que você tem aqui, meu caro, também é cérebro”.) A desrazão ou razão oblíqua da paixão[10] é aquilo que o vulgar despreza no nobre, mais ainda quando esta se volta para objetos cujo valor lhe parece fantástico e arbitrário. Ele se aborrece com quem sucumbe à paixão do estômago, mas entende a atração que há por trás dessa tirania; não entende, porém, como se pode colocar em jogo a saúde e a honra pela paixão do conhecimento, por exemplo. O gosto da natureza superior se volta para exceções, para coisas que normalmente deixam frio e não parecem ter doçura; a natureza superior tem uma peculiar medida de valor. Além disso, ela geralmente acredita que não há uma peculiar medida de valor em sua idiossincrasia do gosto, e estabelece os seus valores e desvalores como aqueles de validade geral, tornando-se incompreensível e pouco prática. É muito raro que uma natureza superior mantenha ainda razão bastante para compreender e tratar como tais as pessoas cotidianas: quase sempre ela acredita em sua paixão como a oculta paixão de todos, e justamente nesta crença põe muito ardor e eloquência. Mas, se tais indivíduos excepcionais não sentem a si próprios como exceções, como podem chegar a entender as naturezas vulgares e avaliar a regra com justeza? — por isso falam, também eles, da tolice, do despropósito e fantasmagoria da humanidade, cheios de assombro com o desatinado curso do mundo e com o fato de ele não querer admitir “o que lhe é necessário”. — Eis a eterna injustiça dos que são nobres. |
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4. |
Aquilo que conserva a espécie. — Até agora foram os espíritos mais fortes e maus que fizeram a humanidade avançar mais longe: eles sempre inflamaram as paixões que adormeciam — toda sociedade em ordem faz adormecerem as paixões —, eles sempre despertaram o senso da comparação, da contradição, do gosto pelo novo, ousado, inexperimentado, eles obrigaram os homens a contrapor opiniões a opiniões, modelos a modelos. Na maioria das vezes com as armas, derrubando marcas de fronteiras, violando piedades: mas também com novas religiões e morais! A mesma “maldade” que torna famigerado um conquistador se acha em cada pregador e mestre do novo — ainda que se expresse com maior finura, não ponha logo os músculos em movimento, e por isso mesmo não o torne tão famigerado! Mas o novo é, em todas as circunstâncias, o mau, aquilo que deseja conquistar, lançar por terra as antigas marcas de fronteira e as velhas piedades; e somente o antigo é bom! Os homens bons de cada época são os que cavam fundo nos velhos pensamentos e os fazem dar frutos, os lavradores do espírito. Mas todo terreno se esgota enfim, e o arado do mal precisa sempre retornar. — Existe agora uma teoria da moral profundamente equivocada, que é bastante festejada na Inglaterra: de acordo com ela, os juízos “bom” e “mau” são um apanhado das experiências relativas ao que é “apropriado ao fim” ou “não apropriado ao fim”;[11] segundo ela, o que chamamos de bom é aquilo que conserva a espécie, o que chamamos de mau, aquilo que a prejudica. Na verdade, os maus impulsos são tão apropriados ao fim, conservadores da espécie e indispensáveis quanto os bons: — apenas é diferente a sua função. |
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5. |
Deveres incondicionais. — Todos os homens que sentem necessidade das mais fortes palavras e tons, dos mais eloquentes gestos e atitudes para causar efeito, políticos revolucionários, socialistas, pregadores do arrependimento com ou sem cristianismo, para os quais não pode haver sucesso pela metade: todos eles falam de “deveres”, e sempre de deveres com caráter incondicional — sem estes não teriam direito ao seu grande pathos: isto eles sabem muito bem! Então recorrem a filosofias da moral que pregam algum imperativo categórico, ou assimilam um bom bocado de religião, como fez Mazzini, por exemplo. Por quererem que se tenha absoluta confiança neles, necessitam antes confiar absolutamente em si mesmos, com base em algum derradeiro e indiscutível mandamento, inerentemente sublime, do qual gostariam de sentir-se e aparecer como servidores e instrumentos. Temos aqui os opositores mais naturais, em geral muito influentes, do esclarecimento moral e do ceticismo: mas eles são raros. Uma classe bem numerosa de tais opositores, porém, acha-se em toda parte onde o interesse indica a submissão, ao mesmo tempo que reputação e honra parecem proibi-la. Quem sente a própria dignidade incompatível com a ideia de ser instrumentode um príncipe, um partido ou seita, ou até uma potência financeira, enquanto descendente de uma velha e orgulhosa família, por exemplo, mas que quer ou tem de ser tal instrumento, para si mesmo e para o público, necessita ter princípios patéticos em sua boca, que a qualquer momento sejam utilizados: — princípios de uma incondicional obrigação, aos quais pode, sem vergonha, submeter-se e mostrar-se submisso. Toda servilidade mais sutil se apega ao imperativo categórico e é inimiga mortal daqueles que querem tirar ao dever seu caráter incondicional: é o que exige deles a decência, e não apenas a decência. |
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6. |
Perda de dignidade. — A reflexão perdeu toda a sua dignidade da forma, tornaram-se ridículos a cerimônia e os gestos solenes da reflexão, e um homem sábio do velho estilo já não seria tolerado. Pensamos muito rapidamente, andando, a caminho, em meio a negócios de toda espécie, mesmo quando pensamos no que há de mais sério; necessitamos de pouca preparação, e mesmo de pouca tranquilidade: — é como se levássemos na cabeça uma máquina incessante, que nas condições mais desfavoráveis ainda trabalha. Antigamente se notava quando alguém queria pensar — era provavelmente excepcional! —, quando queria tornar-se mais sábio e se preparava para um pensamento: ele fazia um semblante como de quem ia rezar e interrompia o passo; permanecia até mesmo horas parado na rua, quando o pensamento “vinha” — andando com apenas uma ou com as duas pernas. Assim pedia a “dignidade da coisa”! |
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7. |
Algo para homens trabalhadores. — Quem hoje pretende estudar as coisas morais, abre para si um imenso campo de trabalho. Todas as espécies de paixões têm de ser examinadas individualmente, perseguidas através de tempos, povos, grandes e pequenos indivíduos; toda a sua razão, todas as suas valorações e clarificações das coisas devem ser trazidas à luz! Até o momento, nada daquilo que deu colorido à existência teve história: se não, onde está uma história do amor, da cupidez, da inveja, da consciência, da piedade, da crueldade? Mesmo uma história comparada do direito, ou apenas do castigo, falta inteiramente até aqui. Já se tomou por objeto de pesquisa as diferentes divisões do dia, as consequências de uma fixação regular do trabalho, das festas e do repouso? Conhece-se os efeitos morais dos alimentos? Existe uma filosofia da alimentação? (O alarido a favor e contra o vegetarianismo, que volta e meia reaparece, já mostra que ainda não há uma tal filosofia!) Já foram reunidas as experiências de vida comunitária, as experiências dos mosteiros, por exemplo? Já foi mostrada a dialética do casamento e da amizade? Os costumes dos eruditos, dos comerciantes, artistas, artesãos — já encontraram seus pensadores? Há tanto a pensar aqui! Tudo o que até agora os homens consideraram suas “condições de existência”, e toda a razão, paixão e crendice desta consideração — isto já foi pesquisado até o fim? Apenas a observação do crescimento diverso que tiveram e poderiam ter ainda os impulsos humanos, conforme os diversos climas morais, já significa trabalho em demasia para o homem mais trabalhador; gerações inteiras, gerações de eruditos a trabalhar conjuntamente e de modo planejado, serão necessárias para esgotar aqui o material e os pontos de vista. O mesmo vale para a demonstração dos motivos para a diferença de clima moral (“Por que brilha aqui este sol de um juízo moral e medida de valor fundamental — e ali aquele outro?”). E seria um novo trabalho estabelecer o caráter errôneo de todos esses motivos e toda a natureza do juízo moral até agora. Supondo que todos esses trabalhos fossem realizados, viria ao primeiro plano a questão mais espinhosa: se a ciência estaria em condições de oferecer objetivos para a ação, após haver demonstrado que pode liquidá-los — então caberia uma experimentação que permitiria a satisfação de toda espécie de heroísmo, séculos de experimentação, que poderia deixar na sombra todos os grandes trabalhos e sacrifícios da história até o momento. A ciência ainda não ergueu suas construções ciclópicas até hoje; também para isso chegará o tempo. |
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8. |
Virtudes inconscientes. — Todas as características pessoais de que um homem é consciente — sobretudo quando ele pressupõe que elas são visíveis e óbvias também para o seu meio — obedecem a leis de desenvolvimento completamente diversas das características que lhe são desconhecidas ou muito mal conhecidas, que por sua finura também se ocultam aos olhos do observador refinado, como que sabendo esconder-se por trás do nada. Assim é com as finas esculturas nas escamas dos répteis: seria um erro enxergar nelas um ornamento ou uma arma — pois são vistas apenas no microscópio, isto é, com um olho artificialmente aguçado, não possuído pelos animais para os quais poderiam significar um ornamento ou arma! Nossas qualidades morais visíveis, em especial as que acreditamosserem visíveis, seguem o seu próprio curso — e as invisíveis de mesmo nome, que em relação aos outros não são ornamento nem arma para nós, também seguem seu próprio curso: provavelmente muito diferente, e com linhas, finuras e esculturas que talvez agradassem a um deus com um microscópio divino. Temos, por exemplo, nossa aplicação, nossa ambição, nossa perspicácia: todo o mundo as conhece — e além disso também possuímos provavelmente nossaaplicação, nossaambição, nossa perspicácia; mas para essas nossas escamas de répteis não foi inventado ainda o microscópio! — E aqui os amigos da moralidade instintiva dirão: “Bravo! Ele ao menos acha possíveis virtudes inconscientes — isso nos satisfaz!”. — Oh, satisfeitos! |
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9. |
Nossas erupções. — Inumeráveis coisas que a humanidade adquiriu em estágios anteriores, de modo tão frágil e embrionário que ninguém pôde perceber tal aquisição, vêm à luz repentinamente, após muito tempo, talvez séculos depois: tornaram-se maduras e fortes nesse intervalo. Algumas épocas, assim como alguns indivíduos, parecem não possuir este ou aquele talento, esta ou aquela virtude: mas esperemos tão só os netos e os filhos dos netos, se tivermos tempo para isso — eles trazem à luz do sol o interior de seus avós, esse interior do qual os avós mesmos nada sabiam. Com frequência o filho denuncia o pai: este compreende melhor a si mesmo, depois que tem o filho. Todos nós temos jardins e plantações ocultas em nós; e, numa outra imagem, somos todos vulcões em crescimento, que terão sua hora de erupção: — mas se ela está longe ou perto, isso ninguém sabe, nem mesmo Deus. |
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10. |
Uma espécie de atavismo. — Prefiro entender os homens raros de uma era como rebentos tardios, que emergem subitamente, de culturas passadas e de suas energias: como que o atavismo de um povo e de seus costumes: — assim haverá realmente algo neles aentender! Agora parecem estranhos, raros, extraordinários: e quem sente tais energias em si mesmo tem de cultivá-las, defendê-las, honrá-las, promovê-las contra um mundo oposto e diverso: e assim ele se torna um grande homem ou um excêntrico e doido, desde que não pereça logo. Outrora essas mesmas características eram habituais, e portanto eram tidas por comuns: não sobressaíam. Talvez fossem requeridas, pressupostas: era impossível tornar-se grande com elas, já pelo fato de não haver o perigo de com elas tornar-se também louco e solitário. — É sobretudo nas linhagens e castas mantenedorasde um povo que sucedem tais retornos[12] de velhos impulsos, não havendo possibilidade desse atavismo quando raças, hábitos, avaliações mudam rápido demais. Pois, para as forças de desenvolvimento dos povos, o tempo significa tanto quanto na música; em nosso caso, um andantedo desenvolvimento é necessário, como o tempo de um espírito lento e apaixonado: — e dessa espécie é, afinal, o espírito das linhagens conservadoras. |
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11. |
A consciência. — A consciência é o último e derradeiro desenvolvimento do orgânico e, por conseguinte, também o que nele é mais inacabado e menos forte. Do estado consciente vêm inúmeros erros que fazem um animal, um ser humano, sucumbir antes do que seria necessário, “contrariando o destino”, como diz Homero.[13] Não fosse tão mais forte o conservador vínculo dos instintos, não servisse no conjunto como regulador, a humanidade pereceria por seus juízos equivocados e seu fantasiar de olhos abertos, por sua credulidade e improfundidade, em suma, por sua consciência; ou melhor: sem aquele, há muito ela já teria desaparecido! Antes que uma função esteja desenvolvida e madura, constitui um perigo para o organismo: é bom que durante esse tempo ela seja tiranizada! Assim a consciência é tiranizada — e em boa parte pelo orgulho que se tem dela! Pensam que nela está o âmagodo ser humano, o que nele é duradouro, derradeiro, eterno, primordial! Tomam a consciência por uma firme grandeza dada! Negam seu crescimento, suas intermitências! Veem-na como “unidade do organismo”! — Essa ridícula superestimação e má-compreensão da consciência tem por corolário a grande vantagem de que assim foi impedidoo seu desenvolvimento muito rápido. Por acreditarem já ter a consciência, os homens não se empenharam em adquiri-la — e ainda hoje não é diferente! A tarefa de incorporar o saber e torná-lo instintivo é ainda inteiramente nova, apenas começa a despontar para o olho humano, dificilmente perceptível — uma tarefa vista apenas por aqueles que entenderam que até hoje foram incorporados somente os nossos erros, e que toda a nossa consciência diz respeito a erros! |
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12. |
Do objetivo da ciência. — Como? O objetivo último da ciência é proporcionar ao homem o máximo de prazer e o mínimo de desprazer possíveis? E se prazer e desprazer forem de tal modo entrelaçados, que quem desejar o máximo de um tenha de ter igualmente o máximo do outro — que quem quiser aprender a “rejubilar-se até o céu” tenha de preparar-se também para “estar entristecido de morte”?[14] E assim é, talvez! Ao menos os estoicos acreditavam que é assim, e eram coerentes ao ansiar pelo mínimo de prazer, para ter o mínimo de desprazer na vida (quando diziam que “o homem virtuoso é o mais feliz”, isso era tanto uma divisa da escola, para a grande massa, como uma sutileza casuística para os sutis). Ainda hoje vocês têm a escolha: ou o mínimo de desprazer possível, isto é, ausência de dor — e no fundo os socialistas e políticos de todos os partidos não podem, honestamente, prometer mais do que isso à sua gente — ou o máximo de desprazer possível, como preço pelo incremento de uma abundância de sutis prazeres e alegrias, até hoje raramente degustados! Caso se decidam pelo primeiro, caso queiram diminuir e abater a suscetibilidade humana à dor, então têm de abater e diminuir também a capacidade para a alegria. Com a ciênciapode-se realmente promover tanto um como o outro objetivo! Talvez ela seja agora mais conhecida por seu poder de tirar ao homem suas alegrias e torná-lo mais frio, mais estatuesco, mais estoico. Mas ela poderia se revelar ainda como a grande causadora de dor! — E então talvez se revelasse igualmente o seu poder contrário, sua tremenda capacidade para fazer brilhar novas galáxias de alegria! |
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13. |
Sobre a teoria do sentimento de poder. — Ao fazer bem e fazer mal a outros, exercitamos neles o nosso poder — é tudo o que queremos nesse caso! Fazemos mal àqueles aos quais devemos fazer sentir nosso poder; pois para isso a dor é um meio muito mais sensível que o prazer: — a dor pergunta sempre pela causa, enquanto o prazer tende a ficar consigo mesmo e não olhar para trás. Fazemos bem e queremos bem àqueles que já dependem de nós de alguma maneira (isto é, estão habituados a pensar em nós como suas causas); queremos aumentar seu poder, pois assim aumentamos o nosso, ou queremos mostrar-lhes a vantagem de estar em nosso poder — assim ficam mais satisfeitos com a sua situação e mais hostis e belicosos com os inimigos de nossopoder. Não altera o valor último de nossas ações o fato de que fazer bem ou mal envolva sacrifícios para nós; mesmo se oferecemos a vida, como faz o mártir pela sua igreja, é um sacrifício ao nosso desejo de poder, ou com a finalidade de preservar nosso sentimento de poder. Quem sente que está “de posse da verdade”, a quantas posses não tem de renunciar, para salvaguardar esta sensação! O que não lança fora, para manter-se “em cima” — isto é, acima dos outros, que carecem da “verdade”! Sem dúvida, o estado em que fazemos mal é raramente tão agradável, tão claramente agradável, como aquele em que fazemos bem — é um sinal de que ainda nos falta poder, ou trai o desgosto com essa penúria, traz consigo novos perigos e incertezas quanto ao poder que possuímos e turva nosso horizonte com perspectivas de vingança, escárnio, punição, fracasso. Apenas para os homens mais irritáveis e mais sequiosos do sentimento de poder será talvez mais prazeroso imprimir o selo do poder num recalcitrante; aqueles para quem a visão do subjugado (objeto de benevolência) constitui um fardo e um tédio. Tudo depende de como o indivíduo está acostumado a temperar sua vida; é questão de gosto, se prefere um aumento de poder lento ou súbito, seguro ou perigoso e temerário — ele busca esse ou aquele tempero, conforme seu temperamento. Uma presa fácil é algo desprezível para naturezas orgulhosas, elas sentem satisfação apenas ao ver homens não abatidos, que poderiam tornar-se seus inimigos, e ao enxergar riquezas de difícil obtenção; ante o sofredor são frequentemente duras, pois ele não é digno de seu esforço e orgulho — mas se mostram tanto mais obsequiosas frente aos seus iguais, com quem seria honroso lutar e disputar, se um dia houver para isso ocasião. No sentimento de satisfação dado por essaperspectiva, os homens da casta cavalheiresca se habituaram a tratar um ao outro com esmerada cortesia. — Compaixão é o mais agradável sentimento daqueles pouco orgulhosos e sem expectativa de grandes conquistas: para eles a presa fácil — como é todo sofredor — é algo delicioso. A compaixão é louvada como sendo a virtude das mulheres de vida alegre. |
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14. |
As coisas que chamamos de amor. — Cobiça e amor: que sentimentos diversos evocam essas duas palavras em nós! — e poderia, no entanto, ser o mesmo impulso que recebe dois nomes; uma vez difamado do ponto de vista dos que já possuem, nos quais ele alcançou alguma calma e que temem por sua “posse”; a outra vez do ponto de vista dos insatisfeitos, sedentos, e por isso glorificado como “bom”. Nosso amor ao próximo — não é ele uma ânsia por nova propriedade? E igualmente o nosso amor ao saber, à verdade, e toda ânsia por novidades? Pouco a pouco nos enfadamos do que é velho, do que possuímos seguramente, e voltamos a estender os braços; ainda a mais bela paisagem não estará certa de nosso amor, após passarmos três meses nela, e algum litoral longínquo despertará nossa cobiça: em geral, as posses são diminuídas pela posse. Nosso prazer conosco procura se manter transformando algo novo em nós mesmos— precisamente a isto chamamos possuir. Enfadar-se de uma posse é enfadar-se de si mesmo. (Pode-se também sofrer da demasia — também o desejo de jogar fora, de distribuir, pode ter o honrado nome de “amor”.) Quando vemos alguém sofrer, aproveitamos com gosto a oportunidade que nos é oferecida para tomar posse desse alguém; é o que faz o homem benfazejo e compassivo, que também chama de “amor” ao desejo de uma nova posse que nele é avivado, e que nela tem prazer semelhante ao de uma nova conquista iminente. Mas é o amor sexual que se revela mais claramente como ânsia de propriedade: o amante quer a posse incondicional e única da pessoa desejada, quer poder incondicional tanto sobre sua alma como sobre seu corpo, quer ser amado unicamente, habitando e dominando a outra alma como algo supremo e absolutamente desejável. Se considerarmos que isso não é outra coisa senão excluir todo o mundo de um precioso bem, de uma felicidade e fruição; se considerarmos que o amante visa o empobrecimento e privação de todos os demais competidores e quer tornar-se o dragão de seu tesouro, sendo o mais implacável e egoísta dos “conquistadores” e exploradores; se considerarmos, por fim, que para o amante todo o resto do mundo parece indiferente, pálido, sem valor, e que ele se acha disposto a fazer qualquer sacrifício, a transtornar qualquer ordem, a relegar qualquer interesse: então nos admiraremos de que esta selvagem cobiça e injustiça do amor sexual tenha sido glorificada e divinizada a tal ponto, em todas as épocas, que desse amor foi extraída a noção de amor como o oposto do egoísmo, quando é talvez a mais direta expressão do egoísmo. Nisso, evidentemente, o uso linguístico foi determinado pelos que não possuíam e desejavam — os quais sempre foram em maior número, provavelmente. Aqueles que nesse campo tiveram posses e satisfação bastantes deixaram escapar, aqui e ali, um palavra sobre o “demônio furioso”, como fez o mais adorável e benquisto dos atenienses, Sófocles: mas Eros sempre riu desses blasfemos — eram, invariavelmente, os seus grandes favoritos. — Bem que existe no mundo, aqui e ali, uma espécie de continuação do amor, na qual a cobiçosa ânsia que duas pessoas têm uma pela outra deu lugar a um novo desejo e cobiça, a uma elevada sede conjuntade um ideal acima delas: mas quem conhece tal amor? Quem o experimentou? Seu verdadeiro nome é amizade. |
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15. |
De longe. — Esse monte faz encantadora e significativa a paisagem que domina: após haver dito isso muitas vezes para nós mesmos, somos de tal forma insensatos e agradecidos para com ele, que acreditamos que, proporcionando esse encanto, ele deve ser a coisa mais encantadora da paisagem — e assim o escalamos e nos decepcionamos. De repente ele próprio, e toda a região em torno e abaixo de nós, é como que desencantado; esquecêramos que algumas grandezas, como algumas bondades, pedem para ser vistas a uma certa distância, e de baixo, não de cima — apenas assim têmefeito. Talvez você saiba de pessoas, à sua volta, que devem olhar para si mesmas apenas de alguma distância, a fim de se achar suportáveis, ou atraentes e animadoras. O autoconhecimento não lhes é aconselhável. |
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16. |
Além da passarela. — Na relação com pessoas que têm pudor de seus sentimentos, temos que saber dissimular; elas têm ódio repentino àquele que as surpreende com um sentimento delicado, entusiasmado ou sublime, como se tivesse vislumbrado os seus segredos. Querendo fazer-lhes bem nesses instantes, é preciso fazê-las rir ou lhes dizer alguma fria e divertida maldade: — o seu sentimento se esfria então, e elas recobram o domínio de si. Mas estou fornecendo a moral antes da história. — Uma vez estivemos tão próximos na vida, que nada mais parecia tolher nossa amizade e irmandade, e havia tão só uma pequena passarela entre nós. Quando você ia pisá-la, perguntei-lhe: “Você quer cruzar a passarela para vir até mim?”. — Mas então você já não queria; e, quando solicitei novamente, você se calou. Desde então, montes e rios torrenciais, e tudo o que separa e alheia, foram lançados entre nós, e, ainda que quiséssemos nos aproximar, já não poderíamos! E quando hoje você recorda aquela pequena passarela, não tem mais palavras — apenas soluços e assombro. |
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17. |
Dando motivo à sua pobreza. — É certo que por nenhum artifício podemos tornar rica e abundante uma virtude pobre, mas podemos reinterpretar sua pobreza como necessidade, de modo que a sua visão não mais nos incomode, e que devido a ela não lancemos ao destino um olhar de censura. Assim faz o jardineiro sábio, que põe o pobre fio d’água do seu jardim nos braços de uma ninfa, e com isso dá um motivo à pobreza: — e quem, como ele, não precisa de ninfas? |
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18. |
Orgulho antigo. — Não temos a antiga coloração da nobreza, porque está ausente de nossa sensibilidade o antigo escravo. Um grego de origem nobre achava tal distância e tão grandes estágios intermediários, entre a sua altura e aquela última baixeza, que mal enxergava nitidamente o escravo: mesmo Platão já não o viu de fato. É diferente conosco, habituados que estamos à teoria da igualdade dos homens, embora não à igualdade mesma. Um ser que não pode dispor de si mesmo e que não tem lazer — isto não chega a ser algo realmente desprezível para nós; talvez haja muito dessa escravidão em cada um de nós, segundo as condições de nossa atividade e ordem social, que são radicalmente diferentes daquelas dos antigos. — O filósofo grego passava pela vida com o sentimento secreto de que havia muito mais escravos do que se imaginava — ou seja, de que era escravo todo aquele que não fosse filósofo; seu orgulho se inflava, ao considerar que também os mais poderosos da terra contavam entre esses escravos seus. Também esse orgulho nos é estranho e impossível; nem metaforicamente a palavra “escravo” tem para nós a sua plena força. |
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19. |
O mal. — Examinem a vida dos melhores e mais fecundos homens e povos e perguntem a si mesmos se uma árvore que deve crescer orgulhosamente no ar poderia dispensar o mau tempo e os temporais; se o desfavor e a resistência externa, se alguma espécie de ódio, ciúme, teimosia, suspeita, dureza, avareza e violência não faz parte das circunstâncias favoráveissem as quais não é possível um grande crescimento, mesmo na virtude? O veneno que faz morrer a natureza frágil é um fortificante para o forte — e ele nem o chama de veneno. |
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20. |
Dignidade da tolice. — Mais alguns milênios pela via do século passado! — e em tudo o que o homem faz será visível a suprema inteligência: mas justamente com isso a inteligência terá perdido toda a sua dignidade. Será então necessário ser inteligente, mas igualmente tão costumeiro e vulgar, que um gosto mais nobre[15] irá sentir esta necessidade como uma vulgaridade. E, assim como uma tirania da verdade e da ciência poderia elevar bastante o preço da mentira, uma tirania da inteligência seria capaz de gerar um novo tipo de nobreza. Ser nobre talvez significasse, então, cogitar tolices. |
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21. |
Aos mestres do desinteresse.— As virtudes de um homem não são chamadas de boasem vista dos efeitos que tenham para ele, mas em vista dos efeitos que pressupomos que tenham para nós e a sociedade: — desde sempre fomos pouco “desinteressados”, pouco “altruístas” no elogio das virtudes! Senão teríamos de perceber que as virtudes (como diligência, obediência, castidade, piedade, senso de justiça) são geralmente prejudiciais aos que as possuem, enquanto impulsos que neles vigoram de maneira muito ávida e violenta, não querendo que a razão os conserve em equilíbrio com os demais instintos. Se você tem uma virtude, uma plena e genuína virtude (e não apenas um impulsozinho de virtude!) — então você é vítimadela! Mas justamente por causa disso o vizinho louva a sua virtude! As pessoas louvam o homem diligente, embora ele prejudique os olhos ou a originalidade e o frescor do espírito com sua diligência; louvam e lamentam o jovem que “se matou de trabalhar”, porque pensam: “Para a sociedade em geral, até a perda do melhor indivíduo é um sacrifício pequeno! É uma pena que este sacrifício seja necessário! Mas seria bem pior se o indivíduo pensasse de outra forma e considerasse sua preservação e seu desenvolvimento mais importantes que o trabalho para a sociedade!”. E assim lamentam esse jovem, não por ele mesmo, mas porque um instrumentodevotado e implacável consigo mesmo — um “sujeito trabalhador” — foi perdido para a sociedade com essa morte. Talvez reflitam se não teria sido mais vantajoso para a sociedade se ele tivesse trabalhado de modo menos implacável consigo, preservando-se por mais tempo — admitem que haveria vantagem nisso, mas calculam ser maior e mais duradoura uma outra vantagem, a de que se fez um sacrifícioe de que a atitude do animal de sacrifício teve novamente uma confirmação visível. Portanto, é a natureza de instrumento que é louvada nas virtudes, quando se faz o elogio delas, e também o impulso cego dominante em cada virtude, que não é mantido nos limites pelo interesse geral do indivíduo; em suma: a desrazão da virtude, mediante a qual o indivíduo se deixa transformar numa função do todo. O elogio das virtudes é o elogio de algo privadamente nocivo — de impulsos que destituem o homem do seu nobre amor-próprio e da força para a suprema custódia de si mesmo. — É verdade que, para a educação e para a incorporação de hábitos virtuosos, enfatiza-se uma série de efeitos da virtude, que fazem parecer irmãs a virtude e a vantagem pessoal — e existe realmente essa irmandade! A cega diligência, essa típica virtude de um instrumento, é apresentada como a via para a riqueza e as honras e a mais saudável droga para o tédio e as paixões: mas silencia-se a respeito de seu perigo, de sua suprema periculosidade. A educação procede quase sempre assim: ela procura encaminhar o indivíduo, por uma série de estímulos e vantagens, para uma maneira de pensar e agir que, quando se torna hábito, impulso e paixão, vigora nele e acima dele, de encontro a sua derradeira vantagem, mas “para o bem de todos”. Muito frequentemente observo que sim, a cega diligência traz riquezas e honras, mas também priva os órgãos daquela finura que tornaria possível a fruição de riquezas e honras, e noto, igualmente, que esse grande antídoto para o tédio e as paixões torna embotados os sentidos e faz o espírito refratário a estímulos novos. (A mais diligente das épocas — a nossa — não sabe o que fazer com sua diligência e seu dinheiro, exceto cada vez mais dinheiro e mais diligência: é preciso mais gênio para gastar do que para adquirir! — Bem, nós teremos os nossos “netos”!) Tendo êxito a educação, cada virtude do indivíduo torna-se uma utilidade pública e uma desvantagem particular, conforme o supremo objetivo particular — provavelmente algum estiolamento sensorial-espiritual, ou mesmo um declínio prematuro: considere-se desse ponto de vista, uma após a outra, as virtudes da obediência, da castidade, da piedade, da justiça. O louvor do desinteressado, abnegado, virtuoso — isto é, daquele que não aplica toda a sua energia e razão na própria conservação, elevação, desenvolvimento, promoção, ampliação do poder, mas que, no tocante a si mesmo, vive de forma modesta e irrefletida, talvez até indiferente ou irônica —, esse louvor, em todo o caso, não nasceu do espírito do desinteresse! O “próximo” louva o desinteresse porque dele retira vantagens! Pensasse ele próprio “desinteressadamente”, rejeitaria essa diminuição de força, esse dano sofrido em prol dele, trabalharia contra o surgimento de tais inclinações e, sobretudo, mostraria seu desinteresse nãoo considerando bom! — Eis indicada a contradição fundamental dessa moral que precisamente agora é tida em alta conta: os motivos para essa moral se opõem ao seu princípio! Aquilo com que essa moral quer se demonstrar é por ela refutado com o seu critério do que é moral! Para não ir de encontro a sua própria moral, a tese de que “você deve abdicar de si mesmo e sacrificar-se” deveria ser decretada apenas por quem dessa maneira abdicasse de sua própria vantagem, e que talvez acarretasse a própria ruína, no sacrifício imposto aos indivíduos. Mas assim que o próximo (ou a sociedade) recomenda o altruísmo em nome da utilidade, tem aplicação a tese oposta, de que “você deve buscar a vantagem também à custa dos outros”, e portanto se prega, simultaneamente, um “você deve” e um “você não deve”! |
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22. |
L’ordre du jour pour le roi [A ordem do dia para o rei]. — O dia começa: vamos organizar os negócios e os lazeres desse dia para o nosso magnânimo senhor, que ainda repousa. Sua Majestade terá hoje mau tempo: evitaremos chamá-lo de mau; hoje não se falará do tempo — mas com os negócios seremos mais solenes e, com os lazeres, mais festivos do que normalmente seria necessário. Talvez Sua Majestade esteja doente: no café da manhã lhe traremos a última boa nova de ontem, a chegada do sr. de Montaigne, que graceja tão agradavelmente sobre a sua doença — ele sofre de uma pedra. Receberemos algumas pessoas (pessoas! — que diria a velha rã inflada que se achará entre elas, caso ouvisse esta palavra! “Eu não sou uma pessoa”, diria ela, “mas sempre a coisa mesma.”) — e a recepção durará mais tempo do que pode ser agradável a qualquer um: razão bastante para recordar o poeta que escreveu sobre a sua porta: “Quem aqui entra, faz-me uma honra; quem não entra — um prazer”. — Sem dúvida, uma maneira cortês de expressar uma descortesia! E talvez esse poeta tenha bom motivo para ser descortês: dizem que os seus versos são melhores que o autor. Então, que ele ainda escreva muitos e se retire ao máximo do mundo: este é, afinal, o sentido de sua amável grosseria! De modo contrário, um príncipe vale sempre mais do que seu “verso”, ainda que — mas que fazemos? Conversamos, e a corte inteira pensa que já trabalhamos e nos esforçamos: não há luz que brilhe mais cedo que a de nossa janela. — Escute! Isto não foi o sino? Diabo! Começa o dia e a dança, e não sabemos das suas voltas! Então temos que improvisar — o mundo inteiro improvisa o dia. Façamos hoje como todo o mundo! — E assim desfez-se o meu estranho sonho matinal, provavelmente com as duras batidas do relógio da torre, que acabava de anunciar as cinco horas, com toda a gravidade que é sua. Parece-me que desta vez o deus dos sonhos quis divertir-se com meus hábitos — costumo iniciar o dia organizando-o e tornando-o suportável para mim, e é possível que algumas vezes tenha feito isso de maneira demasiado formal e principesca. |
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23. |
Os sinais da corrupção. — Atente-se para os sinais seguintes das condições da sociedade designadas pelo termo “corrupção”, necessárias de quando em quando. Tão logo aparece a corrupção, uma variada superstiçãotoma a dianteira, e contra ela se mostra pálida e impotente a crença geral que o povo até então professava: pois a superstição é um livre-pensar de segunda ordem — quem a ela se rende, escolhe determinadas formas e fórmulas que lhe convêm e se permite algum direito de escolha. Comparado ao homem religioso, o supersticioso é sempre muito mais “pessoa” do que este, e numa sociedade supersticiosa já haverá muitos indivíduos e muito prazer na individualidade. Desse ponto de vista, a superstição surge como um progresso em relação à fé e como um indício de que o intelecto se torna mais independente e reivindica seus direitos. Então os seguidores da antiga religião e religiosidade queixam-se de corrupção — foram eles que determinaram também o uso linguístico até então e que difamaram a superstição mesmo entre os espíritos mais livres. Devemos saber que ela é um sintoma do Iluminismo.[16] Em segundo lugar, acusa-se de relaxamento a sociedade onde a corrupção ganha terreno: e é visível que nela diminuem a apreciação da guerra e o gosto pela guerra, enquanto as comodidades da vida são buscadas tão ardentemente como outrora as honras atléticas e guerreiras. Mas costuma-se ignorar que a antiga energia e paixão popular, que alcançava esplêndida evidência com a guerra e os torneios, transformou-se então em inumeráveis paixões privadas e apenas se tornou menos evidente; sim, é provável que nos estados de “corrupção” o poder e a violência da energia ora expendida de um povo sejam maiores do que nunca, e que o indivíduo gaste-a com uma prodigalidade de que antes não era capaz — não era rico o bastante para isso! Assim, é precisamente nas épocas de “relaxamento” que a tragédia anda pelas casas e ruas, que nascem o grande amor e o grande ódio e a flama do conhecimento alteia seu brilho no céu. — Em terceiro lugar, costuma-se dizer de tais épocas de corrupção, talvez para compensar o reproche de superstição e relaxamento, que elas são mais brandas e que nelas a crueldade arrefece muito, em comparação ao tempo antigo, mais crédulo e mais forte. Mas não posso aprovar esse elogio, e tampouco aquela censura: concedo apenas que a crueldade se torna refinada, e que suas formas mais antigas ofendem o gosto; mas os ferimentos e tormentos com o olhar e a palavra atingem a sua máxima evolução em tempos corrompidos — somente então nasce a malícia e o prazer na malícia. Os homens das épocas de corrupção são espirituosos e caluniadores; eles sabem que há outras espécies de assassínio, além do punhal e do golpe de mão — eles sabem, igualmente, que tudo o que é bem ditoé acreditado. — Em quarto lugar: quando “os costumes decaem”, surgem aqueles seres chamados de tiranos: são os precursores e como que rebentos prematuros dos indivíduos. Mais algum tempo, e esse fruto dos frutos pende da árvore de um povo, dourado e maduro — e somente por causa desses frutos existia essa árvore! Se o declínio alcança o ponto mais alto, assim como a luta de toda espécie de tiranos, surge sempre o César, o tirano final, que põe termo à cansada disputa pelo domínio exclusivo, ao fazer que o cansaço trabalhe a seu favor. Em sua época, o indivíduo está geralmente maduro ao máximo, e a “cultura”, portanto, elevada e fecunda ao máximo, mas não por causa dele e não através dele: embora os mais elevados homens de cultura gostem de lisonjear o seu César, apresentando-se como obra dele. Mas a verdade é que necessitam de quietude exterior, por trazerem inquietude e trabalho dentro de si. Nesses tempos, a venalidade e a traição estão no auge: pois o amor ao recém-descoberto ego[em latim no original] é muito mais poderoso que o amor à velha, gasta e decantada “pátria”; e a necessidade de pôr-se ao abrigo, de algum modo, das terríveis oscilações da sorte, abre também as mãos mais nobres, quando um poderoso e rico se dispõe a lançar ouro nelas. Há muito pouca certeza quanto ao futuro: vive-se então para o momento: um estado da alma em que o jogo é fácil para os sedutores — pois alguém se deixa seduzir e subornar apenas “por um momento”, reservando-se o futuro e a virtude! Os indivíduos, sendo verdadeiramente “em e para si”,[17] preocupam-se mais com o instante, sabemos, do que seus opostos, os homens de rebanho, por se considerarem tão imprevisíveis quanto o futuro; e também gostam de ligar-se a homens violentos, por se sentirem capazes de atos e expedientes que não achariam, junto à massa dos homens, compreensão nem mercê — mas o tirano ou César compreende o direito do indivíduo também nos seus excessos, e tem interesse em dar a palavra e mesmo estender a mão a uma moral privada audaciosa. Pois ele pensa e quer que seja pensado de si o que Napoleão, à sua maneira clássica, exprimiu certa vez: “Eu tenho o direito de responder a todas as acusações com um eterno ‘sou o que sou’. Encontro-me à parte de todo o mundo e não aceito condições de ninguém. Vocês devem submeter-se a todas as minhas fantasias e achar natural que eu me entregue a tais ou tais distrações”.[18] Assim falou Napoleão a sua esposa uma vez, quando esta teve razões para questionar a fidelidade conjugal de seu esposo. — Os tempos corrompidos são aqueles em que as maçãs caem das árvores: refiro-me aos indivíduos, os portadores das sementes do futuro, os promotores da colonização espiritual e da formação de novos Estados e comunidades. Corrupção é apenas termo injurioso para as épocas outonaisde um povo. |
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24. |
Insatisfação variada. — Os insatisfeitos frágeis e, por assim dizer, femininos, têm sensibilidade para o embelezamento e aprofundamento da vida; os insatisfeitos fortes — os viris entre eles, para ficar nessa imagem —, para o melhoramento e maior segurança da vida. Os primeiros revelam sua fraqueza e feminilidade ao se deixar iludir de vez em quando e contentar-se já com algum entusiasmo e embriaguez, mas em geral não podem jamais ser satisfeitos e sofrem com a natureza incurável de sua insatisfação; além disso, favorecem todos os que sabem produzir consolos opiáticos e narcóticos, e aborrecem-se com os que valorizam antes o médico que o sacerdote — assim garantem a permanênciadas verdadeiras crises! Se esse tipo de insatisfeitos não fosse abundante na Europa desde os tempos da Idade Média, não teria surgido talvez a famosa capacidade europeia para a contínua transformação: pois as pretensões dos insatisfeitos fortes são muito grosseiras e, no fundo, despretensiosas, para que não possam finalmente ser apaziguadas. A China é exemplo de um país em que a insatisfação e a capacidade de transformaçãoextinguiram-se há muitos séculos; e os socialistas e idólatras europeus do Estado, com suas medidas visando o melhoramento e maior segurança da vida, não teriam dificuldade em estabelecer na Europa condições chinesas e uma “felicidade” chinesa, desde que antes pudessem extirpar a insatisfação e o romantismo de caráter doentio, delicado, feminino, que presentemente sobejam aqui. A Europa é um doente que deve muito à sua incurabilidade e à perene transformação do seu sofrer; estas condições sempre novas, estes sempre novos perigos, dores e expedientes geraram enfim uma suscetibilidade intelectual quase equivalente ao gênio, e que, de todo modo, é a mãe de todo gênio. |
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25. |
Não destinado ao conhecimento. — Há uma estúpida humildade, nada rara, que torna aquele por ela afetado incapaz definitivamente de ser um apóstolo do conhecimento. No instante em que um homem desse tipo nota algo diferente, ele como que faz meia-volta e diz a si mesmo: “Você se enganou! Onde estava com a cabeça? Isso não pode ser verdade!” — e então, em vez de olhar e ouvir de novo, mais atenciosamente, ele foge da coisa diferente, como que intimidado, e procura tirá-la da mente o mais rápido possível. Pois o seu cânone interior diz: “Não desejo ver nada que contrarie a opinião prevalecente! Então eu fui feito para descobrir novas verdades? Já existem tantas das velhas”. |
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26. |
Que significa viver? — Viver — é continuamente afastar de si algo que quer morrer; viver — é ser cruel e implacável com tudo o que em nós, e não apenas em nós, se torna fraco e velho. Viver — é também não ter piedade com os moribundos, miseráveis e idosos? Ser continuamente assassino? — No entanto, o velho Moisés declarou: “Não matarás!”. |
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27. |
quele que renuncia. — Que faz aquele que renuncia? Ele aspira a um mundo mais elevado, ele quer voar mais, mais longe e mais alto que todos os homens da afirmação — ele joga foramuitas coisas que atrapalhariam seu voo, e entre elas coisas que lhe são valiosas e queridas: sacrifica-as à sua ânsia das alturas. Esse sacrifício, esse jogar fora, é justamente aquilo que se torna visível nele: por causa disso chamam-no de aquele que renuncia, e como tal ele nos aparece, envolto em seu capuz, como se fosse a alma de um cilício. Mas ele está satisfeito com a impressão que faz em nós: quer manter oculta a sua ânsia, seu orgulho, sua intenção de voar acimade nós. — Sim, ele é mais sagaz do que pensamos, e tão gentil para conosco — esse afirmador! Pois é isso tal como nós, também ao renunciar. |
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28. |
Prejudicando com o melhor de si. — Às vezes as nossas forças nos impelem tão longe, que não mais suportamos nossas fraquezas e perecemos por causa delas: podemos antever esse resultado, mas o desejamos assim mesmo. Então nos tornamos duros com aquilo que em nós quer ser poupado, e nossa grandeza é também nossa impiedade. — Uma tal experiência, que afinal temos de pagar com a vida, é uma imagem da influência total que os grandes homens exercem sobre os demais e sobre o seu tempo: — precisamente com o que têm de melhor, com o que somente eles podem fazer, arruínam muitos seres fracos, inseguros, em vias de se tornar e de querer, e desse modo são prejudiciais. Pode até suceder que, tudo somado, eles apenas prejudiquem, pois o que têm de melhor é recebido e como que ingerido somente por aqueles que assim perdem o entendimento e o amor-próprio, como com uma bebida forte demais: ficam tão inebriados, que quebram os membros pelos falsos caminhos a que os leva a embriaguez. |
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29. |
Os que acrescentam mentiras. — Na França, quando as unidades aristotélicas começaram a ser atacadas e, por conseguinte, também defendidas, pôde-se ver novamente o que é visto com frequência, mas que se detesta ver: — as pessoas inventaram para si mesmas razõesem virtude das quais aquelas leis deviam existir, apenas para não admitir que se haviam habituadoao domínio dessas leis e não queriam mais saber de mudanças. E assim se faz, desde sempre se fez, no interior de toda moral e religião dominante: as razões e as intenções por trás do hábito são mendazmente acrescentadas a ele, quando alguns começam a disputar o hábito e perguntar por razões e intenções. Eis aqui a desonestidade dos conservadores de todos os tempos: — eles acrescentam mentiras. |
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30. |
Comédia dos famosos. — Homens famosos que têm necessidade da fama, como os políticos, por exemplo, não escolhem jamais seus aliados e amigos sem segundas intenções: deste querem algo do fulgor e do reflexo de sua virtude; daquele, o temor infundido por certas qualidades duvidosas que todos lhe conhecem; a um outro tiram a fama do seu ócio, do seu estar ao sol, por convir aos seus propósitos de momentaneamente serem vistos como descuidados e indolentes: — isso esconde que eles se acham à espreita; ora necessitam de um sonhador perto deles, ora de um conhecedor, de um cismador, de um pedante, quase como se fossem seu próprio Eu atual, mas logo não necessitam mais deles! E assim morrem continuamente sua vizinhança e seus lados exteriores, enquanto tudo parece correr para tal vizinhança e quer se tornar seu “caráter”: nisto eles semelham as grandes cidades. Sua reputação está continuamente em mudança, como seu caráter, pois os seus meios cambiantes exigem esse câmbio, e empurram ora esta, ora aquela qualidade real ou inventada, fazendo-as subir ao palco: seus amigos e aliados, como disse, estão entre essas qualidades cênicas. Por outro lado, é preciso que o que eles querem permaneça ainda mais firme, brônzeo e resplendente na distância — e também isto necessita ocasionalmente de comédia e jogo de cena. |
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31. |
Comércio e nobreza. — Comprar e vender são agora comuns, tal como a arte de ler e escrever; cada qual se exercitou nisso, mesmo não sendo comerciante, e pratica diariamente essa técnica: assim como outrora, quando os seres humanos eram mais selvagens, cada um era caçador e exercitava dia após dia a técnica da caça. Naquele tempo a caça era comum: mas, assim como ela tornou-se enfim privilégio dos poderosos e nobres, perdendo com isso a natureza de algo cotidiano e comum — ao deixar de ser necessária e tornar-se questão de luxo e capricho: — o mesmo poderia suceder algum dia com a atividade de comprar e vender. Podemos imaginar condições sociais em que não se compra e vende, em que é gradualmente perdida a necessidade dessa técnica: talvez, então, pessoas menos sujeitas à lei das condições gerais permitam-se comprar e vender como um luxo da sensibilidade. Só então o comércio adquiriria nobreza, e os nobres talvez se dedicassem a ele de tão bom grado como à guerra e à política até o momento: enquanto a apreciação da política poderia ter mudado completamente. Já agora ela está deixando de ser ofício do homem nobre: e é possível que ela venha a ser considerada tão comum, que seja posta sob a rubrica de “prostituição do espírito”, como tudo o que se escreve para os partidos e os jornais. |
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Discípulos indesejados. — Que devo fazer com esses dois jovens? gritou, com mau humor, um filósofo que “corrompia” a juventude, como Sócrates uma vez a corrompeu — eles não são alunos bem-vindos. Esse não sabe dizer “não”, e aquele diz a tudo “meio a meio”. Supondo que entendessem minha doutrina, o primeiro sofreriademais, pois meu modo de pensar requer uma alma guerreira, um querer-fazer-mal, um prazer em dizer “não”, uma pele dura — ele lentamente morreria de feridas abertas e internas. O outro fará um compromisso de toda causa que sustentar, de tal forma que a comprometerá — um discípulo assim eu desejo a meus inimigos. |
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Fora da sala de aula. — “Para lhe demonstrar que no fundo o ser humano é um animal de boa índole, eu lembrarei quão crédulo ele foi por tanto tempo. Somente agora, bem tarde e após ingente autossuperação, ele se tornou um animal desconfiado— sim! o ser humano é agora mais malvado do que nunca.” — Não compreendo isso: por que deveria o ser humano ser mais desconfiado e malvado agora? — “Porque tem — necessita ter — uma ciência!” — |
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Historia abscondita[História oculta]. — Todo grande homem exerce uma força retroativa: toda a história é novamente posta na balança por causa dele, e milhares de segredos do passado abandonam seus esconderijos — rumo ao sol dele. Não há como ver o que ainda se tornará história. Talvez o passado esteja ainda essencialmente por descobrir! Tantas forças retroativas são ainda necessárias! |
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Heresia e bruxaria. — Pensar diferentemente do costume — isso é muito menos resultado de um intelecto melhor que de inclinações fortes, más, que desprendem, isolam, desafiam, inclinações alegremente maldosas e arrogantes. A heresia é a contrapartida da bruxaria, e certamente, tal como esta, nada inofensiva ou venerável em si. Os hereges e as bruxas são duas espécies de seres maus: têm em comum o fato de também se sentirem maus, mas terem um prazer incoercível em causar dano àquilo que é dominante (pessoas ou opiniões). A Reforma, uma espécie de duplicação do espírito medieval, num tempo em que ele já não tinha a boa consciência a seu lado, produziu ambos em grande quantidade. |
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Últimas palavras. — Talvez se lembrem de que o imperador Augusto, aquele homem terrível, capaz de dominar a si mesmo e de silenciar tanto quanto um sábio Sócrates, foi indiscreto em relação a si mesmo nas suas últimas palavras: deixou pela primeira vez cair sua máscara, ao dar a entender que havia usado uma máscara e desempenhado uma comédia — representara, no trono, o pai da pátria e a sabedoria, tão bem que criou a ilusão de sê-lo! Plaudite amici, comoedia finita est! [Aplaudam, amigos, a comédia acabou!] — O pensamento de Nero ao morrer — qualis artifex pereo! [que artista perece comigo!][19] — foi o mesmo de Augusto ao morrer: vaidade de ator! tagarelice de ator! E bem o oposto do moribundo Sócrates! — Mas Tibério morreu em silêncio, ele, o mais atormentado entre todos os que se atormentam — ele foi genuíno, não foi ator! O que pode ter-lhe passado enfim pela cabeça? Talvez isto: “A vida — é uma prolongada morte. Tolo que fui, ao encurtar a vida de tantos! Por acaso nasci para ser benfeitor? Deveria ter lhes dado vida eterna: assim poderia tê-los visto morrereternamente. Era para isso que eu tinha tão boa visão: qualis spectator pereo![que espectador perece comigo!]”. Quando, após uma longa luta com a morte, ele parecia recobrar as forças, acharam por bem sufocá-lo com travesseiros — morreu uma morte dupla. |
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Graças a três erros. — A ciência foi promovida nos últimos séculos, em parte porque com ela e mediante ela se esperava compreender melhor a bondade e a sabedoria divinas — o motivo principal na alma dos grandes ingleses (como Newton) —, em parte porque se acreditava na absoluta utilidade do conhecimento, sobretudo na íntima ligação de moral, saber e felicidade — o motivo principal na alma dos grandes franceses (como Voltaire) —, em parte porque na ciência pensava-se ter e amar algo desinteressado, inócuo, bastante a si mesmo, verdadeiramente inocente, no qual os impulsos maus dos homens não teriam participação — o motivo principal na alma de Spinoza, que, como homem do conhecimento,[20] sentia-se divino: — graças a três erros, portanto. |
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Os explosivos. — Considerando-se o quanto a energia dos homens jovens necessita explodir, não admira vê-los decidir-se por essa ou aquela causa de modo pouco refinado e seletivo: o que os atrai é a visão do fervor que envolve uma causa, e como que a visão do rastilho em fogo — não a própria causa. Os sedutores mais sutis, portanto, sabem mantê-los na expectativa da explosão e desviar-lhes a vista da fundamentação de sua causa: com fundamentos é que não se conquista esses barris de pólvora. |
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Mudança de gosto. — A mudança do gosto geral é mais importante que a das opiniões. Estas, com as provas, refutações e toda a mascarada intelectual, são apenas sintomas do gosto que mudou, e certamente não aquilo pelo qual frequentemente são tomadas, as causas dessa mudança. Como se transforma o gosto geral? Quando indivíduos, poderosos e influentes, exprimem o seu hoc est ridiculum,hoc est absurdum [isto é ridículo, isto é absurdo], ou seja, o juízo do seu gosto e desgosto, e o fazem valer tiranicamente: — com isso impõem a muitos uma obrigação, que gradualmente se torna o hábito de outros mais e, por fim, uma necessidade de todos. Mas o motivo para que esses indivíduos sintam e “saboreiem” de outra forma se acha normalmente numa singularidade de seu modo de vida, sua alimentação, digestão, talvez numa maior ou menor quantidade de sais inorgânicos no sangue e no cérebro; em suma, na sua physis[natureza]: mas eles têm a coragem de reconhecer a sua physise dar ouvido às exigências dela, ainda nos seus tons mais sutis: seus juízos estéticos e morais são esses “tons sutilíssimos” da physis. |
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A falta de maneiras nobres. — Soldados e comandantes têm uma atitude recíproca bem mais elevada do que trabalhadores e empregadores. Ao menos por enquanto, toda cultura de fundamento militar se acha bem acima de toda a chamada cultura industrial: esta, em sua configuração atual, é a mais vulgar forma de existência que jamais houve. Nela vigora simplesmente a lei da necessidade: uma pessoa quer viver e tem de se vender, mas despreza-se aquele que explora essa necessidade, comprando o trabalhador. Estranhamente, a sujeição a pessoas poderosas, que inspiram medo e até mesmo terror, a tiranos e comandantes de exércitos, não é vista como tão penosa quanto esta sujeição a pessoas desconhecidas e desinteressantes como os magnatas da indústria: habitualmente, o trabalhador enxerga no empregador apenas um cão astuto e sanguessuga, um homem que especula com a necessidade alheia, cujo nome, figura, costumes e reputação lhe são totalmente indiferentes. Aos industriais e grandes negociantes faltaram provavelmente, até agora, todas as formas e insígnias da raça mais elevada, que tornam interessantes as pessoas; tivessem eles no olhar e nos gestos a nobreza da aristocracia de berço, talvez não existisse socialismo das massas. Pois estas, no fundo, acham-se prontas para toda espécie de escravidão, desde que os mais elevados constantemente se legitimem como tais, como nascidospara mandar — através das maneiras nobres! O homem mais vulgar sente que a nobreza não se improvisa, que nela se reverencia o fruto de longos períodos de tempo — mas a ausência de maneiras elevadas e a notória vulgaridade dos industriais de mãos vermelhas e gordas fazem-no pensar que apenas o acaso e a sorte puseram um acima do outro: muito bem, resolve ele consigo, experimentemosnóso acaso e a sorte! Lancemos os dados! — e começa o socialismo. |
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Contra o arrependimento. — O pensador vê seus atos como tentativas e questões para obter explicação acerca de algo: sucesso e fracasso, para ele, são antes de tudo respostas. Irritar-se ou mesmo sentir arrependimento, porque alguma coisa deu errado — isso ele deixa para aqueles que agem por terem recebido ordens, e que podem esperar uma surra, caso o seu senhor não se satisfaça com o resultado. |
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Trabalho e tédio. — Buscar trabalho pelo salário — nisso quase todos os homens dos países civilizados são iguais; para eles o trabalho é um meio, não um fim em si; e por isso são pouco refinados na escolha do trabalho, desde que proporcione uma boa renda. Mas existem seres raros, que preferem morrer a trabalhar sem ter prazer no trabalho: são aqueles seletivos, difíceis de satisfazer, aos quais não serve uma boa renda, se o trabalho mesmo não for a maior de todas as rendas. A esta rara espécie de homens pertencem os artistas e contemplativos de todo gênero, mas também os ociosos que passam a vida a caçar, em viagens, em atividades amorosas e aventuras. Todos estes querem o trabalho e a necessidade, enquanto estejam associados ao prazer, e até o mais duro e difícil trabalho, se tiver de ser. De outro modo são de uma resoluta indolência, ainda que ela traga miséria, desonra, perigo para a saúde e a vida. Não é o tédio que eles tanto receiam, mas o trabalho sem prazer; necessitam mesmo de muito tédio, para serem bem-sucedidos no seu trabalho. Para o pensador e para todos os espíritos inventivos, o tédio é aquela desagradável “calmaria” da alma, que precede a viagem venturosa e os ventos joviais; ele tem de suportá-la, tem de aguardarem si o seu efeito: — é justamente isso o que as naturezas menores não conseguem obter de si! Afastar o tédio a todo custo é vulgar: assim como é vulgar trabalhar sem prazer. Algo que talvez distinga os asiáticos, em relação aos europeus, é o fato de serem capazes de uma mais prolongada e mais profunda calma do que estes; mesmo os seus narcóticos agem lentamente e exigem paciência, ao contrário da repulsiva rapidez do veneno europeu, o álcool. |
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O que revelam as leis. — É um grave erro estudar as leis penais de um povo como se fossem expressão de seu caráter; as leis não revelam o que um povo é, mas o que lhe parece estranho, estrangeiro, singular, extraordinário. As leis se referem às exceções à moralidade dos costumes; e as penas mais duras atingem o que está conforme aos costumes do povo vizinho. Assim, para os vaabitas[21] há somente dois pecados mortais: ter outro deus que não o seu e — fumar (que eles chamam de “o modo infame de beber”). “E o assassinato e o adultério?” — perguntou, assombrado, o inglês que tomou conhecimento disso.[22] “Deus é clemente e misericordioso!” — respondeu o velho chefe. — De modo igual, entre os antigos romanos havia a ideia de que uma mulher só podia pecar mortalmente de duas maneiras: cometendo adultério e — bebendo vinho. Catão, o Velho, achava que o beijo entre parentes se tornara costume apenas para manter as mulheres sob controle nesse ponto; pois um beijo significava: ela está cheirando a vinho? Realmente, mulheres flagradas com vinho foram condenadas à morte: e não simplesmente porque às vezes, sob o efeito do vinho, as mulheres são incapazes de dizer “não”; os romanos temiam sobretudo o espírito orgiástico e dionisíaco que vez por outra assolava as mulheres do Sul, quando o vinho era ainda novo na Europa: para eles aquilo era um monstruoso exotismo, que transtornava o fundamento da sensibilidade romana; era quase que traição a Roma, a incorporação do estrangeiro. |
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Os motivos em que se crê. — Por mais importante que seja conhecer os motivos que realmente guiaram a conduta humana até hoje, talvez a crençaneste ou naquele motivo, isto é, o que a humanidade presumiu e imaginou ser o autêntico motor do seu agir até agora, seja algo ainda mais essencial para o homem do conhecimento. Pois a íntima miséria e felicidade é dada aos homens de acordo com a sua crença nestes ou naqueles motivos — não em virtude do que era realmente motivo! Esse último é de interesse secundário. |
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Epicuro. — Sim, orgulho-me de sentir o caráter de Epicuro diferentemente de qualquer outro, talvez, e de fruir a felicidade vesperal da Antiguidade em tudo o que dele ouço e leio: — vejo o seu olhar que se estende por um mar imenso e esbranquiçado, para além das falésias sobre as quais repousa o sol, enquanto pequenos e grandes animais brincam à sua luz, seguros e tranquilos como essa luz e aquele mesmo olhar. Apenas um ser continuamente sofredor pôde inventar uma tal felicidade, a felicidade de um olhar ante o qual o mar da existência sossegou, e que agora não se farta de lhe contemplar a superfície, essa delicada, matizada, fremente pele de mar: nunca houve uma tal modéstia na volúpia. |
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Nosso espanto. — É uma sorte profunda e fundamental que a ciência descubra coisas quepermanecem firmes e continuam a fornecer a base para novas descobertas: — poderia ser diferente, afinal! Estamos tão persuadidos da incerteza e irrealidade de nossos juízos e da perene mudança das leis e conceitos humanos, que ficamos realmente espantados ao ver quão firmespermanecem os resultados da ciência! Anteriormente nada se sabia do caráter mutável de tudo o que é humano, os costumes da moralidade mantinham a crença de que toda a vida interior do homem se achava presa com grampos eternos à necessidade férrea: talvez se experimentasse uma semelhante volúpia do assombro, ao escutar lendas e contos de fadas. O maravilhoso fazia muito bem àqueles homens, que às vezes podiam cansar-se da regra e da eternidade. Deixar de sentir uma vez o chão sob os pés! Flutuar! Errar! Ser tolo! — isso era parte do paraíso e do deboche de épocas passadas: enquanto a nossa felicidade é como a do náufrago que atingiu a costa e põe os dois pés na velha terra firme — assombrado de que ela não oscile. |
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Da repressão das paixões. — Se uma pessoa continuamente proíbe a si mesma a expressão das paixões, como sendo algo para naturezas “vulgares”, mais toscas, burguesas, camponesas — isto é, não deseja reprimir as paixões mesmas, mas apenas sua linguagem e seus gestos —, atinge, apesar de tudo, exatamente o que não deseja: a repressão das paixões mesmas, ou ao menos sua debilitação e transformação: — como experimentou, num exemplo bem instrutivo, a corte de Luís XIVe tudo o que dela dependia. A época seguinte, educada na repressão da expressão, já não tinha as paixões mesmas, e sim, em seu lugar, uma maneira graciosa, rasa e brincalhona — um período acometido da incapacidade de ser grosseiro: de modo que até um insulto era recebido e devolvido com palavras obsequiosas. Talvez o nosso tempo ofereça a mais notável contrapartida disso: vejo em toda parte, na vida e no teatro, e igualmente em tudo o que se escreve, o deleite com todos os gestos e irrupções grosseiras da paixão: exige-se, atualmente, uma certa convenção da passionalidade — não apenas a paixão mesma! No entanto, assim ela será finalmente alcançada, e os que virão depois de nós possuirão uma autêntica selvageria, não apenas selvageria e rudeza nas formas. |
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Conhecimento da aflição.— Talvez nada diferencie tanto os homens e as épocas como o grau diverso de conhecimento que eles têm da aflição, tanto da alma como do corpo. No que toca a essa última, talvez sejamos todos nós, modernos, apesar de nossas enfermidades e fragilidades, ignorantes e fantasiadores ao mesmo tempo, por falta de uma rica experiência própria — em comparação a uma era de temor — a mais longa das eras —, em que o indivíduo tinha de se proteger da violência e, em nome desse objetivo, era obrigado a tornar-se ele próprio um ser violento. Naquele tempo, um homem perfazia um rico treino em privações e tormentos físicos, e compreendia até mesmo uma certa crueldade consigo, um deliberado exercício da dor, como recurso necessário para a sua preservação; naquele tempo, cada um educava os seus para suportar a dor, gostava de infligir dor e via as mais terríveis coisas do gênero sucederem a outros, sem outro sentimento que não o da própria segurança. No que toca à aflição da alma, porém, observo agora em cada um se ele a conhece por experiência ou por descrição; se acha necessário fingir tal conhecimento, como indício de refinada formação, digamos, ou se no fundo de sua alma ele não acredita em grandes dores d’alma e lhe sucede, ao ouvi-las mencionadas, o mesmo que quando lhe relatam grandes padecimentos físicos: ocasião em que se lembra de suas dores de dente e de estômago. Mas assim me parece que são as coisas para a maioria. A inexperiência geral nas duas formas de dor e a pouca frequência da visão de um sofredor têm uma importante consequência: hoje a dor é muito mais odiada que antigamente, mais do que nunca fala-se mal dela, considera-se difícil de suportar até mesmo a presença da dor como pensamento, e faz-se dela um caso de consciência e uma objeção a toda a existência. O surgimento de filosofias pessimistas não é, em absoluto, sinal de grandes e terríveis estados de aflição; ocorre, isto sim, que tais interrogações sobre o valor da existência são feitas em épocas nas quais o refinamento e aligeiramento da vida julga sangrentas e malignas demais até as inevitáveis picadas de mosquitos na alma e no corpo, e, com a pobreza em reais experiências de dor, gostaria de fazer ideias dolorosas gerais [23] aparecerem como sofrimento de primeira ordem. — Haveria um remédio para filosofias pessimistas e a sensibilidade excessiva que me parece a autêntica “aflição da era atual”: — mas talvez ele soe demasiado cruel e seja ele próprio visto como um dos sintomas que levam as pessoas a julgar que “a existência é algo ruim”. Bem, a receita para “a aflição” é: aflição. |
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Magnanimidade e coisas afins. — Esses fenômenos paradoxais, como a súbita frieza na conduta de um homem emocional, o humor do melancólico, e sobretudo a magnanimidade, enquanto súbita renúncia à vingança ou à satisfação da inveja — surgem em pessoas com uma poderosa força centrífuga interior, de repentina saciedade e repentino asco. Suas satisfações, sendo tão rápidas e tão fortes, são imediatamente seguidas de fastio e aversão, e de uma fuga no gosto contrário: nesse contraste se desencadeia o espasmo do sentimento, numa pessoa através de súbita frieza, naquela mediante risadas, naquela outra com lágrimas e autossacrifício. O magnânimo — ao menos a espécie de magnânimo que sempre causou a maior impressão — parece-me alguém de extremada sede de vingança, para quem a satisfação está muito próxima e que já na imaginaçãoa consome de forma tão plena e profunda, até a última gota, que uma enorme e rápida náusea acompanha essa rápida orgia — ele se ergue então “acima de si”, conforme a expressão, e perdoa ao inimigo, até mesmo o abençoa e homenageia. Com essa violentação de si próprio, com essa derrisão do seu impulso de vingança, ainda tão poderoso momentos antes, ele apenas cede ao novo impulso que acaba de se tornar poderoso nele (a náusea), e o faz de modo tão impaciente e desenfreado como logo antes, na fantasia, antecipoue como que exauriu a alegria da vingança. Na magnanimidade há o mesmo grau de egoísmo que na vingança, mas uma outra qualidade de egoísmo. |
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O argumento do isolamento. — A repreensão da consciência, mesmo entre os mais conscienciosos, é fraca em relação ao sentimento que diz: “Isso ou aquilo é contrário aos bons costumes de suasociedade”. Um olhar frio, uma boca retorcida, por parte daqueles entre os quais e para os quais se foi educado, é algo temidotambém pelos mais fortes. Mas que coisa é realmente temida? O isolamento! Eis o argumento que derrota mesmo os melhores argumentos em favor de uma pessoa ou uma causa! — Assim fala em nós o instinto de rebanho. |
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Senso da verdade. — Eu elogio todo ceticismo ao qual posso responder: “Tentemos!”. Mas já não quero ouvir falar de todas essas coisas e questões que não permitem o experimento. Este é o limite do meu “senso da verdade”; pois ali a coragem perdeu seu direito. |
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O que os outros sabem de nós. — Aquilo que sabemos de nós mesmos e que temos na memória não é tão decisivo para a felicidade de nossa vida como se pensa. Um dia cai sobre nós aquilo que outrossabem (ou acreditam saber) de nós — e então reconhecemos que isso é mais forte. É mais fácil lidar com sua má consciência do que com sua má reputação. |
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Onde começa o bem. — Ali onde a pequena capacidade da visão já não enxerga o mau impulso, devido à sua extrema sutileza, o homem situa o reino do bem, e a sensação de haver penetrado o reino do bem excita igualmente os impulsos todos que eram ameaçados e limitados pelos impulsos maus, como o sentimento de segurança, de bem-estar, de benevolência. Portanto: quanto mais obtuso o olhar, mais extenso é o bem! Daí a perene alegria do povo e das crianças! Daí o humor sombrio e o pesar, relacionado à má consciência, dos grandes pensadores! |
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A consciência da aparência. — Como é nova e maravilhosa e, ao mesmo tempo, horrível e irônica a posição que sinto ocupar, com o meu conhecimento, diante de toda a existência! Eu descobrique a velha humanidade e animalidade, e mesmo toda a pré-história e o passado de todo ser que sente, continua inventando, amando, odiando, raciocinando em mim — no meio deste sonho acordei repentinamente, mas apenas para a consciência de que sonho e tenhode prosseguir sonhando, para não sucumbir: tal como o sonâmbulo tem de prosseguir o sonho para não cair por terra. O que é agora, para mim, aparência? Verdadeiramente, não é o oposto de alguma essência — que posso eu enunciar de qualquer essência, que não os predicados de sua aparência? Verdadeiramente, não é uma máscara mortuária que se pudesse aplicar a um desconhecido X e depois retirar! Aparência é, para mim, aquilo mesmo que atua e vive, que na zombaria de si mesmo chega ao ponto de me fazer sentir que tudo aqui é aparência, fogo-fátuo, dança de espíritos e nada mais — que, entre todos esses sonhadores, também eu, o “homem do conhecimento”, danço a minha dança, que o homem do conhecimento é um recurso para prolongar a dança terrestre e, assim, está entre os mestres de cerimônia da existência, e que a sublime coerência e ligação de todos os conhecimentos é e será, talvez, o meio supremo de manter a universalidade do sonho e a mútua compreensibilidade de todos esses sonhadores, e, precisamente com isso, a duração do sonho. |
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O derradeiro sentido de nobreza. — O que torna “nobre”? Certamente não é fazer sacrifícios; também o voluptuoso frenético faz sacrifícios. Certamente não é obedecer a uma paixão; existem paixões desprezíveis. Certamente não é fazer algo por outros e fazê-lo sem egoísmo: talvez a consistência no egoísmo seja maior precisamente nas pessoas nobres. — Mas sim o fato de a paixão que afeta o nobre ser uma peculiaridade de que ele não se dá conta: a utilização de uma rara e singular medida e quase uma loucura: a sensação de calor em coisas que para todos os demais são frias: a percepção[24] de valores para os quais ainda não se inventou uma balança: o sacrifício em altares dedicados a um deus desconhecido: uma coragem sem o desejo de honras: uma satisfação consigo mesmo que transborda e se comunica a pessoas e coisas. Até agora, então, foi a raridade e a insciência dessa raridade que tornou alguém nobre. Mas considere-se que por essa norma tudo o que é habitual, próximo e indispensável, em suma, aquilo que mais conserva a espécie e que constituiu a regrana humanidade até agora, foi injustamente julgado e, no seu conjunto, caluniado, em favor das exceções. Tornar-se o advogado da regra — isso poderia ser a derradeira forma e o último refinamento com que o sentido de nobreza se manifeste na Terra. |
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56 |
O desejo de sofrer. — Se penso no desejo de fazer algo, que incessantemente agita e estimula milhões de jovens europeus, incapazes de suportar o tédio e a si mesmos — compreendo que neles deve existir uma ânsia de sofrer algo, a fim de retirar do sofrimento uma razão provável para agir, para a ação. A aflição é necessária![25] Daí o clamor dos políticos, daí as muitas “crises” falsas, inventadas, exageradas, de todas as classes possíveis, e a cega propensão a acreditar nelas. Essa juventude requer que venha de foraou se torne visível — não a felicidade, digamos, mas a infelicidade; e sua fantasia já se ocupa antecipadamente em formar um monstro a partir dela, para que depois possa combater um monstro. Se tais sequiosos de aflição sentissem dentro de si a força de interiormente fazer bem a si próprios, de fazer violência a si próprios, eles saberiam também criar interiormente uma aflição própria, pessoal. Então suas invenções poderiam ser mais refinadas e seus contentamentos poderiam soar como boa música: enquanto agora enchem o mundo de seus gritos de aflição e muitas vezes, em consequência, do sentimento de aflição! Não sabem o que fazer de si mesmos — e desenham, portanto, a infelicidade de outros na parede: sempre necessitam de outros! E ainda e sempre de mais outros! — perdão, meus amigos, eu ousei desenhar minha felicidadena parede. |
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LIVRO II |
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Aos realistas. — Vocês, homens sóbrios, que se sentem defendidos contra a paixão e as fantasias e bem gostariam de transformar em orgulho e ornamento o seu vazio, vocês chamam a si próprios de realistas e insinuam que, tal como lhes aparece o mundo, assim é ele realmente: apenas diante de vocês a realidade surge sem véu, e vocês próprios seriam talvez a melhor parte dela — ó, queridas imagens de Sais![26] Mas também vocês, no seu estado sem véu, não continuam seres altamente apaixonados e obscuros, se comparados aos peixes, e ainda muito semelhantes a um artista apaixonado? — e o que é “realidade” para um artista apaixonado? Vocês ainda levam e andam às voltas com as avaliações das coisas que tiveram origem nas paixões e amores de séculos passados! Sua sobriedade é ainda impregnada de uma oculta e inextinguível embriaguez! O seu amor à “realidade”, por exemplo — como é velho, antiquíssimo! Em cada impressão, em cada sensação há um quê desse velho amor: e igualmente alguma fantasia, um preconceito, uma desrazão, uma insciência, um temor e alguma coisa mais contribuíram para tecê-la. Ali, aquela montanha! E aquela nuvem! O que é “real” nelas? Subtraiam-lhes a fantasmagoria e todo o humanoacréscimo, caros sóbrios! Sim, se pudessemfazê-lo! Se pudessem olvidar sua procedência, seu passado, sua pré-escola — toda a sua humanidade e animalidade! Não existe “realidade” para nós — e tampouco para vocês, sóbrios —, estamos longe de ser tão diferentes como pensam, e talvez nossa boa vontade em ultrapassar a embriaguez seja tão respeitável quanto sua crença de que são incapazesde embriaguez. |
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Somente enquanto criadores!— Eis algo que me exigiu e sempre continua a exigir um grande esforço: compreender que importa muito mais como as coisas se chamam do que aquilo que são. A reputação, o nome e a aparência, o peso e a medida habituais de uma coisa, o modo como é vista — quase sempre uma arbitrariedade e um erro em sua origem, jogados sobre as coisas como uma roupagem totalmente estranha à sua natureza e mesmo à sua pele —, mediante a crença que as pessoas neles tiveram, incrementada de geração em geração, gradualmente se enraizaram e encravaram na coisa, por assim dizer, tornando-se o seu próprio corpo: a aparência inicial termina quase sempre por tornar-se essência e atuacomo essência! Que tolo acharia que basta apontar essa origem e esse nebuloso manto de ilusão para destruir o mundo tido por essencial, a chamada “realidade”?[27] Somente enquanto criadores podemos destruir! — Mas não esqueçamos também isto: basta criar novos nomes, avaliações e probabilidades para, a longo prazo, criar novas “coisas”. |
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Nós, artistas! — Se amamos uma mulher, facilmente sentimos algum ódio pela natureza, ao lembrar as repugnantes funções naturais a que toda mulher está sujeita. Preferimos evitar esse pensamento; mas, se alguma vez nossa alma roça por tais coisas, ela estremece impaciente e, como disse, lança um olhar de desprezo à natureza: — sentimo-nos ofendidos, a natureza parece abusar do que nos pertence, e com as mãos mais impuras. Então fechamos os ouvidos a toda a fisiologia e decretamos sigilosamente para nós mesmos: “Não quero ouvir dizer que o ser humano é outra coisa que não alma e forma!”. “O ser humano por baixo da pele” é, para todos os que amam, um horror impensável, uma blasfêmia contra Deus e o amor. — Ora, tal como o amante ainda sente em relação à natureza e às funções naturais, assim também sentia cada adorador de Deus e sua “santa onipotência”: em tudo o que era dito sobre a natureza, por astrônomos, geólogos, fisiologistas, médicos, ele via uma intromissão em sua mais valiosa posse e, por conseguinte, uma agressão — além disso, o despudor dos que agrediam! A “lei natural” já lhe soava como uma injúria a Deus; no fundo, ele bem teria gostado de ver toda a mecânica remontar a atos morais voluntários e arbitrários: — mas como ninguém lhe pôde prestar esse serviço, ele escondeu de sia natureza e a mecânica, o máximo que pôde, e viveu num sonho. Oh, esses homens de outrora sabiam sonhar, e nem precisavam antes adormecer! — e também nós, homens de hoje, ainda sabemos fazê-lo muito bem, apesar de toda a boa vontade para com a vigília e a luz do dia! Basta amar, odiar, desejar, simplesmente sentir — imediatamente o espírito e a força do sonho vêm sobre nós, e de olhos abertos e indiferentes ao perigo escalamos os mais perigosos caminhos, rumo aos telhados e torres da fantasia, sem qualquer vertigem, como que nascidos para escalar — nós, sonâmbulos diurnos! Nós, artistas! Nós, ocultadores do que é natural! Nós, maníacos da Lua e de Deus![28] Nós, incansáveis e silenciosos andarilhos, em alturas que não vemos como alturas, mas como nossas planícies, nossas certezas! |
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As mulheres e o seu efeito a distância. — Ainda tenho ouvidos? Sou todo ouvidos e nada mais? Aqui estou, em pleno fogo das ondas que rebentam, cujas brancas flamas me vêm lamber os pés: — de todos os lados chegam gritos, ameaças, uivos, gemidos, enquanto nas profundezas o velho abalador da terra canta sua ária, no tom surdo de um touro que muge: ele bate os pés num compasso tão abalador, que mesmo esses derruídos monstros de rocha sentem tremer o coração. De repente, como que vindo do nada, ante o portão desse labirinto infernal, distante apenas algumas braças — surge um grande veleiro, deslizando silente como um fantasma. Oh, que beleza espectral! Com que magia me toca! Como? Todo o silêncio e a calma do mundo nele embarcaram? Minha própria felicidade se encontra nesse lugar calmo, meu Eu mais feliz, meu segundo Eu eternizado? Não estando morto, e também não mais vivendo? Um ser intermédio, fantástico e tranquilo, que olha, desliza, flutua? Semelhante ao navio de velas brancas que corre sobre o mar escuro, qual imensa borboleta! Sim, correr sobrea existência! É isto! Seria isto! — Então o ruído me terá levado a fantasias? Todo grande ruído nos leva a pôr a felicidade na quietude e na distância. Quando um homem se acha no meio de seuruído, em plena rebentação dos seus planos e projetos, pode ver passar, deslizando à sua frente, calmos seres encantados, cuja felicidade e reclusão ele anseia para si — são as mulheres. Ele chega a pensar que junto às mulheres habita o seu Eu melhor: nesses tranquilos locais, até a mais violenta rebentação se tornaria silêncio de morte, e a própria vida seria sonho da vida. Porém, meu nobre sonhador, porém! Mesmo no mais belo veleiro há muito ruído e alarido, e, infelizmente, muito alarido pequeno e lamentável! O encanto e poderoso efeito das mulheres é, para usar a linguagem dos filósofos, um efeito à distância, uma actio in distans: o que requer, antes e acima de tudo — distância! |
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Em honra da amizade. — Que o sentimento da amizade era visto na Antiguidade como o sentimento supremo, maior até que o decantado orgulho do sábio autossuficiente, algo como o único e ainda mais sagrado irmão desse orgulho — isso é otimamente expresso na história do rei macedônio que, tendo presenteado um talento a um filósofo ateniense que desprezava o mundo, viu-o ser devolvido por este. “Como?”, disse o rei, “então ele não tem um amigo?” Com isso queria dizer: “Eu reverencio este orgulho do sábio e homem independente, mas teria ainda maior reverência por sua humanidade, se o amigo, nele, houvesse triunfado sobre o seu orgulho. O filósofo decaiu a meus olhos, ao mostrar que não conhece um dos dois sentimentos supremos — o maior deles, por sinal!”. |
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Amor. — O amor perdoa ao ser amado até o desejo. |
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A mulher na música. — Como pode ser que ventos mornos e chuvosos induzam também ao estado de espírito musical e ao prazer inventivo da melodia? Não são os mesmos ventos que enchem as igrejas e despertam pensamentos amorosos nas mulheres? |
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Céticos. — Receio que as mulheres que atingiram a velhice sejam, no recôndito de seu coração, mais céticas do que todos os homens: elas creem na superficialidade da existência como a própria essência, e toda virtude e profundidade, para elas, é apenas encobrimento dessa “verdade”, o desejável encobrimento de umpudendum— logo, questão de decência e pudor, e nada mais! |
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Devoção. — Existem mulheres nobres com uma certa pobreza de espírito, que, para expressar sua profunda devoção, não sabem agir de outra forma que não oferecendo sua virtude e sua vergonha: é o que têm de mais elevado. E com frequência tal presente é recebido sem a profunda obrigação que a doadora supunha — uma história melancólica! |
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A força dos fracos. — Todas as mulheres são sutis em exagerar sua fraqueza, são mesmo inventivas em matéria de fraquezas, a fim de parecer frágeis ornamentos que até um grão de poeira pode ferir: sua existência deve fazer o homem sentir no ânimo e carregar na consciência a própria rudeza. Assim se defendem elas dos fortes e da “lei da selva”. |
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imulando a si mesmo. — Ela agora o ama e olha adiante de si com tranquila confiança, como uma vaca. Mas que pena! Para ele o seu encanto era justamente parecer instável e incompreensível. O tempo já era demasiado constante nele próprio! Ela não faria bem em simular seu antigo caráter? Simular ausência de amor? Não é o que lhe aconselha — o amor? Vivat comoedia! [Viva a comédia!] |
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Vontade e docilidade. — Levaram um jovem a um homem sábio e disseram-lhe: “Veja, este é estragado pelas mulheres!”. O homem sábio agitou a cabeça e sorriu. “São os homens que estragam as mulheres”, disse ele, “e todas as falhas das mulheres devem ser expiadas e emendadas pelos homens — pois o homem cria para si a imagem da mulher, e a mulher se cria conforme essa imagem.” — “Você é muito brando com as mulheres”, disse um dos presentes, “você não as conhece!” O homem sábio respondeu: “A natureza do homem é vontade, a da mulher, docilidade — assim é a lei dos sexos, uma lei dura para as mulheres, verdadeiramente! Nenhum ser humano é culpado de sua existência, mas as mulheres são duplamente inocentes: quem poderia ter suficiente brandura e unção para elas?”. — “Brandura! Unção!”, gritou um outro dos que lá estavam, “é preciso educar melhor as mulheres!” — “É preciso educar melhor os homens”, disse o homem sábio, e acenou ao jovem que o seguisse. — Mas o jovem não o seguiu. |
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Capacidade de vingança. — Se alguém não pode e, portanto, não quer se defender, isso não chega a constituir uma vergonha a nossos olhos; mas menosprezamos quem não possui nem a capacidade nem a vontade de vingar-se — não importando se é homem ou mulher. Poderia uma mulher nos prender (nos “cativar”, como se diz), se não acreditássemos que em algumas circunstâncias ela saberia manejar um punhal (qualquer tipo de punhal) contranós? Ou contra si mesma: o que, em certo caso, seria a vingança mais áspera (a vingança chinesa). |
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As senhoras dos senhores. — Uma profunda, poderosa voz de contralto, como por vezes ouvimos no teatro, subitamente nos descortina possibilidades nas quais habitualmente não cremos: acreditamos que em algum lugar do mundo possam existir mulheres de elevadas, heroicas almas de rainha, capazes e dispostas para réplicas, resoluções e sacrifícios grandiosos, capazes e dispostas ao domínio sobre os homens, porque nelas o melhor do homem, independente do sexo, tornou-se o ideal encarnado. É verdade que essas vozes não devem, conforme a intenção do teatro, dar esta noção da mulher: normalmente elas devem representar o amante ideal, um Romeu, por exemplo; a julgar por minha experiência, no entanto, invariavelmente se equivocam, nesse ponto, o teatro e o compositor que esperam um tal efeito de uma voz tal. Não cremos nesses amantes: essas vozes têm ainda uma coloração maternal e doméstica, justamente e sobretudo quando há amor no seu timbre. |
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Da castidade feminina. — Há algo de surpreendente e monstruoso na educação das mulheres de classe elevada, talvez não exista nada de mais paradoxal. Todos se acham de acordo em educá-las na maior ignorância possível in eroticis[em questões eróticas] e inculcar-lhes na alma uma vergonha profunda ante essas coisas e uma grande impaciência e temor à simples menção delas. No fundo, somente nisso está em jogo a “honra” da mulher: o que mais não lhes é perdoado! Mas nisso devem elas permanecer ignorantes até em seu coração: não devem ter olhos, nem ouvidos, palavras ou pensamentos para este seu “mal”: saber, aqui, já é o mal. E depois, com um medonho raio, por assim dizer, são jogadas na realidade e no saber com o casamento — e por aquele que mais respeitam e amam! Têm de surpreender amor e vergonha em contradição, têm de sentir enlevo, abandono, obrigação, compaixão e horror ante a inesperada proximidade de deus e animal e o que mais for! — Com isso fazem, realmente, um nó na alma que não tem igual! Nem a compassiva curiosidade do mais sábio conhecedor dos homens bastaria para adivinhar como essa ou aquela mulher se orienta na solução deste enigma e no enigma desta solução, e que terríveis, amplas suspeitas devem se agitar na pobre alma que saiu dos eixos; sim, como a derradeira filosofia e ceticismo da mulher se ancora nesse ponto! — Após tudo isso, o mesmo profundo silêncio de antes: e, com frequência, um silêncio e um fechar de olhos para si mesma. — As mulheres jovens se empenham bastante em parecer superficiais e irrefletidas: as mais sutis entre elas simulam uma forma de insolência. — As mulheres facilmente veem os maridos como uma interrogação da sua honra e os filhos como uma apologia ou penitência — elas necessitam dos filhos e os desejam num sentido bem diferente daquele em que um homem os deseja. — Em suma, não é possível ser brando demais com as mulheres! |
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As mães. — Os animais não pensam nas fêmeas da mesma forma que os homens; para eles, a fêmea é o ser produtivo. Não existe amor paterno entre eles, mas algo como amor aos filhos de uma amada e habituação a eles. As fêmeas têm, nos filhos, satisfação do seu desejo de domínio, uma propriedade, uma ocupação, algo que lhe é compreensível e com que se pode falar: tudo isso é o amor materno — comparável ao amor do artista por sua obra. A gravidez tornou as mulheres mais brandas, mais pacientes, mais temerosas e dispostas à submissão; de igual modo, a gravidez espiritual produz o caráter contemplativo, que é aparentado ao caráter feminino: — são as mães masculinas. — Para os animais, o sexo belo é o masculino. |
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Santa crueldade. — Um homem dirigiu-se a um santo, tendo nas mãos uma criança recém-nascida. “Que devo fazer com esta criança?”, perguntou ele, “ela é miserável, deformada e não tem vida bastante para morrer.” “Mate-a”, gritou o santo com voz terrível, “mate-a e segure-a nos braços por três dias e três noites, a fim de criar em si mesmo uma lembrança: — desse modo você não gerará novamente um filho quando não for tempo de fazê-lo.” — Ouvindo isso, o homem partiu decepcionado; e muitos censuraram o santo por haver aconselhado uma crueldade, pois aconselhara matar a criança. “Mas não é mais cruel deixá-la viver?”, exclamou o santo. |
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Sem sucesso. — Nunca têm sucesso as pobres mulheres que, na presença daquele que amam, tornam-se inquietas e inseguras e falam demais: pois o que seduz os homens mais seguramente é uma secreta e fleumática ternura. |
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O terceiro sexo. — “Um homem pequeno é um paradoxo, mas ainda um homem — enquanto as mulheres pequenas me parecem de um outro sexo, comparadas às mulheres de estatura” — disse um velho professor de dança. Uma mulher pequena jamais é bonita — disse o velho Aristóteles.[29] |
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O perigo maior. — Não tivesse havido sempre um grande número de homens que vissem o disciplinar de sua mente — sua “racionalidade” — como seu orgulho, sua obrigação, sua virtude, que fossem ofendidos ou envergonhados por todas as fantasias e excessos do pensamento, enquanto amigos do “saudável bom senso”, há muito a humanidade teria perecido! Sobre ela pairava e continua pairando, como o perigo maior, a irrupção da loucura — isto é, a irrupção do capricho no sentir, ver e ouvir, o gosto na indisciplina da mente, a alegria no “mau senso”. O oposto do mundo dos loucos não é a verdade e a certeza, mas a universalidade e obrigatoriedade de uma crença, em suma, o que não é capricho no julgamento. E o maior trabalho dos homens até hoje foi entrar em acordo acerca de muitas coisas e submeter-se a uma lei da concordância— não importando se tais coisas são verdadeiras ou falsas. Esta é a disciplina da mente, que conservou a humanidade; — mas os impulsos contrários são ainda tão poderosos, que não se pode, no fundo, falar confiantemente do futuro da humanidade. A imagem das coisas se move e se desloca ininterruptamente, e, a partir de agora, talvez com rapidez maior do que nunca; sem cessar, precisamente os espíritos mais seletos se revoltam contra tal obrigatoriedade — os investigadores da verdadeem primeiro lugar! Continuamente essa crença, enquanto crença de todos, produz uma náusea e uma nova ânsia nas mentes mais refinadas: e já o ritmo lento que ela requer para os processos espirituais, a imitação da tartaruga que aí é reconhecida como norma, transforma artistas e poetas em apóstatas: — é nesses espíritos impacientes que irrompe um verdadeiro prazer na loucura, pois ela tem um ritmo tão alegre! Portanto, intelectos virtuosos são necessários — ah, usarei o termo mais inequívoco —, a estupidez virtuosa é necessária, os inabaláveis metrônomos do espírito lento, para que os fiéis da grande crença geral se mantenham juntos e continuem a sua dança: é uma necessidade de primeira ordem que aí comanda e exige. Nós, os outros, somos a exceção e o perigo— necessitamos perenemente de defesa! — Bem, algo pode ser dito em favor da exceção, desde que ela nunca deseje se tornar regra. |
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O animal com boa consciência. — O elemento vulgar em tudo o que agrada no Sul da Europa — seja a ópera italiana (a de Rossini e de Bellini, por exemplo) ou o romance espanhol de aventuras (mais acessível, para nós, no disfarce francês do Gil Blas)[30] — não me escapa, mas também não me ofende, assim como a vulgaridade que encontramos num passeio por Pompeia e, no fundo, até na leitura de qualquer livro antigo: de onde vem isso? Seria que a vergonha está ausente, e que tudo o que aí é vulgar se apresenta com a certeza e segurança de si de qualquer coisa nobre, passional e graciosa na mesma espécie de música ou romance? “O animal tem tanto direito quanto o ser humano: pode então correr livre, e você, caro semelhante, é também esse animal, apesar de tudo!” — esta me parece ser a moral da história e a peculiaridade da humanidade do Sul. O mau gosto tem tanto direito quanto o bom, e mesmo a prerrogativa diante deste, se constitui a grande necessidade, a satisfação segura e como que uma linguagem universal, uma máscara e um gesto compreensíveis absolutamente: já o bom gosto, o gosto eleito, tem sempre algo de deliberado e buscado,[31] não inteiramente certo de sua compreensão — ele não é e jamais foi popular! A máscara é e será popular! Que valha então tudo o que há de mascarado nas melodias e cadências, nos saltos e gracejos dos ritmos dessas óperas! E a própria vida da Antiguidade! O que se entenderá dela, caso não se entenda o prazer com a máscara, a boa consciência de tudo o que é mascarado! Eis aqui o banho e o descanso do espírito antigo: — e talvez esse banho fosse, para as naturezas raras e sublimes do mundo antigo, ainda mais necessário do que para aquelas vulgares. — Já uma inflexão vulgar em obras do Norte, na música alemã, por exemplo, ofende-me de maneira indescritível. Aí há vergonha, o artista se rebaixou ante si mesmo e não pôde sequer evitar o rubor: nós nos envergonhamos com ele e nos ofendemos, porque sentimos que por nossa causa ele achou necessário rebaixar-se. |
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Pelo que deveríamos ser gratos. — Apenas os artistas, especialmente os do teatro, dotaram os homens de olhos e ouvidos para ver e ouvir, com algum prazer, o que cada um é, o que cada um experimenta e o que quer; apenas eles nos ensinaram a estimar o herói escondido em todos os seres cotidianos, e também a arte de olhar a si mesmo como herói, à distância e como que simplificado e transfigurado — a arte de se “pôr em cena” para si mesmo. Somente assim podemos lidar com alguns vis detalhes em nós! Sem tal arte, seríamos tão só primeiro plano e viveríamos inteiramente sob o encanto da ótica que faz o mais próximo e mais vulgar parecer imensamente grande, a realidade mesma. — Talvez haja um mérito semelhante na religião que ordenou que a pecaminosidade de cada um fosse vista com lente de aumento, tornando o pecador um enorme, imortal criminoso: ao cercá-lo de perspectivas eternas, ela ensinou o homem a ver-se à distância e como algo passado e inteiro. |
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O charme da imperfeição. — Vejo aí um poeta que, como muitos seres humanos, atrai bem mais por suas imperfeições do que por tudo o que sai elaborado e perfeito de suas mãos — sim, a vantagem e a fama lhe vêm antes da sua derradeira incapacidade que da sua rica energia. Sua obra nunca expressa inteiramente o que ele gostaria de expressar, o que ele gostaria de ter visto: como se ele tivesse o antegosto de uma visão, nunca ela mesma; mas uma enorme avidez por tal visão lhe permaneceu na alma, e dela retira ele sua igualmente enorme eloquência do anseio e da fome. Com ela, ele alça quem o escuta acima de sua obra e de todas as “obras”, dando-lhe asas para subir a alturas que normalmente os ouvintes não alcançam. Assim, tornando-se eles próprios poetas e videntes, tributam ao autor de sua ventura uma admiração tal, como se ele os tivesse levado diretamente à contemplação do que para ele é sagrado e supremo, como se houvesse atingido a sua meta e realmente vistoe comunicado a sua visão. Sua fama é beneficiada pelo fato de ele nunca ter chegado à sua meta. |
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Arte e natureza.— Os gregos (os atenienses, ao menos) gostavam de ouvir falar bem: era mesmo uma propensão ardente, que mais que qualquer outra coisa os distingue dos não gregos. Assim, exigiam que até a paixão falasse bem, em cima do palco, e voluptuosamente suportavam a pouca naturalidade do verso dramático: — pois na natureza a paixão é bem lacônica! é tão muda e acanhada! Ou, quando acha palavras, tão confusa, insensata, envergonhada de si! Agora todos nós, graças aos gregos, nos acostumamos a essa inaturalidade no palco, assim como toleramos, e toleramos de bom grado, graças aos italianos, essa outra coisa nada natural, a paixão cantante. — Tornou-se para nós uma necessidade que não podemos satisfazer na realidade: ouvir pessoas nas mais difíceis situações falarem bem e detalhadamente; agora ficamos encantados de o herói trágico ainda achar palavras, motivos, gestos eloquentes, em suma, clareza de espírito, no momento em que a vida se aproxima do abismo, em que o ser humano real normalmente perde a cabeça e, sem dúvida, a linguagem bonita. Tal espécie de desvio da natureza é talvez o mais agradável repasto para o orgulho do homem; por causa disso ele ama a arte, como expressão de uma elevada, heroica inaturalidade e convenção. Justificadamente censuramos o dramaturgo, quando ele não transforma tudo em razão e palavra e guarda nas mãos um resíduo de silêncio: — assim como ficamos insatisfeitos quando o compositor da ópera não sabe encontrar uma melodia para o mais intenso afeto, mas apenas um balbucio e um grito “naturais”, sentimentais. Pois aí se devecontradizer a natureza! Pois aí o encanto vulgar da ilusão deveceder a um encanto mais alto! Por esse caminho os gregos foram longe, bem longe — assustadoramente longe! Assim como fizeram o palco o mais simples possível, não se permitindo efeitos que resultassem de segundos planos profundos, assim como tornaram impossíveis para o ator as expressões faciais e os movimentos leves, transformando-o num solene, rígido, mascarado fantoche, assim também retiraram à paixão mesma o segundo plano profundo e lhe ditaram a lei das belas falas; sim, tudo fizeram para contrariar o efeito elementar das imagens que provocam temor e compaixão: pois eles não queriam temor e compaixão. Com todo o respeito a Aristóteles, altíssimo respeito! — ele não acertou no alvo, muito menos na mosca, quando falou da finalidade última da tragédia grega![32] Veja-se, nos trágicos gregos, o que mais estimulou sua diligência, sua inventividade, sua competição — não o propósito de subjugar o espectador com afetos, certamente! O ateniense ia ao teatro para ouvir belas falas!E de belas falas se ocupava Sófocles — que me perdoem esta heresia! — Com aópera sériaé muito diferente: todos os seus mestres se esforçam em impedir que compreendamos os seus personagens. Uma palavra captada ocasionalmente pode socorrer o ouvinte desatento, mas no conjunto a situação tem de se explicar por si mesma — as falas não importam! — assim pensam todos eles, e assim todos eles fizeram troça das palavras. Talvez lhes tenha faltado apenas coragem para exprimir totalmente o seu menosprezo pela palavra: um pouco mais de atrevimento, e Rossini teria feito os personagens cantarem lá-lá-lá-lá do começo ao fim — e teria havido alguma razão nisso! Pois não devemos “crer na palavra” dos personagens da ópera, mas em seus sons! Eis a diferença, eis a bela inaturalidadeque nos leva à ópera! Mesmo o recitativo secco não pretende ser ouvido realmente como texto e palavra: essa espécie de meia-música deve inicialmente oferecer algum repouso ao ouvido musical (repouso damelodia, como o mais sublime e, por isso mesmo, o mais cansativo deleite dessa arte) —, mas logo depois algo diferente: isto é, uma crescente impaciência, uma progressiva resistência, um novo desejo por música inteira, por melodia. — Como se situa, desse ponto de vista, a arte de Richard Wagner? De modo diferente, talvez? Com frequência quis me parecer que seria necessário aprender de cor as palavras e a música de suas criações antes da apresentação; caso contrário — assim me pareceu — não se ouvirianem as palavras, nema música sequer. |
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Gosto grego. — “O que há de belo nisso?” — afirmou aquele agrimensor após uma apresentação da Ifigênia— “nada se demonstra com isso!” Estariam os gregos assim tão afastados desse gosto? Em Sófocles, pelo menos, “tudo é demonstrado”. |
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O esprit não é grego. — Em todo o seu modo de pensar, os gregos são indescritivelmente lógicos e singelos; nunca se enfastiaram de sê-lo, ao menos em seu longo período bom, diferentemente dos franceses, que bem gostam de dar um pequeno salto no oposto e realmente só toleram o espírito da lógica se este, com muitos desses pequenos saltos no oposto, trai sua sociávelamabilidade, sua sociável negação de si. Para eles a lógica é necessária como o pão e a água, mas, também assim como estes, é uma espécie de alimento de prisioneiros, quando tem de ser provada pura e sozinha. Na boa sociedade não se deve jamais querer ter razão sozinho e inteiramente, como quer toda lógica pura: daí a pequena dose de desrazão que há em todo o espritfrancês. — A sociabilidade dos gregos era muito menos desenvolvida do que é ou jamais foi a dos franceses: daí o pouco espritdos seus homens mais espirituosos, daí a pouca graça até mesmo dos seus gracejadores, daí — ah, essas minhas frases já não acharão crédito, e quantas desse gênero eu ainda tenho na alma! — Est res magna tacere [É grande coisa guardar silêncio] — disse Marcial, como todos os tagarelas.[33] |
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Traduções. — O grau do senso histórico de uma época pode ser avaliado pela maneira como ela faz traduçõese procura absorver épocas e livros do passado. No tempo de Corneille, e ainda no da Revolução, os franceses se apropriaram da Antiguidade romana de uma forma de que já não teríamos coragem — graças ao nosso elevado senso histórico. E a própria Antiguidade romana: de que modo simultaneamente impetuoso e ingênuo ela pôs a mão em tudo o que era bom e elevado da anterior Antiguidade grega! Como traduziram as coisas para a atualidade romana! De que modo intencional e desenvolto tiraram o pó das asas da borboleta que é o instante! Assim Horácio traduziu, de vez em quando, Alceu e Arquíloco, assim fez Propércio com Calímaco e Filetas (poetas da mesma categoria de Teócrito, se nos é permitidojulgar): que lhes importava se o verdadeiro criador experimentara isso e aquilo e inscrevera no poema os sinais do que vivera! — como poetas eram avessos ao espírito antiquário inquisidor, que precede o senso histórico; como poetas não admitiam todas essas coisas e nomes pessoais, tudo o que era próprio de uma cidade, uma costa, um século, como sua roupagem e marca, e rapidamente punham no seu lugar o que era romano e atual. Eles parecem nos perguntar: “Não devemos tornar o antigo novo para nós e nos arrumarmos e imaginarmos nele?[34] Não devemos poder insuflar nossa alma nesse corpo sem vida? Pois ele está morto, afinal; e como é feio tudo o que está morto!”. — Eles não conheciam o prazer do senso histórico; o que era passado e alheio os incomodava e, sendo romanos, estimulava a conquista romana. De fato, traduzir era conquistar — não apenas ao se omitir o dado histórico: mais do que isso, acrescentavam alusões à atualidade, apagavam o nome do poeta e punham o próprio nome no lugar — não com o sentimento de um roubo, mas com a perfeita boa consciência do imperium Romanum |
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Da origem da poesia. — Os que amam o elemento fantástico no ser humano e, ao mesmo tempo, defendem a teoria da moralidade instintiva, raciocinam da seguinte forma: “Supondo que em todas as épocas venerou-se a utilidade como a divindade suprema, de onde teria vindo a poesia? — essa ritmização da fala, que antes atrapalha do que promove a clareza da comunicação, e que, apesar disso, brotou e continua a brotar em todo lugar desse mundo, como que zombando de toda útil pertinência! A bela e selvagem irracionalidade da poesia refuta-os, a vocês, utilitaristas! Precisamente querer desvencilhar-seda utilidade alguma vez — isso elevou o ser humano, isso o inspirou para a moral e a arte!”. Bem, neste caso tenho que falar em favor dos utilitaristas — acontece tão raramente eles terem razão, que até causa dó! Naqueles velhos tempos que viram nascer a poesia, a utilidade era o que se tinha em vista, uma grande utilidade — quando se deixou o ritmo permear o discurso, aquela força que reordena todos os átomos da frase, que manda escolher as palavras e dá nova cor aos pensamentos, tornando-os mais escuros, mais alheios, mais distantes: sem dúvida, uma utilidade supersticiosa!Mediante o ritmo, um pedido humano deveria se inculcar mais profundamente nos deuses, depois que as pessoas notaram que a memória grava mais facilmente um verso que uma fala normal; também acreditaram que por meio do tique-taque rítmico podiam ser ouvidas a distâncias maiores; a oração ritmada parecia chegar mais perto dos ouvidos dos deuses. Mas, sobretudo, desejaram tirar proveito daquela sujeição elementar que o ser humano experimenta ao escutar música: o ritmo é uma coação; ele gera um invencível desejo de aderir, de ceder; não somente os pés, a própria alma segue o compasso — provavelmente, as pessoas concluíram, também a alma dos deuses! Assim, procuraram coagi-losmediante o ritmo, exercendo um poder sobre eles: jogaram-lhes a poesia como um laço mágico. Havia também uma outra noção, mais peculiar, que pode haver contribuído mais do que tudo para o surgimento da poesia. Entre os pitagóricos ela aparece como doutrina filosófica e artifício pedagógico; mas muito antes que houvesse filósofos atribuía-se à música o poder de desafogar os afetos, purificar a alma, abrandar a ferocia animi [ferocidade do ânimo] — e isto precisamente pelo ritmo na música. Quando era perdida a justa tensão e harmonia da alma, era preciso dançar, seguindo a cadência do cantor — era a receita dessa terapia. Com ela Terpandro pacificou um tumulto, Empédocles acalmou um doido enfurecido e Dâmon purificou um jovem que definhava de amor; com ela também foram tratados os deuses enraivecidos e ávidos de vingança. Antes de tudo, levando ao máximo a vertigem e a exuberância de seus afetos, ou seja, enlouquecendo os enraivecidos e tornando ébrios de vingança os que dela tinham sede: — todos os cultos orgiásticos pretendem desafogar de uma vez a ferociade um deus e transformá-la em orgia, para que depois ele se sinta mais livre e mais tranquilo e deixe os homens em paz. Melos[melodia] significa, conforme sua raiz, um calmante, não porque seja calmo em si, mas porque seus efeitos acalmam. — Não somente nos cânticos rituais, também nos cantos profanos mais antigos há o pressuposto de que o ritmo exerce uma força mágica; por exemplo, quando se apanha água ou se rema, o canto é um encantamento dos demônios que se acredita estarem agindo ali, ele os torna complacentes e cativos, instrumentos dos homens. Toda vez que se age, há motivo para se cantar — toda ação está ligada à ajuda dos espíritos: as encantações e fórmulas mágicas parecem constituir a forma primeva da poesia. Se o verso era usado igualmente nos oráculos — os gregos diziam que o hexâmetro fora inventado em Delfos —, também aqui o ritmo devia exercer uma coação. Pedir uma profecia significava, originalmente (segundo a etimologia que me parece mais provável), fazer com que se determine algo; acreditava-se poder coagir o futuro, ao conquistar o favor de Apolo — que, na mais antiga concepção, era bem mais que um deus presciente. Tal como a fórmula é enunciada, literalmente e ritmicamente exata, ela obriga o futuro; mas ela é invenção de Apolo, que, como deus dos ritmos, pode também obrigar as deusas do destino. — Resumindo e perguntando: havia, para a antiga e supersticiosa humanidade, algo mais útilque o ritmo? Com ele se podia tudo: favorecer magicamente um trabalho; forçar um deus a aparecer, ficar próximo, escutar; ajeitar o futuro conforme sua própria vontade; desafogar a alma de algum excesso (do medo, da mania, da compaixão, da sede de vingança), e não só a própria alma, mas a do pior demônio — sem o verso não se era nada; com o verso, quase um deus. Um sentimento assim fundamental não pode ser inteiramente erradicado — e ainda hoje, após milênios de combate a tal superstição, até o mais sábio entre nós é ocasionalmente turvado pelo ritmo, quando mais não seja por sentir como verdadeiroum pensamento que tenha uma forma métrica e surja com um divino sobressalto. Não é divertido que mesmo os filósofos mais sérios, normalmente tão rigorosos em matéria de certezas, recorram a citações de poetas para dar força e credibilidade a seus pensamentos? — e, no entanto, uma verdade corre mais perigo quando um poeta a aprova do que quando a contradiz! Pois, como diz Homero: “Mentem demais os cantores!”.[35] |
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O bom e o belo. — Os artistas glorificamsem cessar — não fazem outra coisa — todos aqueles estados e coisas que têm a reputação de fazer o homem sentir-se bom ou grande, ébrio, divertido, são e sábio. Tais coisas e estados seletos, cujo valor para a felicidadehumana é tido por certo e estabelecido, são os temas dos artistas: estes sempre se acham à espreita, para descobrir coisas assim e transportá-las para o domínio da arte. Quero dizer que eles não são os aferidores da felicidade e do que é feliz, mas que sempre ficam próximos desses aferidores, com enorme curiosidade e desejando utilizar imediatamente as avaliações deles. Assim, tendo os fortes pulmões dos arautos e os rápidos pés dos corredores, além de sua própria impaciência, eles sempre estão entre os primeiros a glorificar a novacoisa boa, e frequentemente parecem ser os primeiros a chamá-la de boa e aferi-la como tal. Mas isto, como disse, é um erro: eles são apenas mais velozes e ruidosos que os verdadeiros aferidores. — E quem são estes? — São os ricos e os ociosos. |
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Sobre o teatro. — Esse dia me deu mais uma vez sentimentos fortes e elevados, e, se à noite eu pudesse ter música e arte, sei bem qual música e arte eu não gostaria de ter, isto é, aquela que pretende embriagar seus ouvintes e empurrá-lospara um instante de sentimentos fortes e elevados — esses homens de alma cotidiana, que à noite não semelham vencedores em carros triunfais, e sim mulas cansadas, nas quais a vida frequentemente exercitou seu chicote. Que saberiam esses homens sobre “estados de espírito superiores”, se não houvesse meios embriagadores e chicotadas idealistas? — e assim eles têm aqueles que os entusiasmam, assim como têm seus vinhos. Mas que me importa sua bebida e sua embriaguez! Que importa o vinho ao homem tomado de entusiasmo? Ele olha, isto sim, com uma espécie de náusea para os meios e mediadores que devem produzir um efeito sem razão suficiente — macaqueando a alma em maré alta! — Como? Proporcionam à toupeira asas e ideias altivas — antes de ela ir dormir, antes que rasteje para dentro de seu buraco? Enviam-na ao teatro e põem óculos grandes nos seus olhos cegos e cansados? Homens cuja vida não é “ação”, mas um negócio, ficam sentados diante do palco e observam seres estranhos, para os quais a vida é mais que um negócio? “Isso convém”, dizem vocês, “isso distrai, assim pede a cultura!” — Pois bem! Então me falta frequentemente a cultura: pois a visão disso é muitas vezes nauseante para mim. Quem tem em si tragédia e comédia bastantes fica de preferência longe do teatro; ou, se faz uma exceção, todo o evento — incluindo teatro, público e autor — torna-se-lhe o verdadeiro espetáculo trágico e cômico, de modo que pouco significa para ele a peça apresentada. Que são os Faustos e Manfredos do teatro, para quem é algo como Fausto e Manfredo? — enquanto certamente lhe dá o que pensar o fato de porem tais figuras em cena. Os mais fortes pensamentos e paixões diante daqueles que não são capazes de pensamento e paixão — mas da embriaguez! E aqueles como um meio para esta! Teatro e música como o haxixe e o bétel dos europeus! Oh, quem nos contará toda a história dos narcóticos! — É quase a história da “cultura”, da chamada cultura superior! |
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Da vaidade dos artistas. — Acho que frequentemente os artistas não sabem o que podem fazer melhor, porque são vaidosos demais e voltaram o sentido para algo mais soberbo do que parecem ser estas pequenas plantas que crescem no seu chão, novas, raras e belas, em real perfeição. O que afinal é bom, no jardim e na vinha que possuem, é superficialmente estimado por eles, seu amor e sua perspicácia não têm a mesma categoria. Eis um músico que, mais que qualquer outro, é um mestre em achar tonalidades no mundo das almas sofredoras, oprimidas, torturadas, e em dar voz também aos mudos animais. Ninguém a ele se compara nas cores do outono tardio, na fortuna indescritivelmente tocante de uma última, derradeira, brevíssima fruição, ele conhece um timbre para as ocultas-inquietantes[36] meias-noites da alma, nas quais causa e efeito parecem fora dos eixos e a todo instante algo pode se originar “do nada”; ele sabe, de maneira mais feliz que outros, haurir do mais profundo da felicidade humana, como que do cálice esvaziado, onde finalmente, infernalmente, as gotas mais acres e amargas se juntaram às mais doces; ele conhece a fadiga da alma que se arrasta, que já não pode saltar e voar, nem mesmo andar; ele possui o tímido olhar da dor encoberta, da compreensão sem conforto, da despedida sem confissão; sim, como Orfeu de toda oculta miséria é maior que qualquer outro, e por ele foram acrescentadas à arte coisas que até então pareciam inexprimíveis e mesmo indignas da arte, e que as palavras só podiam afugentar, jamais apreender — aspectos mínimos e microscópicos da alma; sim, ele é o mestre do mínimo. Mas não quersê-lo! Agrada ao seu caráter, isto sim, as grandes paredes e os temerários afrescos! Não percebe que o seu espírito tem outro gosto e inclinação e prefere, mais do que tudo, ficar silenciosamente sentado nos cantos de casas desmoronadas: ali, escondido, escondido de si mesmo, ele pinta suas verdadeiras obras-primas, que são todas bem curtas, com frequência não indo além de um compasso — apenas então ele se torna inteiramente bom, grande e perfeito, talvez apenas então. — Mas ele não sabe disso! É vaidoso demais para sabê-lo. |
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A seriedade com a verdade. — Seriedade com a verdade! Que diferentes coisas entendem as pessoas por essas palavras! As mesmas opiniões e tipos de prova e demonstração que um pensador acha uma leviandade à qual, para sua vergonha, ele sucumbiu nesse ou naquele instante — precisamente essas opiniões podem dar, a um artista que com elas depara e vive algum tempo, a consciência de que se tornou profundamente sério com a verdade e de como é admirável que, embora artista, ele mostre também o mais sério desejo do contrário da aparência. Então é possível que, justamente com o pathos de sua seriedade, ele traia o modo superficial e limitado com que até agora o seu espírito se moveu no campo do conhecimento. — E não somos traídos por tudo aquilo que achamos importante? É o que mostra onde colocamos nossos pesos e para que coisas não possuímos pesos.[37] |
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Agora e outrora. — Que importa toda a arte de nossas obras de arte, se chegamos a perder a arte superior que é a arte das festas? Antigamente as obras de arte eram expostas na grande avenida de festas da humanidade, para lembrança e comemoração de momentos felizes e elevados. Agora se pretende, com as obras de arte, atrair os miseramente exaustos e enfermos para fora da longa via dolorosa da humanidade, para um instantezinho de prazer; um pouco de embriaguez e de loucura lhes é oferecido. |
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Luzes e sombras. — Os livros e manuscritos são coisas diferentes em diferentes pensadores: um recolhe no livro as luzes que velozmente soube furtar e carregar consigo, dos raios de um conhecimento que sobre ele relampejou; um outro dá apenas as sombras, as imagens em preto e cinza daquilo que na véspera se edificou em sua alma. |
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Cautela. — Alfieri, como se sabe, mentiu bastante, ao narrar a história de sua vida para os assombrados contemporâneos. O que o levou a mentir foi o despotismo consigo próprio, o mesmo que demonstrou, por exemplo, na maneira como criou sua própria linguagem e tiranicamente fez de si um escritor: — ele finalmente encontrou uma severa forma de sublimidade, na qual comprimiusua vida e sua memória: deve ter havido muito sofrimento nisso. — Eu também não daria crédito a uma vida de Platão escrita por ele próprio: não mais do que dou à de Rousseau, ou à Vita nuova, de Dante. |
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Prosa e poesia.— Observe-se que os grandes mestres da prosa foram quase sempre poetas também, seja publicamente ou apenas em segredo e “para os íntimos”; e, de fato, apenas em vista da poesiase escreve boa prosa! Pois esta é uma ininterrupta e amável guerra com a poesia: todo o seu charme consiste em que a poesia é sempre evitada e contrariada; toda abstração quer ser expressa com voz zombeteira, digamos, como esperteza em relação a esta; toda secura e frieza deve impelir a suave deusa a um suave desespero; com frequência há aproximações, conciliações do momento, e logo um súbito recuo e gargalhada; com frequência é levantada a cortina e deixa-se entrar a luz crua, no preciso instante em que a deusa está fruindo a penumbra e as cores baças; com frequência lhe é tirada a palavra da boca e cantada numa melodia que a faz cobrir os delicados ouvidos com as delicadas mãos — e assim há muitos e muitos prazeres nesta guerra, incluindo as derrotas, das quais os homens não poéticos, os chamados homens prosaicos, nada entendem: — eles escrevem e falam somente prosa ruim! A guerra é a mãe de todas as coisas boas,[38] ela é também a mãe da boa prosa! — Houve, neste século, quatro homens bastante singulares e verdadeiramente poéticos que alcançaram mestria na prosa, para a qual o século não foi feito, aliás — por falta de poesia, como indiquei. Não considerando Goethe, justamente reivindicado pelo século que o produziu, vejo apenas Giacomo Leopardi, Prosper Mérimée, Ralph Waldo Emerson e Walter Savage Landor, o autor das Imaginary conversations, como dignos de serem chamados mestres da prosa. |
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Mas por que você escreve?— A: Eu não sou daqueles que pensamtendo na mão a pena molhada; tampouco daqueles que diante do tinteiro aberto se abandonam a suas paixões, sentados na cadeira e olhando fixamente para o papel. Eu me irrito ou me envergonho do ato de escrever; escrever é para mim uma necessidade imperiosa — falar disso, mesmo por imagens, é algo que me desgosta. B: Mas por que você escreve então? A: Cá entre nós, meu caro, eu não descobri ainda outra maneira de me livrarde meus pensamentos. B: E por que você quer se livrar deles? A: Por que eu quero? E eu quero? Eu preciso. — B: Basta! Basta! |
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Crescimento após a morte. — Aquelas audaciosas palavrinhas sobre questões morais, que Fontenelle incluiu nos seus imortais Diálogos dos mortos, eram tidas em seu tempo como paradoxos e jogos de um engenho não inteiramente inócuo; mesmo os supremos juízos do gosto e do espírito não viam muito naquilo — talvez nem o próprio Fontenelle. Agora acontece algo incrível: esses pensamentos tornam-se verdades! A ciência os prova! O jogo se torna sério! E nós lemos esses diálogos com sentimento diverso daquele com que foram lidos por Voltaire e Helvetius, e automaticamente elevamos seu autor a uma categoria diversa e bem mais altado que aquela em que estes o situavam — com razão? Sem razão? |
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Chamfort. — Que um tal conhecedor dos homens e da multidão, como foi Chamfort, se pusesse justamente ao lado da multidão e não à parte, em renúncia e defesa filosófica, é algo que sei explicar apenas da seguinte forma. Havia nele um instinto mais forte que sua sabedoria e que nunca foi satisfeito, o ódio a toda nobreza de sangue; talvez o velho, facilmente explicável ódio de sua mãe, que pelo amor à mãe se tornara nele sagrado — um instinto de vingança que remontava a seus anos de menino, à espera da hora de vingar a mãe. E eis que a vida e o seu gênio — e, oh! talvez mais que tudo, o sangue paterno que tinha nas veias — induziram-no a se alinhar e se igualar precisamente a tal nobreza, por muitos e muitos anos! Mas enfim ele não suportou a visão de si mesmo, do “velho” sob o Velho Regime; foi tomado de uma violenta paixão de penitência, e com elavestiu o traje da plebe, como sua espécie de camisa de cilício! Sua má consciência era ter negligenciado a vingança. — Tivesse Chamfort permanecido um pouco mais filósofo, a Revolução teria perdido o trágico espírito e o agudo ferrão que a caracterizaram: seria tida como um evento muito mais tolo e não seduziria tanto os espíritos. Mas o ódio e a vingança de Chamfort educaram toda uma geração: e os homens mais ilustres passaram por essa escola. Pois considere-se que Mirabeau olhava Chamfort como seu mais velho e elevado Eu, do qual esperava e tolerava incitações, advertências e veredictos — Mirabeau, que como ser humano pertence a uma ordem de grandeza diferente mesmo da dos primeiros entre os estadistas de ontem e de hoje. — É singular que, apesar de um tal amigo e defensor — temos as cartas de Mirabeau para Chamfort —, esse mais espirituoso dos moralistas tenha permanecido um estranho para os franceses, de modo não diferente de Stendhal, que talvez tenha tido, entre os franceses desteséculo, os olhos e ouvidos mais ricos de pensamento. Será que este, no fundo, tinha demasiado de alemão e de inglês, para que os parisienses o suportassem? — enquanto Chamfort, um homem rico de profundidades e segundos planos da alma, sombrio, ardente, sofredor — um pensador que achava o riso necessário como remédio para a vida, e que considerava praticamente perdido o dia em que não dera uma risada —, parece antes um italiano, um parente de Dante e Leopardi, do que um francês! Sabe-se as últimas palavras de Chamfort: “Ah! mon ami”,disse ele a Sieyès, “je m’en vais enfin de ce monde, où il faut que le coeur se brise ou se bronze”[Ah, meu amigo, deixo enfim este mundo, onde o coração tem de se partir ou endurecer]Estas não são, certamente, as palavras de um francês moribundo. |
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Dois oradores. — Desses dois oradores, um chega a mostrar a completa razão de sua causa apenas quando se abandona à paixão: somente esta lhe faz subir ao cérebro sangue e calor bastantes para obrigar a manifestação de seu elevado intelecto. O outro experimenta fazer o mesmo aqui e ali: com ajuda da paixão, expor sua causa sonoramente, de forma veemente e arrebatadora — mas geralmente sem êxito. Logo ele começa a falar confusa e obscuramente, exagera, incorre em omissões e provoca desconfiança sobre a razão de sua causa: sim, ele próprio sente tal desconfiança, e isso explica repentinos saltos para os tons mais frios e desagradáveis, que fazem a audiência duvidar de que toda a sua passionalidade seja autêntica. Nele a paixão sempre inunda o espírito, talvez por ser mais forte que no primeiro orador. Mas ele está no auge de sua força quando resiste ao tempestuoso assalto de suas emoções e, por assim dizer, escarnece dele; apenas então seu espírito sai inteiramente do esconderijo, um espírito lógico, zombeteiro, brincalhão e, no entanto, terrível. |
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A loquacidade dos escritores. — Existe uma loquacidade da ira — frequente em Lutero, assim como em Schopenhauer. Uma loquacidade devida a uma provisão demasiado grande de fórmulas conceituais, como sucede em Kant. Uma loquacidade pelo prazer em facetamentos sempre novos da mesma coisa: encontrada em Montaigne. Uma loquacidade de naturezas pérfidas: quem lê escritos atuais se lembrará de dois escritores desse tipo. Uma loquacidade por prazer com palavras e formas de linguagem boas: não é rara na prosa de Goethe. Uma loquacidade por íntimo deleite com o ruído e desordem das emoções: em Carlyle, por exemplo. |
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Em louvor de Shakespeare. — A coisa mais bela que eu saberia dizer em louvor do homemShakespeare é esta: ele acreditou em Brutus e não lançou o menor grão de suspeita sobre esse tipo de virtude! A ele dedicou sua melhor tragédia — que ainda hoje é conhecida pelo título errado —, a ele e à mais terrível quintessência de uma moral elevada. Independência da alma! — é disso que se trata ali! Nenhum sacrifício pode ser demasiado grande: é preciso ser capaz de sacrificar-lhe até o mais querido amigo, seja ele o homem mais esplêndido, ornamento do mundo, gênio sem igual — quando se ama a liberdade como sendo a liberdade das grandes almas e ele põe em perigo essa liberdade: desse modo deve ter sentido Shakespeare! A altura em que ele coloca César é a maior honra que podia prestar a Brutus: apenas assim ele dá proporções enormes ao problema interior deste, bem como à força psíquica que era capaz de cortar esse nó! — E foi realmente a liberdade política que fez esse poeta simpatizar com Brutus — que o tornou cúmplice de Brutus? Ou a liberdade política foi apenas um símbolo para algo inexprimível? Achamo-nos talvez diante de um evento obscuro que permaneceu desconhecido, uma aventura da própria alma do poeta, da qual ele só quis falar mediante sinais? O que é a melancolia de um Hamlet, comparada à melancolia de um Brutus? — e talvez Shakespeare conheça esta, como aquela, por experiência própria! Talvez ele tivesse, como Brutus, sua hora escura e seu anjo mau! — Mas quaisquer que tenham sido as semelhanças e os laços secretos: ante o personagem e a virtude de Brutus Shakespeare se prostrou e se sentiu indigno e distante: — ele dá testemunho disso na tragédia. Duas vezes um poeta é apresentado nela, e nas duas vezes é vertido sobre ele um desprezo tão impaciente e definitivo, que isto soa como um grito — o grito do autodesprezo. Até mesmo Brutus perde a paciência quando surge o poeta, enfatuado, patético, impertinente como costumam ser os poetas, um ser que parece transbordar de possibilidades de grandeza, também de grandeza moral, mas que na filosofia dos atos e da vida raramente atinge sequer a integridade comum. “Se ele conhece o tempo, eu conheço seus humores — fora com o palhaço!” — grita Brutus.[39] Traduza-se isso de volta na alma do poeta que o criou. |
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Os seguidores de Schopenhauer. — O que se percebe no contato entre povos civilizados e bárbaros: que normalmente a cultura inferior começa por tomar os vícios, fraquezas e excessos da superior, a partir daí sente alguma atração por esta e, enfim, mediante os vícios e fraquezas adquiridos, também recebe algo da força valiosa da cultura superior: — isso pode ser visto igualmente em nossa proximidade, sem visitar povos bárbaros, de modo um tanto refinado e espiritualizado, é certo, e não tão palpável. Que costumam os seguidores de Schopenhauer na Alemanha tomar inicialmente do seu mestre? — os quais, em comparação à superior cultura deste, devem se sentir bárbaros o bastante para, também no início, serem barbaramente fascinados e seduzidos por ele. O seu duro senso dos fatos, sua honesta vontade de clareza e razão, que com frequência o faz parecer tão inglês e tão pouco alemão? Ou o vigor de sua consciência intelectual, que toda a vida suportoua contradição entre ser e querer e o forçou a contradizer-se também nas suas obras, continuamente e quase em cada ponto? Ou sua limpeza em questões da Igreja e do Deus cristão? — pois nisso ele foi limpo como nenhum filósofo alemão até ali, de modo que viveu e morreu “como um voltairiano”. Ou suas imortais teorias da intelectualidade da intuição, da aprioridade da lei causal, da natureza instrumental do intelecto e da não liberdade da vontade? Não, nada disso encanta nem é tido por encantador: mas sim os embaraços e subterfúgios místicos de Schopenhauer, nos lugares em que o pensador factual se deixou seduzir e estragar pelo vaidoso impulso de se arvorar em decifrador do mundo; a indemonstrável teoria de uma vontade única (“Todas as causas são apenas causas eventuais da manifestação da vontade nesse tempo e nesse lugar”, “A vontade de vida está presente em cada ser, também no mais ínfimo, de forma inteira e não dividida, tão completamente quanto em todos os seres que foram, são e serão, tomados em seu conjunto”), a negação do indivíduo (“Todos os leões são, no fundo, um só leão”, “A pluralidade dos indivíduos é uma aparência”; assim como a evoluçãoé só aparência: — ele chama ao pensamento de Lamarck “um erro genial e absurdo”); a exaltação do gênio (“Na contemplação estética o indivíduo não é mais indivíduo, mas puro sujeito do conhecimento, sem vontade, sem dor e atemporal”; “Ao absorver-se inteiramente no objeto contemplado, o sujeito se torna esse próprio objeto”); o absurdo da compaixãoe da ruptura, que ela tornou possível, do principii individuationis[princípio da individuação] como fonte de toda moralidade; e também afirmações tais como “A morte é realmente o objetivo da existência”, “Não podemos negar a prioria possibilidade de que um efeito mágico não pudesse emanar de alguém que já morreu”: estes e outros excessos e vícios do filósofo são sempre aceitos em primeiro lugar e transformados em artigo de fé: — pois vícios e excessos são imitados mais facilmente e não requerem um longo treino. Mas falemos do mais famoso dos schopenhauerianos vivos, de Richard Wagner. — A ele aconteceu o que já sucedeu com muitos artistas: enganou-se ao interpretar os personagens que havia criado e não compreendeu a filosofia implícita em sua arte mais característica. Richard Wagner deixou-se desencaminhar por Hegel até a metade de sua vida; e o fez novamente mais tarde, quando começou a ver a teoria de Schopenhauer em seus personagens e a formular a si mesmo recorrendo às noções de “vontade”, “gênio” e “compaixão”. Apesar disso continuará verdadeiro que nada pode ser mais contrário ao espírito de Schopenhauer do que o que é propriamente wagneriano nos heróis de Wagner: quero dizer, a inocência do mais elevado amor a si, a crença na grande paixão como algo bom em si, ou, numa palavra, o que há de siegfriediano no semblante dos seus heróis. “Isso tudo cheira antes a Spinoza do que a mim” — diria talvez Schopenhauer. Por mais que tivesse boas razões para buscar outro filósofo que não Schopenhauer, o sortilégio ao qual sucumbiu, relativamente a esse pensador, tornou-o cego não apenas aos outros filósofos, mas até à ciência mesma; cada vez mais a sua arte quer se apresentar como contrapartida e complemento da filosofia schopenhaueriana, e cada vez mais expressamente renuncia ela à ambição mais elevada de tornar-se contrapartida e complemento da ciência e do conhecimento humanos. E a isso não o estimula apenas a misteriosa pompa dessa filosofia, que teria fascinado igualmente a um Cagliostro: também os gestos e os afetos dos filósofos sempre seduziram! Schopenhaueriano, por exemplo, é o exaspero de Wagner ante a corrupção da língua alemã; e, se aí deveríamos aprovar a imitação, não podemos esquecer que o próprio estilo de Wagner sofre bastante das úlceras e abscessos cuja visão punha fora de si Schopenhauer, e que, no que toca aos wagnerianos que escrevem em alemão, a wagneromania começa a se revelar tão perigosa quanto se revelou toda hegelomania. Schopenhaueriano é o ódio de Wagner aos judeus, em relação aos quais não consegue ser justo, nem mesmo quanto ao seu ato maior: pois os judeus são os inventores do cristianismo. Schopenhaueriana é a tentativa de Wagner de apreender o cristianismo como um grão de budismo transportado pelo vento, e de preparar para a Europa uma época budista, aproximando-se temporariamente de fórmulas e sentimentos católico-cristãos. Schopenhaueriana é a prédica de Wagner em favor da misericórdia no trato com animais; sabe-se que o precursor de Wagner nesse ponto foi Voltaire, que, como seus sucessores, talvez já soubesse travestir o ódio a certas coisas e pessoas em misericórdia para com os animais. Ao menos o ódio de Wagner à ciência, que transparece em sua prédica, não é sugerido pelo espírito de mansuetude e bondade — tampouco, como é óbvio, pelo espírito. — Afinal, pouco importa a filosofia de um artista, caso seja apenas uma filosofia acrescentada e não prejudique a sua arte. Todo cuidado é pouco para evitar nos aborrecermos com um artista por uma eventual, talvez infeliz e pretensiosa dissimulação; não esqueçamos que os queridos artistas são e têm de ser todos eles um pouco atores, e que sem atuar dificilmente aguentariam por muito tempo. Permaneçamos fiéis a Wagner naquilo que nele é vero e original — e isto permanecendo nós mesmos, seus discípulos, fiéis ao que em nós é vero e original. Admitamos seus caprichos e convulsões intelectuais, apreciemos com justiça que estranhos alimentos e necessidades uma arte como a sua pode ter, para que viva e cresça! Não importa que como pensador ele frequentemente esteja errado; justeza e paciência não são para ele. Já basta que sua vida tenha e conserve razão frente a si mesma — essa vida que grita para cada um de nós: “Seja um homem e não siga a mim — mas a si próprio! A si próprio!”.[40] Também nossa vida deve ter razão frente a nós mesmos! Também nós devemos crescer e medrar a partir de nós mesmos, livres e sem medo, em inocente amor de si! E, ao contemplar um tal indivíduo, vêm-me aos ouvidos, agora como então, estas frases: “A paixão é melhor que o estoicismo e a hipocrisia, ser honesto, ainda que no mal, é melhor do que perder a si mesmo na moralidade da tradição; o homem livre pode resultar bom ou mau, mas o homem não livre é uma vergonha da natureza e não participa de nenhum consolo, celeste ou terrestre; e, por fim, todo aquele que deseja tornar-se livre tem de fazê-lo por si próprio, e a liberdade não sucede a ninguém como uma dádiva milagrosa” (Richard Wagner em Bayreuth, § 11). |
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Aprendendo a homenagear. — É preciso aprender a homenagear, tanto quanto a desprezar. Todo aquele que segue novos caminhos, e que conduziu muitos por novos caminhos, descobre assombrado como esses muitos são pobres e canhestros ao exprimir sua gratidão, e mesmo como é raro a gratidão poder se expressar. É como se, querendo falar, algo sempre lhe incomodasse a garganta, de forma que ela apenas pigarreia e silencia com o pigarro. O modo como um pensador chega a sentir o efeito de suas ideias e a energia transformadora e perturbadora destas é quase uma comédia; às vezes se diria que os que experimentaram esse efeito sentiram-se por ele ultrajados, no fundo, e que apenas com grosserias podem expressar a independência que acreditaram ameaçada. São requeridas gerações inteiras para se inventar apenas uma convenção cortês de agradecimento; e apenas bem tarde chega o momento em que até na gratidão penetra algum espírito e genialidade; então geralmente há alguém que é o grande receptor da gratidão, não só pelo que ele próprio fez de bom, mas sobretudo por aquilo que gradualmente seus precursores acumularam, um tesouro do que há de melhor e de mais elevado. |
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Voltaire. — Em todo lugar onde houve uma corte, ela estabeleceu a norma do bem falar e, com isso, também a norma do estilo para todos os que escreviam. A linguagem da corte, porém, é a linguagem do cortesão, que não tem profissãoe que, mesmo em conversas sobre temas científicos, não se permite expressões técnicas convenientes, pois elas têm sabor de profissão. Por causa disso, a expressão técnica e tudo o que revela o especialista é, nos países de cultura cortesã, uma mancha de estilo. Agora que todas as cortes se tornaram caricaturas de ontem e de hoje, é uma surpresa achar o próprio Voltaire extremamente rígido e meticuloso nesse ponto (em seu julgamento sobre estilistas como Fontenelle e Montesquieu, por exemplo) — pois todos nós nos emancipamos do gosto cortesão, enquanto Voltaire o consumou! |
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Uma palavra para filólogos. — Há livros tão preciosos e principescos, que gerações inteiras de eruditos são bem empregadas, se devido ao seu esforço tais livros são conservados inteiros e inteligíveis — é para fortalecer incessantemente esta fé que existe a filologia. Ela pressupõe que não faltem os raros homens (ainda que não os vejamos de imediato) que realmente sabem utilizar livros tão valiosos: — serão os mesmos, provavelmente, que fazem ou poderiam fazer tais livros. Quero dizer que a filologia pressupõe uma crença nobre — de que em prol de uns poucos, que sempre “virão” e nunca se acham presentes, deve antes ser feita uma grande quantidade de trabalho fastidioso e mesmo insalubre: é tudo trabalho in usum Delphinorum [para uso dos Delfins].[41] |
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Da música alemã. — A música alemã é hoje, mais que qualquer outra, a música europeia, porque somente nela achou expressão a mudança que a Europa sofreu com a Revolução: apenas os compositores alemães entendem como dar expressão a massas agitadas, com esse enorme barulho artificial que nem mesmo precisa ser muito alto — enquanto a ópera italiana, por exemplo, conhece apenas coros de serventes ou soldados, mas nenhum “povo”. Além disso, em toda a música alemã pode-se ouvir uma profunda inveja burguesa da noblesse, ou seja, de esprit e élégance, como expressão de uma sociedade cortesã, cavalheiresca, antiga, segura de si. Não é uma música que, como a do cantor de Goethe em frente ao portão, agrade também “no salão”, e sobretudo ao rei; nela não se diz: “Os cavalheiros olhavam corajosamente e as belas abaixavam o olhar”.[42]Mesmo a graça não aparece desacompanhada de remorsos na música alemã; apenas com a gentileza, a irmã camponesa da graça, o alemão começa a sentir-se inteiramente moral — e daí cada vez mais, até a sua “sublimidade” entusiástica, douta, muitas vezes rabugenta, a sublimidade beethoveniana. Querendo imaginar o ser humano que corresponde a essa música, imagine-se justamente Beethoven, tal como ele aparece junto a Goethe, naquele encontro em Teplitz: como a semibarbárie junto à cultura, como o povo junto à aristocracia, como o homem de boa índole junto ao homem bom e mais que simplesmente “bom”, como o fantasiador junto ao artista, como o sedento de consolo junto ao consolado, como o exagerado e suspeitoso junto ao equânime, como o atrabiliário e atormentador de si próprio, como o tolo-extasiado, o venturoso-infeliz, o leal-desmesurado, como o pretensioso e rude — e, em suma, como o “ser não domesticado”:[43] assim o próprio Goethe o percebeu e descreveu, Goethe, o alemão-exceção, para o qual ainda não se encontrou música do mesmo jaez! — Considere-se, por fim, se o desprezo da melodia e enfraquecimento do sentido melódico, hoje cada vez maior entre os alemães, não pode ser entendido como grosseria democrática e efeito posterior da Revolução. Pois a melodia tem um tão claro deleite com as regras e uma tal aversão a tudo o que se acha em evolução, que é informe e arbitrário, que soa como algo da velhaordem das coisas europeias e uma atração e regressão para esta. |
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O som da língua alemã. — Sabe-se de onde vem o alemão que há alguns séculos se usa como língua escrita. Os alemães, com sua reverência ante tudo o que vinha da corte, tomaram deliberadamente por modelo as chancelarias em tudo o que tinham de escrever, ou seja, em suas cartas, documentos, testamentos etc. Escrever na linguagem das chancelarias significava escrever conforme a corte e o governo — era algo elegante, comparado ao alemão da cidade em que se vivia. Gradualmente, e por consequência, veio-se a falar também como se escrevia — assim ficava-se ainda mais elegante, nas formas das palavras, na sua escolha, nas locuções e, por fim, também no som: afetava-se o tom da corte ao falar, e a afetação tornou-se enfim natureza. Talvez em nenhum outro lugar tenha ocorrido algo assim: a preponderância da escrita sobre a fala, e os ademanes e a pavonice de um povo inteiro como base de uma língua comum que não era mais dialetal. Acredito que o som da língua alemã na Idade Média, e sobretudo após a Idade Média, era profundamente rústico e vulgar; nos últimos séculos ele se enobreceu um tanto, principalmente porque houve a necessidade de imitar sons franceses, italianos e espanhóis, e isso por parte da aristocracia alemã (e austríaca), que não podia se contentar com a língua materna. Mas, apesar desse uso, para Montaigne ou mesmo Racine o alemão deve ter soado intoleravelmente vulgar; e ainda agora, na boca dos viajantes, em meio ao populacho italiano, continua soando muito cru, silvestre, rouco, como se viesse de ambientes esfumaçados e regiões impolidas. — Ora, eu observo que agora novamente cresce, entre os velhos admiradores das chancelarias, semelhante tendência à elegância do tom, e que os alemães começam a ceder a uma bem peculiar “magia do tom”, que a longo prazo poderia tornar-se um verdadeiro perigo para a língua alemã — pois em vão se buscará, na Europa, sons mais abomináveis. Algo de sardônico, de frio, indiferente, negligente: eis o que agora soa “elegante” para os alemães — e eu escuto a boa disposição para essa elegância nas vozes de jovens funcionários, professores, mulheres, comerciantes; até mesmo garotas pequenas já imitam esse alemão de oficiais. Pois o oficial, o oficial prussiano, é o inventor destes sons; o mesmo oficial que, como militar e profissional, tem o admirável tato da modéstia, com o qual todos os alemães teriam o que aprender (incluindo os catedráticos e musicistas!). Quando ele abre a boca e se move, no entanto, é a figura mais imodesta e de mau gosto dessa velha Europa — sem consciência de si, não há dúvida! E também sem consciência dos caros alemães, que o apreciam como exemplo da mais alta e elegante sociedade e de bom grado o deixam “dar o tom”. É exatamente o que ele faz! — e primeiro são os sargentos e oficiais inferiores que imitam grosseiramente o seu tom. Atente-se para os gritos de comando que literalmente rodeiam as cidades alemãs, agora que se fazem exercícios às portas de cada uma delas: que arrogância, que furioso sentimento de autoridade, que sardônica frieza não ressoa em tal gritaria! Seriam os alemães realmente um povo musical? — É certo que eles agora se militarizam no som de sua língua; é provável que, treinados em falar militarmente, também acabem por escrever militarmente. Pois acostumar-se a determinados sons é algo que influi profundamente no caráter: — adquire-se logo as palavras e locuções e, por fim, também os pensamentos próprios desses sons! Talvez já se escreva “oficialmente” agora; talvez eu leia muito pouco do que se escreve atualmente na Alemanha. Mas uma coisa sei com tranquila certeza: as declarações públicas alemãs que chegam ao exterior não se inspiram na música alemã, mas nesse novo tom de arrogante mau gosto. Em quase todo discurso do primeiro estadista alemão,[44] mesmo quando ele se faz ouvir através do seu imperial porta-voz, há um sotaque que um ouvido estrangeiro repele com desgosto: mas os alemães o suportam — eles suportam a si mesmos. |
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Os alemães como artistas. — Se o alemão realmente desenvolve uma paixão (e não só, como normalmente ocorre, uma disposição para a paixão), ele se comporta como sempre tem de se comportar e não pensa mais nisso. Na verdade, ele aí se comporta de maneira bastante feia e desajeitada, como que sem medida e sem melodia, fazendo com que os espectadores se sintam incomodados ou tocados, não mais que isso — a menos que ele se alce à esfera do êxtase e do sublime, de que algumas paixões são capazes. Então, até um alemão se torna bonito! A ideia da alturaa partir da qual a beleza derrama sua magia até mesmo sobre alemães impele os artistas alemães a alturas cada vez maiores e a excessos de paixão: um autêntico e profundo anseio de ir além ou, ao menos, de enxergar além da feiura e da inépcia — em direção a um mundo melhor, mais leve, mais meridional, mais ensolarado. Assim, frequentemente as suas convulsões são apenas indícios de que eles gostariam de dançar: esses pobres ursos, nos quais ocultas ninfas e deuses da floresta fazem das suas — e às vezes até divindades mais altas! |
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106 |
A música como intercessora. — “Tenho sede de um mestre na arte dos sons”, disse um inovador ao seu discípulo, “que de mim aprendesse os pensamentos e os falasse depois na sua linguagem: assim eu chegaria melhor aos ouvidos e corações dos homens. Através dos sons podemos conduzir os homens a qualquer erro e qualquer verdade: pois quem conseguiria refutarum som?” — “Então você gostaria de ser visto como irrefutável?”, perguntou o discípulo. O inovador respondeu: “Eu gostaria que o gérmen se tornasse árvore. Para que uma doutrina se torne árvore, é necessário que acreditem nela por um bom tempo; para que nela acreditem, ela tem de ser vista como irrefutável. A árvore requer temporais, dúvidas, vermes, maldade, a fim de revelar a natureza e a força de seu gérmen; que ela se parta, caso não seja forte o bastante! Mas um gérmen só se pode destruir — nunca refutar!”. — Quando ele afirmou isto, o seu discípulo gritou impetuosamente: “Mas eu acredito em sua causa e a considero tão forte, que direi tudo, tudo o que tenho no coração contra ela!”. — O inovador sorriu consigo e o ameaçou com o dedo. “Essa espécie de discípulos”, disse então, “é a melhor que há, mas é perigosa e nem toda espécie de doutrina pode suportá-la.” |
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Nossa derradeira gratidão para com a arte. — Se não tivéssemos aprovado as artes e inventado essa espécie de culto do não verdadeiro, a percepção da inverdade e mendacidade geral, que agora nos é dada pela ciência — da ilusão e do erro como condições da existência cognoscente e sensível —, seria intolerável para nós. A retidãoteria por consequência a náusea e o suicídio. Mas agora a nossa retidão tem uma força contrária, que nos ajuda a evitar consequências tais: a arte, como aboavontade de aparência. Não proibimos sempre que os nossos olhos arredondem, terminem o poema, por assim dizer: e então não é mais a eterna imperfeição, que carregamos pelo rio do vir-a-ser — então cremos carregar uma deusae ficamos orgulhosos e infantis com tal serviço. Como fenômeno estético a existência ainda nos é suportável, e por meio da arte nos são dados olhos e mãos e, sobretudo, boa consciência, para poder fazer de nós mesmos um tal fenômeno. Ocasionalmente precisamos descansar de nós mesmos, olhando-nos de cima e de longe e, de uma artística distância, rindo de nós ou chorando por nós; precisamos descobrir o heróie também o toloque há em nossa paixão do conhecimento, precisamos nos alegrar com a nossa estupidez de vez em quando, para poder continuar nos alegrando com a nossa sabedoria! E justamente por sermos, no fundo, homens pesados e sérios, e antes pesos do que homens, nada nos faz tanto bem como o chapéu do bobo: necessitamos dele diante de nós mesmos — necessitamos de toda arte exuberante, flutuante, dançante, zombeteira, infantil e venturosa, para não perdermos a liberdade de pairar acima das coisas, que o nosso ideal exige de nós. Seria para nós um retrocessocair totalmente na moral, justamente com a nossa suscetível retidão, e, por causa das severas exigências que aí fazemos a nós mesmos, tornarmo-nos virtuosos monstros e espantalhos. Devemos também poder ficar acimada moral: e não só ficar em pé, com a angustiada rigidez de quem receia escorregar e cair a todo instante, mas também flutuar e brincar acima dela! Como poderíamos então nos privar da arte, assim como do tolo? — E, enquanto vocês tiverem alguma vergonhade si mesmos, não serão ainda um de nós! |
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LIVRO III |
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Novas lutas. — Depois que Buda morreu, sua sombra ainda foi mostrada numa caverna durante séculos — uma sombra imensa e terrível. Deus está morto; mas, tal como são os homens, durante séculos ainda haverá cavernas em que sua sombra será mostrada. — Quanto a nós — nós teremos que vencer também a sua sombra! |
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Guardemo-nos! — Guardemo-nos de pensar que o mundo é um ser vivo. Para onde iria ele expandir-se? De que se alimentaria? Como poderia crescer e multiplicar-se? Sabemos aproximadamente o que é o orgânico; e o que há de indizivelmente derivado, tardio, raro, acidental, que percebemos somente na crosta da terra, deveríamos reinterpretá-lo como algo essencial, universal, eterno, como fazem os que chamam o universo de organismo? Isso me repugna. Guardemo-nos de crer também que o universo é uma máquina; certamente não foi construído com um objetivo, e usando a palavra “máquina” lhe conferimos demasiada honra. Guardemo-nos de pressupor absolutamente e em toda parte uma coisa tão bem realizada como os movimentos cíclicos dos nossos astros vizinhos; um olhar sobre a Via Láctea já nos leva a perguntar se lá não existem movimentos bem mais rudimentares e contraditórios, assim como astros de trajetória sempre retilínea e outras coisas semelhantes. A ordem astral em que vivemos é uma exceção; essa ordem e a considerável duração por ela determinada tornaram possível a exceção entre as exceções: a formação do elemento orgânico. O caráter geral do mundo, no entanto, é caos por toda a eternidade, não no sentido de ausência de necessidade, mas de ausência de ordem, divisão, forma, beleza, sabedoria e como quer que se chamem nossos antropomorfismos estéticos. Julgados a partir de nossa razão, os lances infelizes são a regra geral, as exceções não são o objetivo secreto e todo o aparelho repete sempre a sua toada, que não pode ser chamada de melodia — e, afinal, mesmo a expressão “lance infeliz” já é uma antropomorfização que implica uma censura. Mas como poderíamos nós censurar ou louvar o universo? Guardemo-nos de atribuir-lhe insensibilidade e falta de razão, ou o oposto disso; ele não é perfeito nem belo, nem nobre, e não quer tornar-se nada disso, ele absolutamente não procura imitar o homem! Ele não é absolutamente tocado por nenhum de nossos juízos estéticos e morais! Tampouco tem impulso de autoconservação, ou qualquer impulso; e também não conhece leis. Guardemo-nos de dizer que há leis na natureza. Há apenas necessidades: não há ninguém que comande, ninguém que obedeça, ninguém que transgrida. Quando vocês souberem que não há propósitos, saberão também que não há acaso: pois apenas em relação a um mundo de propósitos tem sentido a palavra “acaso”. Guardemo-nos de dizer que a morte se opõe à vida. O que está vivo é apenas uma variedade daquilo que está morto, e uma variedade bastante rara. — Guardemo-nos de pensar que o mundo cria eternamente o novo. Não há substâncias que duram eternamente; a matéria é um erro tal como o deus dos eleatas. Mas quando deixaremos nossa cautela e nossa guarda? Quando é que todas essas sombras de Deus não nos obscurecerão mais a vista? Quando teremos desdivinizado completamente a natureza? Quando poderemos começar a naturalizaros seres humanos com uma pura natureza, de nova maneira descoberta e redimida? |
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Origem do conhecimento. — Durante enormes intervalos de tempo, o intelecto nada produziu senão erros; alguns deles se revelaram úteis e ajudaram a conservar a espécie: quem com eles deparou, ou os recebeu como herança, foi mais feliz na luta por si e por sua prole. Esses equivocados artigos de fé, que foram continuamente herdados, até se tornarem quase patrimônio fundamental da espécie humana, são os seguintes, por exemplo: que existem coisas duráveis, que existem coisas iguais, que existem coisas, matérias, corpos, que uma coisa é aquilo que parece; que nosso querer é livre, que o que é bom para mim também é bom em si. Somente muito depois surgiram os negadores e questionadores de tais proposições — somente muito depois apareceu a verdade, como a mais fraca forma de conhecimento. Parecia que não éramos capazes de viver com ela, que nosso organismo estava ajustado para o oposto dela; todas as suas funções mais elevadas, as percepções dos sentidos e todo tipo de sensação trabalhavam com aqueles erros fundamentais, há muito incorporados. Mais ainda: essas proposições tornaram-se, mesmo no interior do conhecimento, as normas segundo as quais se media o que era “verdadeiro” e “falso” — até nas mais remotas regiões da pura lógica. Portanto, a forçado conhecimento não está no seu grau de verdade, mas na sua antiguidade, no seu grau de incorporação, em seu caráter de condição para a vida. Quando viver e conhecer pareciam entrar em contradição, nunca houve sérias lutas; a negação e a dúvida eram consideradas loucura. Os pensadores de exceção, tais como os eleatas, que apesar de tudo estabeleceram e se ativeram aos opostos dos erros naturais, acreditavam ser possível também vivero que era oposto: eles inventaram o sábio como o homem da intuição imutável, impessoal e universal, como sendo Um e Tudo ao mesmo tempo, com uma faculdade sua para aquele conhecimento invertido; eles criam que o seu conhecimento era igualmente o princípio da vida. Para poder afirmar tudo isso, no entanto, eles tiveram de se enganara respeito de sua própria condição: tiveram de falsamente atribuir-se impessoalidade e duração sem mudança, de compreender mal a natureza do homem do conhecimento, negar a força dos impulsos no conhecimento e, em geral, apreender a razão como atividade inteiramente livre, de si mesma originada; eles fecharam os olhos para o fato de que também eles haviam chegado a suas proposições contradizendo o que era tido por válido, ou ansiando por tranquilidade, posse exclusiva ou dominação. O desenvolvimento mais sutil da retidão e do ceticismo acabou por impossibilitar também esses homens; também suas vidas e seus juízos revelaram-se dependentes dos antiquíssimos impulsos e erros fundamentais de toda existência sensível. — Esta mais sutil retidão e atitude cética surgiu sempre que duas proposições opostas pareceram aplicáveis à vida, por serem ambas compatíveis com os erros fundamentais, isto é, sempre que se pôde discutir o maior ou menor grau de utilidadepara a vida; e igualmente quando novas proposições não se mostraram úteis, mas tampouco prejudiciais à vida, enquanto manifestações de um lúdico impulso intelectual, inocentes e felizes como tudo aquilo que é lúdico. Gradualmente o cérebro humano foi preenchido por tais juízos e convicções, e nesse novelo produziu-se fermentação, luta e ânsia de poder. Não somente utilidade e prazer, mas todo gênero de impulsos tomou partido na luta pelas “verdades”; a luta intelectual tornou-se ocupação, atrativo, dever, profissão, dignidade —: o conhecimento e a busca do verdadeiro finalmente se incluíram, como necessidade, entre as necessidades. A partir daí, não apenas a fé e a convicção, mas também o escrutínio, a negação, a desconfiança, a contradição tornaram-se um poder, todos os instintos “maus” foram subordinados ao conhecimento e postos ao seu serviço, e ganharam o brilho do que é permitido, útil, honrado e, enfim, o olhar e a inocência do que é bom. O conhecimento se tornou então parte da vida mesma e, enquanto vida, um poder em contínuo crescimento: até que os conhecimentos e os antiquíssimos erros fundamentais acabaram por se chocar, os dois sendo vida, os dois sendo poder, os dois no mesmo homem. O pensador: eis agora o ser no qual o impulso para a verdade e os erros conservadores da vida travam sua primeira luta, depois que também o impulso à verdade provou ser um poder conservador da vida. Ante a importância dessa luta, todo o resto é indiferente: a derradeira questão sobre as condições da vida é colocada, e faz-se a primeira tentativa de responder a essa questão com o experimento. Até que ponto a verdade suporta ser incorporada? — eis a questão, eis o experimento. |
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Origem do lógico. — De onde surgiu a lógica na mente humana? Certamente do ilógico, cujo domínio deve ter sido enorme no princípio. Mas incontáveis outros seres, que inferiam de maneira diversa da que agora inferimos, desapareceram: e é possível que ela fosse mais verdadeira! Quem, por exemplo, não soubesse distinguir com bastante frequência o “igual”, no tocante à alimentação ou aos animais que lhe eram hostis, isto é, quem subsumisse muito lentamente, fosse demasiado cauteloso na subsunção, tinha menos probabilidades de sobrevivência do que aquele que logo descobrisse igualdade em tudo o que era semelhante. Mas a tendência predominante de tratar o que é semelhante como igual — uma tendência ilógica, pois nada é realmente igual — foi o que criou todo fundamento para a lógica. Do mesmo modo, para que surgisse o conceito de substância, que é indispensável para a lógica, embora, no sentido mais rigoroso, nada lhe corresponda de real — por muito tempo foi preciso que o que há de mutável nas coisas não fosse visto nem sentido; os seres que não viam exatamente tinham vantagem sobre aqueles que viam tudo “em fluxo”. Todo elevado grau de cautela ao inferir, toda propensão cética, já constitui em si um grande perigo para a vida. Nenhum ser vivo teria se conservado, caso a tendência oposta de afirmar antes que adiar o julgamento, de errar e inventar antes que aguardar, de assentir antes que negar, de julgar antes que ser justo — não tivesse sido cultivada com extraordinária força. — O curso dos pensamentos e inferências lógicas, em nosso cérebro atual, corresponde a um processo e uma luta entre impulsos que, tomados separadamente, são todos muito ilógicos e injustos; habitualmente experimentamos apenas o resultado da luta: tão rápido e tão oculto opera hoje em nós esse antigo mecanismo. |
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Causa e efeito. — “Explicação”, dizemos; mas é “descrição” o que nos distingue de estágios anteriores do conhecimento e da ciência. Nós descrevemos melhor — e explicamos tão pouco quanto aqueles que nos precederam. Descobrimos múltiplas sucessões, ali onde o homem e pesquisador ingênuo de culturas anteriores via apenas duas coisas, “causa” e “efeito”, como se diz; aperfeiçoamos a imagem do devir, mas não fomos além dessa imagem, não vimos o que há por trás dela. Em cada caso, a série de “causas” se apresenta muito mais completa diante de nós, e podemos inferir: tal e tal coisa têm de suceder antes, para que venha essa outra — mas nada compreendemoscom isso. Em todo devir químico, por exemplo, a qualidade aparece como um “milagre”, agora como antes, e assim também todo deslocamento; ninguém “explicou” o empurrão. E como poderíamos explicar? Operamos somente com coisas que não existem, com linhas, superfícies, corpos, átomos, tempos divisíveis, espaços divisíveis — como pode ser possível a explicação, se primeiro tornamos tudo imagem, nossa imagem! Basta considerar a ciência a humanização mais fiel possível das coisas, aprendemos a nos descrever de modo cada vez mais preciso, ao descrever as coisas e sua sucessão. Causa e efeito: essa dualidade não existe provavelmente jamais — na verdade, temos diante de nós um continuum, do qual isolamos algumas partes; assim como percebemos um movimento apenas como pontos isolados, isto é, não o vemos propriamente, mas o inferimos. A forma súbita com que muitos efeitos se destacam nos confunde; mas é uma subitaneidade que existe apenas para nós. Neste segundo de subitaneidade há um número infindável de processos que nos escapam. Um intelecto que visse causa e efeito como continuum, e não, à nossa maneira, como arbitrário esfacelamento e divisão, que enxergasse o fluxo do acontecer — rejeitaria a noção de causa e efeito e negaria qualquer condicionalidade. |
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A teoria dos venenos. — Tantas coisas têm de se reunir, para que surja um pensamento científico; e cada uma destas forças necessárias tem de ser isoladamente inventada, treinada, cultivada! Mas no isolamento elas produziam efeito bem diverso do que passam a ter no interior do pensamento científico, no qual se restringem e disciplinam mutuamente: — elas atuavam como venenos, por exemplo, o impulso de duvidar, o impulso de negar, o de aguardar, o de juntar, de dissolver. Muitas hecatombes humanas ocorreram, até esses impulsos chegarem a apreender sua coexistência e a sentir que eram todos funções de uma força organizadora dentro de um ser humano! E como ainda está longe o tempo em que as forças artísticas e a sabedoria prática da vida se juntarão ao pensamento científico, em que se formará um sistema orgânico mais elevado, em relação ao qual o erudito, o médico, o artista e o legislador, tal como agora os conhecemos, pareceriam pobres antiguidades! |
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Até onde vai a esfera moral. — Ao vermos uma nova imagem, imediatamente a construímos com ajuda de todas as experiências que tivemos, conforme o graude nossa retidão e equidade. Não existem vivências que não sejam morais, mesmo no âmbito da percepção sensível. |
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Os quatro erros. — O homem foi educado por seus erros: primeiro, ele sempre se viu apenas de modo incompleto; segundo, atribuiu-se características inventadas; terceiro, colocou-se numa falsa hierarquia, em relação aos animais e à natureza; quarto, inventou sempre novas tábuas de bens, vendo-as como eternas e absolutas por um certo tempo, de modo que ora este ora aquele impulso e estado humano se achou em primeiro lugar, e foi enobrecido em consequência de tal avaliação. Excluindo o efeito desses quatro erros, exclui-se também humanidade, humanismo e “dignidade humana”. |
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Instinto de rebanho. — Onde quer que deparemos com uma moral, encontramos uma avaliação e hierarquização dos impulsos e atos humanos. Tais avaliações e hierarquizações sempre constituem expressão das necessidades de uma comunidade, de um rebanho: aquilo que beneficia esteem primeiro lugar — e em segundo e terceiro — é igualmente o critério máximo quanto ao valor de cada indivíduo. Com a moral o indivíduo é levado a ser função do rebanho e a se conferir valor apenas enquanto função. Dado que as condições para a preservação de uma comunidade eram muito diferentes daquelas de uma outra comunidade, houve morais bastante diferentes; e, tendo em vista futuras remodelações essenciais dos rebanhos e comunidades, pode-se profetizar que ainda aparecerão morais muito divergentes. Moralidade é o instinto de rebanho no indivíduo. |
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Remorso de rebanho. — Nos tempos mais longos e mais remotos da humanidade, o remorso era inteiramente diverso do que é hoje. Hoje em dia alguém se sente responsável tão só por aquilo que quer e faz, e tem orgulho de si mesmo: todos os nossos mestres do direito partem desse amor-próprio e prazer consigo de cada indivíduo, como se desde sempre se originasse daí a fonte do direito. Durante o mais longo período da humanidade, no entanto, não havia nada mais aterrador do que sentir-se particular. Estar só, sentir particularmente, não obedecer nem mandar, ter significado como indivíduo — naquele tempo isso não era um prazer, mas um castigo; a pessoa era condenada a “ser indivíduo”. A liberdade de pensamento era o mal-estar em si. Enquanto nós sentimos a lei e a integração como coerção e perda, sentia-se o egoísmo como algo doloroso, como verdadeira desgraça. Ser si próprio, estimar-se conforme uma medida e um peso próprios — era algo que ofendia o gosto. Um pendor para isso era tido por loucura; pois à solidão estavam associados toda miséria e todo medo. Naquele tempo, o “livre-arbítrio” era vizinho imediato da má consciência: e quanto mais se agia de forma não livre, quanto mais transparecia no ato o instinto de rebanho, em vez do senso pessoal, tanto mais moral a pessoa se avaliava. Tudo o que prejudicava o rebanho, seja que o indivíduo o tivesse desejado ou não, dava remorsos ao indivíduo — e também a seu vizinho, e mesmo ao rebanho todo! — Foi nisso, mais do que tudo, que nós mudamos. |
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Benevolência. — É virtuoso que uma célula se transforme numa função de outra célula mais forte? Ela tem de fazê-lo. E é mau que a mais forte a assimile? Ela tem de fazê-lo também; é necessário que o faça, pois procura abundante substituição e quer regenerar-se. Portanto, deve-se distinguir, na benevolência, entre o impulso de apropriação e o impulso de submissão, conforme ela seja sentida pelo mais forte ou pelo mais fraco. Alegria e desejo coexistem no mais forte, que quer transformar algo em função sua; alegria e vontade de ser desejado, no mais fraco, que gostaria de tornar-se função. — Compaixão é essencialmente do primeiro tipo, um agradável movimento do impulso de apropriação, à vista do mais fraco; havendo ainda a considerar que “forte” e “fraco” são conceitos relativos. |
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Nenhum altruísmo! — Vejo em muitas pessoas uma força e uma vontade extremas de serem função; elas têm um faro apuradíssimo para todas as posições em que justamente elas podem ser função, e para lá se dirigem. Aí se incluem as mulheres que se transformam na função de um homem que nele era pouco desenvolvida, e dessa maneira se tornam a sua bolsa de dinheiro, a sua política ou sua sociabilidade. Tais naturezas se conservam melhor quando se aninham num outro organismo; não conseguindo fazê-lo, ficam aborrecidas, irritadas, e devoram a si mesmas. |
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A saúde da alma. — A apreciada fórmula de medicina moral (cujo autor é Ariston de Quios), “A virtude é a saúde da alma” — deveria ser modificada, para se tornar utilizável, ao menos assim: “Sua virtude é a saúde de sua alma”. Pois não existe uma saúde em si, e todas as tentativas de definir tal coisa fracassaram miseravelmente. Depende do seu objetivo, do seu horizonte, de suas forças, de seus impulsos, seus erros e, sobretudo, dos ideais e fantasias de sua alma, determinar o quedeve significar saúde também para seu corpo. Assim, há inúmeras saúdes do corpo; e quanto mais deixarmos que o indivíduo particular e incomparável erga a sua cabeça, quanto mais esquecermos o dogma da “igualdade dos homens”, tanto mais nossos médicos terão de abandonar o conceito de uma saúde normal, juntamente com dieta normal e curso normal da doença. E apenas então chegaria o tempo de refletir sobre saúde e doença da alma, e de situar a característica virtude de cada um na saúde desta: que numa pessoa, é verdade, poderia parecer o contrário da saúde de uma outra. Enfim, permaneceria aberta a grande questão de saber se podemos prescindir da doença, até para o desenvolvimento de nossa virtude, e se a nossa avidez de conhecimento e autoconhecimento não necessitaria tanto da alma doente quanto da sadia; em suma, se a exclusiva vontade de saúde não seria um preconceito, uma covardia e talvez um quê de refinado barbarismo e retrocesso. |
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A vida não é argumento. — Ajustamos para nós um mundo em que podemos viver — supondo corpos, linhas, superfícies, causas e efeitos, movimento e repouso, forma e conteúdo: sem esses artigos de fé, ninguém suportaria hoje viver! Mas isto não significa que eles estejam provados. A vida não é argumento; entre as condições para a vida poderia estar o erro. |
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O ceticismo moral no cristianismo. — Também o cristianismo deu uma grande contribuição ao Iluminismo: ele ensinou de forma penetrante e eficaz o ceticismo moral: acusando, amargurando, mas com infatigável paciência e sutileza; ele aniquilou em cada ser humano a crença em suas “virtudes”: fez desaparecer para sempre os grandes modelos de virtude, que não eram poucos na Antiguidade — aqueles homens populares que, crendo em sua própria perfeição, circulavam com a dignidade de um herói das touradas. Quando agora lemos, educados nessa escola cristã do ceticismo, as obras morais dos antigos, as de Sêneca e Epiteto, por exemplo, experimentamos uma divertida superioridade e temos secretos relances e vislumbres, é como se ouvíssemos uma criança a discorrer perante um velho, ou uma jovem e entusiástica beldade ante um La Rochefoucauld: temos mais conhecimento do que é virtude! Enfim, porém, aplicamos o mesmo ceticismo a todos os estados e processos religiosos, como pecado, arrependimento, graça, santidade, e deixamos o verme escavar tão bem, que agora temos, na leitura de todo livro cristão, o mesmo sentimento de fina superioridade e compreensão: também os sentimentos religiosos nós conhecemos melhor! E é tempo de conhecê-los e descrevê-los bem, pois os devotos da velha fé também se acham em extinção: — salvemos a sua imagem e o seu tipo, ao menos em prol do conhecimento! |
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O conhecimento sendo mais que um meio. — Mesmo sem esta nova paixão — refiro-me à paixão do conhecimento —, a ciência seria fomentada: até agora a ciência cresceu e se desenvolveu sem ela. A boa fé na ciência, o preconceito a seu favor, que hoje predomina em nossos Estados (até na Igreja, antes), no fundo baseia-se no fato de que esse incondicional ímpeto e pendor manifestou-se raramente nela, e de que justamente a ciência não é considerada uma paixão, mas um estado e um ethos. Com frequência basta o amour-plaisir [amor-prazer] do conhecimento (a curiosidade), basta o amour-vanité [amor-vaidade],[45] habituar-se a ela com a segunda intenção de dinheiro e honrarias, e para muitos basta não saberem o que fazer com o ócio em demasia, exceto ler, colecionar, ordenar, observar, continuar relatando; o seu “impulso científico” é o seu tédio. Certa vez o papa Leão X(no Breve a Beroaldo) fez o elogio da ciência: chamou-a de mais belo ornamento e orgulho maior da nossa vida, de nobre ocupação na felicidade e na miséria; “sem ela”, diz ele por fim, “toda empresa humana careceria de apoio sólido — e mesmo com ela tudo é ainda instável e inseguro!”. Mas esse papa toleravelmente cético não pronuncia, como os demais louvadores eclesiásticos da ciência, o seu julgamento final sobre ela. De suas palavras é possível depreender, o que já é singular para um tal amigo das artes, que ele põe a ciência acima da arte; enfim, porém, é apenas amabilidade ele não mencionar aí o que põe bem acima de toda ciência: a “verdade revelada” e a “eterna salvação da alma” — comparados a isso, o que são ornamento, orgulho, distração, segurança de vida! “A ciência é algo de segunda ordem, nada de derradeiro e absoluto, nenhum objeto de paixão” — este julgamento Leão Xguardou em sua alma: o juízo propriamente cristão acerca da ciência! Na Antiguidade, a sua dignidade e seu reconhecimento eram diminuídos pelo fato de mesmo os seus mais fervorosos discípulos darem primazia à busca da virtude, e de que já se acreditava ter feito o mais alto elogio da ciência, ao festejá-la como o melhor meio para alcançar a virtude. Há algo novo na história, quando o conhecimento quer ser mais do que um meio. |
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No horizonte do infinito. — Deixamos a terra firme e embarcamos! Queimamos a ponte — mais ainda, cortamos todo laço com a terra que ficou para trás! Agora tenha cautela, pequeno barco! Junto a você está o oceano, é verdade que ele nem sempre ruge, e às vezes se estende como seda e ouro e devaneio de bondade. Mas virão momentos em que você perceberá que ele é infinito e que não há coisa mais terrível que a infinitude. Oh, pobre pássaro que se sentiu livre e agora se bate nas paredes dessa gaiola! Ai de você, se for acometido de saudade da terra, como se lá tivesse havido mais liberdade— e já não existe mais “terra”! |
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O homem louco. — Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!”? — E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? disse um outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? — gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós o matamos — vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e ‘embaixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? — também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais — quem nos limpará este sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve um ato maior — e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até então!” Nesse momento silenciou o homem louco, e novamente olhou para seus ouvintes: também eles ficaram em silêncio, olhando espantados para ele. “Eu venho cedo demais”, disse então, “não é ainda meu tempo. Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda lhes é mais distante que a mais longínqua constelação — e no entanto eles o cometeram!” — Conta-se também que no mesmo dia o homem louco irrompeu em várias igrejas, e em cada uma entoou o seu Requiem aeternam deo. Levado para fora e interrogado, limitava-se a responder: “O que são ainda essas igrejas, se não os mausoléus e túmulos de Deus?”. |
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Explicações místicas. — As explicações místicas são tidas por profundas; na verdade, elas não chegam a ser superficiais. |
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Efeito posterior da antiga religiosidade. — Todo homem irrefletido acha que somente a vontade é atuante; que querer é algo simples, puramente dado, não deduzível, em si mesmo inteligível. Está convencido de que quando faz algo, quando desfecha um golpe, por exemplo, é eleque golpeia, e que golpeou porque quisfazê-lo. Ele não nota problema algum aí, basta-lhe o sentimento da vontade, não apenas para a suposição de causa e efeito, mas também para a crença de compreendersua relação. Ele nada sabe a respeito do mecanismo do evento e do trabalho cem vezes sutil que tem de ser realizado para que se chegue ao golpe, nem da incapacidade da vontade mesma de fazer sequer uma parte mínima desse trabalho. Para ele, a vontade é uma força magicamente atuante: crer na vontade como causa de efeitos é crer em forças magicamente atuantes. Originalmente, toda vez que presenciou um evento o homem acreditou numa vontade como causa e em seres pessoais, donos de vontade, atuando no fundo — o conceito de mecânica lhe era muito distante. Mas, como por períodos enormes o homem acreditou somente em pessoas (e não em matérias, forças, coisas etc.), a crença em causa e efeito se tornou para ele a crença fundamental, que ele aplica toda vez que algo acontece — ainda hoje instintivamente, como um atavismo da mais remota origem. As teses de que “não há efeito sem causa”, “todo efeito é novamente causa”, aparecem como generalizações de teses muito mais estreitas: “Onde há atuação, houve vontade”, “Só é possível atuar sobre seres donos de vontade”, “Nunca se sofre puramente e sem consequência um efeito, sofrê-lo constitui sempre uma excitação da vontade” (para a ação, a defesa, a vingança, a represália) — entretanto, nos primórdios da humanidade estas e aquelas teses eram idênticas, as primeiras não eram generalizações das segundas, mas estas, elucidações das primeiras. — Ao supor que tudo existente não passa de algo querente, Schopenhauer alçou ao trono uma antiga mitologia; parece que ele nunca tentou analisar a vontade, pois acreditouna simplicidade e imediaticidade de todo querer, como fazem todos — quando o querer é um mecanismo tão bem treinado que quase escapa ao olhar observador. Em oposição a Schopenhauer ofereço as seguintes teses. Primeira: para que surja a vontade, é necessária antes uma ideia de prazer e desprazer. Segunda: o fato de um estímulo veemente ser sentido como prazer ou desprazer está ligado ao intelecto interpretante, que, é certo, em geral trabalha nisso de modo inconsciente para nós; e o mesmo estímulo pode ser interpretado como prazer ou desprazer. Terceira: apenas nos seres inteligentes há prazer, desprazer e vontade; a imensa maioria dos organismos não tem nada disso. |
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O valor da oração. — A oração foi inventada para aqueles que por si próprios nunca têm pensamentos, que ignoram o que seja elevação da alma ou a experimentam sem dela se darem conta: que farão eles em lugares santos e em todas as graves situações da vida, que requerem sossego e uma espécie de dignidade? Para que eles ao menos não perturbem, a sabedoria dos fundadores de religiões, das pequenas como das grandes, prescreveu-lhes a fórmula da oração, como um demorado trabalho mecânico dos lábios, associado a um esforço da memória e a uma mesma postura fixa para as mãos, os pés e os olhos! Pouco importa se eles, como os tibetanos, ruminam inumeráveis vezes “om mane padme hum”, ou, como em Benares, contam nos dedos os muitos nomes do deus Ram-Ram-Ram (e assim por diante, graciosamente ou não); ou se exaltam Vishnu com seus mil nomes, ou Alá com seus noventa e nove; ou se utilizam moinhos de orações ou rosários — o principal é que com esse trabalho permaneçam algum tempo imóveis e ofereçam uma visão tolerável: seu gênero de oração foi inventado para o benefício dos devotos que conhecem por si próprios elevações e pensamentos. E mesmo esses têm suas horas de cansaço, em que lhes faz bem uma série de palavras e sons veneráveis e piedosos gestos mecânicos. Mas, supondo que esses homens raros — em toda religião, o homem religioso é a exceção — sempre saibam o que fazer: aqueles pobres de espírito nunca sabem, e proibir-lhes o matraquear das orações significa tirar-lhes a religião: como revela cada vez mais o protestantismo. Deles a religião quer apenas que fiquem sossegados, com os olhos, as mãos, as pernas e outros órgãos: assim tornam-se mais belos por algum tempo e — mais semelhantes a seres humanos! |
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As condições para Deus. — “Deus mesmo não pode existir sem homens sábios” — disse Lutero com boa razão; mas “Deus não pode existir tampouco sem homens tolos” — isso o bom Lutero não chegou a dizer! |
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Uma decisão perigosa. — A decisão cristã de achar o mundo feio e ruim tornou o mundo feio e ruim. |
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O cristianismo e o suicídio. — O cristianismo fez da enorme ânsia de suicídio, que havia no tempo em que nasceu, uma alavanca para o seu poder: deixou apenas duas formas de suicídio, revestiu-as de suprema dignidade e elevadas esperanças, e proibiu de forma terrível todas as demais. Mas foram permitidos o martírio e o prolongado autoaniquilamento físico dos ascetas. |
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Contra o cristianismo. — Agora é o nosso gosto que decide contra o cristianismo, não mais as nossas razões. |
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Princípio. — Uma hipótese inevitável, a que a humanidade tem de retornar sempre, é mais poderosa, a longo prazo, do que a mais firme crença numa inverdade (a crença cristã, por exemplo). “A longo prazo” significa, neste caso, cem mil anos. |
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Os pessimistas como vítimas. — Sempre que um desgosto profundo de existir se torna preponderante, são os efeitos posteriores de um grande erro de dieta, cometido por um povo num longo período de tempo, que estão vindo à luz. Assim, a difusão do budismo (não a sua gênese) ligou-se em boa parte ao consumo demasiado e quase exclusivo de arroz pelos indianos, e à lassidão generalizada que disso resultou. Talvez a moderna insatisfação europeia se deva a que o mundo que nos precedeu, toda a Idade Média, era dado à bebida, graças à influência dos gostos germânicos na Europa: a Idade Média foi o envenenamento da Europa pelo álcool. — O desgosto alemão com a vida é essencialmente uma doença de inverno, agravada pelos efeitos do ar das adegas e das venenosas emanações dos fornos nos lares alemães. |
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Origem do pecado. — O pecado, tal como é hoje sentido, em toda parte onde o cristianismo domina ou já dominou, é um sentimento judaico e uma invenção judaica; e, tendo em vista esse pano de fundo de toda a moralidade cristã, o cristianismo pretendeu, realmente, “judaizar” o mundo inteiro. Até que ponto ele conseguiu fazê-lo na Europa, percebe-se muito bem no grau de estranheza que a Antiguidade grega — um mundo sem sentimento de pecado — ainda tem para a nossa sensibilidade, apesar de toda a vontade de aproximação e assimilação que não faltou a gerações inteiras e a muitos excelentes indivíduos. “Apenas quando você se arrependeDeus lhe mostra sua graça” — isto seria, para um grego, motivo de risada e irritação; ele diria: “Escravos talvez pensem dessa forma”. Aí se pressupõe um ente poderoso, mais que poderoso, e no entanto vingativo: seu poder é tamanho, que nada lhe pode causar dano, exceto em sua honra. Todo pecado é uma ofensa ao respeito, um crimen laesae majestatis divinae [crime de lesa-majestade divina], e nada além disso! Contrição, aviltamento, espojamento no pó — esta é a primeira e a derradeira condição para a sua graça: a reparação de sua divina honra! Se o pecado produz outros danos, se com ele plantou-se uma profunda e crescente desgraça, que atinge e estrangula um homem após o outro, como uma doença — isto não preocupa esse oriental ávido de honras que habita no céu: o pecado é uma ofensa a ele, não à humanidade! — a quem foi concedida sua graça também foi contemplado com esta indiferença ante as naturais consequências do pecado. Deus e humanidade acham-se aí tão separados, concebidos em tal oposição, que no fundo é impossível pecar contra ela — todo ato deve ser examinado apenasem vista de suas consequências sobrenaturais, não daquelas naturais: assim requer a sensibilidade judia, para a qual o que seja natural é a indignidade em si. Já os gregosestavam mais próximos da noção de que também o delito pode ser digno — até o roubo, como no caso de Prometeu, até a matança de gado como expressão de uma louca inveja, como fez Ájax: em sua necessidade de atribuir e incorporar dignidade ao delito, os gregos inventaram a tragédia— uma arte e um prazer a que os judeus permaneceram profundamente alheios, apesar de todo o seu dom poético e pendor para o sublime. |
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O povo eleito. — Os judeus, que se sentiam o povo eleito entre os povos, e isto por serem o gênio moral entre os povos (devido à capacidade de terem desprezado mais profundamenteo ser humano em si que qualquer outro povo) — os judeus têm, com o seu divino monarca e santo, um prazer semelhante ao que a aristocracia francesa tinha com Luís XIV. Essa aristocracia fora despojada de todo o seu poder e soberania e tornara-se desprezível: para não sentir isso, para poder esquecer isso, foi necessário um esplendor real, uma autoridade e plenitude de poder real incomparáveis, a que somente a aristocracia tinha acesso. Elevando-se ao cume da corte, em virtude desse privilégio, e de lá observando tudo abaixo de si, tudo achando desprezível, superava-se toda irritação da consciência. Desse modo ergueu-se deliberadamente a torre do poder real, cada vez mais alta e até às nuvens, colocando-se nela as últimas pedras de seu próprio poder. |
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Falando por imagem. — Um Jesus Cristo era possível somente numa paisagem judia — quero dizer, numa em que pairasse continuamente a sombria e sublime nuvem da ira de Jeová. Somente aí o súbito e raro cintilar de um raio de sol, através da horrenda e contínua noite-dia universal, pôde ser visto como um milagre do “amor”, como o raio da “graça” não merecida. Somente aí Jesus pôde sonhar com seu arco-íris e a escada celestial em que Deus descia até os homens; em todos os outros lugares, o tempo claro e a luz do sol eram tidos como normais e cotidianos. |
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O erro de Cristo. — O fundador do cristianismo achava que nada fazia os homens sofrerem mais do que seus pecados: — foi seu erro, o erro de quem se sentia isento de pecado, a quem faltava nisso experiência! E sua alma ficou plena dessa maravilhosa e fantástica compaixão por uma miséria que mesmo seu povo, o inventor do pecado, raramente considerava uma grande miséria! — Mas os cristãos souberam justificar seu mestre posteriormente e santificar seu erro, tornando-o “verdade” |
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A cor das paixões. — Naturezas como a do apóstolo Paulo não veem com bons olhos as paixões; delas conhecem apenas o que é sujo, deformador e lancinante — daí a sua tendência idealista visar a destruição das paixões: veem no que é divino a completa purificação delas. De modo bem diferente de Paulo e dos judeus, os gregos dirigiram a sua tendência idealista justamente para as paixões e as amaram, elevaram, douraram e divinizaram; evidentemente, com as paixões eles sentiam-se não apenas mais felizes, mas também mais puros e mais divinos. — E os cristãos? Queriam eles tornar-se judeus nesse ponto? Terão se tornado? |
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Demasiado judeu. — Se Deus queria tornar-se objeto de amor, tinha primeiramente que desistir de julgar e fazer justiça: — um juiz, mesmo um juiz clemente, nunca é objeto de amor. Neste ponto, o fundador do cristianismo não teve sensibilidade bastante refinada — como judeu. |
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Demasiado oriental. — Como? Um deus que ama os homens, desde que acreditem nele, e que lança olhares e ameaças terríveis a quem não crê nesse amor? Como? Um amor com cláusulas é o sentimento de um Deus todo-poderoso? Um amor que sequer triunfou do senso da honra e da irascível sede de vingança? Como é oriental tudo isso! “Que te interessa, se te amo?” já é uma crítica suficiente de todo o cristianismo.[46] |
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Fumigação. — Buda afirmou: “Não adule o seu benfeitor!”.[47] Repita-se esta máxima numa igreja cristã: — imediatamente o ar ficará limpo de tudo o que seja cristão. |
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Grande vantagem do politeísmo. — Que o indivíduo estabelecesse seu próprio ideal e dele derivasse a sua lei, seus amigos e seus direitos — isso talvez fosse considerado, até então, o mais monstruoso dos equívocos humanos e a idolatria em si; de fato, os poucos que ousaram fazê-lo sempre necessitaram de uma apologia diante de si mesmos, exclamando habitualmente: “Não fui eu! Eu não! Foi um deusatravés de mim!”. Foi na maravilhosa arte e energia de criar deuses — o politeísmo — que esse impulso pôde se descarregar, que ele se purificou, se consumou e enobreceu: pois originalmente era um impulso vulgar e insignificante, ligado à teimosia, à desobediência e à inveja. Ser hostil a esse impulso para um ideal próprio: tal era, então, a lei de toda moralidade. Havia apenas uma norma: “o homem” — e cada povo acreditava possuir essa única e derradeira norma. Mas além de si e fora de si, num remoto sobremundo, era permitido enxergar uma pluralidade de normas: um deus não era a negação ou a blasfêmia contra um outro deus! Aí se admitiu, pela primeira vez, o luxo de haver indivíduos, aí se honrou, pela primeira vez, o direito dos indivíduos. A invenção de deuses, heróis e super-homens de toda espécie, e também de quase-homens e sub-homens,[48] de fadas, anões, sátiros, demônios e diabos, foi o inestimável exercício prévio para a justificação do amor-próprio e da soberania do indivíduo: a liberdade que se concedia a um deus, relativamente aos outros deuses, terminou por ser dada a si mesmo, em relação a leis, costumes e vizinhos. Já o monoteísmo, esse rígido corolário da doutrina de um só homem normal — a crença num só deus normal, além do qual há apenas falsos deuses enganadores —, foi talvez o maior perigo para a humanidade até então: ela foi ameaçada pela prematura estagnação que, tanto quanto podemos ver, a maioria das outras espécies animais atingiu há muito tempo; em que todos creem num só tipo normal e ideal em sua espécie, tendo definitivamente traduzido a moralidade dos costumes em sua carne e seu sangue. No politeísmo estava prefigurada a humana liberdade e variedade de pensamento:[49] a força de criar para si olhos novos e seus, sempre novos e cada vez mais seus; de modo que somente para o homem, entre todos os animais, não existem horizontes e perspectivas eternas. |
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Guerras de religião. — O maior progresso das massas, até o momento, foi a guerra de religião: pois ela mostra que a massa começou a tratar os conceitos com reverência. As guerras de religião surgem apenas quando as disputas mais sutis entre as seitas levam ao refinamento da razão geral; de modo que mesmo a plebe se torna sutil e toma a sério minúcias, chegando a considerar possível que a “eterna salvação da alma” dependa de mínimas diferenças nos conceitos. |
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145 |
Perigo dos vegetarianos. — Uma dieta em que prevalece enormemente o arroz leva à utilização de ópio e outros narcóticos, assim como uma dieta em que prevalece enormemente a batata leva ao aguardente —: mas também leva, num efeito posterior mais sutil, a maneiras de pensar e sentir que atuam como narcóticos. Isso condiz com o fato de que os promotores de maneiras narcóticas de pensar e sentir, como os mestres hindus, louvam um regime puramente vegetariano, que gostariam de transformar em lei para as massas: pretendem, assim, despertar e incrementar a necessidade que elespodem satisfazer. |
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Esperanças alemãs. — Não esqueçamos que os nomes dos povos são, habitualmente, nomes injuriosos. Os tártaros, por exemplo, são “os cachorros”, conforme seu nome: assim foram batizados pelos chineses. “Alemães” [“Deutschen”] significava originalmente “pagãos”: assim denominavam os godos, após a sua conversão, a grande massa das tribos-irmãs não batizadas, conforme sua tradução da Septuaginta, na qual os pagãos são designados com o vocábulo que em grego significa “os povos”: veja-se Úlfila.[50] — Ainda seria possível os alemães transformarem posteriormente seu velho nome injurioso em um nome honroso, ao se tornar o primeiro povo não cristãoda Europa: Schopenhauer creditou-lhes a honra de serem altamente dotados para isso. Desse modo se realizaria completamente a obra de Lutero, que ensinou-lhes a ser não romanos e a dizer: “Aqui estou eu! Não sei agir de outra forma!”.[51] |
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147 |
Pergunta e resposta. — O que os povos selvagens tomam primeiramente dos europeus? Aguardente e cristianismo, os narcóticos europeus. — E o que os leva mais rapidamente à ruína? — Os narcóticos europeus. |
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Onde surgem as reformas. — Na época da grande corrupção da Igreja, na Alemanha a Igreja era a menos corrompida: por causa disso a Reforma surgiu lá, como indício de que já o começo da corrupção era sentido como intolerável. Em termos relativos, não houve jamais um povo mais cristão do que os alemães do tempo de Lutero: a sua cultura cristã estava prestes a desabrochar num centuplicado esplendor — faltava apenas uma única noite; mas ela trouxe consigo o temporal que pôs fim a tudo. |
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Fracasso das reformas. — Depõe a favor da elevada cultura dos gregos, mesmo em tempos recuados, que muitas vezes fracassaram as tentativas de fundar novas religiões gregas; indica que já bem cedo deve ter havido na Grécia um grande número de indivíduos diversos, cujas diversas carências não podiam ser atendidas com uma receita única de fé e esperança. Pitágoras e Platão, talvez também Empédocles, e já muito antes os entusiastas dos cultos órficos, pretenderam fundar novas religiões; e os dois primeiros tiveram tão genuínas almas e aptidões de fundadores de religião, que é impossível não nos admirarmos do seu fracasso: mas eles chegaram apenas a seitas. Toda vez que fracassa a reforma de todo um povo e apenas seitas conseguem se afirmar, podemos inferir que o povo já é bastante diverso em si e começou a desprender-se dos rudes instintos de rebanho e da moralidade dos costumes: um significativo estado de suspensão, que habitualmente é denegrido como declínio de costumes e corrupção: quando, na realidade, anuncia a maturação do ovo e o iminente romper da casca. O fato de a Reforma de Lutero ter vingado no Norte é um indício de que, em relação ao Sul, o Norte da Europa era atrasado e ainda tinha necessidades uniformes e monocórdias; e não teria havido cristianização da Europa, se a antiga cultura do Sul, por uma excessiva mistura de bárbaro sangue germânico, não se tivesse gradualmente barbarizado e perdido a preponderância cultural. Quanto mais geral e absoluto é o efeito de um indivíduo ou de um pensamento individual, tanto mais homogênea e baixa deve ser a massa que sofre o efeito; ao passo que movimentos opostos revelam necessidades interiores opostas, que também procuram se satisfazer e se impor. Inversamente, pode-se inferir que uma cultura é realmente elevada, quando naturezas poderosas e dominadoras atingem apenas um efeito reduzido e sectário: o que vale igualmente para as artes diversas e os campos do conhecimento. Onde alguém domina, existem massas: onde existem massas, há uma necessidade de escravidão. Onde há escravidão, os indivíduos são em número pequeno, e têm contra si o instinto de rebanho e a consciência. |
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Crítica dos santos. — Para possuir uma virtude é preciso querer possuí-la justamente em sua forma mais brutal? — assim quiseram e requisitaram os santos cristãos; os quais suportavam a vida somente por pensarem que, vendo sua virtude, cada um seria tomado de desprezo por si mesmo. Mas uma virtude com tal efeito me parece brutal. |
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Da origem da religião. — A necessidade metafísica não constitui a origem das religiões, como quer Schopenhauer, mas apenas um rebento posteriordas mesmas. Sob o domínio de ideias religiosas, habituamo-nos à concepção de um “outro mundo” (atrás, abaixo, acima de nós) e sentimos, após o aniquilamento da ilusão religiosa, uma privação e um vazio incômodos — e desse sentimento brota mais uma vez um “outro mundo”, agora apenas metafísico, não mais religioso. No entanto, aquilo que nos tempos primitivos levou à suposição de um “outro mundo” não foi um impulso ou necessidade, mas um errona interpretação de determinados processos naturais, uma perplexidade do intelecto. |
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A maior mudança. — A iluminação e o colorido das coisas mudaram! Já não compreendemos totalmente como os antigos experimentavam o que era mais frequente e imediato — o dia e a vigília, por exemplo: desde que acreditavam nos sonhos, a vida desperta tinha outras luzes. E igualmente a vida inteira, com o reflexo da morte e de sua importância: a nossa “morte” é bastante diferente. Todas as vivências reluziam de outra forma, pois um deus brilhava através delas; e também todas as decisões e perspectivas quanto ao futuro remoto: pois as pessoas tinham oráculos e avisos secretos e acreditavam nas profecias. A “verdade” era experimentada de outra forma, já que o louco podia ser considerado o seu porta-voz — algo que hoje faz rir ou faz tremer a nós.Cada injustiça tinha outro efeito sobre o sentimento: pois se temia uma represália divina, não um castigo e uma desonra civis. O que era a alegria num tempo em que se cria nos diabos e tentadores? O que era a paixão, se demônios eram vistos à espreita? E a filosofia, se a dúvida era tida como o pecado da espécie mais perigosa, sacrilégio contra o amor eterno, desconfiança de tudo o que era bom, puro, elevado e misericordioso? — Demos novas cores às coisas, não deixamos de pintá-las continuamente — mas que pudemos fazer, até hoje, frente ao esplendor cromáticodessa antiga mestra! — a antiga humanidade, quero dizer. |
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Homo poeta. — “Eu mesmo, que fiz inteiramente só essa tragédia das tragédias, até onde ela possa estar pronta; eu, que primeiramente atei o nó da moral na existência, e depois o apertei de forma tal que somente um deus o poderá desatar — como exige Horácio![52] —, eu próprio matei agora todos os deuses no quarto ato — por moralidade! Que será agora do quinto ato? De onde tirarei a solução trágica? — Devo começar a imaginar uma solução cômica?” |
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Diferentes perigos da vida. — Vocês não sabem o que estão vivendo, correm como ébrios pela vida e de quando em quando caem por uma escada abaixo. Mas, devido à sua embriaguez, não quebram nisso os membros: seus músculos estão muito moles e sua cabeça muito obscurecida, para que achem as pedras dessa escada tão duras como nós achamos! Para nós a vida é mais perigosa: somos feitos de vidro — ai de nós, se esbarramos em algo! E tudo estará perdido se cairmos! |
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O que nos falta.— Nós amamos a grandenatureza e a descobrimos: é que em nossa cabeça faltam os grandes seres humanos. Inversamente com os gregos: o seu sentimento da natureza é diferente do nosso. |
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O mais influente. — O fato de um homem opor resistência a toda a sua época, retê-la no portão e exigir contas temde exercer influência! Pouco importa se ele quer fazê-lo; a questão é se pode. |
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Mentiri [Mentir]. — Atenção! — ele reflete: logo ele terá pronta uma mentira. Eis um estágio da cultura no qual povos inteiros estiveram. Basta considerar o que os romanos queriam dizer com mentiri![53] |
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Característica incômoda. — Achar todas as coisas profundas — eis uma característica incômoda: ela induz a pessoa a forçar constantemente os olhos, terminando por achar mais do que havia desejado. |
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Toda virtude tem seu tempo. — Para quem hoje é inflexível, a retidão causa frequentemente remorsos: pois a inflexibilidade é a virtude de um tempo diverso daquele da retidão. |
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Lidando com as virtudes. — Também com uma virtude é possível ser indigno e bajulador. |
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Aos que amam a época. — O padre que deixou a batina e o prisioneiro que foi libertado estão sempre compondo um rosto: o que desejam é um rosto sem passado. — Mas vocês já viram homens que sabem que o futuro é refletido em seu rosto e que, por gentileza para com vocês, amantes da “época”, compõem um rosto sem futuro? |
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162 |
O egoísmo. — O egoísmo é a lei da perspectiva no âmbito do sentimento, segundo a qual o que está próximo parece grande e pesado; e, à medida que se afastam, todas as coisas decrescem no tamanho e no peso. |
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Após uma grande vitória. — O melhor numa grande vitória é que ela tira ao vencedor o medo de uma derrota. “Por que não ser vencido uma vez?”, diz para si mesmo, “agora sou rico o bastante para isso.” |
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Os que procuram repouso. — Reconheço os espíritos que buscam repouso pelos muitos objetos escurosde que se rodeiam: quem quer dormir, torna seu quarto escuro ou entra numa caverna. — Uma indicação para aqueles que não sabem realmente o que mais buscam, e gostariam de sabê-lo! |
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Da felicidade de quem renuncia. — Quem se proíbe algo radicalmente e por longo tempo, quase achará que o descobriu, se com ele deparar casualmente — e que felicidade têm os descobridores! Sejamos mais espertos do que as serpentes, que ficam demasiado tempo sob o mesmo sol. |
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166 |
Sempre em nossa companhia. — Tudo o que me é afim, na natureza e na história, me fala, me louva, me impele para a frente, me consola; o resto eu não escuto, ou esqueço imediatamente. Estamos sempre em nossa própria companhia. |
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167 |
Misantropia e amor. — Diz-se estar cansado dos seres humanos apenas quando não se pode mais digeri-los, tendo o estômago cheio deles. A misantropia é consequência de um amor ávido demais pelos homens e de “canibalismo” — mas quem lhe falou para engolir homens como ostras, príncipe Hamlet? |
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168 |
De um enfermo. — “Ele está mal!” — Qual o problema? — “Ele sofre do apetite de ser louvado e não encontra alimento para isso.” — Incompreensível! Todos o homenageiam e o levam não apenas nos braços, mas também nos lábios! — “Sim, mas ele tem péssimo ouvido para o louvor. Se o louva um amigo, parece-lhe que este louva a si mesmo; se o louva um inimigo, parece-lhe que este quer ser louvado em troca; se, por fim, algum dos restantes o louva — e estes não são muitos, sendo ele tão famoso! —, sente-se ofendido de que não o queiram ter por amigo ou por inimigo; e costuma dizer: “Que me interessa quem é capaz de se fazer de justo comigo!”. |
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Inimigos declarados. — A valentia frente ao inimigo é uma coisa à parte: pode-se, ao mesmo tempo, ser um covarde e um atrapalhado indeciso. Foi este o juízo de Napoleão sobre “o homem mais valente” que conhecia, Murat: — de onde se segue que inimigos declarados são indispensáveis para muitos homens, caso eles devam se erguer à altura de sua própria virtude, de sua virilidade e jovialidade. |
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170 |
Com a multidão. — Até agora ele andou com a multidão e lhe cantou elogios: mas um dia ele será seu inimigo! Pois ele a acompanha na crença de que nela a sua preguiça tenha justificativa: ele ainda não percebeu que a multidão não é preguiçosa bastante para ele, que ela sempre empurra para adiante, que não permite a ninguém ficar parado! — E ele bem gosta de ficar parado! |
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171 |
Fama. — Quando a gratidão de muitos para com um se desfaz de todo pudor, surge então a fama. |
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172 |
O desmancha-prazeres. — A: “Você é um desmancha-prazeres, é o que dizem em toda parte!”. B: “Sem dúvida! Eu desmancho o prazer que cada um tem com o seu partido — o que nenhum partido me perdoa”. |
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173 |
Ser profundo e parecer profundo. — Quem sabe que é profundo, busca a clareza; quem deseja parecer profundo para a multidão, procura ser obscuro. Pois a multidão toma por profundo aquilo cujo fundo não vê: ela é medrosa, hesita em entrar na água. |
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174 |
À margem. — O parlamentarismo, ou seja, a pública permissão de escolher entre cinco opiniões políticas básicas, lisonjeia as muitas pessoas que de bom grado parecemautônomas e individuais e querem lutar por suas opiniões. Mas, afinal, é indiferente que ao rebanho seja imposta uma opinião ou sejam permitidas cinco opiniões. — Quem diverge das cinco públicas opiniões e fica à margem tem sempre o rebanho inteiro contra si. |
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175 |
Da eloquência. — Quem possuiu até agora a eloquência mais persuasiva? O rufo do tambor; e enquanto os reis o tiverem em seu poder, sempre serão os melhores oradores e incitadores do povo. |
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176 |
Compaixão. — Pobres príncipes reinantes! Agora todos os seus direitos se transformam inesperadamente em reivindicações, e estas logo parecerão presunções! E quando eles dizem “nós”, ou “meu povo”, a velha e maliciosa Europa já sorri. Realmente, um mestre de cerimônias moderno teria pouca cerimônia com eles; talvez decretasse apenas: “Les souverains rangent aux parvenus” [Os soberanos cedem lugar aos arrivistas]. |
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177 |
Contribuição ao “sistema educacional”. — Na Alemanha falta aos homens superiores um grande meio de educação: a risada dos homens superiores; estes não riem na Alemanha. |
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178 |
Contribuição à ilustração moral. — É preciso convencer os alemães a livrarem-se do seu Mefistófeles: e do seu Fausto também. São dois preconceitos morais contra o valor do conhecimento. |
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179 |
Pensamentos. — Pensamentos são as sombras dos nossos sentimentos — sempre mais obscuros, mais vazios, mais simples do que estes. |
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180 |
Bom tempo para os espíritos livres. — Os espíritos livres tomam suas liberdades até diante da ciência — e no momento elas lhes são permitidas, enquanto a Igreja ainda está de pé! — Nessa medida, este é um bom tempo para os espíritos livres. |
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181 |
Seguir e anteceder. — A: “Desses dois, um sempre seguirá atrás, o outro sempre andará na frente, aonde quer que o destino os leve. No entanto, o primeiro está acima do segundo, tanto na virtude como no espírito!”. B: “No entanto? Você fala para os outros; não para mim, não para nós! — Fit secundum regulam[Esta é a regra]”. |
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182 |
Na solidão. — Quando se vive só, não se fala muito alto, também não se escreve muito alto: pois teme-se a ressonância vazia — a crítica da ninfa Eco.[54] — E todas as vozes soam diferentes na solidão! |
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183 |
A música do melhor futuro. — O primeiro dos músicos, para mim, seria aquele que conhecesse apenas a tristeza da mais profunda felicidade, e nenhuma tristeza mais: um tal músico ainda não existiu. |
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184 |
Justiça. — Melhor se deixar roubar do que ter espantalhos ao seu redor — eis o meu gosto. E, em todas as circunstâncias, isso é questão de gosto — e nada mais! |
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185 |
Pobre. — Hoje ele é pobre; mas não porque lhe tiraram tudo, e sim porque jogou tudo fora — que lhe importa isso? Ele está habituado a encontrar. — Pobres são aqueles que não entendem a pobreza voluntária dele. |
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186 |
Má consciência. — Tudo o que ele faz agora é correto e está em ordem — mas ele tem má consciência. Pois sua tarefa é o extraordinário. |
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187 |
O ofensivo na apresentação. — Esse artista me ofende pela maneira como apresenta suas ideias, suas boas ideias: muito ampla e enfática, e com toscos artifícios de persuasão, como se falasse à plebe. Após dedicarmos algum tempo à sua arte, achamo-nos sempre “em má companhia”. |
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188 |
Trabalho. — Como o trabalho e o trabalhador se acham próximos até do mais ocioso entre nós atualmente! A cortesia real das palavras “Somos todos trabalhadores!” seria um cinismo e uma indecência ainda no tempo de Luís XIV. |
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189 |
O pensador. — Ele é um pensador: isto é, ele sabe como ver as coisas de modo mais simples do que são. |
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190 |
Contra os que elogiam. — A: “Somos elogiados apenas por nossos iguais!”. B: “Sim! E quem o elogia lhe diz: você é meu igual!”. |
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191 |
Contra algumas defesas. — A mais pérfida maneira de prejudicar uma causa é defendê-la intencionalmente com razões defeituosas. |
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192 |
Os de boa índole. — O que diferencia esses de boa índole, cujo rosto irradia benevolência, dos outros homens? Eles sentem-se bem na presença de outra pessoa e logo dela se enamoram; querem-lhe bem por isso, seu primeiro juízo é “Eu gosto dela”. Neles se sucedem o desejo de apropriação (sentem poucos escrúpulos quanto ao valor do outro), a rápida apropriação, a alegria com a posse e a ação em favor do possuído. |
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193 |
A pilhéria de Kant. — Kant quis demonstrar, de maneira chocante para “todo o mundo”, que “todo o mundo” tem razão — eis a secreta pilhéria[55] dessa alma. Ele escreveu contra os eruditos, em favor do preconceito do povo, mas para eruditos, não para o povo. |
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194 |
“De coração aberto.” — É provável que esse homem aja sempre por razões ocultas: pois ele tem sempre razões comunicáveis na ponta da língua e quase que na palma da mão. |
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195 |
Para rir! — Vejam! Vejam! Ele está correndo das pessoas; mas elas o seguem, porque ele corre adiante delas — de tal modo são rebanho! |
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196 |
Limites de nossa escuta. — Ouvimos apenas as questões para as quais somos capazes de encontrar resposta. |
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197 |
Por isso, cuidado! — Nada partilhamos de tão bom grado como o selo do sigilo — juntamente com o que está embaixo dele. |
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198 |
O dissabor do orgulhoso. — O orgulhoso tem seu desgosto até mesmo com os que o levam adiante: ele olha irritado para os cavalos de seu coche. |
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199 |
Liberalidade. — A liberalidade, entre os ricos, frequentemente não é mais que uma forma de timidez. |
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200 |
Rir. — Rir significa: ter alegria com o mal dos outros,[56] mas com boa consciência. |
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201 |
O aplauso. — No aplauso há sempre uma espécie de ruído: até no aplauso que tributamos a nós mesmos. |
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202 |
Um esbanjador. — Ele ainda não tem a pobreza do rico que já inventariou tudo o que possui — ele esbanja seu espírito com a insensatez da esbanjadora natureza. |
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203 |
Hic niger est [Esse é negro][57] — Em geral ele não tem pensamentos — mas excepcionalmente lhe ocorrem maus pensamentos. |
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204 |
Os mendigos e a indelicadeza. — “Uma pessoa não é indelicada, se usa uma pedra para bater numa porta que está sem campainha” — é o que pensam os mendigos e necessitados de toda espécie; mas ninguém lhes dá razão. |
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205 |
A necessidade. — A necessidade é tida como a causa do surgimento de algo: na verdade, com freq uência não passa de um efeito daquilo que surgiu. |
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206 |
Chovendo. — Está chovendo, e lembro das pessoas pobres que nesse instante se comprimem, com suas muitas preocupações e nenhuma experiência em ocultá-las, ou seja, cada uma delas disposta e pronta a ferir a outra e criar para si, mesmo no mau tempo, uma miserável espécie de bem-estar. — Isto, apenas isto, é a pobreza dos pobres! |
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207 |
O invejoso. — Ele é um invejoso — não devemos esperar que ele tenha filhos; ele teria inveja deles, porque não pode mais ser criança. |
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208 |
Grande homem! — Pelo fato de alguém ser “um grande homem”, não podemos concluir que seja um homem; talvez seja apenas um garoto, ou um camaleão de todas as idades, ou uma mulherzinha enfeitiçada. |
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209 |
Uma forma de perguntar por razões. — Há uma forma de nos perguntarmos por nossas razões que nos faz não apenas esquecermos nossas melhores razões, mas também sentirmos crescer em nós uma aversão e má vontade para com razões em geral: — uma forma bestificante de perguntar, e um artifício de pessoas tirânicas! |
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210 |
Moderação na diligência. — Não se deve querer superar a diligência do pai — isso torna doente. |
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211 |
Inimigos secretos. — Ser capaz de manter um inimigo secreto — eis um luxo para o qual mesmo a moralidade de espíritos elevados não costuma ser rica o bastante. |
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212 |
Não se deixando enganar. — Seu espírito tem más maneiras, é apressado e gagueja, de tão impaciente: de modo que dificilmente se percebe o longo fôlego e o largo peito da alma que o abriga. |
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213 |
O caminho da felicidade. — Um sábio perguntou a um tolo qual o caminho para a felicidade. Este respondeu sem hesitação, como se lhe perguntassem o caminho para a aldeia mais próxima: “Admire a si mesmo e viva nas ruas!”. “Um momento”, exclamou o sábio, “você exige demais; basta admirar a si mesmo!” Então replicou o tolo: “Mas como é possível admirar sempre, sem desprezar sempre?”. |
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214 |
A fé que salva. — A virtude dá felicidade e uma espécie de beatitude somente àqueles que têm fé em sua virtude — e não àquelas almas mais sutis, cuja virtude consiste em profunda desconfiança de si mesmas e de toda virtude. Afinal, portanto, também aqui “a fé salva!” — não a virtude, note-se bem! |
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215 |
Ideal e matéria. — Você tem um ideal nobre à sua frente: mas será vocêuma pedra suficientemente nobre para que dela se possa esculpir uma tal imagem divina? E, além disso — todo o seu trabalho não será uma bárbara escultura? Uma blasfêmia contra o seu ideal? |
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216 |
Perigo na voz. — Com uma voz muito alta na garganta, quase não temos condições de pensar coisas sutis. |
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217 |
Causa e efeito. — Antes do efeito, cremos em outras causas do que depois do efeito. |
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218 |
Minha antipatia. — Não gosto de pessoas que, para ter algum efeito, necessitam estourar como bombas, e junto às quais sempre há o perigo de perdermos subitamente a audição — e mesmo alguma coisa mais. |
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219 |
Finalidade do castigo. — O castigo tem a finalidade de melhorar aquele que castiga— este é o último recurso dos defensores do castigo. |
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220 |
Sacrifícios. — A respeito de sacrifícios e de disposição para o sacrifício, os animais sacrificiais pensam de maneira diferente da dos espectadores — mas nunca lhes foi dada a palavra. |
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221 |
Indulgência. — Pais e filhos poupam uns aos outros muito mais do que mães e filhas. |
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222 |
Poetas e mentirosos. — O poeta vê no mentiroso um irmão de leite ao qual ele roubou o leite; de modo que este irmão permaneceu fraco e não adquiriu sequer a boa consciência. |
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223 |
Sentidos vicários. — “Temos também os olhos para ouvir” — disse um velho confessor que ficou surdo; “e, entre os cegos, quem tem as orelhas mais compridas é rei.” |
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224 |
Crítica dos animais. — Receio que os animais vejam o homem como um semelhante que perigosamente perdeu a sadia razão animal — como o animal delirante, o animal ridente, o animal plangente, o animal infeliz. |
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225 |
Os naturais. — “O mal sempre teve o grande efeito a seu favor! E a natureza é má! Sejamos naturais, então!” — desse modo raciocinam secretamente os grandes buscadores de efeito, que com muita frequência foram incluídos entre os grandes homens. |
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226 |
Os desconfiados e o estilo. — Dizemos as coisas mais fortes de maneira singela, desde que estejamos rodeados de pessoas que acreditam em nossa força: um tal ambiente contribui para a “simplicidade do estilo”. Os desconfiados falam de modo enfático; os desconfiados também tornam enfático. |
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227 |
Conclusão errada, lance errado.[58] — Ele não consegue dominar-se: daí essa mulher conclui que será fácil dominá-lo e lança-lhe a rede — pobre dela, que logo será sua escrava. |
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228 |
Contra os mediadores. — Quem quer mediar entre dois pensadores decididos mostra que é medíocre: não tem olho para o que é único; enxergar semelhanças e fabricar igualdades é característica de olhos fracos. |
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229 |
Teimosia e fidelidade. — Por teimosia ele se apega a uma coisa que para ele se tornou clara — mas chama a isso “fidelidade”. |
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230 |
Falta de reserva. — Sua pessoa inteira não convence— porque ele jamais silenciou sobre uma boa ação que tenha feito. |
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231 |
Os “profundos”. — Os que são lentos no conhecimento acham que a lentidão é própria do conhecimento. |
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232 |
Sonhos. — Não sonhamos de modo algum, ou então de modo interessante. — Assim também devemos aprender a ficar acordados: de modo algum, ou de modo interessante. |
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233 |
O mais perigoso ponto de vista. — O que eu faço ou deixo de fazer agora é tão importante, paratudo o que está por vir, quanto o maior acontecimento do passado: nesta enorme perspectiva do efeito, todos os atos são igualmente grandes e pequenos. |
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234 |
Palavras de consolo de um músico. — “Sua vida não chega aos ouvidos dos homens: para eles você vive uma vida muda, e permanece oculta para eles toda sutileza da melodia, toda delicada resolução quanto a seguir ou preceder.[59] É verdade: você não aparece numa larga avenida ao som de uma banda militar — mas essa boa gente não tem o direito de afirmar, por causa disso, que em sua vida não há música. Quem tiver ouvidos, que ouça.” |
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235 |
Espírito e caráter. — Alguns atingem seu apogeu como caráter, mas seu espírito não fica à altura deste — e com outros sucede o contrário. |
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236 |
Para mover a multidão. — Quem quer mover a multidão não tem de ser o ator que interpreta a si mesmo? Não tem de primeiro traduzir-se no que é nítido-grotesco e apresentarsua pessoa e sua causa nesta brutalização e simplificação? |
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237 |
O cortês. — “Ele é tão cortês!” — Sim, ele tem sempre um biscoito para Cérbero,[60] e é tão receoso que vê Cérbero em cada pessoa, também em mim e em você — eis a sua “cortesia”. |
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238 |
Sem inveja. — Ele não sente a menor inveja, mas não há mérito nisso: pois quer conquistar um país que ninguém jamais possuiu e que dificilmente alguém avistou. |
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239 |
Sem alegria. — Basta uma única pessoa sem alegria para criar constante mau humor e céu escuro em toda uma casa; e somente por milagre ocorre que não haja esta pessoa! — A felicidade está longe de ser uma enfermidade assim contagiosa — de onde virá isso? |
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240 |
À beira-mar. — Eu jamais construiria uma casa para mim (e é próprio da minha felicidade não possuir uma!). Se tivesse de fazê-lo, porém, eu a construiria, como certos romanos, bem junto ao mar e nele penetrando — eu bem gostaria de partilhar segredos com esse belo monstro. |
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241 |
A obra e o artista. — Esse artista é ambicioso e nada mais: afinal, sua obra não passa de uma lentede aumento que ele oferece a todos os que olham em sua direção. |
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242 |
Suum cuique [A cada um o que é seu][61].— Por maior que seja a minha avidez de conhecimento, não posso extrair das coisas mais do que o que já me pertence — o que é dos outros continua nelas. Como é possível que alguém seja assaltante ou ladrão? |
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243 |
Origem de “bom” e “ruim”. — Melhoramentos são criados apenas por aqueles capazes de sentir: “Isto não é bom”. |
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244 |
Pensamentos e palavras. — Também os próprios pensamentos não se pode reproduzir inteiramente em palavras. |
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245 |
Louvor na escolha. — O artista escolhe sua matéria: é sua forma de louvar. |
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246 |
Matemática. — Vamos introduzir o refinamento e o rigor da matemática em todas as ciências, até onde seja possível, não na crença de que por essa via conheceremos as coisas, mas para assim constatar nossa relação humana com as coisas. A matemática é apenas o meio para o conhecimento geral e derradeiro do homem. |
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247 |
Hábito. — Todo hábito faz nossa mão mais engenhosa e nosso engenho menos destro. |
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248 |
Livros. — De que vale um livro que não nos transporte além dos livros? |
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249 |
O suspiro do homem do conhecimento. — “Oh, minha avidez! Nesta alma não existe abnegação — mas sim um Eu que tudo ambiciona, que mediante muitos indivíduos gostaria de ver como com seus própriosolhos e agarrar como com suas próprias mãos — um Eu que também recupera todo o passado, que nada quer perder do que lhe poderia pertencer! Oh, essa chama da minha avidez! Oh, que eu ainda renascesse em milhares de seres!” — Quem não conhece por experiência este suspiro, também não conhece a paixão de quem quer conhecer. |
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250 |
Culpa. — Embora os mais perspicazes juízes das bruxas, e até as bruxas mesmas, estivessem convencidos da culpa de bruxaria, essa culpa não existia. O mesmo acontece com toda culpa. |
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251 |
Sofredores incompreendidos. — As naturezas magníficas sofrem de maneira diferente da que seus admiradores imaginam: elas sofrem mais duramente com as agitações ignóbeis e mesquinhas de alguns maus momentos, em suma, com a dúvida em sua própria magnificência — mas não com os sacrifícios e martírios que a sua tarefa lhes pede. Enquanto Prometeu tem compaixão pelos homens e sacrifica-se por eles, ele é feliz e grandioso; mas quando sente inveja de Zeus e das homenagens que lhe prestam os mortais — então ele sofre! |
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252 |
Melhor ser devedor. — “Melhor continuar devedor do que pagar com uma moeda que não tem nossa imagem!” — assim quer nossa soberania. |
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253 |
Sempre em casa. — Um dia alcançamos nossa meta— e referimo-nos com orgulho às longas viagens que para isso empreendemos. Na verdade, não percebemos que viajamos. Mas fomos tão longe por acreditar que em todo lugar nos encontrávamos em casa. |
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254 |
Contra o embaraço. — Quem sempre está profundamente ocupado se acha além de todo embaraço. |
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255 |
Imitadores. — A: “Como? Você não quer imitadores?”. B: “Não quero que façam conforme o meu exemplo; quero que cada um faça seu próprio exemplo, como eu”. A: “Ah, é assim —?”.[62] |
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256 |
“Epidermidade.” — Todo homem das profundezas acha felicidade em igualar vez por outra os peixes voadores, brincando nas cristas das ondas; estimam que o melhor, nas coisas, é terem uma superfície: a sua “epidermidade” — sit venia verbo [com perdão da palavra]. |
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257 |
Por experiência. — Alguns não sabem o quanto são ricos, até descobrirem que homens ricos chegam a roubá-los. |
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258 |
Os negadores do acaso. — Nenhum vencedor acredita no acaso. |
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259 |
Do Paraíso. — “Bem e Mal são os preconceitos de Deus” — disse a serpente. |
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260 |
Tabuada. — Um está sempre errado: mas com dois começa a verdade. — Um não pode provar a si mesmo: mas dois já não podem ser refutados. |
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261 |
A originalidade. — O que é a originalidade? É ver algo que ainda não tem nome, não pode ser mencionado, embora se ache diante de todos. Do modo como são geralmente os homens, apenas o nome lhes torna visível uma coisa. — Os originais foram, quase sempre, os que deram nomes. |
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262 |
Sub specie aeterni [Do ponto de vista da eternidade]— A: “Você se afasta cada vez mais dos que vivem: logo eles o apagarão de suas listas!”. — B: “É a única maneira de partilhar o privilégio dos mortos”. — A: “Qual privilégio?”. — B: “Não mais morrer”. |
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263 |
Sem vaidade. — Quando amamos, queremos que nossos defeitos permaneçam ocultos — não por vaidade, mas para que o ser amado não sofra. Sim, aquele que ama gostaria de parecer um deus — e isso também não por vaidade. |
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264 |
O que fazemos. — O que fazemos não é jamais compreendido, mas somente elogiado e criticado. |
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265 |
Ceticismo derradeiro. — Quais são, afinal, as verdades do homem? — São os erros irrefutáveis do homem. |
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266 |
Onde a crueldade é necessária. — Quem possui grandeza é cruel para com suas virtudes e considerações secundárias. |
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267 |
Com um grande objetivo. — Com um grande objetivo, somos superiores até à justiça, não apenas a nossos atos e nossos juízes. |
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268 |
O que torna heroico? — Ir ao encontro, simultaneamente, da sua dor suprema e da sua esperança suprema. |
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269 |
Em que acredita você? — Nisto: que os pesos de todas as coisas precisam ser novamente determinados. |
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270 |
O que diz sua consciência? — “Torne-se aquilo que você é.” |
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271 |
Onde estão seus maiores perigos? — Na compaixão. |
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272 |
O que você ama nos outros? — Minhas esperanças. |
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273 |
A quem você chama de ruim? — Àquele que quer sempre envergonhar. |
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274 |
Qual a coisa mais humana para você? — Poupar alguém da vergonha. |
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275 |
Qual o emblema da liberdade alcançada?— Não mais envergonhar-se de si mesmo. |
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LIVRO IV |
Sanctus Januarius Ó tu, que com dardo de flama Partes o gelo da minha alma, Para que ela se lance fremente Ao mar de sua suprema esperança: Sempre mais clara e mais sã, Livre na lei mais amorosa — Assim exalta ela teus milagres, Belíssimo Janeiro! Gênova, janeiro de 1882. |
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276 |
Para o Ano-Novo. — Eu ainda vivo, eu ainda penso: ainda tenho de viver, pois ainda tenho de pensar. Sum, ergo cogito: cogito, ergo sum [Eu sou, portanto penso: eu penso, portanto sou]. Hoje, cada um se permite expressar o seu mais caro desejo e pensamento: também eu, então, quero dizer o que desejo para mim mesmo e que pensamento, este ano, me veio primeiramente ao coração — que pensamento deverá ser para mim razão, garantia e doçura de toda a vida que me resta! Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas: — assim me tornarei um daqueles que fazem belas as coisas. Amor fati [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que a minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim! |
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277 |
Providência pessoal. — Existe, na vida, um certo ponto alto: ao atingi-lo corremos novamente, com toda a nossa liberdade, e por mais que tenhamos negado ao belo caos da existência toda razão boa e solícita, o grande perigo da servidão espiritual, e temos ainda a nossa mais dura prova a prestar. Pois é então que para nós se apresenta, com a mais insistente energia, a ideia de uma providência pessoal, tendo a seu favor o melhor advogado, a evidência, é então que vemos com nossos olhos que todas, todas as coisas que nos sucedem resultam constantemente no melhor possível.A vida de cada dia e cada hora parece não querer mais do que demonstrar sempre de novo essa tese; seja o que for, tempo bom ou ruim, a perda de um amigo, uma doença, uma calúnia, a carta que não chegou, a torção de um pé, a olhada numa loja, um argumento contrário, o ato de abrir um livro, um sonho, uma trapaça: imediatamente ou pouco depois tudo se revela como algo que “tinha de acontecer” — é algo de profundo sentido e utilidade justamente para nós! Haverá mais perigosa tentação a renunciar à fé nos deuses de Epicuro, esses indiferentes desconhecidos, e crer em alguma divindade zelosa e mesquinha, que conhece todo fio de cabelo de nossa cabeça[63] e não repugna prestar os mais miseráveis serviços? Ora — quero dizer, apesar de tudo isso! —, vamos deixar em paz os deuses e também os prestativos gênios e satisfazer-nos com a suposição de que nossa própria habilidade prática e teórica em interpretar e arrumar os acontecimentos tenha atingido seu ponto alto. Tampouco vamos ter em bem alta conta essa destreza de nossa sabedoria, se por vezes nos surpreender muito a maravilhosa harmonia que surge de nosso instrumento: uma harmonia que soa bem demais para que ousemos atribuí-la a nós mesmos. De fato, aqui e ali alguém toca conosco — o querido acaso: ele eventualmente guia a nossa mão, e a mais sábia providência não poderia conceber música mais bela do que a que então consegue esta nossa tola mão. |
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278 |
O pensamento da morte. — Em mim me produz uma melancólica felicidade viver nessa profusão de vielas, de necessidades, de vozes: quanta fruição, quanta impaciência e cobiça, quanta sede e embriaguez de vida não se manifestam aí a cada instante! Mas logo haverá tanto silêncio para todos esses viventes ruidosos e sequiosos de vida! Como atrás de cada um está sua sombra, sua obscura companheira de viagem! É sempre como no último minuto antes da partida do navio de emigrantes: as pessoas têm mais a se dizer do que nunca, a hora urge, o oceano e sua desolada mudez esperam impacientes por trás de todo o ruído — tão cobiçosos e seguros de sua presa. E todos, todos acham que o Até-então foi pouco, muito pouco, e o futuro iminente será tudo: daí toda a pressa, a gritaria, o atordoar-se e avantajar-se! Cada um quer ser o primeiro nesse futuro — mas a morte e seu silêncio são a única coisa certa e comum a todos nesse futuro! Estranho que essa única certeza e elemento comum quase não influa sobre os homens e que nada esteja mais distantedeles do que se sentirem irmãos na morte! Fico feliz em ver que os homens não querem ter o pensamento da morte! Eu bem gostaria de fazer algo para lhes tornar o pensamento da vida mil vezes mais digno de ser pensado. |
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279 |
Amizade estelar. — Nós éramos amigos e nos tornamos estranhos um para o outro. Mas está bem que seja assim, e não vamos nos ocultar e obscurecer isto, como se fosse motivo de vergonha. Somos dois barcos que possuem, cada qual, seu objetivo e seu caminho; podemos nos cruzar e celebrar juntos uma festa, como já fizemos — e os bons navios ficaram placidamente no mesmo porto e sob o mesmo sol, parecendo haver chegado a seu destino e ter tido um só destino. Mas então a todo-poderosa força de nossa missão nos afastou novamente, em direção a mares e quadrantes diversos, e talvez nunca mais nos vejamos de novo — ou talvez nos vejamos, sim, mas sem nos reconhecermos: os diferentes mares e sóis nos modificaram! Que tenhamos de nos tornar estranhos um para o outro é a lei acima de nós: justamente por isso devemos nos tornar também mais veneráveis um para o outro! Justamente por isso deve-se tornar mais sagrado o pensamento de nossa antiga amizade! Existe provavelmente uma enorme curva invisível, uma órbita estelar em que nossas tão diversas trilhas e metas estejam incluídas como pequenos trajetos — elevemo-nos a esse pensamento! Mas nossa vida é muito breve e nossa vista muito fraca, para podermos ser mais que amigos no sentido dessa elevada possibilidade. — E assim vamos crer em nossa amizade estelar, ainda que tenhamos de ser inimigos na Terra. |
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280 |
A arquitetura dos homens do conhecimento. — Será preciso entendermos um dia, talvez um dia próximo, o que falta acima de tudo nas nossas cidades: tranquilos e amplos, espaçosos lugares para a reflexão, lugares com longas e altas galerias para o tempo ruim ou demasiado claro, aonde não chegue o barulho dos carros e dos pregoeiros, e onde um refinado decoro proibisse até a um padre a reza em voz alta: construções e passeios que, no conjunto, exprimissem o que há de sublime no meditar e no pôr-se de lado. Foi-se o tempo em que a Igreja tinha o monopólio da reflexão, em que a vita contemplativatinha de ser antesvita religiosa: tudo o que a Igreja construiu dá expressão a essa ideia. Eu não sei como tais construções, ainda que fossem despidas de sua finalidade eclesiástica, poderiam nos satisfazer; elas falam uma linguagem demasiado patética e constrita, enquanto casas de Deus e luxuosos pontos de um comércio supraterreno, para que nós, os sem-deus, pudéssemos pensar ali os nossospensamentos. Queremos ver nós mesmostraduzidos em pedra e planta, queremos passear em nós mesmos, ao andar por essas galerias e jardins. |
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281 |
Saber terminar. — Os mestres de primeira categoria dão-se a conhecer pelo fato de, tanto nas coisas grandes como nas pequenas, saberem terminar de modo perfeito, seja uma melodia ou um pensamento, seja o quinto ato de uma tragédia ou uma ação política. Os melhores de segunda categoria sempre se inquietam com a aproximação do fim, não descendo para o mar com a orgulhosa e tranquila cadência das montanhas junto a Portofino, por exemplo — ali onde a baía de Gênova termina de cantar sua melodia. |
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282 |
O andar. — Há maneiras do espírito que levam mesmo grandes espíritos a trair sua origem plebeia ou semiplebeia: — é o andar e o passo dos seus pensamentos que os trai; eles não sabem andar. Assim, também Napoleão não soube, para profundo desgosto seu, andar de modo principesco e “legítimo” em ocasiões que verdadeiramente o requeriam, tais como grandiosas procissões de coroação: mesmo então ele era apenas o líder de uma coluna — orgulhoso e apressado a um só tempo, e muito cônscio disso. — Temos do que rir, ao ver esses autores que fazem rumorejar ao seu redor as vestes pregueadas das frases: assim eles pretendem ocultar os pés. |
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283 |
Homens preparatórios. — Eu saúdo todos os sinais de que se aproxima uma época mais viril, guerreira, que voltará a honrar acima de tudo a valentia! Ela deve abrir caminho para uma época ainda superior e juntar as forças de que esta precisará — a época que levará heroísmo para o conhecimento e travará guerras em nome dos pensamentos e das consequências deles. Para isto são agora necessários muitos homens preparatórios valentes, que certamente não podem surgir do nada — muito menos da areia e do lodo da atual civilização e educação citadina; homens que, silenciosos, solitários, resolutos, saibam estar satisfeitos e ser constantes na atividade invisível; homens interiormente inclinados a buscar, em todas as coisas, o que nelas deve ser superado; homens cuja animação, paciência, singeleza e desprezo das grandes vaidades seja tão característica quanto a generosidade na vitória e a indulgência para com as pequenas vaidades dos vencidos; homens de juízo agudo e livre acerca dos vencedores e do quinhão de acaso que há em toda vitória e toda glória; homens com suas próprias festas, dias de trabalho e momentos de luto, habituados e seguros no comandar e também prontos a obedecer, quando for o caso, igualmente orgulhosos nas duas situações, igualmente servindo a própria causa; homens mais ameaçados, mais fecundos e felizes! Pois, creiam-me! — o segredo para colher da vida a maior fecundidade e a maior fruição é: viver perigosamente! Construam suas cidades próximo ao Vesúvio! Mandem seus navios por mares inexplorados! Vivam em guerra com seus pares e consigo mesmos! Sejam salteadores e conquistadores enquanto não puderem ser governantes e possuidores, vocês, homens do conhecimento! Logo passará o tempo em que podiam se contentar de viver ocultos nas florestas, como cervos amedrontados! Enfim o conhecimento estenderá a mão para o que lhe é devido: — ele quererá dominar e possuir, e vocês juntamente com ele! |
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284 |
A fé em si mesmo. — Poucos têm fé em si mesmos: — e, desses poucos, alguns vêm com ela dotados, como uma útil cegueira ou obscurecimento parcial do espírito (o que não veriam, se pudessem olhar a si mesmos no fundo!), outros têm de conquistá-la: tudo o que fazem de bom, de apreciável, de grande, é primeiro um argumento contra o cético que neles habita: a questão é convencer ou persuadir este, e isso requer quase o gênio. São os grandes autoinsatisfeitos. |
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285 |
Excelsior! [Cada vez mais alto!]— “Você nunca mais rezará, nunca mais adorará, nunca mais repousará numa confiança infinita — você se proíbe estacar ante uma sabedoria última, uma bondade última, um último poder, desarmando seus pensamentos — não há um constante guardião e amigo para as suas sete solidões — você vive sem vista para uma montanha que tenha neve no rosto e ardor no coração — não existe, para você, mais nenhum retaliador, nenhum aperfeiçoador final — não há mais razão no que acontece, nem amor no que lhe acontecer — para o seu coração já não há pousada aberta, onde ele só tenha de encontrar e não mais procurar, você resiste a qualquer paz derradeira, você quer o eterno retorno da guerra e da paz: — homem da renúncia, em tudo você quer renunciar? Quem lhe dará a força para isso? Ninguém jamais teve essa força!” — Existe um lago que um dia se negou a escoar, e formou um dique onde até então escoava: desde esse instante ele sobe cada vez mais. Talvez justamente essa renúncia nos empreste a força com que a renúncia mesma seja suportada; talvez o homem suba cada vez mais, já não tendo um deus no qual desaguar. |
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286 |
Digressão. — Aqui estão esperanças; mas o que verão e ouvirão delas, se não tiverem experimentado brilho, ardor e auroras nas suas próprias almas? Posso apenas lembrar — mais não posso fazer! Mover pedras, transformar bichos em homens — é isso o que querem de mim? Ah, se vocês ainda são pedras e bichos, procurem antes o seu Orfeu![64] |
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287 |
Alegria na cegueira. — “Meus pensamentos”, disse o andarilho a sua sombra, “devem me anunciar onde estou; não devem me revelar para onde vou. Eu amo a ignorância a respeito do futuro e não quero perecer de impaciência e do antegozo de coisas prometidas.” |
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288 |
Estados de ânimo elevados— A mim me parece que a maioria dos homens não crê em estados de ânimo elevados, a não ser por instantes ou, no máximo, quartos de hora — excetuando os poucos que conhecem por experiência uma duração maior do sentimento elevado. Mas ser pessoa de um elevado sentimento, a encarnação de um único grande estado de alma — até agora isto foi apenas um sonho e uma encantadora possibilidade: disso a história ainda não nos deu exemplo seguro. No entanto, ela pode vir a gerar pessoas assim — uma vez que tenham sido criadas e estabelecidas muitas condições favoráveis, que hoje nem os mais felizes lances do acaso conseguem juntar. Talvez seja habitual, para essas almas futuras, precisamente o estado que até agora entrou de vez em quando em nossas almas, como uma exceção que faz tremer: um contínuo movimento entre o alto e o baixo, e o sentimento de alto e baixo, um constante subir-degraus e, ao mesmo tempo, descansar-nas-nuvens. |
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289 |
Embarquem! — Considerando-se como atua sobre cada indivíduo uma justificação filosófica geral de seu modo de viver e de pensar — ou seja, como um sol que o esquenta, abençoa, fecunda, que ilumina apenas a ele, torna-o independente de censura e elogio, autossuficiente, rico, pródigo em felicidade e benevolência, e sem cessar transmuta o mal em bem, faz toda energia florescer e sazonar e não deixa que medre o pequeno ou grande joio da mágoa e do dissabor: — então se exclamará enfim: oh, se ainda fossem criados muitos novos sóis como esse! Também o mau, também o infeliz, também o homem-exceção deve ter sua filosofia, seu direito, seu raio de sol! Não é a compaixão por eles que se faz necessária! — esse capricho do orgulho temos que desaprender, por mais que até agora a humanidade o tenha aprendido e exercitado — não são confessores, conjuradores de almas e absolvedores de pecados que devemos instituir para eles! É uma novajustiçaque se faz necessária! E uma nova senha! E novos filósofos! Também a Terra moral é redonda! Também a Terra moral tem seus antípodas! Também os antípodas têm seu direito à existência! Há um outro mundo a descobrir — mais do que um! Embarquem, filósofos! |
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290 |
Uma coisa é necessária. — “Dar estilo” a seu caráter — uma arte grande e rara! É praticada por quem avista tudo o que sua natureza tem de forças e fraquezas e o ajusta a um plano artístico, até que cada uma delas aparece como arte e razão, e também a fraqueza delicia o olhar. Aqui foi acrescentada uma grande massa de segunda natureza, ali foi removido um bocado de primeira natureza: — ambas as vezes com demorado exercício e cotidiano lavor. Aqui o feio que não podia ser retirado é escondido, ali é reinterpretado como sublime. Muito do que era vago, resistente à conformação, foi poupado e aproveitado para a visão remota: — acenará para o que está longe e não tem medida. Por fim, quando a obra está consumada, torna-se evidente como foi a coação de um só gosto que predominou e deu forma, nas coisas pequenas como nas grandes: se o gosto era bom ou ruim não é algo tão importante como se pensa — basta que tenha sido um só gosto! — Serão as naturezas fortes, sequiosas de domínio, que fruirão sua melhor alegria numa tal coação, num tal constrangimento e consumação debaixo de sua própria lei; a paixão do seu veemente querer se alivia ao contemplar toda natureza estilizada, toda natureza vencida e serviçal; mesmo quando têm palácios a construir e jardins a desenhar, resistem a dar livre curso à natureza. — Inversamente, são os caracteres fracos, nada senhores de si, que odeiamo constrangimento do estilo: eles sentem que, se lhes fosse imposta essa maldita coação, debaixo dela viriam a ser vulgares: — eles se tornam escravos quando servem, eles odeiam servir. Tais espíritos — podem ser espíritos de primeira ordem — visam sempre configurar ou interpretar a si mesmos e ao seu ambiente como natureza livre— selvagem, arbitrária, fantástica, desordenada, surpreendente: e fazem bem ao fazê-lo, pois somente assim fazem bem a si próprios! Pois uma coisa é necessária: que o homem atinjaa sua satisfação consigo — seja mediante esta ou aquela criação e arte: apenas então é tolerável olhar para o ser humano! Quem consigo está insatisfeito, acha-se continuamente disposto a se vingar por isso: nós, os outros, seremos as suas vítimas, ainda que tão só por termos de suportar sua feia visão. Pois a visão do que é feio nos torna maus e sombrios. |
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291 |
Gênova. — Observei por um bom tempo esta cidade, suas quintas e seus jardins, e o vasto círculo de seus cumes e declives habitados; afinal, tenho que dizer: vejorostosde gerações passadas — esta região está coberta de imagens de seres ousados e soberanos. Eles viveram e quiseram prosseguir vivendo — é o que me dizem com suas casas, construídas e adornadas para séculos e não para o momento fugaz: eles foram bons para com a vida, embora muitas vezes pudessem ser maus consigo mesmos. Continuo vendo o construtor, quando seu olhar pousa sobre o que foi edificado longe e perto à sua volta, sobre a cidade, o mar e o perfil das montanhas, quando com este olhar ele exerce poder e conquista: tudo ele quer inserir no seu planoe enfim tornar sua propriedade, por tornar-se esta uma parte daquele. Toda essa região abunda nesse magnífico, insaciável egoísmo da avidez de posse e de presa; e, tal como esses homens não reconheciam fronteiras na distância, instaurando, em sua sede do novo, um Novo Mundo junto ao Antigo, também na terra natal cada um se rebelava contra o outro e inventava um modo de exprimir sua superioridade e de pôr entre si e seu vizinho a sua infinitude pessoal. Cada um conquistava novamente para si a sua terra natal, ao subjugá-la com suas ideias arquitetônicas e como que transformá-la em pasto para seus olhos. No Norte impressiona a regra e o gosto geral pela regularidade e a obediência, quando observamos a forma de construção das cidades: intuímos a propensão a igualar-se e ajustar-se que deve ter dominado a alma dos construtores. Mas aqui você encontra, ao virar cada esquina, um homem por si só, que conhece o mar, a aventura e o Oriente, que é avesso à lei e ao vizinho como a uma espécie de tédio, e que com olhos invejosos mede o que já está fundado e é antigo: ele gostaria, com prodigiosa manha da fantasia, de novamente fundar tudo isso ao menos em pensamento, de lhe deitar sua mão e lhe inculcar seu espírito — ainda que só pelo instante de uma tarde de sol, em que sua alma insaciável e melancólica sinta-se por uma vez saciada, e ao seu olhar se permita mostrar apenas o que é seu e nada do que é alheio. |
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292 |
Aos pregadores da moral. — Eu não quero estabelecer moral, mas para os que o fazem dou este conselho: se quiserem despojar as melhores coisas e estados de toda honra e valor, continuem a tê-las na língua, como fizeram até agora! Ponham-nas na frente de sua moral e discorram, da manhã à noite, sobre a felicidade da virtude, o sossego da alma, a justiça e a retribuição imanente: tal como vocês agem, todas essas coisas boas conquistam finalmente a popularidade e o clamor das ruas; mas então todo o ouro que as cobre se desgastará com o manuseio — e ainda mais: todo o ouro dentro delasterá se transformado em chumbo. Verdadeiramente, vocês entendem da arte contrária à alquimia, a desvalorização do que é valioso! Experimentem outra receita alguma vez, a fim de não alcançar o oposto do que procuram, como até hoje sucedeu: neguemessas boas coisas, retirem-lhes o aplauso do populacho e o curso fácil, façam com que sejam novamente vergonhas secretas de almas solitárias, digam que moral é algo proibido!Assim talvez ganhem, para essas coisas, a única espécie de homens que importa, quero dizer, os heroicos. Mas então deve haver nelas algo para se temer, e não, como até agora, para se enojar! Não seria tempo de falar, a respeito da moral, como mestre Eckhart: “Peço a Deus que me livre de Deus”? |
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293 |
O nosso ar. — Nós bem sabemos que, para quem lança um olhar à ciência como que de passagem, à maneira das mulheres e, infelizmente, de muitos artistas, o rigor que pede o seu serviço, a inflexibilidade nas pequenas como nas grandes coisas, a rapidez em ponderar, julgar, condenar, têm algo que infunde temor e dá vertigem. Assusta, particularmente, o fato de aí se requerer o mais difícil e se fazer o melhor possível, sem que louvor e distinções sejam ouvidos, mas apenas censuras e admoestações, como entre soldados — pois o bem-feito é tido como norma, o fracasso, como exceção; e a norma, como sempre, guarda silêncio. Com este “rigor da ciência” dá-se o mesmo que com a forma e a cortesia da melhor sociedade: — ele assusta os não iniciados. Mas quem a ele se habitua talvez não consiga viver senão nesse ar claro, transparente, vigoroso e bastante elétrico, nesse ar viril. Nenhum outro lugar lhe será suficientemente puro e arejado: desconfia que neste a sua melhor arte não seria proveitosa para outros nem prazerosa para si mesmo, que, em meio a mal-entendidos, boa parte de sua vida lhe escorreria por entre os dedos, que sempre muita cautela, muita dissimulação e reserva se faria necessária — grandes e inúteis gastos de energia! Mas nesse elemento claro e severo ele tem toda a sua energia: aí ele pode voar! Por que tornaria ele a descer àquelas águas turvas, onde temos que nadar e patinhar e perdemos a cor das asas? — Não! Para nós é muito difícil viver ali: que fazer, se nascemos para o ar, o ar puro, nós, rivais dos raios de luz, e se bem gostaríamos, como eles, de andar sobre partículas do éter, e não fugindo, mas rumandopara o Sol! Mas isso não podemos fazer: — então façamos o que somente nós conseguimos: trazer luz à Terra, ser “a luz da Terra”! E para isso temos nossas asas e nossa rapidez e rigor, por isso somos viris e mesmo terríveis, como o fogo. Que nos temam aqueles que não souberem aquecer-se e iluminar-se junto a nós! |
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294 |
Contra os caluniadores da natureza. — São para mim desagradáveis as pessoas nas quais todo pendor natural se transforma em doença, em algo deformante e ignominioso — elasnos induziram a crer que os pendores e impulsos do ser humano são maus; elas são a causa de nossa grande injustiça para com nossa natureza, para com toda natureza! Há pessoas bastantes que podem se entregar a seus impulsos com graça e despreocupação: mas não o fazem, por medo dessa imaginária “má essência” da natureza! Vem daí que se ache tão pouca nobreza entre os homens; pois a marca desta sempre será não temer a si próprio, nada esperar de vergonhoso de si próprio, não hesitar em voar para onde somos impelidos — nós, pássaros nascidos livres! Aonde quer que cheguemos, tudo será livre e ensolarado à nossa volta. |
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295 |
Hábitos breves.— Eu amo os hábitos breves e os considero o meio inestimável de vir a conhecer muitascoisas e estados, até ao fundo do que têm de doce e de amargo; minha natureza é inteiramente predisposta para hábitos breves, mesmo quanto às necessidades de sua saúde física e de modo geral, até ondeposso ver: do mais baixo ao mais elevado. Acredito sempre que tal coisame satisfará permanentemente — também o hábito breve tem essa crença da paixão, a crença na eternidade —, e é de invejar que eu a tenha achado e reconhecido: — então ela me nutre pela manhã e à tarde e espalha um profundo contentamento,[65] ao seu redor e dentro de mim, de forma que eu nada mais desejo, sem que tenha de comparar, desprezar ou odiar. — E um dia o seu tempo acabou: a coisa boa separa-se de mim, não como algo que me repugna — mas pacificamente e de mim saciada, tal como eu dela, e como se nos devêssemos gratidão mútua, estendendo-nos a mão em despedida. E algo novo já espera na porta, e igualmente a minha crença — a indestrutível tola e sábia! — de que esse algo novo será o certo, o certo e derradeiro. Assim é com alimentos, pessoas, ideias, cidades, poemas, peças musicais, doutrinas, programa do dia, modo de vida. — Por outro lado, odeio os hábitos duradouros, penso que um tirano se me avizinha e que meu ar fica espesso, quando os eventos se configuram de maneira tal que hábitos duradouros parecem necessariamente resultar deles: por exemplo, devido a um emprego, ao trato constante com as mesmas pessoas, a uma morada fixa, uma saúde única. Sim, no mais fundo de minha alma sinto-me grato a toda a minha doença e desgraça e a tudo imperfeito em mim, pois tais coisas me deixam muitas portas para escapar aos hábitos duradouros. — O mais insuportável, sem dúvida, o verdadeiramente terrível, seria uma vida sem hábito algum, uma vida que solicitasse continuamente a improvisação: — isto seria meu degredo e minha Sibéria. |
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296 |
A sólida reputação. — Uma reputação sólida costumava ser extremamente útil; e onde quer que a sociedade continue a ser dominada pelo instinto de rebanho, é ainda muito conveniente, para cada indivíduo, fazer com que seu caráter e sua ocupação sejam tidos por imutáveis — mesmo que no fundo não o sejam. “Nele se pode confiar, ele continua o mesmo”: — em todas as situações perigosas da sociedade, este é o louvor de maior significado. A sociedade sente, com satisfação, que tem na virtude desse, na ambição daquele, na reflexão e no fervor daquele outro um instrumentoconfiável e sempre disposto — ela presta o máximo de honras a essa natureza de instrumento, essa fidelidade a si mesmo, essa invariabilidade nas opiniões, nas aspirações e até nos defeitos. Uma tal avaliação, que em toda parte floresce e floresceu juntamente com a moralidade dos costumes, educa o “caráter” e difamatoda mudança, toda reaprendizagem e transformação de si. Por maior que seja, de resto, a vantagem desse modo de pensar, para o conhecimento ele é a mais nociva espécie de julgamento geral: pois aí é condenada e difamada precisamente a disposição que tem o homem do conhecimento para, de maneira intrépida, declarar-se a qualquer momento contraa sua opinião prévia e ser desconfiado em relação a tudo o que em nós quer se tornar sólido. A atitude do homem do conhecimento, ao contradizer a “reputação sólida”, é vista como desonrosa, ao passo que a petrificação das opiniões tem o monopólio das honras: — sob o sortilégio[66] de tais valores temos que viver ainda hoje! E é difícil viver, quando se sente o juízo de muitos milênios contra si e em volta de si! É provável que o conhecimento fosse tomado de má consciência por muitos milênios, e que tenha havido muito autodesprezo e oculta miséria na história dos grandes espíritos. |
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297 |
Poder contradizer. — Todos sabem, hoje em dia, que poder tolerar a contradição é um elevado sinal de cultura. Alguns sabem até que o homem superior deseja e evoca para si a contradição, a fim de ter uma indicação sobre a sua própria injustiça, que até então desconhecia. Mas ser capaz de contradizer, ter boa consciência ao hostilizar o habitual, o tradicional e consagrado — isso é mais do que essas duas coisas e é o que há de verdadeiramente grande, novo e surpreendente em nossa cultura, o maior dos passos do espírito liberto: quem sabe isso? |
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298 |
uspiro. — Deparei com essa ideia no caminho, e lancei mão das primeiras pobres palavras que me vieram, a fim de prendê-la, para que não fugisse de mim. E agora ela morreu devido a essas palavras secas e tremula, nelas pendurada — e já não sei, quando a observo, como pude ter tanta felicidade ao colher esse pássaro. |
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O que devemos aprender com os artistas. — De que meios dispomos para tornar as coisas belas, atraentes, desejáveis para nós, quando elas não o são? — e eu acho que em si elas nunca o são! Aí temos algo a aprender dos médicos, quando eles, por exemplo, diluem o que é amargo ou acrescentam açúcar e vinho à mistura; ainda mais dos artistas, porém, que permanentemente se dedicam a tais invenções e artifícios. Afastarmo-nos das coisas até que não mais vejamos muita coisa delas e nosso olhar tenha de lhes juntar muita coisa para vê-las ainda — ou ver as coisas de soslaio e como que em recorte — ou dispô-las de forma tal que elas encubram parcialmente umas às outras e permitam somente vislumbres em perspectivas — ou contemplá-las por um vidro colorido ou à luz do poente — ou dotá-las de pele e superfície que não seja transparente: tudo isso devemos aprender com os artistas, e no restante ser mais sábios do que eles. Pois neles esta sutil capacidade termina, normalmente, onde termina a arte e começa a vida; nós, no entanto, queremos ser os poetas-autores de nossas vidas, principiando pelas coisas mínimas e cotidianas. |
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300 |
Prelúdios da ciência. — Então vocês acham que as ciências teriam surgido e progredido, se os feiticeiros, alquimistas, astrólogos e bruxas não as tivessem precedido, como aqueles que tinham antes de criar, com suas promessas e miragens, sede, fome e gosto por potências escondidas e proibidas? Não veem que foi preciso prometerinfinitamente mais do que o que era possível realizar, para que algo se realizasse no âmbito do conhecimento? — Talvez, da mesma forma como nos aparecem hoje os prelúdios e exercícios prévios da ciência, que não foram praticados e percebidos como tais, também a religião inteira se apresente como exercício e prelúdio para alguma época distante: ela poderá ter sido o meio singular de alguns indivíduos poderem fruir toda a autossuficiência de um deus e toda a sua força de autorredenção. Sim — é lícito perguntar —, teria o ser humano aprendido, sem a escola e pré-história da religião, a sentir fome e sede de si e encontrar saciedade e plenitude em si? Foi preciso que Prometeu imaginasse antes haver roubado a luz e pagasse por isso — para finalmente descobrir que havia criado a luz, ao ansiar por ela, e que não apenas o ser humano, mas também a divindadefora obra de suasmãos e argila em suas mãos? Tudo apenas imagens do formador de imagens?[67] — assim como a ilusão, o furto, o Cáucaso, o abutre e toda a trágica Prometeiados homens do conhecimento? |
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301 |
A ilusão dos contemplativos. — Os homens superiores distinguem-se dos inferiores por verem e ouvirem incalculavelmente mais e por verem e ouvirem pensando — e justamente isso distingue o homem do animal e os animais superiores dos inferiores. O mundo se torna cada vez mais pleno para aquele que se eleva ao cume da humanidade;[68] há cada vez mais anzóis para captar seu interesse; cresce constantemente a quantidade dos seus estímulos, e também a de suas espécies de prazer e desprazer — o homem superior torna-se cada vez mais feliz e infeliz ao mesmo tempo. Mas nisso há uma ilusãoque sempre o acompanha: ele acredita ser um espectador e ouvintecolocado ante o grande espetáculo visual e sonoro que é a vida: ele denomina a sua natureza de contemplativae não vê que ele próprio é também o verdadeiro e incessante autor da vida — que ele certamente se distingue bastante do atordesse drama, o chamado homem de ação, mas ainda mais de um simples convidado e observador sentado diante do palco. Sem dúvida lhe pertencem, como poeta, a vis contemplativa[poder de contemplação] e o olhar retrospectivo sobre a obra, mas também e sobretudo a vis creativa [poder criador], que falta ao homem de ação, apesar do que digam as evidências e a crença de todos. Nós, os pensantes-que-sentem, somos os que de fato e continuamente fazem algo que ainda não existe: o inteiro mundo, em eterno crescimento, de avaliações, cores, pesos, perspectivas, degraus, afirmações e negações. Esse poema de nossa invenção é, pelos chamados homens práticos (nossos atores, como disse), permanentemente aprendido, exercitado, traduzido em carne e realidade, em cotidianidade. O que quer que tenha valor no mundo de hoje não o tem em si, conforme sua natureza — a natureza é sempre isenta de valor: — foi-lhe dado, oferecido um valor, e fomos nósesses doadores e ofertadores! O mundo que temalgum interesse para o ser humano, fomos nós que o criamos! — Mas justamente este saber nos falta, e se num instante o colhemos, no instante seguinte voltamos a esquecê-lo: desconhecemos nossa melhor capacidade e nos subestimamos um pouco, nós, os contemplativos — não somos tão orgulhosos nem tão felizes quanto poderíamos ser. |
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302 |
O perigo do mais feliz. — Ter finos sentidos e um gosto apurado;estar habituado às mais seletas e melhores coisas do espírito, como se fossem o alimento simples e adequado; fruir de uma alma forte, ousada, temerária; atravessar a vida com olhar tranquilo e passo firme, pronto para ir ao extremo como a uma festa, e pleno de ânsia por mundos e mares, homens e deuses ainda não descobertos; dar ouvidos a toda música jovial, como se valentes seres, soldados, navegantes, ali fizessem um breve descanso e diversão, e no mais profundo gozo do momento ser subjugado pelas lágrimas e por toda a purpúrea melancolia de quem é feliz: que pessoa não desejaria que tudo isso fosse justamente suaposse, seu estado? Foi afelicidade de Homero! O estado daquele que inventou para os gregos os seus deuses — não, que inventou para si os seus deuses! Mas não ocultemos o seguinte: quem tem na alma essa felicidade de Homero é também a criatura mais capaz de sofrimento que existe sob o sol! E apenas a esse custo é comprada a mais preciosa concha que até hoje as vagas da existência lançaram à praia! Possuindo-a, tornamo-nos cada vez mais refinados na dor, e enfim refinados demais: um leve abatimento e desgosto foi o bastante para, no fim, estragar a vida a Homero. Ele não conseguiu decifrar um pequeno e tolo enigma que uns jovens pescadores lhe propuseram![69] Sim, os pequenos enigmas são o perigo dos mais felizes! |
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303 |
Dois seres felizes. — Verdadeiramente, apesar de sua juventude esse homem entende da improvisação da vidae assombra até o mais fino observador: pois ele parece não cometer nenhum deslize, ainda que jogue sempre da maneira mais arriscada. Lembra-nos esses mestres improvisadores da música, aos quais o ouvinte atribui também uma divina infalibilidadedas mãos, apesar de eles errarem aqui ou ali, como todo mortal. Mas são treinados e criativos, e a todo instante prontos para imediatamente encaixar na ordem temática aquele som casual a que foram impelidos pelo caprichoso lance de um dedo, insuflando no acaso um belo sentido e uma alma. — Eis um homem completamente diverso: no fundo, tudo o que ele pretende e planeja dá errado. Aquilo em que ele eventualmente pôs seu coração já o levou mais de uma vez a um passo da ruína e à beira do abismo; e, mesmo quando escapou a isso, não foi certamente “com um olho azul”.[70] Pensam vocês que ele é infeliz por isso? Há muito ele resolveu não levar os próprios desejos e planos muito a sério. “Se eu não for bem-sucedido nisto”, diz ele consigo, “talvez seja naquilo; e, tudo somado, não sei se devo mais gratidão a meus fracassos ou a meus sucessos. Terei sido feito para ser obstinado e usar os chifres como um touro? Aquilo que para mim constitui valor e resultado na vida está em outra parte; meu orgulho e também minha miséria estão em outra parte. Eu sei mais sobre a vida, porque frequentemente estive a ponto de perdê-la; e justamente por isso obtenhomais da vida do que todos vocês.” |
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304 |
Ao fazer, deixamos de lado. — No fundo, tenho aversão a todas essas morais que dizem: “Não faça isto! Renuncie! Supere a si mesmo!” — mas tenho em boa conta as morais que me impelem a fazer algo e a refazê-lo, e sonhar com ele à noite e em nada pensar senão em fazê-lo bem, tão bem como somente euposso fazê-lo! Quem assim vive, separa-se continuamente de cada coisa que não participa de tal vida: é sem ódio e repulsa que ele vê despedir-se hoje isso, amanhã aquilo, como folhas amarelecidas que um vento ligeiro arranca da árvore; ou ele nem vê que se despedem, tão rigorosamente o seu olhar se volta para a meta e sobretudo para a frente, não para o lado, para baixo ou para trás. “Nosso fazer deve determinar o que deixamos de lado: ao fazer, deixamos de lado” — é assim que eu gosto, assim diz o meu placitum [princípio]. Mas não pretendo buscar de olhos abertos o meu empobrecimento, não me agradam as virtudes negativas — virtudes cuja essência mesma é a negação e a privação de si. |
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305 |
Autodomínio. — Esses mestres da moral que acima e antes de tudo recomendam ao ser humano que tenha poder sobre si mesmo, acarretam-lhe assim uma doença peculiar: uma constante irritabilidade para com todas as emoções e inclinações naturais e uma espécie de comichão. Não importa o que venha a empurrar, puxar, atrair, impelir esse homem irritável, partindo de dentro ou de fora —, sempre lhe parece então que o seu autodomínio corre perigo: ele não pode mais confiar-se a nenhum instinto, a nenhum bater de asas, e fica permanentemente em atitude de defesa, armado contra si mesmo, de olhar agudo e desconfiado, perene guardião do castelo em que se transformou. Sim, ele pode tornar-se grandedesse modo! Mas como ficou insuportável para os outros, difícil para si mesmo, empobrecido e afastado das mais belas casualidades da alma! E também de toda nova instrução! Pois é preciso saber ocasionalmente perder-se, quando queremos aprender algo das coisas que nós próprios não somos. |
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306 |
Estoicos e epicúrios. — O epicúrio escolhe a situação, as pessoas e mesmo os eventos adequados à sua constituição intelectual altamente suscetível, renunciando ao resto — ou seja, à maior parte —, porque seria um alimento forte e pesado demais para ele. Já o estoico se exercita em engolir pedras e vermes, estilhaços de vidro e escorpiões, e não sentir nojo; seu estômago deve se tornar indiferente a tudo o que o acaso da existência nele despeja: — ele lembra a seita árabe dos assaua, encontrada na Argélia; como os insensíveis desta seita, ele gosta de ter um público para exibição de sua insensibilidade, público este que o epicúrio dispensa: — afinal, ele tem seu “jardim”![71] Para aqueles com os quais o destino improvisa, aqueles que vivem em épocas violentas e na dependência de homens repentinos e mutáveis, o estoicismo pode ser aconselhável. Mas quem prevê, em alguma medida, que o destino lhe permitirá tecer um longo fio, faz bem em organizar-se de forma epicúria; todos os que se dedicaram ao trabalho intelectual[72] assim fizeram até agora! Pois para eles seria a maior das perdas ficar sem a fina suscetibilidade e receber em troca a dura pele de porco-espinho dos estoicos. |
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307 |
Em favor da crítica. — Agora lhe parece um erro o que outrora você amou como sendo uma verdade ou probabilidade: você o afasta de si e imagina que sua razão teve aí uma vitória. Mas talvez esse erro, quando você era outro — você é sempre outro, aliás —, lhe fosse tão necessário quanto as suas “verdades” de agora, semelhante a uma pele que lhe escondia e cobria muitas coisas que você ainda não podia ver. Foi sua nova vida que matou para você aquela opinião, não sua razão: você não precisa mais dela, e agora ela se despedaça e a irracionalidade surge de dentro dela como um verme que vem à luz. Quando exercemos a crítica, isso não é algo deliberado e impessoal — é, no mínimo com muita frequência, uma prova de que em nós há energias vitais que estão crescendo e quebrando uma casca. Nós negamos e temos de negar, pois algo em nós está querendo viver e se afirmar, algo que talvez ainda não conheçamos, ainda não vejamos! — Estou dizendo isso em favor da crítica. |
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308 |
A história de cada dia. — O que representa a história de cada dia para você? Olhe para seus hábitos, nos quais ela consiste: são eles o resultado de inúmeras pequenas covardias e preguiças ou de sua valentia e razão criadora? Embora sejam tão diferentes os dois casos, é possível que os homens lhe tributem os mesmos elogios e que você também lhes seja igualmente útil de uma forma ou de outra. Mas louvor, utilidade e respeitabilidade podem bastar para quem quer apenas ter boa consciência — não para você, escrutador das entranhas, que tem ciência no tocante à consciência! |
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309 |
Do fundo da sétima solidão. — Certo dia o andarilho bateu a porta atrás de si, parou e chorou. Então disse:“Esse ímpeto e pendor para o verdadeiro, real, inaparente, certo! Como lhe quero mal! Por que segue justamente amimeste sombrio e apaixonado batedor? Eu gostaria de descansar, mas ele não o permite. Quanta coisa não me seduz para que eu fique! Em toda parte há jardins de Armida[73] para mim; e, por isso, sempre novas separações e amarguras do coração! Eu tenho de ir adiante, novamente erguer o pé, esse pé cansado e ferido: e, porque tenho de fazê-lo, com frequência lanço um olhar furioso às coisas mais belas que não me puderam deter — porque não me puderam deter!”. |
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310 |
Onda e vontade. — Com que avidez esta onda se aproxima, como se houvesse algo a atingir! Com que pressa aterradora se insinua pelos mais íntimos cantos das falésias! É como se quisesse chegar antes de alguém; como se ali se ocultasse algo que tem valor, muito valor. — E agora ela recua, um tanto mais devagar, ainda branca de agitação — estará desiludida? Terá encontrado o que buscava? Toma um ar desiludido? — Mas logo vem outra onda, ainda mais ávida e bravia que a primeira, e também sua alma parece cheia de segredos e do apetite de desencavar tesouros. Assim vivem as ondas — assim vivemos nós, seres que têm vontade![74] — e mais não digo. — O quê? Vocês desconfiam de mim? Aborrecem-se comigo, belos monstros? Temem que eu traia inteiramente o seu segredo? Pois bem! Aborreçam-se, levantem os seus perigosos corpos verdes o mais alto que puderem, ergam um muro entre mim e o Sol — como agora! Realmente, nada mais resta do mundo senão verde crepúsculo e verdes raios. Façam como quiserem, seres exuberantes, gritem de prazer e de maldade — ou novamente mergulhem, vertendo suas esmeraldas na mais funda profundeza, desfazendo-se de suas brancas e infinitas rendas e rajadas de espuma — para mim tudo está certo, pois tudo lhes fica bem e por tudo eu lhes sou grato: como poderia eutraí-las? Pois — ouçam bem! — eu as conheço, a vocês e seu segredo, eu conheço a sua estirpe! Vocês e eu somos da mesma estirpe! — vocês e eu, nós temos o mesmo segredo! |
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311 |
Luz refratada. — Nem sempre somos valentes e, quando nos cansamos, um de nós talvez se lamente assim: “É tão duro magoar as pessoas — oh, por que isto é necessário? De que nos adianta viver em reclusão, se não queremos guardar para nós o que ofende? Não seria mais aconselhável viver no tumulto e compensar nos indivíduos os pecados que devem e têm de ser praticados contra todos? Ser tolo com os tolos, fútil com os fúteis, entusiasmado com os entusiastas? Não seria justo, dado esse exuberante grau de desvio geral? Quando ouço falar de maldades de outros contra mim — meu primeiro sentimento não é de satisfação? Está bem! — pareço dizer a eles — sou tão pouco afinado com vocês e há tanta razão do meu lado: tenham um bom dia à minha custa, sempre que puderem! Eis aqui minhas falhas e meus erros, eis aqui minha ilusão, meu mau gosto, minha desordem, minhas lágrimas, minha vaidade, meu retraimento de coruja, minhas contradições! Eis que vocês têm do que rir! Então riam e se alegrem! Eu não me irrito com a lei e a natureza das coisas, que querem que os erros e as falhas causem alegria! — Certamente já houve tempos ‘mais belos’, em que alguém podia sentir-se tão indispensável,com cada ideia relativamente nova, que a levava pelas ruas e gritava para todos: ‘Vejam! O reino dos céus está próximo!’ — Eu não sentiria minha falta, se não existisse. Todos somos dispensáveis!”. — Mas, como disse, não pensamos assim quando somos valentes; não pensamos nisso |
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312 |
Meu cão. — Dei um nome à minha dor;[75] chamo-a de “cão” — ela é tão fiel, tão importuna e desavergonhada, tão divertida, tão esperta como um cão — e eu posso nela mandar e descarregar o mau humor: como fazem os outros com seus cães, criados e mulheres. |
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Sem quadros de martírios. — Farei como Rafael e não mais pintarei quadros de martírios. Existem já suficientes coisas sublimes, para que se procure a sublimidade onde ela tem a crueldade por irmã; além disso, minha ambição não ficaria satisfeita se eu quisesse me tornar um sublime carrasco. |
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Novos animais domésticos. — Quero ter meu leão e minha águia junto a mim, para que sempre tenha avisos e presságios que ajudem a saber quão grande ou quão pequena é minha força. Hoje preciso baixar até eles o meu olhar e temê-los? E voltará o momento em que eles erguerão até mim o seu olhar, com temor? |
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Sobre a última hora. — As tempestades são o meu perigo: terei eu minha tempestade, à qual sucumbirei como Oliver Cromwell sucumbiu à sua?[76] Ou me extinguirei como uma luz que não foi apagada pelo vento, mas que se cansou e saciou de si mesma — uma luz consumida? Ou, enfim: apagarei a mim mesmo, para não me consumir? |
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Homens proféticos. — Vocês não são sensíveis ao fato de que os homens proféticos sofrem muito: vocês acreditam apenas que lhes foi dado um belo “dom”, e bem gostariam de tê-lo também — mas eu vou me expressar com uma imagem. O quanto devem sofrer os animais com a eletricidade do ar e das nuvens! Vemos que algumas espécies deles têm uma faculdade profética em relação ao tempo: os macacos, por exemplo (como se pode observar mesmo na Europa, e não somente em exposições de bichos, mas em Gibraltar). Não pensamos, porém, no fato de que suas dores os tornam profetas! Quando uma forte eletricidade positiva, sob influência de uma nuvem que se aproxima e ainda está longe de ser visível, transforma-se de repente em eletricidade negativa e uma mudança do tempo se prepara, esses animais se comportam como se um inimigo estivesse próximo, preparando-se para a fuga ou a defesa; muitas vezes se entocam — eles não tomam o mau tempo como tempo, mas como um inimigo, do qual já sentema mão! |
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Olhando para trás. — Raramente nos tornamos conscientes do verdadeiro pathos de cada período da vida enquanto nele estamos, mas achamos sempre que ele é o único estado então possível e razoável para nós, um ethos, não um pathos — falando e distinguindo como os gregos.[77] Algumas notas de música me trouxeram hoje à lembrança um inverno, uma casa e uma vida bastante retirada, e também o sentimento que então me habitava: eu acreditava poder viver assim para sempre. Mas agora vejo que tudo era pathos e paixão, algo semelhante a essa música dolorosamente animada e segura do consolo — algo que não se pode ter durante anos ou eternidades: assim nos tornaríamos demasiado “etéreos” para este planeta. |
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Sabedoria na dor. — Na dor há tanta sabedoria como no prazer: como este, ela está entre as forças de primeira ordem na conservação da espécie. Se não, há muito já teria desaparecido; o fato de doer não é argumento contra ela, é sua essência. Eu escuto, na dor, o grito de comando do capitão do navio: “Recolham as velas!”. O ousado navegador “homem” teve de aprender mil maneiras de dispor as velas, senão logo teria passado, o mar o teria engolido. Precisamos também saber viver com a energia diminuída: tão logo a dor dá seu sinal de alarme, é tempo de diminuí-la — algum grande perigo, um temporal está se armando, e é bom nos “inflarmos” o menos possível. — Existem homens, é verdade, que ouvem o comando oposto, ao sentir a aproximação da grande dor, e que nunca são mais orgulhosos, belicosos e felizes do que quando surge a tempestade; sim, a dor mesma lhes proporciona seus maiores momentos! São os homens heroicos, os grandes portadores de dor da humanidade: estes seres poucos ou raros, que necessitam exatamente da mesma apologia que a dor — e, verdadeiramente, ela não lhes deve ser negada! São forças de primeira ordem na conservação e promoção da espécie: ainda que fosse apenas por resistirem à comodidade e não esconderem seu nojo a tal espécie de felicidade. |
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319 |
Como intérpretes de nossas vivências. — Há uma honestidade que sempre faltou aos fundadores de religiões e pessoas desse tipo: — eles nunca fizeram de suas vivências uma questão de consciência para o conhecimento. “O que foi que vivi realmente? Que sucedeu então em mim e à minha volta? Minha razão estava suficientemente clara? Minha vontade estava alerta para todos os enganos dos sentidos e foi valorosa ao defender-se das fantasias?” — nenhum deles fez estas perguntas, nem as caras pessoas religiosas as fazem ainda hoje: elas têm, isto sim, sede de coisas contrárias à razão, e não querem tornar muito difícil a satisfação de tal sede — desse modo vivenciam “milagres” e “renascimentos” e escutam vozes de anjos! Mas nós, os sequiosos de razão, queremos examinar nossas vivências do modo rigoroso como se faz uma experiência científica, hora a hora e dia a dia! Queremos ser nossos experimentos e nossas cobaias. |
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320 |
No reencontro. — A: Eu ainda o compreendo bem? Você está buscando? Onde se acham, no meio do mundo real de agora, seu canto e sua estrela? Onde pode você deitar-se ao sol, de forma que também lhe chegue um excedente de bem-estar e sua existência se justifique? Que cada um faça isto por si próprio — você parece me dizer — e tire da mente as generalidades e as preocupações com os outros e a sociedade! — B: Eu quero mais, eu não sou um buscador. Quero criar para mim meu próprio sol. |
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321 |
Nova precaução. — Deixemos de pensar tanto em castigar, repreender e melhorar! Raramente mudamos um indivíduo; e, conseguindo fazê-lo, talvez tenhamos conseguido algo mais, sem o perceber: nós fomos mudados por ele! Cuidemos, isto sim, para que a nossa influência em tudo o que há de vir compense e ultrapasse a dele! Não lutemos em combate direto! — toda repreensão, punição e desejo de melhorar outros equivale a isso. Mas elevemos tanto mais a nós mesmos! Demos cores cada vez mais brilhantes ao nosso exemplo! Obscureçamos o outro com a nossa luz! Não! Não queremos ficar mais obscuros por sua causa, como todos os que castigam e não se satisfazem! É melhor que nos afastemos! Desviemos o olhar! |
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322 |
Alegoria. — Os pensadores nos quais todas as estrelas têm órbitas cíclicas não são os mais profundos; quem olha para dentro de si como para um espaço sideral e traz vias lácteas em seu interior, sabe também como são irregulares todas as vias lácteas; elas conduzem ao caos e ao labirinto da existência. |
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323 |
Sorte no destino. — O destino nos confere a maior distinção, quando nos faz combater por algum tempo ao lado de nossos adversários. Com isso estamos predestinadosa uma grande vitória. |
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324 |
In media vita [No meio da vida]. — Não, a vida não me desiludiu! A cada ano que passa eu a sinto mais verdadeira, mais desejável e misteriosa — desde aquele dia em que veio a mim o grande liberador, o pensamento de que a vida poderia ser uma experiência de quem busca conhecer — e não um dever, uma fatalidade, uma trapaça! — E o conhecimento mesmo: para outros pode ser outra coisa, um leito de repouso, por exemplo, ou a via para esse leito, ou uma distração, ou um ócio — para mim ele é um mundo de perigos e vitórias, no qual também os sentimentos heroicos têm seus locais de dança e de jogos. “A vida como meio de conhecimento” — com este princípio no coração pode-se não apenas viver valentemente, mas até viver e rir alegremente! E quem saberá rir e viver bem, se não entender primeiramente da guerra e da vitória? |
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325 |
O que faz parte da grandeza. — Quem realizará algo de grande, se não sentir dentro de si a força e a vontade de infligirgrandes dores? Saber sofrer é o mínimo: mulheres frágeis e até escravos tornam-se mestres nisso. Mas não sucumbir à aflição e incerteza interior, quando se inflige grande sofrimento e se ouve o grito deste sofrimento — isso é grande, isso faz parte da grandeza. |
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Os médicos da alma e a dor. — Todos os pregadores de moral, assim como todos os teólogos, têm uma incivilidade em comum: todos eles procuram convencer os homens de que estão muito mal e precisam de um tratamento duro, radical, definitivo. E, porque a humanidade ouviu esses mestres muito zelosamente, durante séculos inteiros, alguma coisa dessa superstição de que ela vai mal acabou por lhe ser transmitida: de modo que hoje eles se acham muito dispostos a suspirar, nada mais encontrar na vida e fazer expressões desoladas uns para os outros, como se ela fosse realmente dura de suportar. Na verdade, estão enormemente seguros de sua vida e por ela apaixonados, e plenos de indescritíveis astúcias e sutilezas para dobrar o que for desagradável e retirar à dor e à desgraça os seus espinhos. Quer me parecer que sempre se fala exageradamenteda dor e da desgraça, como se fosse questão de boas maneiras exagerar nisso; enquanto propositadamente se omite que há inúmeros paliativos para a dor, como o entorpecimento, ou a febril aceleração dos pensamentos, ou uma posição calma, ou memórias, intenções, esperanças boas e ruins, assim como muitas espécies de orgulho e de empatia, que têm quase um efeito anestésico; além de nos graus elevados da dor se produzir uma perda natural dos sentidos. Sabemos muito bem como instilar suavidades em nossas amarguras, especialmente nas amarguras da alma; encontramos recursos em nossa valentia e elevação, e também nos mais nobres delírios da submissão e da resignação. Uma perda não demora muito sendo uma perda: de algum modo nos chegou, juntamente com ela, uma prenda do céu — uma nova força, por exemplo: ainda que seja apenas uma nova oportunidade para ter força! O que não fantasiaram os pregadores de moral a respeito da “miséria” interior dos homens maus! O que não mentirama respeito da desgraça dos homens passionais! — sim, mentira é a palavra certa: eles bem sabiam da rica felicidade desse tipo de gente, mas impuseram silêncio sobre isso, porque refutava sua teoria de que a felicidade surge apenas com a destruição da paixão e o silenciar da vontade! E, por fim, no tocante à receita desses médicos da alma e seus elogios de um tratamento duro e radical, é lícito perguntar: esta nossa vida é realmente incômoda e dolorosa o bastante para ser vantajosamente trocada por um modo de vida e enrijecimento estoico? Nós não estamos mal a ponto de termos de estar mal de maneira estoica! |
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327 |
Levar a sério. — O intelecto é, na grande maioria das pessoas, uma máquina pesada, escura e rangente, difícil de pôr em movimento; chamam de “levar a coisa a sério”, quando trabalham e querem pensar bem com essa máquina — oh, como lhes deve ser incômodo o pensar bem! A graciosa besta humana perde o bom humor, ao que parece, toda vez que pensa bem; ela fica “séria”! E “onde há riso e alegria, o pensamento nada vale”: — assim diz o preconceito dessa besta séria contra toda “gaia ciência”. — Muito bem! Mostremos que é um preconceito! |
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328 |
Prejudicando a estupidez. — A crença de que o egoísmo é condenável, pregada com obstinação e convicção, certamente prejudicou em geral o egoísmo (em favor, como repetirei centenas de vezes, dos instintos de rebanho), ao lhe tirar a boa consciência e fazer que se buscasse nele a autêntica fonte de toda infelicidade. “Seu egoísmo é a desgraça de sua vida!” — assim soou a prédica durante milhares de anos: prejudicou o egoísmo, como disse, e tirou-lhe muito de espírito, jovialidade, inventividade, beleza; embruteceu, enfeou e envenenou o egoísmo! — Já a filosofia antiga ensinou que a principal fonte de infelicidade é outra: a partir de Sócrates os pensadores não se cansaram de pregar: “A sua irreflexão e estupidez, o seu vegetar conforme a norma, sua sujeição à opinião de seu vizinho é o motivo pelo qual vocês raramente chegam à felicidade — nós, os pensadores, somos, enquanto pensadores, os mais felizes”. Não decidiremos aqui se esta pregação contra a estupidez tinha razões melhores do que a pregação contra o egoísmo; mas é certo que ela tirou à estupidez a boa consciência: — aqueles filósofos prejudicaram a estupidez. |
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Lazer e ócio. — Há uma selvageria pele-vermelha, própria do sangue indígena, no modo como os americanos buscam o ouro: e a asfixiante pressa com que trabalham — o vício peculiar ao Novo Mundo — já contamina a velha Europa, tornando-a selvagem e sobre ela espalhando uma singular ausência de espírito. As pessoas já se envergonham do descanso; a reflexão demorada quase produz remorso. Pensam com o relógio na mão, enquanto almoçam, tendo os olhos voltados para os boletins da bolsa — vivem como alguém que a todo instante poderia “perder algo”. “Melhor fazer qualquer coisa do que nada” — este princípio é também uma corda, boa para liquidar toda cultura e gosto superior. Assim como todas as formas sucumbem visivelmente à pressa dos que trabalham, o próprio sentimento da forma, o ouvido e o olho para a melodia dos movimentos também sucumbem. A prova disso está na rude clareza agora exigida em todas as situações em que as pessoas querem ser honestas umas com as outras, no trato com amigos, mulheres, parentes, crianças, professores, alunos, líderes e príncipes — elas não têm mais tempo e energia para as cerimônias, para os rodeios da cortesia, para o espritna conversa e para qualquer otium [ócio], afinal. Pois viver continuamente à caça de ganhos obriga a despender o espírito até à exaustão, sempre fingindo, fraudando, antecipando-se aos outros: a autêntica virtude, agora, é fazer algo em menos tempo que os demais. Assim, são raras as horas em que a retidão é permitida; nessas, porém, a pessoa está cansada e gostaria não apenas de se “deixar ficar”, mas de se estender desajeitadamente ao comprido. É conforme tal inclinação que as pessoas agora escrevem cartas, e o estilo e o espírito das cartas sempre serão o verdadeiro “sinal dos tempos”. Se ainda há prazer com a sociedade e as artes, é o prazer que arranjam para si os escravos exaustos de trabalho. Que lástima essa modesta “alegria” de nossa gente culta e inculta! Que lástima essa desconfiança crescente de toda alegria! Cada vez mais o trabalhotem a seu lado a boa consciência: a inclinação à alegria já chama a si mesma “necessidade de descanso” e começa a ter vergonha de si. “Fazemos isso por nossa saúde” — é o que dizem as pessoas, quando são flagradas numa excursão ao campo. Sim, logo poderíamos chegar ao ponto de não mais ceder ao pendor à vita contemplativa(ou seja, a passeios com pensamentos e amigos) sem autodesprezo e má consciência. — Ora, antes era o inverso: o trabalho sofria de má consciência. Alguém de boa família escondia seu trabalho, quando a necessidade o fazia trabalhar. O escravo trabalhava oprimido pela sensação de fazer algo desprezível: o próprio “fazer” era desprezível. “A nobreza e a honra estão apenas no otiume no bellum [na guerra]”: assim falava a voz do preconceito antigo! |
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330 |
Aprovação. — O pensador não necessita da aprovação e dos aplausos, desde que esteja seguro de seus próprios aplausos: desses não pode prescindir. Existirão pessoas que dispensem esta ou qualquer espécie de aprovação? Duvido; e mesmo dos mais sábios dizia Tácito, que não era nenhum difamador de homens sábios: quando etiam sapientibus gloriae cupido novissima exuitur [ainda para os sábios o desejo de glória é o último de que desistem] —[78] o que nele significa: nunca. |
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331 |
Antes surdo que aturdido. — Antes as pessoas desejavam conseguir um nome: agora isso já não basta, pois o mercado cresceu muito — é preciso gritá-lo em altas vozes. Em consequência, também as boas gargantas exageram, e as melhores mercadorias são oferecidas por vozes roucas; sem gritaria de mercado e sem rouquidão não há mais gênio. — Este é, sem dúvida, um tempo ruim para o pensador: ele tem de aprender a encontrar seu sossego entre dois barulhos, e fazer-se de surdo até realmente ficar assim. Enquanto ele não aprender isso, corre naturalmente o perigo de perecer de impaciência e dores de cabeça. |
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332 |
A hora má. — Todo filósofo provavelmente já teve uma hora má, em que pensou: que importância tenho, se não creem sequer em meus argumentos ruins? — E então passou por ele algum passarinho maldoso e gorjeou: “Que importa você? Que importa você?”. |
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O que significa conhecer. — Non ridere, non lugere, neque detestari, sed intelligere![Não rir, não lamentar nem detestar, mas compreender!] disse Spinoza,[79] da maneira simples e sublime que é sua. No entanto, que é intelligere, em última instância, senão a forma na qual justamente aquelas três coisas tornam-se de uma vez sensíveis para nós? Um resultado dos diferentes e contraditórios impulsos de querer zombar, lamentar, maldizer? Antes que seja possível um conhecer, cada um desses impulsos tem de apresentar sua visão unilateral da coisa ou evento; depois vem o combate entre essas unilateralidades, dele surgindo aqui e ali um meio-termo, uma tranquilização, uma justificação para os três lados, uma espécie de justiça e de contrato: pois é devido à justiça e ao contrato que esses três impulsos podem se afirmar na existência e conservar mutuamente a sua razão. A nós nos chega à consciência apenas as últimas cenas de conciliação e ajuste de contas desse longo processo, e por isso achamos que intelligereé algo conciliatório, justo, bom, essencialmente contrário aos impulsos; enquanto é apenas uma certa relação dos impulsos entre si. Por longo período o pensamento consciente foi tido como o pensamento em absoluto: apenas agora começa a raiar para nós a verdade de que a atividade de nosso espírito ocorre, em sua maior parte, de maneira inconsciente e não sentida por nós; mas eu penso que tais impulsos que lutam entre si sabem muito bem fazer-se sentidos e fazer mal uns aos outros: — a violenta e súbita exaustão que atinge todos os pensadores talvez tenha aí a sua origem (é a exaustão do campo de batalha). Sim, pode haver no nosso interior em luta muito heroísmo oculto, mas certamente nada de divino, nada repousando eternamente em si, como queria Spinoza. O pensar consciente, em particular o do filósofo, é a espécie menos vigorosa de pensamento e, por isso, também aquela relativamente mais suave e tranquila: daí que justamente o filósofo pode se enganar mais facilmente sobre a natureza do conhecer. |
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É preciso aprender a amar. — Eis o que sucede conosco na música: primeiro temos que aprender a ouviruma figura, uma melodia, a detectá-la, distingui-la, isolando-a e demarcando-a como uma vida em si; então é necessário empenho e boa vontade para suportá-la, não obstante sua estranheza, usar de paciência com seu olhar e sua expressão, de brandura com o que nela é singular: — enfim chega o momento em que estamos habituadosa ela, em que a esperamos, em que sentimos que ela nos faria falta, se faltasse; e ela continua a exercer sua coação e sua magia, incessantemente, até que nos tornamos seus humildes e extasiados amantes, que nada mais querem do mundo senão ela e novamente ela. — Mas eis que isso não nos sucede apenas na música: foi exatamente assim que aprendemos a amar todas as coisas que agora amamos. Afinal sempre somos recompensados pela nossa boa vontade, nossa paciência, equidade, ternura para com que é estranho, na medida em que a estranheza tira lentamente o véu e se apresenta como uma nova e indizível beleza: — é a sua gratidão por nossa hospitalidade. Também quem ama a si mesmo aprendeu-o por esse caminho: não há outro caminho. Também o amor há que ser aprendido. |
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335 |
Viva a física! — Quantas pessoas sabem observar? E, entre as poucas que sabem — quantas observam a si mesmas? “Cada qual é o mais distante de si mesmo”[80] — é o que sabe todo escrutador das entranhas, para seu próprio desgosto; e as palavras “Conhece a ti mesmo!” são, na boca de um deus e dirigidas aos homens, quase uma maldade. Mas o fato de a auto-observação estar em situação assim desesperadora é comprovado, mais do que tudo, pela forma como quase cada pessoafala sobre a essência de um ato moral, essa forma rápida, solícita, convicta e loquaz, com seu olhar, seu sorriso, seu obsequioso ardor! Cada uma parece querer lhe dizer: “Ah, meu caro, isso é comigo! Você está dirigindo sua pergunta a quem pode lhe responder: em nenhuma outra coisa eu sou mais sábio do que nisso, por acaso. Então: quando o homem julga ‘Isso está certo’, depois conclui ‘Por isso tem de acontecer’, e faz o que assim reconheceu como certo e definiu como necessário — então a essência do seu ato é moral!”. Mas, meu amigo, você está falando de três atos, em vez de um: também o seu julgamento “Isso está certo” é um ato — não se poderia julgar de uma maneira moral e de uma maneira imoral? Por que você acha isso, justamente isso moral? — “Porque minha consciência me diz que é assim; a voz da consciência nunca é imoral, pois somente ela determina o que deve ser moral!” — Mas por que você ouveo que fala sua consciência? E até que ponto você tem o direito de considerar um tal juízo verdadeiro e infalível? Para essa crença já não há consciência? Você nada sabe de uma consciência intelectual? De uma consciência por trás de sua “consciência”? Seu julgamento “Isso está certo” tem uma pré-história nos seus impulsos, inclinações, aversões, experiências e inexperiências; “Como surgiu isso?”, você tem de perguntar, e ainda: “O que me impele realmente a dar ouvidos a isso?”. Você pode ouvir as ordens dele como um bom soldado escuta as ordens do oficial. Ou como uma mulher que ama quem dá as ordens. Ou como um adulador e covarde que receia aquele que ordena. Ou como um imbecil, que acompanha porque nada tem a objetar. Em suma, há muitas maneiras de dar ouvidos à sua consciência. Mas que você ouça este ou aquele juízo como voz da consciência, isto é, que sinta algo como certo, pode ser devido a que você nunca tenha meditado sobre si e tenha cegamente acolhido o que desde a infância lhe foi designado como certo; ou a que o pão e as honras lhe tenham até hoje vindo juntamente com o que você denomina seu dever — e você o tem por “certo” porque lhe parece a sua própria “condição de existência” (que você tenha direitoà existência lhe parece irrefutável!). A firmezado seu juízo moral poderia ser prova justamente de mesquinhez pessoal, de falta de personalidade, sua “força moral” poderia nascer de sua teimosia — oude sua incapacidade de ver novos ideais! E, resumidamente: se você tivesse pensado com maior finura, observado melhor e aprendido mais, em nenhuma circunstância você chamaria mais de dever e consciência a este seu “dever” e esta sua “consciência”: a compreensão de como surgiram uma vez os juízos moraislhe estragaria o gosto por essas palavras patéticas — como já lhe foram estragados outros termos patéticos, “pecado”, “salvação da alma” e “redenção”, por exemplo. — E agora não me venha falar de imperativo categórico, meu amigo! — essa expressão me faz cócegas no ouvido e eu tenho que rir, mesmo em sua tão séria presença: lembra-me o velho Kant, que, como punição por ter obtido furtivamente a “coisa em si” — também algo ridículo! —, foi furtivamente tomado pelo “imperativo categórico”, e com ele no coração extraviou-se de voltapara “Deus”, “alma”, “liberdade” e “imortalidade”, semelhante a uma raposa que se extravia de volta para a jaula — e a sua força e esperteza é que havia arrombadoa jaula! — Como? Você admira o imperativo categórico em você? Essa “firmeza” do que é chamado seu juízo moral? Essa “incondicionalidade” do sentimento de que “nisso todos têm de julgar como eu”? Admire antes o seu egoísmo nisso! E a cegueira, estreiteza e modéstia do seu egoísmo! Pois egoísmo é sentir o próprio juízo como uma lei universal; e novamente um egoísmo cego, estreito e modesto, porque mostra que você ainda não descobriu a si mesmo, ainda não criou para si um ideal próprio, bastante próprio — pois ele não poderia jamais ser o de um outro, e muito menos o de todos, todos! — Quem ainda julga que “assim deveriam agir todos nesse caso”, não chegou a andar cinco passos no autoconhecimento: do contrário saberia que não há nem pode haver ações iguais, — que toda ação já realizada foi realizada de uma maneira única e irrecuperável, e que o mesmo se dará com toda ação futura, — que todas as prescrições sobre o agir referem-se apenas ao grosseiro lado exterior (até as mais íntimas e sutis prescrições de todas as morais que já houve), — que com elas pode ser alcançada uma aparência de igualdade, mas somente uma aparência, — que toda ação, contemplada ou reconsiderada, é e continua a ser algo impenetrável, — que nossas opiniões acerca do “bom”, “nobre”, “grande” jamais podem ser demonstradas por nossas ações, porque toda ação é incognoscível, — que sem dúvida as nossas opiniões, avaliações e tábuas de valores estão entre as mais poderosas alavancas da engrenagem de nossos atos, mas que em cada caso a lei de seu mecanismo é indemonstrável. Portanto, limitemo-nos a depurar nossas opiniões e valorações e a criar novas tábuas de valores: — mas acerca do “valor moral de nossos atos” vamos deixar de remoer pensamentos! Sim, meus amigos, é tempo de se enojar com toda a tagarelice moral de uns sobre os outros! Fazer sessões de julgamento moral deve ofender nosso gosto! Deixemos essa tagarelice e esse mau gosto para os que nada têm a fazer senão arrastar o passado um pouco mais adiante no tempo, e que nunca são eles mesmos presente — para muitos então, para a maioria! Nós, porém, queremos nos tornar aqueles que somos— os novos, únicos, incomparáveis, que dão leis a si mesmos, que criam a si mesmos! E para isso temos de nos tornar os melhores aprendizes e descobridores de tudo o que é normativo e necessário no mundo: temos de ser físicos, para podermos ser criadores neste sentido — enquanto até agora todos os ideais e valorações foram construídos com base na ignorância da física ou em contradição a ela. Portanto: Viva a física! E viva sobretudo o que a ela nos compele— nossa retidão! |
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Sovinice da natureza. — Por que a natureza foi tão mísera com os homens que não os deixou brilhar, esse mais, aquele menos, conforme a sua interior riqueza de luz? Por que os grandes homens não têm uma tão bela visibilidade como a do Sol ao nascer e se pôr? Quão mais inequívoca seria a vida entre os homens! |
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A futura “humanidade”. — Se contemplo a era presente com os olhos de uma era longínqua, não vejo no homem atual coisa mais digna de nota do que sua característica virtude e doença, denominada “sentido histórico”. É o começo de algo inteiramente novo e estranho na história: dando-se a este gérmen alguns séculos e até mais, dele poderia surgir uma planta maravilhosa, com um odor igualmente maravilhoso, que tornasse a nossa velha Terra uma habitação mais agradável do que foi até o momento. Nós, os homens de agora, começamos justamente a formar, elo e elo, a cadeia de um futuro sentimento bastante poderoso — nós mal sabemos o que estamos a fazer. Quase temos a impressão de que não se trata de um novo sentimento, mas do decréscimo de todos os antigos sentimentos: — o sentido histórico é ainda algo muito pobre e frio, e muitos são dele acometidos como de uma geada, tornando-se ainda mais pobres e frios. A outros ele parece um indício da idade que se avizinha sorrateira, e nosso planeta é por eles visto como um doente melancólico, que escreve a história de sua juventude para esquecer o presente. De fato, esta é uma das cores desse novo sentimento: quem é capaz de sentir o conjunto da história humana como sua própria históriasente, numa colossal generalização, toda a mágoa do doente que pensa na saúde, do ancião que lembra o sonho da juventude, do amante a quem roubaram a amada, do mártir cujo ideal foi destruído, do herói após a batalha que nada decidiu e lhe causou ferimentos e a morte do amigo —; mas carregar, poder carregar essa enorme soma de mágoas de toda espécie e ainda ser o herói que, no romper do segundo dia de batalha, saúda a aurora e a sua fortuna, como o ser que tem um horizonte de milênios à sua frente e atrás de si, como o herdeiro de toda a nobreza do espírito passado, herdeiro com obrigações, o mais aristocrático de todos os velhos nobres e também o primogênito de uma nova aristocracia, cujos pares ainda nenhuma época viu ou sonhou: tudo isso acolher em sua alma, as coisas mais antigas e mais novas, perdas, esperanças, conquistas, vitórias da humanidade: tudo isso, afinal, ter numa só alma e reunir num só sentimento: — isso teria de resultar numa felicidade que até agora o ser humano não conheceu — a felicidade de um deus pleno de poder e amor, cheio de lágrimas e risos, uma felicidade que, tal como o sol no princípio da noite, continuamente se desfaz de sua inesgotável riqueza e a derrama no mar, e que, tal como ele, só vem a se sentir verdadeiramente rica quando até o mais pobre pescador pode remar com remos de ouro! Esse divino sentimento se chamaria então — humanidade![81] |
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A vontade de sofrer e os compassivos. — É vantajoso para vocês próprios serem sobretudo homens compassivos? É vantajoso para os sofredores que vocês o sejam? Mas deixemos a primeira questão sem resposta por um momento. — Aquilo de que sofremos de modo mais profundo e pessoal é incompreensível e inacessível para quase todos os demais: nisso permanecemos ocultos ao próximo, ainda que ele coma do mesmo prato conosco. Sempre que somos notados como sofredores, porém, o nosso sofrer é interpretado superficialmente; é da essência do afeto compassivo despojar o sofrimento alheio do que é propriamente pessoal: — nossos “benfeitores” são, mais do que nossos inimigos, diminuidores de nosso valor e nossa vontade. Na maioria dos benefícios prestados a infelizes, há algo de revoltante na frivolidade intelectual com que o compassivo faz o papel do destino: ele nada sabe de toda a sequência de complicações interiores que a infelicidade significa para mim e para você! A economia geral de minha alma e o seu equilíbrio mediante a “infelicidade”, a irrupção de novas fontes e necessidades, o fechamento de velhas feridas, o afastamento de passados inteiros — tudo isso, que pode estar envolvido com a infelicidade, deixa de preocupar o querido compassivo: ele quer ajudar, e não pensa que exista uma necessidade pessoal de infortúnio, que para mim e para você haja terrores, empobrecimentos, privações, meias-noites, aventuras, riscos e erros tão necessários quanto o seu oposto, e que, para me expressar misticamente, a trilha para o céu de cada um sempre passe pela volúpia do seu próprio inferno. Não, disso ele nada sabe: a “religião da compaixão” (ou “o coração”) ordena que se ajude, e acredita-se haver ajudado melhor quando se ajudou rapidamente! Se vocês, adeptos dessa religião, tiverem para consigo realmente a mesma atitude que têm para com os seus semelhantes; se não querem deixar que o seu próprio sofrer permaneça uma hora consigo e sempre evitam já a distância todo infortúnio possível, se veem o sofrimento e o desprazer como maus, merecedores de ódio e destruição, como máculas na existência: bem, então vocês levam no coração, além de sua religião da compaixão, ainda uma outra, que será talvez a mãe dessa: — a religião da comodidade. Ah, como sabem vocês pouco acerca da humanafelicidade, seres cômodos e benévolos! — pois felicidade e infelicidade são irmãs gêmeas, que crescem juntamente ou, no seu caso, juntamente — continuam pequenas! Mas agora voltemos à primeira questão. — Como é possível ficar em seu próprio caminho? Constantemente um grito qualquer nos chama para o lado; raramente o nosso olhar pousa em algo que não solicite um instante que abandonemos nossas coisas para lhe acudir. Eu sei: existem cem maneiras decentes e louváveis de me afastar do meu caminho, maneiras altamente “morais”, sem dúvida! Sim, os atuais pregadores da moral da compaixão acham mesmo que isto e apenas isto é moral: — perder-se do próprio caminho e acudir ao próximo. E sei igualmente muito bem: basta eu me entregar à visão de uma real miséria para que euesteja perdido! E se um amigo sofredor me dissesse: “Veja, logo vou morrer; prometa morrer junto comigo” — eu o prometeria, assim como a visão de um pequeno povo da montanha em luta por sua liberdade me levaria a oferecer-lhe minha mão e minha vida: — para escolher maus exemplos por boas razões. Sim, todo esse despertar de compaixão e clamor por ajuda exerce uma oculta sedução: pois nosso “próprio caminho” é coisa muito dura e exigente, distante do amor e da gratidão dos demais — não é de mau grado que a ele escapamos, a ele e a nossa consciência mais própria, para nos refugiar sob a consciência dos demais e no gracioso templo da “religião da compaixão”. Tão logo irrompe hoje alguma guerra, com ela sempre irrompe também, precisamente nos indivíduos mais nobres de um povo, um prazer que é certamente escondido: com arrebatamento eles se lançam ao novo perigo da morte, porque no sacrifício pela pátria acreditam finalmente obter a permissão há muito buscada — a permissão de desviar-se de sua meta: — a guerra, para eles, é um rodeio em direção ao suicídio, mas um rodeio com boa consciência. E, silenciando aqui alguma coisa, não quero silenciar minha moral, que me fala: Viva retirado, para que possa viver para si! Viva na ignorância daquilo que seu tempo considera mais importante! Ponha, entre você e o hoje, uma pele de ao menos três séculos! E a gritaria de hoje, o barulho das guerras e revoluções, não deve ser mais que um murmúrio para você! Você também quererá ajudar: mas apenas aqueles cuja miséria compreendeinteiramente, pois têm com você uma dor e uma esperança em comum — os seus amigos: e apenas do modo como você ajuda a si mesmo: — eu quero fazê-los mais corajosos, mais resistentes, mais simples, mais alegres! Eu quero ensinar-lhes o que agora tão poucos entendem, e os pregadores da compaixão menos que todos: — a partilha da alegria![82] |
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Vita femina [A vida é uma mulher]. — Para ver a beleza última de uma obra não bastam todo o saber e toda a disposição; os mais raros e felizes acasos são necessários, para que o véu de nuvens se afaste uma vez desses cumes e nós os vejamos refulgir ao sol. Não apenas devemos estar no lugar certo para presenciar isso: nossa alma teve de arrancar ela própria o véu de suas alturas e necessitar de uma expressão e símbolo exterior, como que para ter um ponto de apoio e continuar senhora de si. Mas é tão raro que tudo isto suceda ao mesmo tempo, que me inclino a crer que as maiores alturas de tudo o que é bom, seja de uma obra, um ato, a humanidade, a natureza, permaneceram algo oculto e velado para a maioria e mesmo para os melhores dos seres humanos até hoje: — o que se revela para nós, no entanto, revela-se-nos apenas uma vez! — Os gregos bem que rezavam: “Duas e três vezes tudo o que é belo!”. Ah, eles tinham aí uma boa razão para evocar os deuses, pois a profana realidadenão nos dá o belo, ou o dá somente uma vez! Quero dizer que o mundo é pleno de coisas belas, e contudo pobre, muito pobre de belos instantes e revelações de tais coisas. Mas talvez esteja nisso o mais forte encanto da vida: há sobre ela, entretecido de ouro, um véu de belas possibilidades, cheio de promessa, resistência, pudor, desdém, compaixão, sedução. Sim, a vida é uma mulher! |
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Sócrates moribundo. — Eu admiro a bravura e a sabedoria de Sócrates em tudo o que ele fez, disse — e não disse. Esse zombeteiro e enamorado monstro e aliciador[83] ateniense, que fazia os mais arrogantes jovens tremerem e soluçarem, foi não apenas o mais sábio tagarela que já houve: ele foi igualmente grande no silêncio. Quisera que também no último instante da vida ele tivesse guardado silêncio — nesse caso, ele pertenceria talvez a uma ordem de espíritos ainda mais elevada. Terá sido a morte, ou o veneno, ou a piedade, ou a malícia — alguma coisa lhe desatou naquele instante a língua, e ele falou: “Oh, Críton, devo um galo a Asclépio”. Essa ridícula e terrível “última palavra” quer dizer, para aqueles que têm ouvidos: “Oh, Críton, a vida é uma doença!”. Será possível? Um homem como ele, que viveu jovialmente e como um soldado à vista de todos — era um pessimista? Ele havia apenas feito uma cara boa para a vida, o tempo inteiro ocultando seu último juízo, seu íntimo sentimento! Sócrates, Sócrates sofreu da vida! E ainda vingou-se disso — com essas palavras veladas, horríveis, piedosas e blasfemas![84] Também um Sócrates necessitou de vingança? Faltou um grão de generosidade à sua tão rica virtude? — Ah, meus amigos, nós temos que superar também os gregos! |
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O maior dos pesos. — E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamenteem sua mais desolada solidão e dissesse: “Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e ordem — e assim também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente — e você com ela, partícula de poeira!”. — Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: “Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!”. Se esse pensamento tomasse conta de você, tal como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa, “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?”, pesaria sobre os seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela? |
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Incipit tragoedia [A tragédia começa]. — Quando Zaratustra fez trinta anos de idade, abandonou sua terra e o lago de Urmi e foi para as montanhas. Lá ele desfrutou seu espírito e sua solidão e por dez anos não se cansou disso. Mas afinal seu coração mudou — e uma manhã levantou-se ele com a aurora, voltou-se em direção ao Sol e falou-lhe assim: “Ó, astro-rei! Qual seria tua felicidade, se não tivesses aqueles a quem iluminas? Durante dez anos subiste até a minha gruta: estarias farto de tua luz e desse caminho, se faltassem eu, minha águia e minha serpente; mas nós te esperamos a cada manhã, recebemos da tua abundância e te bendizemos por ela. Olha! Estou enfastiado de minha sabedoria, como a abelha que juntou demasiado mel; preciso de mãos que se estendam, quero oferecê-la e reparti-la, até que os sábios entre os homens novamente se alegrem de sua tolice e os pobres, de sua pobreza. Para isso tenho que descer à profundeza: como fazes tu à noite, quando segues por trás do mar e levas a luz também ao mundo de baixo, ó estrela pródiga! — assim como tu, eu tenho que declinar, como dizem os homens até os quais quero descer. Então abençoa-me, ó olho tranquilo, que sem inveja pode olhar até uma felicidade em excesso! Abençoa o cálice que quer transbordar, para que dele flua a água dourada e carregue a toda parte o brilho do teu enlevo! Olha! Este cálice quer novamente ficar vazio, e Zaratustra quer novamente ser homem”. — Assim começou o declínio[85] de Zaratustra. |
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LIVRO V |
Nós, os impávidos Carcasse, tu trembles? Tu tremblerais bien davantage, si tu savais où je te mène. [Carcaça, tu tremes? Tremerias ainda mais, se soubesses aonde te levo.] Turenne |
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O sentido de nossa jovialidade[86] — O maior acontecimento recente — o fato de que “Deus está morto”, de que a crença no Deus cristão perdeu o crédito — já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa. Ao menos para aqueles poucos cujo olhar, cuja suspeita no olhar é forte e refinada o bastante para esse espetáculo, algum sol parece ter se posto, alguma velha e profunda confiança parece ter se transformado em dúvida: para eles o nosso velho mundo deve parecer cada dia mais crepuscular, mais desconfiado, mais estranho, “mais velho”. Mas pode-se dizer, no essencial, que o evento mesmo é demasiado grande, distante e à margem da compreensão da maioria, para que se possa imaginar que a notícia dele tenha sequer chegado; e menos ainda que muitos soubessem já o que realmente sucedeu — e tudo quanto irá desmoronar, agora que esta crença foi minada, porque estava sobre ela construído, nela apoiado, nela arraigado: toda a nossa moral europeia, por exemplo. Essa longa e abundante sequência de ruptura, declínio, destruição, cataclismo, que agora é iminente: quem poderia hoje adivinhar o bastante acerca dela, para ter de servir de professor e prenunciador de uma tremenda lógica de horrores, de profeta de um eclipse e ensombrecimento solar, tal como provavelmente jamais houve na Terra?... Mesmo nós, adivinhos natos, que espreitamos do alto dos montes, por assim dizer, colocados entre o hoje e o amanhã e estendidos na contradição entre o hoje e o amanhã, nós, primogênitos e prematuros do século vindouro, aos quais as sombras que logo envolverão a Europa já deveriamter se mostrado por agora: como se explica que mesmo nós encaremos sem muito interesse o limiar deste ensombrecimento, e até sem preocupação e temor por nós? Talvez soframos demais as primeiras consequências desse evento — e estas, as suas consequências para nós, não são, ao contrário do que talvez se esperasse, de modo algum tristes e sombrias, mas sim algo difícil de descrever, uma nova espécie de luz, de felicidade, alívio, contentamento, encorajamento, aurora... De fato, nós, filósofos e “espíritos livres”, ante a notícia de que “o velho Deus morreu” nos sentimos como iluminados por uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, espanto, pressentimento, expectativa — enfim o horizonte nos aparece novamente livre, embora não esteja limpo, enfim os nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo perigo, novamente é permitida toda a ousadia de quem busca o conhecimento, o mar, o nosso mar, está novamente aberto, e provavelmente nunca houve tanto “mar aberto”. |
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Em que medida também nós ainda somos devotos. — Na ciência as convicções não têm direito de cidadania, é o que se diz com boas razões: apenas quando elas decidem rebaixar-se à modéstia de uma hipótese, de um ponto de vista experimental e provisório, de uma ficção reguladora, pode lhes ser concedida a entrada e até mesmo um certo valor no reino do conhecimento — embora ainda com a restrição de que permaneçam sob vigilância policial, a vigilância da suspeita. — Mas isso não quer dizer, examinando mais precisamente, que a convicção pode obter admissão na ciência apenas quando deixa de serconvicção? A disciplina do espírito científico não começa quando ele não mais se permite convicções?... É assim, provavelmente; resta apenas perguntar se,para que possa começar tal disciplina, não é preciso haver já uma convicção, e aliás tão imperiosa e absoluta, que sacrifica a si mesma todas as demais convicções. Vê-se que também a ciência repousa numa crença, que não existe ciência “sem pressupostos”. A questão de a verdade ser ou não necessária tem de ser antes respondida afirmativamente, e a tal ponto que a resposta exprima a crença, o princípio, a convicção de que “nada é mais necessário do que a verdade, e em relação a ela tudo o mais é de valor secundário”. — Esta absoluta vontade de verdade: o que será ela? Será a verdade de não se deixar enganar? Será a vontade de não enganar? Pois também desta maneira se pode interpretar a vontade de verdade; desde que na generalização “Não quero enganar” também se inclua o caso particular “Não quero enganar a mim mesmo”. Mas por que não enganar? E por que não se deixar enganar? — Note-se que as razões para o primeiro caso se acham numa esfera inteiramente diversa das do segundo: a pessoa não quer se deixar enganar supondo que é prejudicial, perigoso, funesto deixar-se enganar — neste sentido a ciência seria uma prolongada esperteza, uma precaução, uma utilidade, à qual se poderia, com justiça, objetar: Como? Não querer deixar-se enganar é de fato menos prejudicial, perigoso, funesto? Que sabem vocês de antemão sobre o caráter da existência, para poder decidir se a vantagem maior está do lado de quem desconfia ou de quem confia incondicionalmente? E se as duas coisas forem necessárias, muita confiança e muita desconfiança: de onde poderá a ciência retirar a sua crença incondicional, a convicção na qual repousa, de que a verdade é mais importante que qualquer outra coisa, também que qualquer convicção? Justamente esta convicção não poderia surgir, se a verdade e ainverdade continuamente se mostrassem úteis: como é o caso. Portanto — a crença na ciência, que inegavelmente existe, não pode ter se originado de semelhante cálculo de utilidade, mas sim apesarde continuamente lhe ser demonstrado o caráter inútil e perigoso da “vontade de verdade”, da “verdade a todo custo”. “A todo custo”: oh, nós compreendemos isso muito bem, depois que ofertamos e abatemos uma crença após a outra nesse altar! — Por conseguinte, “vontade de verdade” não significa “Não quero me deixar enganar”, mas — não há alternativa — “Não quero enganar, nem sequer a mim mesmo”: — e com isso estamos no terreno da moral. Pois perguntemo-nos cuidadosamente: “Por que você não quer enganar?”, sobretudo quando parecesse — e parece! — que a vida é composta de aparência, quero dizer, de erro, embuste, simulação, cegamento, autocegamento, e quando a forma grande da vida, por outro lado, sempre se mostrou realmente do lado dos mais inescrupulosos πολύτροποι [homens de muitos expedientes]. Um tal desígnio talvez fosse, interpretando-o de modo gentil, um quixotismo, um ligeiro e exaltado desvario; mas também poderia ser algo pior, isto é, um princípio destruidor, inimigo da vida... “Vontade de verdade” — poderia ser uma oculta vontade de morte. — Assim, a questão: “Por que ciência?”, leva de volta ao problema moral: para que moral, quando vida, natureza e história são “imorais”? Não há dúvida, o homem veraz, no ousado e derradeiro sentido que a fé na ciência pressupõe, afirma um outro mundo que não o da vida, da natureza e da história; e, na medida em que afirma esse “outro mundo” — não precisa então negar a sua contrapartida, este mundo, nosso mundo?... Mas já terão compreendido aonde quero chegar, isto é, que a nossa fé na ciência repousa ainda numa crença metafísica— que também nós, que hoje buscamos o conhecimento, nós, ateus e antimetafísicos, ainda tiramos nossa flama daquele fogo que uma fé milenar acendeu, aquela crença cristã, que era também de Platão, de que Deus é a verdade, de que a verdade é divina... Mas como, se precisamente isto se torna cada vez menos digno de crédito, se nada mais se revela divino, com a possível exceção do erro, da cegueira, da mentira — se o próprio Deus se revela como a nossa mais longa mentira? |
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Moral como problema. — A falta de personalidade sempre se vinga; uma personalidade adelgaçada, enfraquecida, apagada, que nega e renega a si mesma, não serve para nada de bom — muito menos para a filosofia. A “abnegação” não tem valor, seja no céu ou na terra; todos os grandes problemas exigem o grande amor, e deste são capazes somente os espíritos fortes, redondos, seguros, que se apoiam firmemente em si mesmos. Faz considerável diferença que um pensador se coloque pessoalmente ante seus problemas, de modo a neles achar seu destino, sua miséria e também sua felicidade maior, ou então “impessoalmente”: isto é, que saiba tocá-los e apreendê-los somente com os tentáculos da fria e curiosa reflexão. Nesse último caso nada se conseguirá, podemos estar certos: pois os grandes problemas, ainda quando se deixam tocar, não se deixam agarrarpor fracotes com sangue de barata, este é o seu gosto desde tempos imemoriais — um gosto, aliás, que partilham com todas as mulherezinhas valentes. — Como pode suceder, então, que eu ainda não tenha encontrado ninguém, nem mesmo em livros, que tomasse tal posição pessoal ante a moral, que conhecesse a moral como problema e este problema como sua aflição, desgraça, volúpia, paixão pessoal? Evidentemente, até agora a moral não foi problema; mas sim aquilo em que os homens entravam de acordo, após toda a desconfiança, desavença, contradição, o sagrado local da paz, em que os pensadores descansavam de si próprios, respiravam, readquiriam forças. Não vejo ninguém que tenha ousado uma crítica dos juízos de valor morais; vejo que falta, nisso, até mesmo os ensaios de curiosidade científica, da mal acostumada e tentadora imaginação dos psicólogos e historiadores, que facilmente antecipa um problema e o apanha em voo, sem saber muito bem o que foi apanhado. Detectei apenas uns magros esforços iniciais de chegar a uma história da gênesedesses sentimentos e valorações (que é algo diverso de uma crítica dos mesmos e também diferente de uma história dos sistemas éticos): num caso particular, tudo fiz para encorajar o pendor e o talento para essa espécie de história — em vão, é o que hoje me parece. Esses historiadores da moral (sobretudo ingleses) não representam muita coisa: em geral, eles próprios se acham ingenuamente sob as ordens de uma determinada moral, servindo-lhe de escudeiros e acompanhantes sem o saber; porventura com a superstição popular da Europa cristã, ainda candidamente repetida, de que o mais característico da ação moral é a abnegação, a negação de si, o sacrifício de si, ou a empatia, a compaixão. O erro habitual de suas hipóteses consiste em afirmar um consenso dos povos, ao menos dos povos domesticados, a respeito de certos princípios morais, e disso inferir a incondicional obrigatoriedade destes para cada um de nós; ou, inversamente, após compreenderem a verdade de que em povos diversos as avaliações morais são necessariamentediversas, concluem pela não obrigatoriedade de todamoral: duas conclusões igualmente infantis. O erro dos mais sutis dentre eles consiste em desnudar e criticar as opiniões talvez insensatas de um povo sobre a sua moral, ou dos homens sobre toda a moral humana, ou seja, sobre a sua origem, sanção religiosa, a superstição do livre-arbítrio e coisas assim, e com isto supor haver criticado essa moral mesma. No entanto, o valor de um preceito é ainda radicalmente diverso e independente de opiniões tais sobre ele e do joio de erros que talvez o cubra: assim como o valor de uma medicação para o enfermo independe completamente de ele pensar sobre a medicina de forma científica ou como uma mulher idosa. Uma moral pode ter nascido de um erro: ainda com esta percepção o problema de seu valor não chega a ser tocado. — Até agora, portanto, ninguém examinou o valor do mais célebre dos medicamentos, que se chama moral: isso requer, antes de tudo — pô-lo em questão. Muito bem! Este é justamente o nosso trabalho. — |
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Nossa interrogação. — Mas vocês não entendem isso? De fato, custa esforço nos entender. Nós buscamos palavras, talvez busquemos também ouvidos. Quem somos nós, afinal? Quiséssemos simplesmente nos designar, com uma expressão mais velha, por ateu ou ímpio, ou ainda imoralista, não acreditaríamos nem de longe estar caracterizados com isso: somos as três coisas num estágio muito adiantado para que se compreenda, para que vocês compreendessem, senhores curiosos, em que estado de ânimo alguém assim se encontra. Não, não mais com a amargura e a paixão de quem se soltou violentamente, que ainda tem de compor para si uma fé, um propósito, um martírio a partir da sua descrença![87] Nós nos aguçamos e tornamo-nos frios e duros com a percepção de que nada que sucede no mundo é divino, ou mesmo racional, misericordioso e justo pelos padrões humanos: sabemos que o mundo que habitamos é imoral, inumano e “indivino” — por muito tempo nós o interpretamos falsa e mentirosamente, mas conforme o desejo e a vontade de nossa veneração, isto é, conforme uma necessidade. Pois o homem é um animal venerador! Mas também um animal desconfiado: e o fato de o mundo não valer o que acreditávamos é aproximadamente a coisa mais segura de que a nossa desconfiança enfim se apoderou. Quanto mais desconfiança, mais filosofia. Nós nos guardamos de dizer que o mundo vale menos: hoje nos parece mesmo ridículo que o homem pretenda inventar valores que devem excedero valor do mundo real — pois justamente disso acabamos de retornar, como de um acentuado extravio da vaidade e da insensatez humanas, que longamente não foi reconhecido como tal. Ele teve sua última expressão no pessimismo moderno, e uma mais antiga e mais forte na doutrina do Buda; mas também se acha no cristianismo, de modo mais duvidoso e ambíguo, é certo, mas nem por isso menos sedutor. Toda a atitude “homem contramundo”, homem como princípio “negador do mundo”, homem como medida das coisas, como juiz do mundo, que afinal põe a existência mesma em sua balança e acha que lhe falta peso — a monstruosa falta de gosto dessa atitude nos veio à consciência e nos repugna —, já rimos, ao ver “homem emundo” colocados um ao lado do outro, separados tão só pela sublime presunção da palavrinha “e”! Justamente com esse riso, porém, não demos um passo adiante no desprezo pelo homem? E também no pessimismo, no desprezo à existência por nós cognoscível? Não caímos, exatamente com isso, na suspeita de uma oposição, uma oposição entre o mundo no qual até hoje nos sentíamos em casa com nossas venerações — em virtude das quais, talvez, suportávamos viver — e um outro mundo que somos nós mesmos: numa inexorável, radical, profunda suspeita acerca de nós mesmos, que cada vez mais e de forma cada vez pior toma conta de nós, europeus, e facilmente poderia colocar as gerações vindouras ante essa terrível alternativa: “Ou suprimir suas venerações ou — a si mesmos!”. Esta seria o niilismo; mas aquela não seria também — niilismo? — Eis a nossa interrogação. |
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Os crentes e sua necessidade de crer. — O quanto de fé alguém necessita para crescer, o quanto de “firme”, que não quer ver sacudido, pois nele se segura— eis uma medida de sua força (ou, falando mais claramente, de sua fraqueza). Na velha Europa de hoje, parece-me que a maioria das pessoas ainda necessita do cristianismo: por isso ele continua a ser alvo de crença. Pois assim é o homem: um artigo de fé poderia lhe ser refutado mil vezes — desde que tivesse necessidade dele, sempre voltaria a tê-lo por “verdadeiro”, conforme a célebre “prova de força” de que fala a Bíblia.[88] Alguns ainda precisam da metafísica; mas também a impetuosa exigência de certeza que hoje se espalha de modo científico-positivista por grande número de pessoas, a exigência de quererter algo firme (enquanto, no calor desta exigência, a fundamentação da certeza é tratada com maior ligeireza e descuido): também isso é ainda a exigência de apoio, de suporte, em suma, o instinto de fraquezaque, é verdade, não cria religiões, metafísicas, convicções de todo tipo — mas as conserva. O fato é que de todos esses sistemas positivistas desprendem-se os vapores de um certo abatimento pessimista, algo de cansaço, fatalismo, decepção, temor de nova decepção — ou então raiva ostensiva, mau humor, anarquismo indignado e o que mais houver de sintomas ou mascaradas do sentimento de fraqueza. Até a veemência com que nossos mais inteligentes contemporâneos se perdem em míseros cantos e redutos, na patriotice, por exemplo (é assim que chamo ao que na França é denominado chauvinisme [chauvinismo] e, na Alemanha, “alemão”), ou em estreitas profissões de fé estética como o naturalismo parisiense (que da natureza destaca e desnuda somente a parte que produz simultaneamente náusea e assombro — hoje gostam de chamá-la la verité vraie [a verdadeira verdade] —), ou no niilismo segundo o modelo de São Petersburgo (isto é, na crença na descrença, até chegar ao martírio por ela), sempre mostra, acima de tudo, a necessidadede fé, de apoio, amparo, espinha dorsal... A fé sempre é mais desejada, mais urgentemente necessitada, quando falta a vontade: pois a vontade é, enquanto afeto de comando, o decisivo emblema da soberania e da força. Ou seja, quanto menos sabe alguém comandar, tanto mais anseia por alguém que comande, que comande severamente — por um deus, um príncipe, uma classe, um médico, um confessor, um dogma, uma consciência partidária. De onde se concluiria, talvez, que as duas religiões mundiais, o budismo e o cristianismo, podem dever sua origem, e mais ainda a súbita propagação, a um enorme adoecimento da vontade. E assim foi na verdade: ambas as religiões depararam com a exigência de um “tu deves”, alçada até o absurdo pelo adoecimento da vontade e indo até o desespero; ambas ensinaram o fanatismo em épocas de afrouxamento da vontade, com isso proporcionando a muitos um apoio, uma nova possibilidade de querer, um deleite no querer. Pois o fanatismo é a única “força de vontade” que também os fracos e inseguros podem ser levados a ter, como uma espécie de hipnotização de todo o sistema sensório-intelectual, em prol da abundante nutrição (hipertrofia) de um único ponto de vista e sentimento, que passa a predominar — o cristão o denomina sua fé. Quando uma pessoa chega à convicção fundamental de que tem de ser comandada, torna-se “crente”; inversamente, pode-se imaginar um prazer e força na autodeterminação, uma liberdade da vontade, em que um espírito se despede de toda crença, todo desejo de certeza, treinado que é em se equilibrar sobre tênues cordas e possibilidades e em dançar até mesmo à beira de abismos. Um tal espírito seria o espírito livrepor excelência. |
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A procedência dos eruditos. — O erudito nasce, na Europa, em todo tipo de classe e condição social, como uma planta que não requer um solo específico: por isso ele se acha, essencialmente e de forma involuntária, entre os portadores do pensamento democrático. Mas tal origem se deixa perceber. Tendo exercitado o olhar para, num livro erudito, num tratado científico, reconhecer e flagrar a idiossincrasia do erudito — cada um deles tem a sua —, quase sempre enxergaremos, por trás dela, a “pré-história” do erudito, sua família, em especial as ocupações e os ofícios desta. Quando acha expressão o sentimento de que “isso agora está provado, com isso terminei”, é geralmente o ancestral no sangue e instinto do erudito que aprova, do seu ângulo de visão, o “trabalho terminado” — a crença na prova é apenas um sintoma daquilo que há muito, numa cepa laboriosa, é visto como “um bom trabalho”. Por exemplo: os filhos de notários e escreventes de toda espécie, cuja principal tarefa sempre foi ordenar um material múltiplo, distribuí-lo por gavetas, esquematizar as coisas, mostram, tornando-se eruditos, uma inclinação a considerar um problema quase resolvido, ao tê-lo esquematizado. Há filósofos que são, no fundo, apenas cabeças esquemáticas — neles o aspecto formal do ofício paterno veio a ser conteúdo. O talento para classificações, para tábuas de categorias, sempre revela algo; não se é impunemente o filho de seus pais. O filho de um advogado terá de ser, também como pesquisador, um advogado: ele quer, em primeiro lugar, que deem razão à sua causa, e em segundo, talvez, que ela tenha razão. Os filhos de clérigos e mestres protestantes reconhecemos na ingênua certeza com que, na condição de eruditos, já tomam sua causa por provada, quando acabaram de expô-la com entusiasmo e vigor: pois estão arraigadamente habituados a que as pessoas creiam neles — isso era parte do “ofício” de seus pais! Um judeu, inversamente, conforme o âmbito de negócios e o passado de seu povo, está muito pouco habituado justamente a isso — a que nele creiam: considere-se, a esse respeito, os eruditos judeus — todos eles atribuem grande peso à lógica, isto é, à obtenção do acordo mediante razões; eles sabem que com ela terão de vencer, mesmo onde exista aversão de raça e de classe contra eles, onde não se acredite neles de bom grado. Pois nada é mais democrático do que a lógica: ela não dá atenção à pessoa e não faz distinção entre narizes curvos e retos. (Aliás, precisamente quanto ao maior uso da lógica, a uma maior limpeza nos hábitos mentais, não é pouco o que a Europa deve aos judeus; sobretudo os alemães, como uma raça deploravelmente déraisonnable [insensata], à qual ainda hoje é preciso antes “lavar a cabeça”. Em todo lugar onde os judeus tiveram influência, eles ensinaram a distinguir mais sutilmente,[89] a deduzir com maior agudeza, a escrever com maior clareza e lisura: a tarefa deles foi sempre levar um povo “à raison”.) |
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Ainda a procedência dos eruditos. — Querer preservar a si mesmo é expressão de um estado indigente, de uma limitação do verdadeiro instinto fundamental da vida,[90] que tende à expansão do podere, assim querendo, muitas vezes questiona e sacrifica a autoconservação. Veja-se como sintomático que alguns filósofos — por exemplo, Spinoza, que era tuberculoso — consideravam, tinham de considerar decisivo justamente o chamado instinto de autoconservação: eles eram, precisamente, homens em estado de indigência. O fato de nossas modernas ciências naturais terem de tal modo se enredado no dogma spinoziano (por último, e da forma mais grosseira, o darwinismo, com a doutrina incompreensivelmente unilateral da “luta pela existência” —) deve-se, é provável, à procedência da maioria dos investigadores da natureza: nesse aspecto eles são “do povo”, seus antepassados foram gente pobre e humilde, que conheceu muito de perto a dificuldade de seguir adiante. Todo o darwinismo inglês exala como que o ar sufocante do excesso populacional inglês, o odor de miséria e aperto da arraia-miúda. Mas um investigador da natureza deveria sair de seu reduto humano: e na natureza não predominaa indigência, mas a abundância, o desperdício, chegando mesmo ao absurdo. A luta pela existência é apenas uma exceção, uma temporária restrição da vontade de vida; a luta grande e pequena gira sempre em torno da preponderância, de crescimento e expansão, de poder, conforme a vontade de poder, que é justamente vontade de vida. |
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Em honra dos “homines religiosi”. — A luta contra a Igreja é certamente, entre outras coisas — pois significa muitas —, também a luta das naturezas mais vulgares, mais contentes, confiantes e superficiais contra o domínio das pessoas mais graves, profundas e contemplativas, ou seja, mais ruins e desconfiadas, que com prolongada suspeita meditaram sobre o valor da existência e sobre o seu próprio valor: — o instinto vulgar do povo, sua alegria dos sentidos, seu “bom coração” rebelou-se contra elas. Toda a Igreja romana repousa numa desconfiança meridional quanto à natureza do ser humano, o que sempre é mal compreendido pelo Norte: tal desconfiança a Europa do Sul herdou do profundo Oriente, da antiquíssima Ásia misteriosa e da sua contemplação. O protestantismo já é uma revolta popular em favor dos honestos, cândidos e superficiais (o Norte sempre foi mais bondoso e mais raso que o Sul); mas foi apenas a Revolução Francesa que pôs o cetro, de maneira total e solene, nas mãos do “homem bom” (da ovelha, do asno, do ganso e de todos os irremediavelmente rasos, ruidosos e maduros para o hospício das “ideias modernas”). |
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Em honra das naturezas sacerdotais. — Acho que é precisamente do que o povo entende por sabedoria (e quem agora não é “povo”?) — dessa prudente e bovina devoção, paz de espírito e mansidão de pastores de aldeia, que se deita no prado e, ruminando gravemente, observa a vida — que os filósofos sempre se sentiram mais distantes, provavelmente porque não eram “povo” o bastante, pastores o bastante para isso. Também serão os últimos a crer que o povo possa entender algo daquilo que lhe é mais distante, da grande paixão do homem do conhecimento, que vive e tem de viver continuamente na nuvem tempestuosa dos mais altos problemas e mais graves responsabilidades (ou seja, de modo algum observando de fora, indiferente, seguro, objetivo...). O povo reverencia um tipo inteiramente diverso de homem, ao construir seu ideal do “sábio”, e tem todo o direito de homenagear precisamente esse tipo com as melhores palavras e maiores honras: são as naturezas sacerdotais, brandas, sério-singelas e castas, e o que lhes é aparentado — a elas se dirige o louvor, na reverência popular ante a sabedoria. E a quem teria o povo mais razão de se mostrar agradecido do que a esses homens, que a ele pertencem e dele procedem, mas a título de consagrados, eleitos, sacrificados ao seu bem — eles próprios se julgam sacrificados a Deus —, ante os quais pode impunemente abrir seu coração, nos quais pode se livrar de seus segredos, preocupações e coisas piores (— pois o homem que “comunica” livra-se de si mesmo; e quem “confessou” esquece). Aqui se impõe uma grande necessidade: pois também a imundície da alma requer canais de escoamento com águas puras e purificantes, requer velozes correntes de amor e fortes, humildes, puros corações que estejam prontos a sacrificar-se para um tal serviço de higiene não público — porque é um sacrifício, um sacerdote é e será uma vítima humana... O povo vê como sábios esses emudecidos, sérios, sacrificados homens “de fé”, ou seja, como tendo adquirido saber, como “seguros”, em relação à própria insegurança: quem gostaria de lhe negar essa palavra e a reverência? — Mas é também justo, inversamente, que para os filósofos um sacerdote sempre seja “povo”, antes de tudo porque eles próprios não creem nos “que sabem”, e tal crença e superstição já lhes cheira a “povo”. Foi a modéstia que inventou a palavra “filósofo” na Grécia, deixando a magnífica petulância de denominar-se sábios aos atores do espírito — a modéstia de tais monstros de orgulho e soberania como foram Pitágoras e Platão. |
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Em que medida a moral é dificilmente dispensável. — O homem nu é, geralmente, um espetáculo vergonhoso — falo de nós, europeus (para não falar das europeias!). Supondo que, graças à astúcia de um mágico, um bando de alegres comensais de repente se visse exposto e desnudado, creio que não apenas o seu bom humor iria embora e o mais forte apetite seria desencorajado — parece que nós, europeus, não podemos em absoluto dispensar essa mascarada que chamamos de vestimenta. Mas não teria também suas boas razões o travestimento dos “homens morais”, seu encobrimento sob fórmulas morais e noções de decoro, todo o benevolente disfarce de nossos atos sob os conceitos de dever, virtude, senso comunitário, honradez, negação de si? Não que eu pense que nisso a maldade e baixeza humana, o bicho mau e selvagem que há em nós, digamos, deveria ser dissimulado; é minha ideia, pelo contrário, que justamente como bichos domesticadossomos um espetáculo vergonhoso e necessitamos do travestimento moral — que na Europa o “homem interior” está longe de ser mau o suficiente para poder assim “mostrar-se” (para ser belo—). O europeu se disfarça na moral, porque se tornou um animal doente, doentio, estropiado, que tem boas razões para ser “domesticado”, porque é quase um aborto, algo incompleto, fraco, desajeitado... Não é a ferocidade do animal de rapina que precisa de um disfarce moral, mas o animal de rebanho com sua profunda mediania, temor e tédio consigo mesmo. A moral adorna o europeu — confessêmo-lo! —, fazendo-o parecer mais nobre, mais importante, respeitável, “divino” — |
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Da origem das religiões. — A autêntica invenção dos fundadores de religiões é, em primeiro lugar, fixar uma determinada espécie de vida e de costumes cotidianos, que aja como disciplina voluntatis [disciplina da vontade] e simultaneamente afaste o tédio; depois, dar a essa vida uma interpretação, mediante a qual ela pareça iluminada pelo mais alto valor, de modo a se tornar um bem pelo qual a pessoa luta e, em algumas circunstâncias, dá a própria vida. Na verdade, a segunda dessas invenções é a mais essencial: a primeira, o modo de vida, normalmente já existia, mas ao lado de outros e sem consciência de qual valor lhe era inerente. A importância, a originalidade do fundador de uma religião manifesta-se habitualmente no fato de que ele o vê, ele o escolhe, ele adivinha pela primeira vez para que serve e como pode ser interpretado. Jesus (ou Paulo), por exemplo, deparou com a vida da gente pequena numa província romana, uma vida modesta, virtuosa, atribulada: ele a interpretou, introduzindo-lhe um supremo sentido e valor — e, com isso, a coragem para desprezar qualquer outro modo de vida, o calmo fanatismo de Herrenhut,[91] a secreta e subterrânea confiança em si, que não para de crescer e enfim está pronta para “sobrepujar o mundo” (isto é, Roma e as classes elevadas de todo o Império). Buda, igualmente, encontrou esse tipo de pessoas, no caso dispersas em todas as classes e degraus sociais do seu povo, que por inércia são boas e brandas (e sobretudo inofensivas), que, também por inércia, vivem na abstinência, quase que sem necessidades: ele compreendeu como inevitavelmente esse tipo de pessoas, com toda a vis inertiae [força da inércia], teria de cair numa fé que promete evitaro retorno da fadiga terrena (ou seja, do trabalho, da ação em geral) — esta “compreensão” foi seu gênio. É própria de um fundador de religião a infalibilidade psicológica no conhecimento de uma certa categoria média de almas, que ainda não reconheceramsua afinidade. É ele que as reúne; logo, a fundação de uma religião sempre se torna uma demorada festa de reconhecimento. |
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Do “gênio da espécie”. — O problema da consciência (ou, mais precisamente, do tornar-se consciente) só nos aparece quando começamos a entender em que medida poderíamos passar sem ela: e agora a fisiologia e o estudo dos animais nos colocam neste começo de entendimento (necessitaram de dois séculos, portanto, para alcançar a premonitória suspeita de Leibniz). Pois nós poderíamos pensar, sentir, querer, recordar, poderíamos igualmente “agir” em todo sentido da palavra: e, não obstante, nada disso precisaria nos “entrar na consciência” (como se diz figuradamente). A vida inteira seria possível sem que, por assim dizer, ela se olhasse no espelho: tal como, de fato, ainda hoje a parte preponderante da vida nos ocorre sem esse espelhamento — também da nossa vida pensante, sensível e querente, por mais ofensivo que isto soe para um filósofo mais velho. Para queentão consciência, quando no essencial é supérflua? Bem, se querem dar ouvidos à minha resposta a essa pergunta e à sua conjectura talvez extravagante, parece-me que a sutileza e a força da consciência estão sempre relacionadas à capacidade de comunicação de uma pessoa (ou animal), e a capacidade de comunicação, por sua vez, à necessidade de comunicação: mas não, entenda-se, que precisamente o indivíduo mesmo, que é mestre justamente em comunicar e tornar compreensíveis suas necessidades, também seja aquele que em suas necessidades mais tivesse de recorrer aos outros. Parece-me que é assim no tocante a raças e correntes de gerações: onde a necessidade, a indigência, por muito tempo obrigou os homens a se comunicarem, a compreenderem uns aos outros de forma rápida e sutil, há enfim um excesso dessa virtude e arte da comunicação, como uma fortuna[92] que gradualmente foi juntada e espera um herdeiro que prodigamente a esbanje (— os chamados artistas são esses herdeiros, assim como os oradores, pregadores, escritores, todos eles pessoas que sempre vêm no final de uma longa cadeia, “frutos tardios”, na melhor acepção do termo, e, como foi dito, por natureza esbanjadores). Supondo que esta observação seja correta, posso apresentar a conjectura de que a consciência desenvolveu-se apenas sob a pressão da necessidade de comunicação — de que desde o início foi necessária e útil apenas entre uma pessoa e outra (entre a que comanda e a que obedece, em especial), e também se desenvolveu apenas em proporção ao grau dessa utilidade. Consciência é, na realidade, apenas uma rede de ligação entre as pessoas — apenas como tal ela teve que se desenvolver: um ser solitário e predatório não necessitaria dela. O fato de nossas ações, pensamentos, sentimentos, mesmo movimentos nos chegarem à consciência — ao menos parte deles —, é consequência de uma terrível obrigação que por longuíssimo tempo governou o ser humano: ele precisava, sendo o animal mais ameaçado, de ajuda, proteção, precisava de seus iguais, tinha de saber exprimir seu apuro e fazer-se compreensível — e para isso tudo ele necessitava antes de “consciência”, isto é, “saber” o que lhe faltava, “saber” como se sentia, “saber” o que pensava. Pois, dizendo-o mais uma vez: o ser humano, como toda criatura viva, pensa continuamente, mas não o sabe; o pensar que se torna conscienteé apenas a parte menor, a mais superficial, a pior, digamos: — pois apenas esse pensar consciente ocorre em palavras,ou seja,em signos de comunicação, com o que se revela a origem da própria consciência. Em suma, o desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento da consciência (não da razão, mas apenas do tomar-consciência-de-si da razão) andam lado a lado. Acrescente-se que não só a linguagem serve de ponte entre um ser humano e outro, mas também o olhar, o toque, o gesto; o tomar-consciência das impressões de nossos sentidos em nós, a capacidade de fixá-las e como que situá-las fora de nós, cresceu na medida em que aumentou a necessidade de transmiti-las a outros por meio de signos. O homem inventor de signos é, ao mesmo tempo, o homem cada vez mais consciente de si; apenas como animal social o homem aprendeu a tomar consciência de si — ele o faz ainda, ele o faz cada vez mais. — Meu pensamento, como se vê, é que a consciência não faz parte realmente da existência individual do ser humano, mas antes daquilo que nele é natureza comunitária e gregária;[93] que, em consequência, apenas em ligação com a utilidade comunitária e gregária ela se desenvolveu sutilmente, e que, portanto, cada um de nós, com toda a vontade que tenha de entendera si próprio da maneira mais individual possível, de “conhecer a si mesmo”, sempre traz à consciência justamente o que não possui de individual, o que nele é “médio” — que nosso pensamento mesmo é continuamente suplantado, digamos, pelo caráter da consciência — pelo “gênio da espécie” que nela domina — e traduzido de volta para a perspectiva gregária. Todas as nossas ações, no fundo, são pessoais de maneira incomparável, únicas, ilimitadamente individuais, não há dúvida; mas, tão logo as traduzimos para a consciência, não parecem mais sê-lo... Este é o verdadeiro fenomenalismo e perspectivismo, como euo entendo: a natureza da consciência animalocasiona que o mundo de que podemos nos tornar conscientes seja só um mundo generalizado, vulgarizado[94] — que tudo o que se torna consciente por isso mesmo torna-se raso, ralo, relativamente tolo, geral, signo, marca de rebanho, que a todo tornar-se consciente está relacionada uma grande, radical corrupção, falsificação, superficialização e generalização. Afinal, a consciência crescente é um perigo; e quem vive entre os mais conscientes europeus sabe até que é uma doença. Não é, como se nota, a oposição entre sujeito e objeto que aqui me interessa: essa distinção deixo para os teóricos do conhecimento que se enredaram nas malhas da gramática (a metafísica do povo). E menos ainda é a oposição entre fenômeno e “coisa em si”: pois estamos longe de “conhecer” o suficiente para poder assim separar.Não temos nenhum órgão para o conhecer, para a “verdade”: nós “sabemos” (ou cremos, ou imaginamos) exatamente tanto quanto pode ser útilao interesse da grege humana, da espécie: e mesmo o que aqui se chama “utilidade” é, afinal, apenas uma crença, uma imaginação e, talvez, precisamente a fatídica estupidez da qual um dia pereceremos. |
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A origem do nosso conceito de “conhecimento”. — Esta explicação eu encontrei na rua; ouvi alguém do povo dizer: “Ele me reconheceu” —: então me perguntei: o que entende mesmo o povo por “conhecimento”? o que quer ele, quando quer “conhecimento”? Não mais do que isto: algo estranho deve ser remetido a algo conhecido.[95] E nós, filósofos — já entendemos maisdo que isso, ao falar de conhecimento? O conhecido, isto é, aquilo a que estamos habituados, de modo que não mais nos admiramos, nosso cotidiano, alguma regra em que estamos inseridos, toda e qualquer coisa em que nos sentimos em casa: — como? nossa necessidade de conhecer não é justamente essa necessidade do conhecido, a vontade de, em meio a tudo o que é estranho, inabitual, duvidoso, descobrir algo que não mais nos inquiete? Não seria o instinto do medoque nos faz conhecer? E o júbilo dos que conhecem não seria precisamente o júbilo do sentimento de segurança reconquistado?... Eis um filósofo que deu o mundo por “conhecido”, tendo-o remetido à “ideia”: não seria porque a “ideia” lhe era tão familiar, tão habitual? porque ele já a receava tão pouco? — Oh, que fácil satisfação a dos homens do conhecimento! Examine-se, quanto a isto, os seus princípios e soluções para os enigmas do mundo! Quando reencontram nas coisas, sob as coisas, por trás delas, algo que infelizmente nos é bem conhecido ou familiar, como a nossa tabuada, a nossa lógica ou nosso querer e desejar, como ficam imediatamente felizes! Pois “o que é familiar é conhecido”: nisso estão de acordo. Também os mais cautelosos entre eles acham que ao menos o familiar é mais facilmente cognoscível do que o estranho; que o método exige, por exemplo, que se parta do “mundo interior”, dos “fatos da consciência”, pois este é o mundo mais familiar para nós! Erro dos erros! O familiar é o habitual; e o habitual é o mais difícil de “conhecer”, isto é, de ver como problema, como alheio, distante, “fora de nós”... A grande segurança das ciências naturais, em relação à psicologia e à crítica dos elementos da consciência — ciências não naturais, poderíamos talvez dizer —, reside justamente no fato de tomarem o estranhopor objeto: enquanto é quase contraditório e absurdo querer tomar por objeto o não estranho... |
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Em que medida a Europa se torna cada vez mais “artística”. — Ainda hoje, em nossa época de transição, em que tantas coisas deixam de ser impostas, a preocupação com a subsistência impõe a quase todos os homens europeus um determinado papel, que é chamado de profissão; alguns mantêm a liberdade, uma liberdade aparente, de escolher eles próprios esse papel, enquanto para a maioria ele é escolhido. O resultado é bem peculiar: quase todos os europeus se confundem com o seu papel à medida que avançam na idade, eles mesmos são vítimas de seu “bom desempenho”, eles mesmos esquecem o quanto o acaso, o capricho e a arbitrariedade dispuseram deles, quando foi decidida sua “profissão” — e quantos outros papéis eles poderiamter desempenhado: pois agora é tarde demais! Olhando mais profundamente, o papel tornou-serealmente caráter, e a arte, natureza. Houve períodos em que um homem acreditava, com rígida confiança e até com devoção, estar predestinado para justamente um negócio, um determinado ganha-pão, e absolutamente não queria reconhecer ali o acaso, o papel, o elemento arbitrário: com ajuda de tal crença, classes, guildas, hereditários privilégios de ofício chegaram a erguer esses portentos de amplas torres sociais que distinguem a Idade Média, e nos quais resta ao menos uma coisa a louvar: a durabilidade (— e a duração é, neste mundo, um valor de primeira ordem!). Mas também há períodos, os genuinamente democráticos, em que esta crença é abandonada e passa a primeiro plano uma atrevida crença e perspectiva oposta, a crença dos atenienses, que na época de Péricles se faz notar pela primeira vez, a crença dos americanos de hoje, que tende cada vez mais a tornar-se europeia: na qual o indivíduo está convencido de poder mais ou menos tudo, de estar mais ou menos à altura de qualquer papel, na qual cada um experimenta consigo, improvisa, de novo experimenta, experimenta com prazer, na qual toda natureza cessa e se torna arte... Os gregos, após assumirem esta crença no papel — uma crença de artistas, se quiserem —, sofreram pouco a pouco, é notório, uma singular transformação, que não deve ser imitada em todo aspecto: eles se tornaram realmente atores; e como tais encantaram, conquistaram, o mundo inteiro, e afinal a própria “conquistadora” do mundo (pois é o Graeculus histrio [ator grego] que vence Roma, e não, como costumam dizer os inocentes, a cultura grega...). Mas o que receio, o que agora já é palpável, caso se quisesse palpar, é que nós, homens modernos, já nos achamos no mesmo caminho; e sempre que o homem começa a descobrir em que medida ele desempenha um papel e em que medida podeser ator, ele torna-se ator... Com isso emerge uma nova fauna e flora humana, que em tempos mais firmes e limitados não pode crescer — ou fica “embaixo”, debaixo da proibição e da suspeita de desonra —, surgem com isso as épocas mais interessantes e mais loucas da história, em que os “atores”, toda espécie de atores, são os verdadeiros senhores. Justamente por isso, uma outra espécie de homens é sempre mais prejudicada e enfim tornada impossível, acima de tudo os grandes “construtores”; a energia de construir é paralisada; a coragem de fazer planos para o futuro distante é desestimulada; começam a faltar os gênios organizadores: — quem ainda ousa empreender obras para as quais é preciso contar com milênios? Está se extinguindo justamente a crença básica pela qual alguém pode de tal forma calcular, prometer, antecipar o futuro em planos e sacrificá-lo a seus planos, a crença de que o homem só tem valor e sentido enquanto é uma pedra num grande edifício: para isso ele tem, antes de tudo, que ser firme, ser “pedra”... E, sobretudo, não ser — ator! Em poucas palavras — ah, sobre isto haverá silêncio por muito tempo! —, o que doravante não mais será construído, não mais podeser construído, é — uma sociedade no velho sentido da palavra; para construir tal edifício falta tudo, a começar pelo material. Nós todos já não somos material para uma sociedade: eis uma verdade cuja hora chegou! Para mim não faz diferença que o tipo de homem mais míope, talvez mais honesto, certamente mais ruidoso que hoje existe, nossos caros socialistas, pense, espere, sonhe, principalmente grite e escreva mais ou menos o contrário; pois o seu lema para o futuro, “Sociedade livre”, já pode ser lido em todos os muros e mesas. Sociedade livre? Sim! Sim! Mas sabem os senhores com o que ela é feita? Com ferro de madeira![96] Com o famoso ferro de madeira! E nem sequer de madeira… |
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357. |
Acerca do velho problema: “O que é alemão?”. — Que cada qual verifique as genuínas realizações do pensamento filosófico que são devidas a cérebros alemães: há algum sentido legítimo em creditá-las a toda a raça? Podemos dizer que são, ao mesmo tempo, obra da “alma alemã”, ao menos seu sintoma, no sentido em que estamos habituados a ver, digamos, a ideomania de Platão, seu quase religioso delírio das formas, como evento e testemunho da “alma grega”? Ou o contrário seria verdadeiro? Seriam elas tão individuais, tão excepcionaisno espírito da raça quanto foi, por exemplo, o paganismo com boa consciência de Goethe? Ou como é, entre os alemães, o maquiavelismo com boa consciência de Bismarck, a chamada Realpolitik [política realista]? Estariam os nossos filósofos contrariando as necessidadesda alma alemã? Em suma, foram os filósofos alemães realmente — alemães filosóficos? — Recordarei três casos. Primeiro, a incomparável percepção de Leibniz, com a qual ele teve razão não só perante Descartes, mas ante todos os que haviam filosofado até então — de que a consciência é tão só um accidens [acidente] da representação, nãoseu atributo necessário e essencial; que, portanto, isso que denominamos consciência constitui apenas um estado de nosso mundo espiritual e psíquico (talvez um estado doentio) e de modo algum ele próprio: — existe nesse pensamento, cuja profundidade até hoje não foi esgotada, algo de alemão? Existe razão para supor que um latino dificilmente chegaria a esta inversão da aparência? — porque é uma inversão. Lembremo-nos, em segundo lugar, da enorme interrogação de Kant, por ele aplicada ao conceito de “causalidade” — não que ele houvesse, como Hume, questionado sua legitimidade: ele começou, isto sim, a delimitar cautelosamente o âmbito no qual esse conceito faz sentido (ainda hoje não se terminou com essa demarcação). Em terceiro lugar, tomemos o espantoso golpe com que Hegelabalou todos os hábitos e vícios lógicos, ousando ensinar que os conceitos de espécie desenvolvem-se um a partir do outro: tese com a qual os espíritos europeus foram preparados para o último grande movimento científico, o darwinismo — pois sem Hegel não haveria Darwin. Há algo de alemão nessa novidade hegeliana, que introduziu na ciência o decisivo conceito de “desenvolvimento”? — Sim, sem dúvida; nos três casos sentimos que algo em nós foi “descoberto”, adivinhado, e ficamos a um só tempo agradecidos e surpresos, cada uma dessas três teses é, para os alemães, uma grave parcela de autoconhecimento, experiência e compreensão de si. “Nosso mundo interior é muito mais rico, mais amplo, mais oculto”, sentimos juntamente com Leibniz; como alemães duvidamos, juntamente com Kant, da validade última dos conhecimentos das ciências naturais e de tudo o que se deixa conhecer causaliter[causalmente]: o cognoscíveljá nos parece, como tal, de poucovalor. Nós, alemães, somos hegelianos, mesmo que nunca tivesse havido um Hegel, na medida em que (à diferença dos latinos) damos instintivamente ao vir-a-ser, ao desenvolvimento, um valor mais profundo e mais rico do que àquilo que “é” — nós mal acreditamos que se justifique o conceito de “ser” —; e também na medida em que não nos inclinamos a admitir que a nossa lógica humana seja a lógica em si, a única lógica (gostaríamos de nos convencer de que ela é apenas um caso especial, talvez um dos mais estúpidos e singulares —). Uma quarta questão seria se também Schopenhauer, com o seu pessimismo, ou seja, com o problema do valor da existência, teria de ser precisamente alemão. Creio que não. O evento após o qual esse problema era de esperar com total certeza, de forma que um astrônomo da alma poderia calcular seu dia e hora, o declínio da crença no Deus cristão, a vitória do ateísmo científico, é um evento de toda a Europa, no qual as raças todas devem ter seu quinhão de mérito e honra. Pelo contrário, seria de atribuir aos alemães — aos alemães de que Schopenhauer foi contemporâneo — haverem retardado longamente e perigosamente essa vitória do ateísmo; Hegel foi o seu retardador por excelência, segundo a grandiosa tentativa que fez de nos convencer da divindade da existência, enfim recorrendo até ao nosso sexto sentido, o “sentido histórico”. Schopenhauer foi, como filósofo, o primeiro ateísta confesso e inabalável que nós, alemães, tivemos: esse era o pano de fundo da sua hostilidade a Hegel. A profanidade da existência era para ele algo dado, tangível, indiscutível; ele perdia a sua compostura de filósofo e se encolerizava toda vez que alguém mostrava hesitação e fazia rodeios nesse ponto. Toda a sua retidão está nisso; o ateísmo incondicional e honesto é o pressuposto de sua colocação dos problemas, como vitória obtida afinal e com grande custo pela consciência europeia, como o ato mais pródigo em consequências de uma educação para a verdade que dura dois mil anos, que finalmente se proíbe a mentira de crer em Deus... Vê-se o que triunfou realmente sobre o Deus cristão: a própria moralidade cristã, o conceito de veracidade entendido de modo sempre mais rigoroso, a sutileza confessional da consciência cristã, traduzida e sublimada em consciência científica, em asseio intelectual a qualquer preço. Encarar a natureza como se ela fosse prova da bondade e proteção de um Deus;[97] interpretar a história para glória de uma razão divina, como perene testemunho de uma ordenação moral do mundo e de intenções morais últimas; explicar as próprias vivências como durante muito tempo fizeram os homens devotos, como se tudo fosse previdência, aviso, concebido e disposto para a salvação da alma: isso agora acabou, isso tem a consciência contra si, todas as consciências refinadas o veem como indecoroso, desonesto, como mentira, feminismo, fraqueza, covardia — devemos a este rigor, se devemos a algo, o fato de sermos bonseuropeus e herdeiros da mais longa e corajosa autossuperação da Europa. Ao assim rejeitarmos a interpretação cristã e condenarmos o seu “sentido” como uma falsificação,[98] aparece-nos de forma terrível a questão de Schopenhauer: então a existência tem algum sentido?— essa questão que precisará de alguns séculos para simplesmente ser ouvida por inteiro e em toda a sua profundidade. A resposta do próprio Schopenhauer a essa questão foi — que isto me seja perdoado — um tanto precipitada, juvenil, apenas um compromisso, um modo de permanecer e se prender nas perspectivas morais cristão-ascéticas a cuja crença se renunciara juntamente com a fé em Deus... Mas ele colocou a questão — como bom europeu, já disse, nãocomo alemão. — Ou teriam os alemães demonstrado, ao menos na forma como se apoderaram da questão de Schopenhauer, íntima afinidade e parentesco, preparação e necessidade quanto ao seu problema? O fato de, após Schopenhauer, também na Alemanha se ter pensado e escrito — um pouco tarde, aliás! — acerca do problema por ele colocado não basta, certamente, para decidir a favor de uma tal afinidade; pode-se mesmo apresentar contra isso a característica inabilidade desse pessimismo pós-schopenhaueriano — evidentemente, os alemães não se comportaram como se estivessem no seu elemento. Nisso não estou aludindo absolutamente a Eduard von Hartmann; pelo contrário, ainda hoje não desapareceu minha velha suspeita de que ele é hábil demaispara nós, isto é, de que ele, grande finório desde o início, talvez tenha não apenas zombado do pessimismo alemão — de que, no fim, pode mesmo haver “legado” em testamento, para os alemães, o modo como era possível zombar deles em plena Época da Fundação.[99] Mas eu pergunto: deve-se contar em prol dos alemães o velho pião rangento Bahnsen,[100] que a vida inteira rodou voluptuosamente em volta de sua miséria real-dialética e “má sina pessoal” — seria justamente isso alemão? (recomendo suas obras, aliás, para o uso que eu mesmo fiz delas, como dieta antipessimista, sobretudo por sua elegantiae psychologicae [elegância psicológica]; com elas, imagino, pode-se lidar mesmo com os intestinos e os ânimos mais presos). Ou deveríamos considerar alemães autênticos os diletantes e velhas solteironas como Mainländer, o sacarino apóstolo da virgindade? Ele terá sido judeu, afinal (— todos os judeus se tornam sacarinos ao moralizar). Nem Bahnsen nem Mainländer, menos ainda Eduard von Hartmann, fornecem dados seguros para a questão de saber se o pessimismo de Schopenhauer, seu olhar de horror a um mundo desdivinizado, que se tornara estúpido, cego, louco e questionável, seu honestohorror... seria não um mero caso excepcional entre os alemães, mas um evento alemão: ao passo que tudo o mais que se acha em primeiro plano, nossa valente política, nossa alegre patrioteirice, que muito resolutamente considera todas as coisas segundo um princípio bem pouco filosófico (“Alemanha, Alemanha acima de tudo”), isto é, sub specie speciei [do ponto de vista da espécie],[101] quer dizer, da speciesalemã, prova nitidamente o contrário. Não, os alemães de hoje não são pessimistas! E Schopenhauer era pessimista, repito, como bom europeu e não como alemão. — |
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A rebelião camponesa no âmbito do espírito. — Nós, europeus, achamo-nos em face de um imenso mundo de escombros, no qual algumas coisas ainda estão de pé, outras aparecem deterioradas e medonhas, e a maioria jaz no chão, tudo bastante pitoresco — onde já se viram ruínas mais belas? — e coberto de ervas daninhas. Esta cidade em decadência é a Igreja: vemos a sociedade religiosa do cristianismo abalada até os últimos alicerces — a crença em Deus foi derrubada, a crença no ideal cristão-ascético trava ainda seu derradeiro combate. Uma obra construída por tanto tempo e de maneira tão sólida como o cristianismo — foi a última construção romana! — não podia, naturalmente, ser destruída de uma vez; foi preciso que toda espécie de terremotos a sacudisse, que houvesse a colaboração de todo espírito que fura, escava, corrói, umedece. O mais extraordinário, porém, é o seguinte: os que mais tiveram empenho em segurar e conservar o cristianismo foram justamente os que mais o destruíram — os alemães. Parece que os alemães não compreendem a natureza de uma igreja. Não seriam espirituais o bastante para isso? desconfiados o bastante? O edifício da Igreja, em todo caso, repousa numa liberdade e liberalidade meridionaldo espírito, e também numa suspeita meridional da natureza, do homem e do espírito — repousa num conhecimento e numa experiência do homem muito diferentes dos que teve o Norte. A Reforma luterana foi, em toda a sua amplitude, a indignação da simplicidade contra algo “múltiplo”, falando cautelosamente, um grosseiro e virtuoso mal-entendido, no qual há muito o que perdoar — não foi compreendida a expressão de uma Igreja vitoriosa e viu-se apenas corrupção, entendeu-se mal o ceticismo nobre, o luxode ceticismo e tolerância que toda potência vitoriosa e segura permite a si mesma... Podemos hoje enxergar bem como Lutero era desastrosamente limitado, superficial e imprevidente nas questões cardinais do poder, como homem do povo que era, a quem faltava toda a herança de uma casta dominante, todo o instinto para o poder: de forma que sua obra, sua vontade de restaurar aquele edifício romano, veio a ser apenas o início de uma obra de destruição, sem que ele o quisesse e soubesse. Ele desmanchou, ele rasgou, com honesta ira, tudo o que a velha aranha[102] tecera cuidadosamente por tão longo tempo. Ele entregou os livros sagrados a todo o mundo — assim caíram eles finalmente nas mãos dos filólogos, ou seja, dos aniquiladores de toda fé que repousa nos livros. Ele destruiu a noção de “igreja”, ao rejeitar a crença na inspiração dos concílios: pois somente no pressuposto de que o espírito que inspirou, que fundou a Igreja, nela ainda vive, ainda edifica, continua a edificar sua casa, é que a noção de “igreja” mantém sua força. Ele restituiu ao sacerdote a relação sexual com a mulher: mas três quartos da reverência de que é capaz o povo, sobretudo a mulher do povo, baseia-se na crença de que um homem excepcional neste ponto também será exceção em outros pontos — precisamente nisto a crença popular em algo sobre-humano no homem, no milagre, no Deus redentor que há no homem, encontra seu mais sutil e mais ardiloso defensor. Após dar ao sacerdote a mulher, Lutero teve que tirar-lhea confissão, o que foi psicologicamente acertado: mas com isso, no fundo, estava abolido o sacerdote cristão, cuja utilidade mais profunda sempre foi a de ser um ouvido sagrado, um poço calado, um túmulo de segredos. “Cada qual seu próprio sacerdote” — sob tais fórmulas e sob a astúcia camponesa que há nelas escondia-se em Lutero o ódio abissal para com o “homem superior” e o domínio do “homem superior”, tal como fora concebido pela Igreja: — ele destroçou um ideal que não podia alcançar, enquanto parecia combater e abominar a degeneração desse ideal. Na realidade, esse homem que achara impossível ser monge repeliu a dominação dos homines religiosi; fez no interior da ordem eclesiástica, portanto, precisamente o que combateu de forma intransigente na ordem civil — uma “rebelião camponesa”. — Quanto ao que depois se originou dessa Reforma, de bom e de mau, que hoje pode ser aproximadamente calculado — quem seria ingênuo o bastante para simplesmente louvar ou censurar Lutero por tais consequências? Ele não tem culpa de nada, não sabia o que fazia. A trivialização do espírito europeu, sobretudo no Norte, sua edulcoração, se preferirem usar um termo moral,[103] deu um bom passo à frente com a Reforma de Lutero, não há dúvida; do mesmo modo cresceu com ela a agilidade e inquietude do espírito, a sua sede de independência, sua crença num direito à liberdade, sua “naturalidade”. Querendo, nesse último aspecto, conceder-lhe o valor de ter preparado e favorecido o que hoje veneramos como “ciência moderna”, teremos de acrescentar que ela é também corresponsável pela degeneração do moderno erudito, por sua falta de reverência, pudor e profundidade, por toda a ingênua candura e bonomia em coisas do conhecimento, em suma, pelo plebeísmo do espírito que é peculiar aos dois últimos séculos e do qual nem o pessimismo que até agora houve nos redimiu — também as “ideias modernas” são parte dessa revolta camponesa do Norte contra o mais frio, ambíguo e desconfiado espírito do Sul, que com a Igreja cristã ergueu seu maior monumento. Não esqueçamos, afinal, o que é uma Igreja, em oposição a todo “Estado”: uma Igreja é, principalmente, uma estrutura de dominação, que assegura a mais alta posição aos homensmais espirituaise de tal forma acredita no poder da espiritualidade que proíbe a si mesma todos os instrumentos de força grosseiros — apenas com isso a Igreja é, em todas as circunstâncias, uma instituição mais nobreque o Estado. |
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A vingança contra o espírito e outros motivos secretos da moral. — A moral — onde acreditam vocês que ela tenha seus mais perigosos e insidiosos advogados?... Eis um homem que não vingou,[104] que não possui espírito suficiente para dele se alegrar e cultura bastante apenas para perceber isso; entediado, desgostado, um desprezador de si mesmo; infelizmente privado, por alguma herança que recebeu, daquele último consolo, a “bênção do trabalho”, o autoesquecimento na “labuta diária”; um tal que, no fundo, envergonha-se da sua existência — talvez abrigue também alguns pequenos vícios — e, por outro lado, não pode senão tornar-se cada vez mais estragado e vaidoso-irritável, graças a livros a que não tem direito ou a companhia mais espiritual do que o que pode digerir: um homem tal, integralmente envenenado — pois espírito se torna veneno, cultura se torna veneno, posses tornam-se veneno, solidão torna-se veneno, em seres que assim não vingam — cai afinal num costumeiro estado de vingança, de vontade de vingança... O que acham vocês que ele requer, requer absolutamente, para dar a si mesmo a aparência de superioridade sobre homens mais espirituais, para dar-se o prazer da vingança cumprida, ao menos na imaginação? Sempre a moralidade, pode-se apostar, sempre os grandes termos morais, o trombetear de justiça, sabedoria, santidade, virtude, sempre o estoicismo de gestos (— como o estoicismo esconde bem o que não se tem!...), sempre o manto de sagaz silêncio, de afabilidade, de brandura, e como quer que se denominem os mantos idealistas com que passeiam os incuráveis desprezadores de si e os incuráveis vaidosos. Não me entendam mal: desses natos inimigos do espírito surge ocasionalmente o raro espécime de humanidade que o povo reverencia como santo e sábio; desses homens procedem os monstros da moral que fazem barulho, que fazem história — santo Agostinho é um deles. O temor ante o espírito, a vingança contra o espírito — oh, com que frequência tais vícios impulsivos[105] não se tornaram raiz de virtudes! Sim, tornaram-se virtude! — E, fazendo a pergunta entre nós, mesmo a pretensão dos filósofos à sabedoria, que aqui e ali já se fez no mundo, a mais louca e imodesta das pretensões — não foi sempre até hoje, na Índia como na Grécia, sobretudo um esconderijo? Por vezes, quem sabe, do ponto de vista pedagógico, que santifica tantas mentiras, em delicada consideração por seres que se formam, que crescem, por discípulos que, mediante a crença na pessoa (mediante um erro), com frequência têm que ser defendidos de si mesmos... Na maioria dos casos, porém, um esconderijo para o filósofo, no qual ele se salva devido ao cansaço, idade, endurecimento, esfriamento, por sentir a morte próxima, pela prudência desse instinto que os animais têm antes da morte — eles se põem à parte, ficam silenciosos, escolhem a solidão, refugiam-se em cavernas, tornam-se sábios... Como? A sabedoria sendo um esconderijo para o filósofo diante — do espírito? — |
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Duas espécies de causas confundidas. — Um dos meus passos e avanços mais substanciais parece-me ser este: aprendi a diferenciar a causa do agir da causa do agir de tal e tal modo, do agir numa particular direção, com um objetivo particular. A primeira espécie de causa é um quantumde energia represada, esperando ser utilizada de alguma forma, com algum fim; já a segunda espécie é algo insignificante comparado a essa energia, geralmente um simples acaso, segundo o qual aquele quantumse “desencadeia” de uma maneira ou de outra: o fósforo em relação ao barril de pólvora. Entre esses pequenos acasos e fósforos incluo todos os pretensos “fins” e também as ainda mais pretensas “vocações”: são relativamente fortuitos, arbitrários, quase indiferentes, em relação ao enorme quantumde energia que urge, como disse, para ser de alguma forma consumido. Normalmente as pessoas veem isso de outra maneira: estão acostumadas a ver precisamente no objetivo (finalidade, profissão etc.) a força motriz,[106] conforme um erro antiquíssimo — mas ele é apenas a força diretiva, o piloto foi aí confundido com o vapor. E muitas vezes nem mesmo o piloto, a força diretiva... O “objetivo”, o “fim”, não seria frequentemente um pretexto embelezador, um posterior fechar de olhos da vaidade, que não quer admitir que o barco seguea corrente na qual fortuitamente caiu? Que ele “quer” ir para lá porque — temde ir? Que ele tem uma direção, mas não — um piloto? — Necessitamos de uma crítica do conceito de “finalidade”. |
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O problema do ator. — O problema do ator me perturbou durante muitíssimo tempo; eu não estava certo (e ocasionalmente ainda não estou) de que somente a partir dele poderemos lidar com o perigoso conceito de “artista” — que até o momento foi tratado com imperdoável bonomia. A falsidade com boa consciência; o prazer na dissimulação irrompendo como poder, jogando para o lado, submergindo, às vezes extinguindo o chamado “caráter”; o íntimo anseio de papel e máscara, de aparência; um excesso de capacidades de adaptação de todo tipo, que já não se satisfazem no serviço da estreita utilidade imediata: tudo isso talvez não seja apenas o ator... Um tal instinto terá se desenvolvido mais facilmente nas famílias do povo humilde, que tinham de atravessar a vida sob opressões e constrangimentos vários, em profunda dependência, que deviam docilmente curvar-se às circunstâncias, sempre ajustar-se de novo a novas condições, sempre mudar de atitude e expressão, tornando-se gradualmente capazes de virar o casaco segundo qualquer vento, assim virando elas mesmas casaco, mestres na encarnada e inveterada arte do perene esconde-esconde, que nos animais se chama mimicry[mimetismo]: até que essa faculdade, armazenada de geração em geração, torna-se enfim dominadora, insensata, indômita, aprende a comandar, enquanto instinto, outros instintos, e produz o “artista” (primeiramente o bobo, o contador de lorotas, o bufão, o tolo, o palhaço, e também o criado clássico, o Gil Blas: pois nesses tipos temos a pré-história do artista e até do “gênio”, com frequência). Em condições sociais superiores também se desenvolve, sob pressões similares, uma espécie de homem similar: mas então o instinto histriônico é geralmente mantido em xeque por um outro instinto, como no “diplomata”, por exemplo — aliás, eu diria que um bom diplomata sempre poderia também dar um bom ator, desde que justamente “pudesse”. No que toca aos judeus, o povo da arte de adaptação par excellence, somos tentados a considerá-los, segundo este raciocínio, quase que uma organização mundial para a criação de atores, um autêntico viveiro de atores; e, de fato, já é boa hora de perguntar: qual o bom ator, nos dias de hoje, que não é judeu? Também o judeu literato congênito, que efetivamente domina a imprensa europeia, exerce esse poder em virtude de seus dons teatrais: pois o literato é essencialmente ator — ele faz o “entendido”, o “especialista”. — Por fim, as mulheres: reflitam sobre a história inteira das mulheres — elas não têm de ser atrizes, antes e acima de tudo? Ouçam os médicos que hipnotizaram mulheres; enfim, amem-nas — deixem-se “hipnotizar” por elas! Qual é sempre o resultado? Que elas “dão-se por”, mesmo quando — se dão.[107]... A mulher é tão artística... |
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Nossa crença numa virilização da Europa. — Devemos a Napoleão (e de modo algum à Revolução Francesa, que visou a “fraternidade” dos povos e floridas efusões universais) o fato de agora poderem sobrevir alguns séculos guerreiros sem paralelo na história, em suma, o fato de havermos entrado na era clássica da guerra, da guerra instruída e ao mesmo tempo popular na maior escala (dos meios, dos talentos, da disciplina), para a qual os séculos vindouros olharão com inveja e reverência, como algo perfeito: — pois o movimento nacionalista do qual surge esta glória guerreira é apenas o contragolpe a Napoleão e não existiria sem ele. Logo, a ele se poderá um dia creditar que o homem na Europa tenha novamente predominado sobre o negociante e o filisteu; talvez até sobre a “mulher”, que foi mimada pelo cristianismo e pelo espírito entusiasta do século XVIII, e mais ainda pelas “ideias modernas”. Napoleão, que nas ideias modernas e na civilização mesma via como que uma inimiga pessoal, provou ser, com essa hostilidade, um dos grandes continuadores da Renascença: ele fez novamente aparecer toda uma parte da natureza antiga, aquela talvez decisiva, a parte de granito. E quem sabe se este quê da Antiguidade não irá enfim predominar de novo sobre o movimento nacionalista e não se tornará, afirmativamente, senhor e continuador de Napoleão: — que queria uma Europa única, como se sabe, e senhora da Terra. — |
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Como cada sexo tem seu preconceito em relação ao amor. — Por mais concessões que eu me ache disposto a fazer ao preconceito monogâmico, nunca admitirei que se fale de direitos iguaisdo homem e da mulher no amor: tais direitos não existem. É que homem e mulher entendem por amor coisas diferentes — e faz parte das condições do amor, em ambos os sexos, que nenhum dos dois pressuponha no outro o mesmo sentimento, o mesmo conceito de “amor”. O que a mulher entende por amor é claro: total dedicação (não apenas entrega) de corpo e alma, sem qualquer consideração ou reserva, antes com vergonha e horror ao pensamento de uma dedicação condicional, sujeita a cláusulas. Nessa ausência de condições, seu amor é uma fé: a mulher não conhece outra. — O homem, ao amar uma mulher, quer dela precisamente este amor, e, por conseguinte, está ele mesmo o mais distante possível do pressuposto do amor feminino; supondo, porém, que haja também homens aos quais não é estranho o anseio de total dedicação, bem, precisamente não se trata de — homens. Um homem que ama como uma mulher torna-se escravo; mas uma mulher que ama como uma mulher torna-se mais perfeita como mulher... A paixão da mulher, na sua incondicional renúncia a direitos próprios, tem justamente por pressuposto que do outro lado não exista semelhante pathos, semelhante desejo de renúncia: pois se ambos renunciassem a si mesmos por amor, daí resultaria — não sei bem o quê; talvez um vácuo? — A mulher quer ser tomada e aceita como posse, quer ser absorvida[108] na noção de “posse”, de “possuído”; em consequência, quer alguém que tome, que não dê e não conceda a si próprio, que, ao contrário, seja precisamente tornado mais rico em “si” — pelo aumento de força, felicidade, fé, que a mulher lhe proporciona ao se dar. A mulher se concede, o homem acrescenta — eu acho que não é possível superar esse contraste natural mediante contratos sociais ou com a melhor vontade de justiça: por mais desejável que seja não termos continuamente perante os olhos o que há de terrível, duro, enigmático e imoral nesse antagonismo. Pois o amor, concebido de modo inteiro, grande, pleno, é natureza e, enquanto natureza, algo eternamente “imoral”. — A fidelidade, portanto, acha-se incluída no amor da mulher, vem da sua definição mesma; no homem ela podefacilmente surgir acompanhando o seu amor, talvez como gratidão ou como idiossincrasia do gosto e pela chamada afinidade eletiva, mas não é parte essencialdo seu amor — e tanto não é que quase podemos falar, com algum direito, de uma natural oposição entre amor e fidelidade no homem: cujo amor é justamente um querer-ter e não um renunciar e conceder; mas o querer-ter sempre chega ao fim com o ter... Na realidade, é a sutil e desconfiada sede de posse do homem que admite raramente e de forma tardia esse “ter”, o que faz perdurar seu amor; assim é até mesmo possível que ele cresça após a entrega — dificilmente o homem aceita que a mulher nada mais tenha para lhe “entregar”. — |
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Fala o eremita. — A arte de andar com pessoas reside essencialmente na habilidade (que pressupõe um longo treino) de admitir, ingerir uma refeição em cujo preparo não temos confiança. Desde que cheguemos à mesa com uma fome de lobo, tudo corre facilmente (“a pior companhia te faz sentir —”, como diz Mefistófeles);[109] mas esta fome de lobo, não a temos quando dela precisamos! Ah, como os semelhantes são difíceis de digerir! Primeiro princípio: tal como num infortúnio, reunir toda a sua coragem, pôr valentemente mãos à obra, admirar a si mesmo por isso, serrar entre os dentes a aversão, engolir sua náusea. Segundo princípio: “melhorar” o semelhante com um elogio, por exemplo, de modo que ele comece a transpirar a felicidade consigo mesmo; ou agarrar uma ponta de suas características boas ou “interessantes” e puxá-la, até que toda a virtude esteja de fora e possamos ocultar o semelhante em suas dobras. Terceiro princípio: auto-hipnotização. Fixar os olhos no objeto de relacionamento como se ele fosse um botão de vidro, até que paramos de sentir prazer e desprazer e adormecemos imperceptivelmente, ficamos hirtos, adquirimos postura: um remédio caseiro que vem do matrimônio e da amizade, amplamente testado, tido como indispensável, mas ainda não formulado cientificamente. Seu nome popular é — paciência. — |
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O eremita fala novamente. — Também nós andamos com “pessoas”, também nós vestimos modestamente a roupa com a qual (comoa qual) nos conhecem, nos estimam, nos procuram, e assim comparecemos em sociedade, isto é, entre pessoas disfarçadas que não querem ser tidas como tais; também nós fazemos como todas as máscaras prudentes, desembaraçando-nos polidamente de toda curiosidade que não diga respeito a nossa “roupa”. Mas existem outras formas e artimanhas de “andar” com e entre as pessoas: como fantasma, por exemplo — algo bastante aconselhável, se queremos logo nos livrar delas e assustá-las. Faça-se a prova: alguém ergue a mão para nos tocar e nada encontra. Isto assusta. Ou entramos por uma porta fechada. Ou quando as luzes foram apagadas. Ou depois que já morremos. Esse último é o artifício dos homens póstumos par excellence(“Que acham vocês?”, aconteceu de um deles perguntar impacientemente, “teríamos ânimo para aguentar essa estranheza e frieza, essa quietude sepulcral à nossa volta, toda essa oculta, subterrânea, indescoberta e muda solidão, que entre nós se chama vida e bem poderia chamar-se morte, se não soubéssemos o que de nós será— e que somente após a morte chegaremos a nossavida e ficaremos vivos, ah, muito vivos! nós, seres póstumos!” —) |
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Diante de um livro erudito. — Não somos daqueles que só em meio aos livros, estimulados por livros, vêm a ter pensamentos — é nosso hábito pensar ao ar livre, andando, saltando, subindo, dançando, preferivelmente em montes solitários ou próximo ao mar, onde mesmo as trilhas se tornam pensativas. Nossas primeiras perguntas, quanto ao valor de um livro, uma pessoa, uma composição musical, são: “É capaz de andar? Mais ainda, é capaz de dançar?”... Nós lemos pouco, mas por isso não lemos pior — oh, como rapidamente adivinhamos de que modo alguém chegou a seus pensamentos, se o fez sentado em frente ao tinteiro, com o estômago apertado, a cabeça curvada sobre o papel: oh, como também rapidamente acabamos seu livro! As vísceras contraídas se revelam, pode-se apostar, e igualmente o ar abafado, o teto do quarto, a estreiteza do quarto. — Estes foram agora meus sentimentos, quando fechei um honesto livro erudito, grato, muito grato, mas também aliviado... No livro de um erudito há quase sempre algo opressivo, oprimido: em algum lugar vem à luz o “especialista”, seu zelo, sua gravidade, sua ira, sua sobrestimação do canto no qual fica e tece, sua corcunda — todo especialista tem sua corcunda. Um livro erudito sempre espelha igualmente uma alma entortada: todo ofício entorta. Veja-se novamente os amigos que se teve na juventude, depois que tomaram posse de sua ciência: ah, como sempre ocorre também o oposto! Ah, como eles mesmos ficam sempre tomados e possuídos por ela! Arraigados em seu canto, irreconhecíveis, de tão enrugados, sem liberdade, privados de seu equilíbrio, emagrecidos e em toda parte angulosos, apenas num ponto completamente redondos — ficamos impressionados e silenciosos, ao reencontrá-los assim. Todo ofício, mesmo tendo uma base de ouro, tem também sobre si um teto de chumbo, que pressiona e comprime a alma até que ela fique estranha e torta. Nada se pode fazer quanto a isso. Não se pense que é possível contornar esta deformação com alguma arte da educação. Toda espécie de mestriatem um alto preço neste mundo, onde tudo talvez saia muito caro; quem é senhor do seu mister paga o preço de ser também sua vítima. Mas vocês querem que isto seja diferente — “mais justo”,[110] sobretudo mais cômodo — não é verdade, caros contemporâneos? Muito bem! Mas então vocês logo obtêm outra coisa, ou seja, em vez do artesão e mestre o literato, o hábil e “polidestro” literato, que certamente não tem corcunda — salvo aquela que ele faz ante vocês, como balconista do espírito e “portador” da cultura —, o literato que nada é propriamente, mas “representa” quase tudo, que faz o papel do conhecedor e o “substitui”, que em toda a modéstia também cuida de fazer-se pago, respeitado e festejado no lugar daquele. — Não, meus eruditos amigos! Eu os abençoo até mesmo por sua corcunda! E por desprezarem, como eu, os literatos e parasitas da cultura! E por não saberem mercadejar com o espírito! E terem opiniões que não se expressam em valor monetário! E por não representarem o que nãosão! Pelo fato de que sua única vontade é ser mestre de seu ofício, com respeito por toda espécie de mestria e competência e implacável rejeição de tudo o que é aparente, semigenuíno, enfeitado, virtuosístico, demagógico e histriônicoin litteris et artibus [nas letras e artes] — de tudo aquilo que não possa apresentar-se ante vocês com absoluta probidade de disciplina e aprendizado! (Mesmo o gênio não leva a compensar tal deficiência, por mais que saiba induzir a ignorá-la: isso compreendemos ao observar de perto os nossos mais talentosos pintores e compositores — que, quase sem exceção, com astuciosa engenhosidade de maneiras, de expedientes, mesmo de princípios, sabem adquirir depois, artificialmente, a aparência desta probidade, desta solidez de educação e cultura, por certo que sem enganar a si mesmos, sem calar permanentemente sua própria má consciência. Pois, vocês sabem, todos os grandes artistas modernos sofrem de má consciência...) |
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A primeira distinção a fazer quanto a obras de arte. — Tudo o que é pensamento, poesia, pintura, composição, e mesmo construção e escultura, pertence à arte monológica ou à arte de testemunhas. Nessa última deve-se incluir também a arte aparentemente monológica da oração, que envolve a crença em Deus, toda a lírica da oração: pois para um homem devoto não existe solidão — esta invenção foi feita somente por nós, os sem-Deus. Não conheço mais profunda diferença na ótica geral de um artista do que esta: se ele olha para sua obra de arte em formação (para “si” —) com o olhar da testemunha ou se “esqueceu do mundo”: o que constitui o essencial de toda arte monológica — ela se baseia no esquecimento, ela é a música do esquecimento. |
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Fala o cínico. — Minhas objeções à música de Wagner são fisiológicas: por que disfarçá-las em fórmulas estéticas? Meu “fato” é que já não respiro facilmente, quando começa a agir sobre mim esta música; que logo o meu pése irrita e se revolta contra ela — ele necessita de compasso, dança, marcha, da música ele requer sobretudo as delícias inerentes ao bom andar, caminhar, saltar, dançar. — Mas também não protesta o meu estômago? meu coração? minha circulação? minhas vísceras? Não fico insensivelmente rouco, ao ouvi-la? — Então me pergunto: o que querrealmente da música o meu corpo inteiro? O seu próprio alívio, creio: como se todas as funções animais fossem aceleradas por ritmos leves, ousados, exuberantes, seguros de si; como se a brônzea, plúmbea vida fosse dourada por boas, ternas, áureas harmonias. Minha melancolia quer descansar nos esconsos e abismos da perfeição: para isto necessito de música. Que me importa o drama? As convulsões de seus êxtases morais, em que o “povo” tem sua satisfação? Toda a gesticulação ehocus pocus[prestidigitação] dos atores?... Vê-se que sou essencialmente antiteatral — mas Wagner, ao contrário, era essencialmente homem de teatro e ator, talvez o mais entusiástico “histriômano” que já houve, também como músico!... E, diga-se de passagem: se foi teoria de Wagner que “o drama é a finalidade, a música é apenas o seu meio” — sua práticafoi, do início ao fim, “a atitude é a finalidade, o drama, e também a música, são apenas seus meios”. A música como meio para explicitação, fortalecimento, interiorização do gesto dramático e da evidência sensível do ator;[111] e o drama wagneriano, apenas uma oportunidade para muitas atitudes interessantes! Além de todos os outros instintos, ele possuía em tudo os instintos de comandode um grande ator: e, como disse, também enquanto músico. — Em certa ocasião deixei isto claro, com algum esforço, para um wagneriano justo; e tive razões para ainda acrescentar: “Seja um pouco mais honesto consigo mesmo: nós não estamos no teatro. No teatro se é honesto apenas enquanto massa; enquanto indivíduo se mente, mente-se para si mesmo. O indivíduo deixa a si mesmo em casa quando vai ao teatro, renuncia ao direito de ter a própria escolha, a própria língua, ao direito a seu gosto, mesmo a sua coragem, como a temos e exercitamos entre as nossas quatro paredes, em oposição a Deus e o mundo. Ninguém leva consigo ao teatro os mais finos sentidos da sua arte, nem o artista que trabalha para o teatro: lá somos povo, público, horda, mulher, fariseu, gado eleitor, democrata, próximo, semelhante, mesmo a consciência mais pessoal sucumbe à magia niveladora do ‘grande número’, a estupidez influi como lascívia e contágio, o ‘próximo’ governa, tornamo-nos próximo...” (Já me esquecia de dizer como o esclarecido wagneriano respondeu a minhas objeções fisiológicas: “Então você simplesmente não é saudável o bastante para a nossa música?” —) |
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O que em nós coexiste. — Não temos de admitir, nós, artistas, que há em nós uma inquietante diferença, que o nosso gosto e a nossa força criadora se acham singularmente separados, permanecem separados e têm cada qual seu crescimento — quero dizer, bem diversos graus e tempi [andamentos] do que seja velho, jovem, maduro, mole, podre? De modo que um compositor, por exemplo, poderia em sua vida inteira produzir coisas que contradizem aquilo que seus exigentes ouvidos e seu coração de ouvinte apreciam, desfrutam, preferem: — ele nem precisaria notar essa contradição! Como mostra uma experiência quase dolorosamente regular, o gosto que tem uma pessoa pode facilmente ultrapassar o gosto de sua força, sem que esta seja impedida e travada na criação; mas pode também suceder o contrário — e justamente para isso eu gostaria de chamar a atenção dos artistas. Alguém continuamente criador, uma “pessoa-mãe”, no sentido maior da palavra, alguém que sabe e quer saber apenas das gravidezes e dos partos de seu espírito, que não tem tempo de refletir sobre si e sua obra e de fazer comparações, que já não pretende exercitar seu gosto e simplesmente o esquece, deixa-o por si, deixa-o estar ou cair — talvez esse alguém, por fim, produza obras à altura das quais já não se encontra o seu julgamento: de modo que diz bobagens sobre elas e sobre si mesmo — diz e pensa. Isto me parece quase a situação normal entre os artistas fecundos — ninguém conhece pior uma criança do que seus próprios pais —, e vale até mesmo, tomando um exemplo enorme, para toda a arte e poesia grega: ela nunca “soube” o que fez... |
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O que é romantismo? — Talvez seja lembrado, ao menos entre meus amigos, que de início me lancei sobre esse mundo moderno com alguns grossos erros e superestimações, e em todo caso com esperanças. Eu compreendi — quem sabe a partir de que vivências pessoais? — o pessimismo filosófico do século XIX como sintoma de uma mais elevada força de pensamento, de mais ousada valentia, de mais vitoriosaplenitude de vida, do que a que caracterizara o século XVIII, a era de Hume, Kant, Condillac e os sensualistas: de forma que o conhecimento trágico pareceu-me o característicoluxo de nossa cultura, sua mais preciosa, mais nobre, mais perigosa espécie de esbanjamento, mas ainda seu luxo permitido, em razão de sua opulência. Do mesmo modo, interpretei a música alemã como se exprimisse uma potência dionisíaca da alma alemã: nela acreditei ouvir o terremoto com que uma força primordial, há muito represada, finalmente se desafoga — indiferente à possibilidade de que tudo o mais que chamamos de cultura comece a tremer. Vê-se que então compreendi mal, tanto no pessimismo filosófico como na música alemã, o que constitui seu caráter peculiar — o seu romantismo. O que é romantismo? Toda arte, toda filosofia pode ser vista como remédio e socorro, a serviço da vida que cresce e que luta: elas pressupõem sempre sofrimento e sofredores. Mas existem dois tipos de sofredores, os que sofrem de abundância de vida, que querem uma arte dionisíaca e também uma visão e compreensão trágica da vida — e depois os que sofrem de empobrecimento de vida, que buscam silêncio, quietude, mar liso, redenção de si mediante a arte e o conhecimento, ou a embriaguez, o entorpecimento, a convulsão, a loucura. À dupla necessidade desses últimos responde todo o romantismo nas artes e conhecimentos, a eles responderam (respondem) tanto Schopenhauer como Richard Wagner, para mencionar os dois mais famosos e pronunciados românticos que foram então mal compreendidos por mim — aliás, não em prejuízo deles, como pode me ser concedido de maneira justa. O mais rico em plenitude de vida, o deus e homem dionisíaco, pode permitir-se não só a visão do terrível e discutível, mas mesmo o ato terrível e todo luxo de destruição, decomposição, negação; nele o mau, sem sentido e feio parece como que permitido, em virtude de um excedente de forças geradoras, fertilizadoras, capaz de transformar todo deserto em exuberante pomar. Inversamente, o que mais sofre, o mais pobre de vida necessitaria ao máximo de brandura, paz e bondade, tanto no pensar como no agir, e, se possível, de um deus que é propriamente um deus para doentes, um “salvador”; e igualmente da lógica, da compreensibilidade conceitual da existência — pois a lógica tranquiliza, dá confiança —, em suma, de uma certa estreiteza cálida que afasta o medo, um encerrar-se em horizontes otimistas. De tal forma aprendi gradualmente a entender Epicuro, o oposto de um pessimista dionisíaco, assim como o “cristão”, que na realidade é somente uma espécie de epicúrio e, como este, essencialmente um romântico — e meu olhar tornou-se cada vez mais agudo para a difícil e insidiosa inferência regressiva, com a qual se comete a maioria dos erros — a inferência que vai da obra ao autor, do ato ao agente, do ideal àquele que dele necessita, de todo modo de pensar e valorar à necessidadeque por trás dele comanda. — Quanto aos valores artísticos todos, utilizo-me agora dessa distinção principal: pergunto, em cada caso, “foi a fome ou a abundância que aí se fez criadora?”. De início, uma outra distinção parece antes recomendar-se — ela salta bem mais à vista —, ou seja, atentar se a causa da criação é o desejo de fixar, de eternizar, de ser, ou o desejo de destruição, de mudança, do novo, de futuro, de vir a ser. Mas os dois tipos de anseio, considerados mais profundamente, ainda se revelam ambíguos, interpretáveis conforme o esquema anterior, que me parece justificadamente preferível. O anseio por destruição, mudança, devir, pode ser expressão da energia abundante, prenhe de futuro (o termo que uso para isso é, como se sabe, “dionisíaco”), mas também pode ser o ódio do malogrado, desprovido, mal favorecido, que destrói, temque destruir, porque o existente, mesmo toda a existência, todo o ser, o revolta e o irrita — para compreender esse afeto, olhe-se de perto os nossos anarquistas. A vontade de eternizarrequer igualmente uma interpretação dupla. Ela pode vir da gratidão e do amor: — uma arte com esta origem sempre será uma arte da apoteose, talvez ditirâmbica, como em Rubens, venturosa-irônica, como em Hafiz, límpida e amável, como em Goethe, vertendo uma homérica luz e glória sobre todas as coisas. Mas também pode ser a tirânica vontade de um grave sofredor, de um lutador, um torturado, que gostaria de dar ao que tem de mais pessoal, singular e estreito, à autêntica idiossincrasia do seu sofrer, o cunho de obrigatória lei e coação, e como que se vinga de todas as coisas, ao lhes imprimir, gravar, ferretear, a sua imagem, a imagem de sua tortura. Este último caso é o pessimismo românticoem sua mais expressiva forma, seja como filosofia schopenhaueriana da vontade, seja como música wagneriana: — o pessimismo romântico, o último grandeacontecimento no destino de nossa cultura. (Que ainda possa haver um pessimismo bastante diferente, clássico — tal visão e intuição pertence a mim, é inseparavelmente minha, meu proprium e ipsissimum [quintessência]: no entanto, a palavra “clássico” repugna a meus ouvidos, tornou-se muito gasta, redonda e indistinta. A este pessimismo do futuro — pois ele virá! já o vejo vindo! — eu chamo de pessimismo dionisíaco.) |
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Nós, os incompreensíveis. — Alguma vez nos queixamos de ser mal entendidos, mal conhecidos, confundidos, difamados, mal escutados e ignorados? Eis precisamente a nossa sina — oh, por quanto tempo ainda! digamos, sendo modestos, até 1901 — e também a nossa distinção; não respeitaríamos suficientemente a nós próprios, se desejássemos que fosse diferente. Somos confundidos com outros — nós mesmos crescemos, mudamos continuamente, largamos a velha casca, trocamos de pele a cada primavera, tornamo-nos cada vez mais jovens, mais futuros, mais elevados, mais fortes, impelimos nossas raízes cada vez mais poderosamente na profundeza — no mal —, enquanto abraçamos cada vez mais carinhosamente e mais amplamente o céu, absorvendo cada vez mais avidamente a sua luz com todos os nossos ramos e folhas. Crescemos como árvores — algo difícil de entender, como toda a vida! —, não em um só lugar, mas em toda a parte, não numa só direção, mas tanto para cima e para fora como para dentro e para baixo — nossa energia brota igualmente no tronco, nos galhos e raízes, já não somos livres para fazer qualquer coisa separadamente, para seralguma coisa separadamente... Tal é a nossa sina, como disse: nós crescemos até às alturas; e ainda que isto fosse a nossa fatalidade — pois habitamos cada vez mais próximos dos raios! — muito bem, nós não a reverenciamos menos por isso, ela continua a ser o que não desejamos compartilhar nem comunicar, a fatalidade das alturas, a nossa fatalidade... |
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Por que não somos idealistas. — Houve tempo em que os filósofos temeram os sentidos: teríamos nós talvez — desaprendido demais esse temor? Hoje somos todos sensualistas, nós, homens do presente e do futuro na filosofia, não conforme a teoria, mas na prática, praticamente... Eles, por outro lado, achavam que os sentidos os atraíam para fora do seu mundo, do frio reino das “ideias”, rumo a uma perigosa ilha do Sul: na qual, temiam, suas virtudes filosóficas se derreteriam como neve ao sol. “Cera nos ouvidos” era, naquele tempo, quase que condição para o filosofar; um verdadeiro filósofo não escutava mais a vida, na medida em que esta é música, elenegava a música da vida — trata-se de uma velha superstição filosófica, a de que toda música é música de sereias.[112] — Hoje seríamos inclinados ao julgamento oposto (que bem pode ser igualmente falso): isto é, que as ideiassão sedutoras piores que os sentidos, com toda a sua anêmica e fria aparência, e nem mesmo apesar desta aparência — elas sempre viveram do “sangue” do filósofo, consumiram os seus sentidos e até, se nos for dado crédito, o seu “coração”. Esses velhos filósofos não tinham coração: filosofar sempre foi uma espécie de vampirismo. Em tais figuras, mesmo em Spinoza, não sentem vocês algo profundamente inquietante e enigmático? Não veem o espetáculo que aí se desenrola, o constante empalidecimento — a dessensualização interpretada de forma cada vez mais idealista? Não pressentem, ao fundo, como que uma sanguessuga há muito tempo escondida, que começa por atacar os sentidos e enfim lhe restam — e ela deixa — apenas ossos e ruídos? quero dizer, fórmulas, palavras (pois, perdoem-me, aquilo que restoude Spinoza, amor intellectualis dei [amor intelectual a Deus],[113] é um ruído, nada mais! O que é amor, o que é deus, se lhes falta qualquer gota de sangue?...). In summa[Em suma]: todo idealismo filosófico foi, até agora, algo como uma doença, quando não foi, como no caso de Platão, a cautela de uma saúde muito rica e perigosa, o temor ante sentidos muito poderosos, a prudência de um prudente socrático. — Talvez nós, modernos, não sejamos saudáveis o bastante para necessitardo idealismo de Platão? E não tememos os sentidos porque — |
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“Ciência” como preconceito. — Das leis da hierarquia decorre que os eruditos, na medida em que pertencem à classe média espiritual, não podem ter visão dos problemas e interrogações realmente grandes; além disso, sua coragem e seu olhar não chegam tão longe — mais do que tudo, a necessidade que deles faz pesquisadores, sua íntima antecipação e desejo de que as coisas sejam assim e assim, seus temores e esperanças, muito cedo já encontram paz e satisfação. Aquilo que, por exemplo, faz o pedante inglês Herbert Spencer entusiasmar-se a seu modo, levando-o a traçar uma linha para a esperança, um horizonte de desejabilidade, a conciliação final de “egoísmo e altruísmo”, sobre a qual ele divaga, isso quase nos enoja: — uma humanidade com tais perspectivas spencerianas como perspectivas derradeiras nos pareceria digna de desprezo, de aniquilação! Mas o fato de ele ter de sentir como esperança maior o que para os outros é e pode ser apenas uma possibilidade repugnante, coloca uma questão que Spencer não teria sido capaz de prever... O mesmo se dá com a crença que hoje em dia satisfaz tantos cientistas naturais materialistas, a crença num mundo que deve ter sua equivalência e medida no pensamento humano, em humanos conceitos de valor, um “mundo da verdade”, a que pudéssemos definitivamente aceder com ajuda de nossa pequena e quadrada razão — como? queremos de fato permitir que a existência nos seja de tal forma degradada a mero exercício de contador e ocupação doméstica de matemáticos? Acima de tudo, não devemos querer despojá-la de seu caráter polissêmico: é o bomgosto que o requer, meus senhores, o gosto da reverência ante tudo o que vai além do seu horizonte! Que a única interpretação justificável do mundo seja aquela em que vocês são justificados, na qual se pode pesquisar e continuar trabalhando cientificamente no seusentido (— querem dizer, realmente, de modo mecanicista?), uma tal que admite contar, calcular, pesar, ver, pegar e não mais que isso, é uma crueza e uma ingenuidade, dado que não seja doença mental, idiotismo. Não seria antes bem provável que justamente o que é mais superficial e exterior na existência — o que ela tem de mais aparente, sua sensualização, sua pele — fosse a primeira coisa a se deixar apreender? ou talvez a única coisa? Uma interpretação do mundo “científica”, tal como a entendem, poderia então ser uma das mais estúpidas, isto é, das mais pobres de sentido de todas as possíveis interpretações do mundo: algo que digo para o ouvido e a consciência de nossos mecanicistas, que hoje gostam de misturar-se aos filósofos e absolutamente acham que a mecânica é a doutrina das leis primeiras e últimas, sobre as quais toda a existência deve estar construída, como sobre um andar térreo. Mas um mundo essencialmente mecânico seria um mundo essencialmente desprovido de sentido! Suponha-se que o valor de uma música fosse apreciado de acordo com o quanto dela se pudesse contar, calcular, pôr em fórmulas — como seria absurda uma tal avaliação “científica” da música! O que se teria dela apreendido, entendido, conhecido? Nada, exatamente nada daquilo que nela é de fato “música”!... |
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Nosso novo “infinito”. — Até onde vai o caráter perspectivista da existência, ou mesmo se ela tem algum outro caráter, se uma existência sem interpretação, sem “sentido” [Sinn], não vem a ser justamente “absurda” [Unsinn], se, por outro lado, toda a existência não é essencialmente interpretativa— isso não pode, como é razoável, ser decidido nem pela mais diligente e conscienciosa análise e autoexame do intelecto: pois nessa análise o intelecto humano não pode deixar de ver a si mesmo sob suas formas perspectivas e apenas nelas. Não podemos enxergar além de nossa esquina: é uma curiosidade desesperada querer saber que outros tipos de intelecto e de perspectiva poderiahaver: por exemplo, se quaisquer outros seres podem sentir o tempo retroativamente ou, alternando, progressiva e regressivamente (com o que se teria uma outra orientação da vida e uma outra noção de causa e efeito). Mas penso que hoje, pelo menos, estamos distanciados da ridícula imodéstia de decretar, a partir de nosso ângulo, que somente dele pode-seter perspectivas. O mundo tornou-se novamente “infinito” para nós: na medida em que não podemos rejeitar a possibilidade de que ele encerre infinitas interpretações. Mais uma vez nos acomete o grande tremor — mas quem teria vontade de imediatamente divinizar de novo, à maneira antiga, esse monstruoso mundo desconhecido? E passar a adorar o desconhecido como “o ser desconhecido”? Ah, estão incluídas demasiadas possibilidades não divinas de interpretação nesse desconhecido, demasiada diabrura, estupidez, tolice de interpretação — a nossa própria, humana, demasiado humana, que bem conhecemos... |
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Por que parecemos epicúrios. — Somos cautelosos, nós, homens modernos, quanto a convicções derradeiras; nossa desconfiança fica à espreita dos encantamentos e embustes da consciência que se acham em toda crença poderosa, em todo incondicional Sim e Não: como se explica isso? Talvez se possa ver aí, em boa parte, a prevenção da “criança escaldada”, do idealista decepcionado; por outro lado, numa parte melhor, também a jubilosa curiosidade de quem nada fazia em seu canto, que nisso foi levado ao desespero e agora se regala e entusiasma no oposto de um canto, no ilimitado, no “livre em si”. Com isso desenvolve-se um quase epicúrio pendor ao conhecimento, que não deixa escapulir facilmente o caráter questionável das coisas; e igualmente uma aversão às grandes palavras e gestos morais, um gosto que rejeita todos os opostos pesados e grosseiros e com orgulho está cônscio de exercitar a reserva. Pois issoconstitui nosso orgulho, esse leve puxar de rédeas quando o nosso impulso à certeza arremete impetuoso, esse autocontrole do cavaleiro em suas mais selvagens cavalgadas: é que sempre montamos animais loucos e fogosos, e, quando hesitamos, certamente não é pelo perigo... |
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Nossos tempos lentos. — Assim sentem todos os artistas e seres de “obras”, o tipo materno de ser humano: sempre creem, a cada período de sua vida — que é fechado por uma obra —, ter alcançado o objetivo dela, sempre encarariam pacientemente a morte, com o sentimento que diz: “Estamos maduros para isso”. Isto não é expressão de cansaço — mas antes de uma certa luminosidade e brandura outonal, que a obra mesma, o fato de ela haver amadurecido, deixa no seu autor. Então fica mais lento o andamento da vida, torna-se espesso como o mel — e chega a longasfermatas, à crença na longa fermata. |
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Nós, os sem-pátria. — Não faltam, entre os europeus de hoje, aqueles que possuem o direito de denominar-se sem-pátria, num sentido honroso e eminente, e a eles é encarecidamente recomendada a minha secreta sabedoria e gaya scienza! Pois é dura a sua sina, incerta a sua esperança, é uma proeza imaginar-lhes consolo — e de que adiantaria! Nós, filhos do futuro, como poderíamosnos sentir em casa neste presente? Somos avessos a todos os ideais que poderiam levar alguém a sentir-se à vontade mesmo neste frágil e fraco tempo de transição; no que toca a suas “realidades”, porém, não acreditamos que tenham duração. O gelo que ainda suporta as pessoas tornou-se muito fino: o vento do degelo sopra, nós mesmos, os sem-pátria, somos algo que rompe o gelo e outras “realidades” demasiado finas... Não “conservamos” nada, tampouco queremos voltar a algum passado, não somos em absoluto “liberais”, não trabalhamos para o “progresso”, não precisamos sequer tapar os ouvidos às sereias que cantam o futuro na praça do mercado — o que elas cantam, “direitos iguais”, “sociedade livre”, “nada de senhores e de servos”, isso não nos atrai! — nós simplesmente não consideramos desejável que o reino da justiça e da concórdia seja estabelecido na Terra (porque seria, em todas as circunstâncias, o reino da mais profunda mediocrização e chineseria), alegramo-nos com todos os que, como nós, amam o perigo, a guerra, a aventura, que não se deixam acomodar, capturar, conciliar e castrar, incluímos a nós mesmos entre os conquistadores, refletimos sobre a necessidade de novas disposições, também de uma nova escravatura — pois cada fortalecimento e elevação do tipo “homem” implica também uma nova espécie de escravidão —; não é verdade que com tudo isso não podemos nos sentir em casa numa época que gosta de reivindicar a honra de ser chamada a mais humana, a mais suave, a mais justa que o Sol até hoje iluminou? Já é mau que nos baste ouvir essas belas palavras para acalentarmos horríveis suspeitas! Que nelas vejamos apenas a expressão — e também a mascarada — do profundo enfraquecimento, da fadiga, da idade, da força que decai! Que nos interessam as lantejoulas com que um doente esconde sua fraqueza? Pode exibi-la como sua virtude— já não há dúvida de que a fraqueza torna suave, oh, tão suave, tão justo, tão inofensivo, tão “humano”! — A “religião da compaixão”, à qual nos querem converter — ora, conhecemos o bastante os histéricos homenzinhos e mulherezinhas que hoje necessitam precisamente desta religião como véu e adorno! Não somos humanitários; jamais ousaríamos nos permitir falar de nosso “amor à humanidade” — não somos bastante atores para isso! Ou saint-simonianos[114] o bastante, franceses o bastante! É preciso estar acometido de uma gálicadesmesura de excitabilidade erótica e apaixonada impaciência, para honestamente ainda aproximar-se da humanidade com ardor... A humanidade! Já existiu velha mais medonha, entre todas as velhas? (— deveria então ser “a verdade”: uma questão para filósofos). Não, nós não amamos a humanidade; por outro lado, estamos longe de ser suficientemente “alemães”, como hoje é corrente a palavra “alemão”, para falar em prol do nacionalismo e do ódio racial, para poder nos regozijar do nacionalista envenenamento do sangue e sarna de coração, em virtude do qual cada povo da Europa de hoje se fecha e se tranca, como se estivessem todos de quarentena. Para isto somos demasiado diretos, maliciosos, mimados, também demasiado instruídos, “viajados”: bem preferimos viver nas montanhas, à parte, “extemporaneamente”, em séculos passados ou vindouros, apenas a fim de nos poupar o mudo furor a que nos saberíamos condenados, como testemunhas de uma política que torna desolado o espírito alemão, ao torná-lo vão, e que é, além de tudo, política pequena: — não necessita ela plantar sua própria criação entre dois ódios mortais, para que esta não se desfaça imediatamente? não tem ela de querer a perpetuação dos pequeninos Estados europeus?... Nós, os sem-pátria, por raça e ascendência somos demasiado múltiplos e misturados, enquanto “homens modernos”, e, portanto, muito pouco inclinados a partilhar essa mentirosa autoadmiração e indecência racial, que agora desfila na Alemanha como sinal da mentalidade alemã e que, no povo do “sentido histórico”, é algo duplamente falso e obsceno. Somos, numa palavra — e será nossa palavra de honra! — bons europeus, herdeiros da Europa, os ricos, abarrotados, mas sobremaneira obrigados herdeiros de milênios do espírito europeu: como tais, havendo superado e sendo adversos ao cristianismo, e justamente por termos saídodele, por nossos ancestrais haverem sido cristãos implacavelmente retos em seu cristianismo, que de boa vontade sacrificaram à sua crença posses e posição, pátria e sangue. Nós — fazemos o mesmo. Mas pelo quê? Por nossa descrença? Por todo tipo de descrença? Não, vocês sabem mais do que isso, meus amigos! O oculto Sim que há em vocês é mais forte que todos os Nãos e Talvezes de que estão enfermos, juntamente com seu tempo; e quando têm de lançar-se ao mar, vocês, emigrantes, o que a isso os impele é também — uma crença! |
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“E tornamo-nos novamente límpidos.” — Nós, os pródigos e ricos do espírito, que tais como fontes abertas ficamos à beira da estrada e a ninguém impedimos que nos retire água: infelizmente não sabemos nos defender ao desejar fazê-lo, não podemos por nada evitar que nos turvem, nos tornem escuros — que o tempo em que vivemos nos lance o que tem de “mais temporal”, que os seus imundos pássaros nos joguem seu excremento, os garotos, sua tralha, e os exaustos andarilhos que junto a nós descansam, suas misérias pequenas e grandes. Mas nós faremos como sempre fizemos: levamos o que nos lançam para a nossa profundidade — pois nós somos profundos, nós não esquecemos — e tornamo-nos novamente límpidos. |
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O tolo interrompe. — Não é um misantropo quem escreveu este livro: hoje em dia paga-se muito caro o ódio aos seres humanos. E para odiar como outrora se odiou os seres humanos, timonicamente,[115] de forma total, sem restrição, de pleno coração, com todo o amordo ódio — para isto seria necessário renunciar ao desprezo: — e quanta sutil alegria, quanta paciência, quanta afabilidade mesma não devemos justamente ao fato de desprezarmos! Além do quê, somos assim os “eleitos de Deus”: o sutil desprezar é nosso gosto e privilégio, nossa arte, talvez nossa virtude, nós, os mais modernos dos modernos!... Já o ódio equipara, põe frente a frente, há honra no ódio, afinal: há pavorno ódio, uma boa parte de pavor. Mas nós, os impávidos, nós, os homens mais espirituais dessa época, conhecemos bastante bem nossa vantagem, para, justamente sendo os mais espirituais, vivermos sem temor em relação a esse tempo. Dificilmente seremos degolados, degredados, encarcerados; tampouco nos serão proibidos e queimados os livros. A época ama o espírito, ama-nos e necessita de nós, mesmo se tivéssemos de dar-lhe a entender que somos artistas do desprezo; que todo trato com seres humanos nos causa um leve calafrio; que, com toda a nossa brandura, paciência, sociabilidade, cortesia, não podemos convencer nosso nariz a largar o preconceito que tem contra toda proximidade humana; que amamos tanto mais a natureza quanto menos humana ela se mostra, e a arte, quando é refúgio do artista ante o ser humano ou escárnio do artista ao ser humano ou a si mesmo... |
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“O andarilho” fala. — Para uma vez olhar de longe a nossa moralidade europeia, para medi-la em relação a outras moralidades, anteriores ou vindouras, para isso deve-se fazer como o andarilho que quer saber quão altas são as torres de uma cidade: ele abandona a cidade. “Reflexões sobre os preconceitos morais”, se não quisermos que sejam preconceitos sobre preconceitos, pressupõem uma posição forada moral, algum ponto além do bem e do mal, até o qual temos de subir, escalar, voar — e, no caso presente, de todo modo um além de nossobem e mal, uma liberdade de toda “Europa”, entendida esta como uma soma de imperiosos juízos de valor, que nos foram transmitidos na carne e no sangue. O fato de querermos ir lá para fora, para cima, é talvez uma pequena loucura, um insensato e peculiar “tu deves” — pois também nós, homens do conhecimento, temos nossas idiossincrasias da “vontade cativa” —: a questão é se realmente podemos ir lá para cima. Isso pode estar ligado a múltiplas condições, no principal a questão é quão leves ou pesados somos, o problema de nosso “peso específico”. É preciso ser muito leve, a fim de levar sua vontade de conhecimento a uma tal distância e como que acima do seu tempo, a fim de criar para si olhos que abarquem milênios e, além disso, um céu puro nesses olhos! É preciso haver se livrado de muita coisa que justamente a nós, europeus de hoje, oprime, inibe, detém, torna pesados. O homem de um tal Além, que quer ele próprio avistar as supremas medidas de valor de seu tempo, necessita antes “superar” em si próprio esse tempo — é a prova de sua força — e, por conseguinte, não apenas o seu tempo, mas também a aversão e contradição que até agora experimentou ante esse tempo, seu sofrimento por esse tempo, sua extemporaneidade, seu romantismo. |
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A questão da compreensibilidade. — Não queremos apenas ser compreendidos ao escrever, mas igualmente não ser compreendidos. De forma nenhuma constitui objeção a um livro o fato de uma pessoa achá-lo incompreensível: talvez isso estivesse justamente na intenção do autor — ele não queriaser compreendido por “uma pessoa”. Todo espírito e gosto mais nobre, quando deseja comunicar-se, escolhe também os seus ouvintes; ao escolhê-los, traça de igual modo a sua barreira contra “os outros”. Todas as mais sutis leis de um estilo têm aí sua procedência: elas afastam, criam distância, proíbem “a entrada”, a compreensão, como disse — enquanto abrem os ouvidos àqueles que nos são aparentados pelo ouvido. E, falando cá entre nós, sobre o meu próprio caso — não desejo que minha ignorância e a vivacidade de meu temperamento impeçam que eu lhes seja compreensível, meus amigos: não a vivacidade, por mais que ela me obrigue a lidar velozmente com algo, se chego a lidar com ele. Pois encaro os problemas profundos como um banho frio — entrando rapidamente e saindo rapidamente. Que assim não possamos chegar à profundidade, descero suficiente, é uma superstição dos que temem a água, dos inimigos da água fria; eles falam sem experiência. Oh! o frio intenso torna veloz! — E pergunto de passagem: uma coisa permanece de fato incompreendida e não conhecida por ser apenas em voo tocada, avistada, relampejada? É preciso absolutamente ficar sobre ela? chocá-la como a um ovo? Diu noctuque incubando[Incubando-a dia e noite], como falou Newton de si mesmo? Pelo menos existem verdades de particular timidez e melindre, que não podem ser apanhadas senão de repente — que é preciso surpreender ou deixar de lado... Por fim, minha brevidade tem ainda outro valor: dadas as questões que me ocupam, tenho de dizer muita coisa brevemente, para que seja ainda mais brevemente ouvida. Pois, sendo imoralista, deve-se prevenir a corrupção da inocência, quero dizer, dos asnos e solteironas de ambos os sexos, que nada têm da vida senão a própria inocência; mais até, meus escritos devem arrebatá-los, elevá-los, encorajá-los a serem virtuosos. Eu não saberia de nada mais jocoso neste mundo do que ver arrebatados velhos asnos e solteironas, quando agitados pelos doces sentimentos da virtude: e “isto eu vi” — assim falou Zaratustra. Isso quanto à brevidade; a coisa é pior no que toca à minha ignorância, da qual a mim mesmo não faço segredo. Há momentos em que dela me envergonho; é certo que também há momentos em que me envergonho dessa vergonha. Talvez todos nós, filósofos, estejamos atualmente mal colocados em relação ao saber: a ciência cresce, os mais eruditos entre nós estão quase a descobrir que sabem muito pouco. Mas seria ainda pior se fosse diferente — se soubéssemos demais; nossa tarefa é e continua sendo, antes de tudo, não nos confundirmos com outros. Nós somos algo diferente de eruditos: embora seja inevitável que, entre outras coisas, também sejamos eruditos. Temos outras necessidades, outro crescimento, outra digestão: precisamos de mais, também precisamos de menos. Não existe fórmula para o quanto um espírito necessita para a sua nutrição; mas, se tem o gosto orientado para a independência, para o rápido ir e vir, para andanças, talvez para aventuras, de que somente os mais velozes são capazes, então prefere viver livre e com pouco alimento, do que preso e empanturrado. Não é gordura, mas maior flexibilidade e força, aquilo que um bom dançarino requer da alimentação — e eu não saberia o que o espírito de um filósofo mais poderia desejar ser, senão um bom dançarino. Pois a dança é o seu ideal, também a sua arte, e afinal sua única devoção também, seu “culto divino”... |
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A grande saúde. — Nós, os novos, sem nome, de difícil compreensão, nós, rebentos prematuros de um futuro ainda não provado, nós necessitamos, para um novo fim, também de um novo meio, ou seja, de uma nova saúde, mais forte alerta alegre firme audaz que todas as saúdes até agora. Aquele cuja alma anseia haver experimentado o inteiro compasso dos valores e desejos até hoje existentes e haver navegado as praias todas desse “Mediterrâneo” ideal, aquele que quer, mediante as aventuras da vivência mais sua, saber como sente um descobridor e conquistador do ideal, e também um artista, um santo, um legislador, um sábio, um erudito, um devoto, um adivinho,[116] um divino excêntrico de outrora: para isso necessita mais e antes de tudo uma coisa, a grande saúde — uma tal que não apenas se tem, mas constantemente se adquire e é preciso adquirir, pois sempre de novo se abandona e é preciso abandonar... E agora, após termos estado por largo tempo assim a caminho, nós, argonautas do ideal, mais corajosos talvez do que seria prudente, e com frequência náufragos e sofridos, mas, como disse, mais sãos do que nos concederiam, perigosamente, sempre novamente sãos — quer nos parecer como se tivéssemos, como paga por isso, uma terra ainda desconhecida à nossa frente, cujos limites ainda ninguém divisou, um além de todos os cantos e quadrantes do ideal, um mundo tão opulento do que é belo, estranho, questionável, terrível, divino, que tanto nossa curiosidade como nossa sede de posse caem fora de si — ah, de modo que doravante nada nos poderá mais saciar!... Como poderíamos nós, após tais visões, e com tal voracidade de ciência e consciência, satisfazermo-nos com o homem atual? É muito mau, porém inevitável, que olhemos suas mais dignas metas e esperanças com seriedade a custo mantida, e talvez sequer as olhemos mais... Um outro ideal corre à nossa frente, um ideal prodigioso, tentador, pleno de perigos, ao qual ninguém gostaríamos de levar a crer, porque a ninguém reconhecemos tão facilmente o direito a ele: o ideal de um espírito que ingenuamente, ou seja, sem o ter querido, e por transbordante abundância e potência, brinca com tudo o que até aqui se chamou santo, bom, intocável, divino; para o qual o mais elevado, aquilo em que o povo encontra naturalmente sua medida de valor, já não significaria senão perigo, declínio, rebaixamento ou, no mínimo, distração, cegueira, momentâneo esquecer de si; o ideal de bem-estar e bem-querer humano-sobre-humano, que com frequência parecerá inumano, por exemplo, ao colocar-se ao lado de toda seriedade terrena até então, ao lado de toda a anterior solenidade em gesto, palavra, tom, olhar, moral e dever, como sua mais viva paródia involuntária — e com o qual, não obstante tudo, só então talvez se alce a grande seriedade, a verdadeira interrogação seja colocada, o destino da alma dê a volta, o ponteiro avance, a tragédia comece. |
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383 |
Epílogo. — Mas, enquanto lentamente desenho, concluindo, esta sombria interrogação final, e me disponho a trazer à lembrança de meus leitores as virtudes da correta leitura — oh, tão pouco lembradas e conhecidas virtudes! —, acontece-me ouvir ao redor a mais maliciosa, vivaz e gnômica risada: os próprios espíritos de meu livro caem sobre mim, puxam-me as orelhas e chamam-me à ordem. “Não aguentamos mais isso”, gritam eles, “fora com essa música negra como um corvo. Não estamos rodeados de uma clara manhã? E de chão e relva verdes e tenros, o reino da dança? Já houve instante melhor para estar alegre? Quem nos cantará uma canção, uma canção matinal, tão solar, tão leve, tão alada que não afugente os grilos[117] — que antes convide a cantar e dançar aos grilos também? E ainda uma ingênua e campônia gaita de foles seria melhor que esses sons misteriosos, esses gritos de rãs, vozes de sepulcro e assovios de marmotas, com que até agora nos vem brindando no seu ermo, senhor Eremita e Músico do Futuro! Não! Não esses sons! Vamos entoar outros, mais agradáveis e plenos de alegria!”[118] — É assim que lhes agrada, meus impacientes amigos? Muito bem! Quem não se disporia a lhes agradar? Minha gaita de foles já está pronta, e também minha garganta — ela pode soar um pouco rouca, paciência! estamos nas montanhas. Mas o que ouvirão é algo novo, pelo menos; e se não o compreendem, se entendem mal o cantor, que importa isso? É a “maldição do cantor”.[119] Mais claramente poderão ouvir sua música e seu modo de tocar, e ao som de sua flauta poderão também melhor — dançar. É o que querem?… |
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Canções do príncipe Vogelfrei[120] |
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A Goethe[121] |
O imperecível É apenas teu símile! Deus, o insidioso É manha de poetas... A roda do mundo a girar Roça uma meta após a outra: “Aflição” — é o que diz o zangado, Mas o louco chama a isso de “jogo”... O jogo do mundo, imperioso, Mistura ser e aparência: — O eterno-insano Nos mistura dentro!... |
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Vocação de Poeta |
Há pouco, na penumbra das árvores Sentado, para descansar, Ouvi um leve tique-taque, Delicado, como num compasso. Irritei-me, fiz cara feia — E afinal cedi, Até mesmo, como um poeta, Falei naquela linguagem. Ao ver as sílabas saltando, Fazendo-me versos, Tive subitamente que rir e sorrir Por uns bons quinze minutos. Você, poeta? Poeta, você? Está assim tão mal da cabeça? — “Sim, caro amigo, você é um poeta”, Falou, alçando os ombros, o pica-pau. Quem espero eu nesse arbusto? A quem espreito como um ladrão? É uma imagem? Uma sentença? Depressa Minha rima lhe monta em cima. Tudo o que corre e que flui, logo O poeta ajeita em verso. — “Sim, caro amigo, você é um poeta”, Falou, alçando os ombros, o pica-pau. As rimas, então, serão flechas? Como tudo se agita e treme, Quando a seta penetra em partes nobres Do pequeno corpo do lagarto! Ah, vocês estão morrendo, pobres coitados, Ou cambaleando como bêbados! — “Sim, caro amigo, você é um poeta”, Falou, alçando os ombros, o pica-pau. Sentenças oblíquas e apressadas, Palavras ébrias que se empurram! Até que todas, linha por linha, Prendem-se ao tique-taque em cadeia. E existe uma gentalha que Com isso — se alegra? Serão os poetas — maus? — “Sim, caro amigo, você é um poeta”, Falou, alçando os ombros, o pica-pau. Está zombando, pássaro? Querendo brincar? Se minha cabeça está tão ruim Meu coração estará pior? Tenha medo de minha ira! — Mas o poeta — tece rimas Também na ira, bem ou mal. — “Sim, caro amigo, você é um poeta”, Falou, alçando os ombros, o pica-pau. |
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No Sul |
Eis que me acho sobre um galho torto Balançando o meu cansaço. Um pássaro me tem como hóspede, É num ninho que eu repouso. Onde estou, então? Ah, longe, muito longe! O mar branco jaz a dormir E sobre ele há uma vela púrpura. Rochas, figueiras, torre e porto, Idílio em torno, balidos de ovelhas — Inocência do Sul, dê-me acolhida! Andar passo a passo não é vida, Pé ante pé torna alemão e pesado. Eu pedi ao vento que me alçasse, Aprendi com os pássaros a planar — Voei para o Sul, por sobre o mar. Razão! Aborrecida ocupação! Muito depressa nos conduz à meta! Voando percebi o que de mim zombava — Já sinto ânimo, sangue e seiva Para uma nova vida, um novo jogo... Pensar sozinho para mim é sábio, Mas cantar sozinho — seria tolo! Então escutem uma canção em seu louvor E sentem-se calados em círculo, Passarinhos danados, ao meu redor! Tão jovens, tão falsos, tão versáteis, Não me parecem feitos para amar E para toda bela diversão? No Norte — hesito em confessar — Amei uma mulher, velha de dar medo: “A verdade” era como se chamava... |
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A Devota Beppa |
Enquanto é belo meu corpo Vale a pena ser devota. Sabe-se que Deus ama as mulheres, As belas acima de tudo. Ele certamente perdoará Ao pequeno monge que, Como muitos monges, tanto Gosta de estar ao meu lado. Não é um cinzento pai da Igreja! Não, ainda jovem e rubicundo, E, apesar da frequente ressaca, Cheio de ciúme e aflição. Eu não gosto dos idosos, Ele não gosta das velhas: De que forma singular e sábia Deus arranjou isso! A Igreja sabe como viver, Ela sonda o coração e o rosto. Está sempre disposta a me perdoar — Sim, pois quem não me perdoa? Cochicham à boca pequena, Ajoelham-se e vão embora, E com um novo pecadilho Tiram o velho da memória. Louvado seja Deus neste mundo Por amar as moças bonitas E tais dores do coração A si mesmo perdoar. Enquanto é belo meu corpo Vale a pena ser devota: Quando eu for velha e gagá Que o Diabo me peça a mão! |
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O Barco Misterioso |
Ontem à noite, quando tudo dormia E o vento, com lamentos Indecisos, pelas vielas corria, Não me dava repouso o travesseiro Nem a papoula, nem o que normalmente Dá sono profundo — a consciência tranquila. Enfim renunciei ao sono E corri para a praia. Havia luar E o tempo era bom — encontrei O homem e o barco na areia morna, Os dois sonolentos, pastor e ovelha: — Sonolento, afastou-se da terra o barco. Após uma hora, talvez duas, Ou teria sido um ano? — subitamente Meus sentidos e pensamentos mergulharam Numa eterna monotonia, E um abismo sem limites Se abriu: — tudo acabou! — Veio a manhã: em negras profundezas Há um barco que repousa, repousa... Que aconteceu? alguém gritou, logo gritaram Centenas de vozes: que houve? Sangue? — Nada aconteceu! Nós todos dormíamos, Dormíamos — ah, tão bem! |
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Declaração De Amor |
(na qual, porém, o poeta caiu num fosso) Que maravilha! Ele ainda está voando? Ele sobe e as suas asas repousam? Que é que o levanta e carrega? Qual é, para ele, a meta, o curso e o freio? Como as estrelas e a eternidade Vive ele agora em alturas de que a vida foge, Tendo compaixão até mesmo da inveja —: E voou alto quem apenas o viu planar! Ó pássaro albatroz! Para o alto me empurra um eterno impulso. Pensei em ti: então me correram Lágrimas e lágrimas — sim, eu te amo! |
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Canção de um Pastor de Cabras Teocrítico[122] |
Eis-me deitado, doente do intestino — Os percevejos me devoram. Lá adiante ainda há luzes e barulho! Escuto-os dançarem... Ela queria, a esta hora, Escapar até onde estou. Espero como um cão — Não vejo sinal dela. E o sinal da cruz quando prometeu? Como podia ela mentir? — Ou corre atrás de qualquer um, Como fazem minhas cabras? Onde arranjou o vestido de seda? Ah, minha orgulhosa! Haverá outros bodes ainda Nesse bosque? — Como torna confuso e envenenado A espera amorosa! Assim brota, na noite abafada, O cogumelo venenoso. O amor me consome Como sete males — Não tenho apetite para nada Adeus, minhas cebolinhas! A lua já se pôs no mar, Cansadas já estão as estrelas, Cinzento nasce o dia — Eu bem que morreria. |
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“Essas almas incertas” |
Com essas almas incertas Estou furiosamente irritado. Toda a sua reverência é um suplício, Seus elogios são desgosto consigo e vergonha. Como não percorro a época Amarrado à sua corda, Saúda-me a inveja de seu doce e Envenenado, desesperançado olhar. Que elas me amaldiçoem de coração E me torçam o nariz! Esses olhos em desamparada busca Em mim se perderão para sempre. |
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Tolo em desespero |
Ah, o que escrevi na mesa e no muro Com coração de tolo e mão de tolo Não deveria me ornar a mesa e o muro?... Mas vocês dizem: “Mãos de tolo sujam — E deve-se limpar a mesa e o muro Até que o último traço desapareça!” Permitam-me! Quero ajudar — Aprendi a manejar vassoura e esponja, Como crítico e aguadeiro. Mas, o trabalho terminado, Bem gostaria de vê-los, supersábios, Cobrir mesa e muro com sua sabedoria de m... |
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Rimus Remedium [A rima como remédio] Ou: Como os poetas doentes se consolam |
De tua boca, Ó tempo, bruxo que baba, Pingam lentamente as horas. É em vão que todo o meu nojo grita: “Maldita, maldita garganta da eternidade!” O mundo — é de bronze: Um touro em brasa — é surdo aos gritos. Com punhais que voam a dor inscreve Em meus ossos: “O mundo não possui coração E estúpido seria ter raiva dele por isso!”. Derrama todas as papoulas, Derrama, febre, veneno em meu cérebro! Já há tempo demais me provas a mão e a testa. Que perguntas? O quê? “Para qual — recompensa?” — Ah, maldita meretriz E o seu sarcasmo! Não! Retorna! Lá fora faz frio, e ouço a chuva — Eu deveria ser mais delicado contigo? — Toma! Eis aqui ouro: como brilha a peça! — Chamar-te “felicidade”? Abençoar-te, febre? — A porta se escancara! A chuva molha a minha cama! O vento apaga a luz — desgraça muita! — Quem agora cem rimas não tiver, Eu aposto, sim, Estará perdido! |
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“Minha felicidade!” |
As pombas de San Marco vejo novamente: Quieta se acha a praça, a manhã nela repousa. No suave frescor envio ociosamente canções, Bandos de pombas, para o céu azul — E as chamo de volta, Para mais uma rima prender-lhes às penas — minha felicidade! Minha sorte! Calma abóbada celeste, de claro azul, de seda, Como pairas protetora sobre o colorido edifício Que eu — que digo eu? — amo, temo, invejo Pois bem gostaria de lhe sorver a alma! E a devolveria porventura? Não, silêncio, maravilhoso regalo para os olhos! — minha felicidade! Minha sorte! Torre severa, com que ímpeto leonino Te elevas aqui vitoriosa, sem esforço! Cobres a praça de teu som profundo —: Serias, em francês, o seu accent aigu? Se aqui eu ficasse, como tu, Saberia por qual coação, macia como seda... — minha felicidade! Minha sorte! Afasta-te, música! Deixa que escureçam as sombras Até se tornarem noite bruna e morna! Para os tons é ainda cedo, os dourados Ornamentos ainda não brilham em róseo esplendor, Muito dia ainda resta, Muito tempo para poetar, vaguear, sussurrar para si — minha felicidade! Minha sorte! |
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Rumo a novos mares |
Para lá — eu quero ir; e doravante Confio em mim e no meu pulso. Aberto se estende o mar, e para o azul Lança-se o meu navio genovês. Tudo brilha novo e de novo para mim, Sobre o espaço e o tempo dorme o meio-dia —: Somente o teuolho — enorme Me observa, ó infinidade! |
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Sils-Maria |
Aqui sentava eu, à espera — à espera de nada, Além do bem e do mal, ora fruindo A luz, ora a sombra, tudo apenas brincadeira, Tudo lago, tudo meio-dia e tempo sem meta. Subitamente, amiga, o um se tornou dois! — — E Zaratustra passou junto a mim... |
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Ao Mistral |
Canto-dança Vento mistral, caçador de nuvens, Matador de tristezas, varredor dos céus, Como te amo, ó vento que ruge! Não somos os dois primícias De um só ventre, predestinados A um só destino eternamente? Aqui, sobre lisos caminhos nas rochas Corro dançando ao teu encontro, Correndo quando assovias e cantas: Tu, que sem navio e sem remo, O mais livre irmão da liberdade, Saltas por sobre mares bravios. Mal acordara, ouvi teu chamado, Precipitei-me para as falésias, Para a dourada muralha junto ao mar. Salve! Como claras, diamantinas Correntes já vinhas, vitorioso, Do lado dos montes. Pelas planuras do céu Vi os teus corcéis galoparem, Vi o carro a te levar, Vi mesmo a tua mão avançar Quando, sobre o dorso dos cavalos, Como um raio brandia o açoite. — Do carro te vi saltar A fim de mais veloz te arrojares, Como que abreviado em flecha te vi Cair verticalmente no fundo — Como um raio de ouro atravessando As rosas da primeira aurora. Dança agora sobre mil dorsos, Dorsos de ondas, malícias de ondas — Salve quem novas danças cria! Dancemos de mil maneiras, Livre — seja chamada a nossa arte E gaia — a nossa ciência! De cada flor arranquemos Um botão para a nossa glória E duas folhas para a coroa! Dancemos como trovadores Entre os santos e as meretrizes Entre Deus e o mundo inteiro! Quem com os ventos não pode dançar Quem precisa em ataduras se envolver, Enfaixar-se como um velho trôpego, Quem age como os hipócritas, Patetas da honra e falsos da virtude, Ponha-se fora do nosso paraíso! Agitemos a poeira das estradas Nos narizes dos homens doentes, Atemorizemos todo o bando dos enfermos! Livremos a costa inteira Do alento dos peitos ressequidos, Dos olhares sem ânimo! Expulsemos quem turva o céu, Enegrece o mundo e afasta as nuvens, Tornemos mais claro o reino do céu! Ouça-se o nosso rugido... ó espírito De todos os espíritos, junto contigo Ruge a minha felicidade como uma tempestade. — — E para eternizar a memória De tal felicidade, toma teu legado, Leva contigo esta coroapara cima! Lança-a mais alto e mais longe e, Escalando impetuoso a escada celeste, Pendura-a — nas estrelas! |
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1. Alusão à expressão idiomática que diz: jemandem ein X für ein U vormachen, “fazer ver um U no lugar de um X”, isto é, enganar, vender gato por lebre. Nietzsche inverte a expressão. |
2. Alusão ao poema “A imagem velada de Sais”, de Schiller. |
3. Baubo: demônio feminino; personificação dos genitais femininos. “BRINCADEIRA, ASTÚCIA E VINGANÇA” |
4. No original, Scherz, List und Rache.Está entre aspas por ser o título de um Singspiel (libretto) publicado por Goethe em 1790, que Peter Gast musicou em 1880. |
5. Vademecum: literalmente, “Vá comigo”;vadetecum: “Vá contigo”. Um vade-mécum (na ortografia vernácula) é um pequeno guia ou manual. |
6. “Heraclitismo”: referência a Heráclito; cf. adiante, seção 92 e nota correspondente. |
7. “sua ilimitada miséria de rã e de mosca”: deine grenzenlose Fliegen- und Froscharmseligkeit. Perdeu-se, em português, a aliteração do original, que provavelmente contribuiu para que Nietzsche juntasse os dois animais. Das traduções consultadas, apenas a de língua inglesa pôde manter essa aproximação: your boundless, flylike, froglike wretchedness. |
8. “o indivíduo é sempre o indivíduo”: Einer ist immer Einer — nas traduções consultadas:“o uno é sempre o uno”,el ser es siempre el ser, un individuo è sempre un individuo, l’être est toujours l’être, l’individu est toujours um individu, oneis always one. |
9. “ondas de incontáveis risos”: Wellen unzähligen Gelächters; cf. Ésquilo, Prometeu acorrentado, 89-90. |
10. “a desrazão ou razão oblíqua da paixão”:die Unvernunft oder Quervernunft der Leidenschaft. O segundo substantivo foi cunhado por Nietzsche, juntando quer, que significa “transversal”, “de través” (como em Querstraße, “rua transversal”), e Vernunft (“razão”). As traduções consultadas apresentam: “a não razão ou a contrarrazão da paixão”;la sin razón o la falsa razón de las pasiones; l’irrazionalità o la razionalità stravagante proprie della passione; la déraison,ou la fausse raison de la passion; la déraison ou la raison pervertie de la passion;the unreason or counterreason of passion. |
11. “apropriado ao fim”, “não apropriado ao fim”: versões literais para zweckmäßig eunzweckmäßig — nas demais traduções consultadas: “conforme a fins”, “não é conforme a fins”; lo conveniente y lo perjudicial;adeguato al fine, inadeguato al fine; opportun, inopportun;utile, inutile; expedient, inexpedient. O segundo adjetivo já apareceu no início do § 3, onde foi vertido por “despropositados”.As outras traduções recorreram a:“destituídos de finalidade”, impropios, inadeguati, impropres, dénués d’utilité pratique, inexpedient. |
12. “retornos”: Nachschläge — “recrudescências”, consecuencias, ripercussioni, contre-coups, contrecoups, recrudescences. Cf. nota 7 à primeira dissertação da Genealogia da moral, nesta mesma coleção de obras de Nietzsche (São Paulo, Companhia das Letras,1998, p. 153; Companhia de Bolso, 2009, p. 143). |
13. Cf. Ilíada, II, 155; XX, 30, 336; Odisseia, I, 34. |
14. Citação da peça Egmont, de Goethe (versos da canção de Klärchen, ato III). |
15. No caso, adotamos a leitura de Schlechta (ein edlerer Geschmack), que nos parece fazer mais sentido que a de Colli e Montinari (ein eklerer Geschmack). A diferença entre as duas edições resulta do fato de Schlechta — assim como outros editores — haver utilizado a primeira edição impressa da obra, enquanto os dois italianos, fazendo uma edição crítica, tomaram por base a versão manuscrita que fora enviada à tipografia. É curioso que as duas versões estrangeiras declaradamente baseadas em Colli e Montinari, a italiana e a nova francesa, não os acompanhem nesse trecho, enquanto as outras, baseadas em edições anteriores (geralmente não explicitadas), coincidem com os dois editores italianos:“um espírito enfastiado”, una inteligencia hastiada, un gusto aristocratico, un esprit dégoûté,un goût plus noble, a disgusted taste |
16. “Iluminismo”: Aufklärung — a palavra alemã designa tanto o movimento histórico que em português leva esse título (também “Luzes” e “Ilustração”)como o ato de esclarecer (aufklären, em alemão). As outras versões usaram: “iluminismo”, emancipación, illuminismo, emancipation, Aufklärung [o termo original foi mantido, na nova tradução francesa], enlightenment. |
17. “sendo verdadeiramente ‘em e para si’”: diese wahren An- und Fürsich’s — nas demais traduções consultadas: “esses verdadeiros em si e para si”, que son los verdaderos hombres en sí, questi veri in sé e per sé, ces véritables “en soi”et “pour soi”, being truly in-and-for-themselves. A tradução em língua inglesa vem acompanhada de uma elucidativa nota de rodapé, que diz, após reproduzir a expressão original: “a deliberate solecism. In colloquial German ‘an und für sich’ (in and for itself) is little more than a way of stalling [contemporizar]; but Hegel had made much of the contrast between ‘in itself’ (sometimes ‘potentially’, ‘implicitly’, sometimes closer to Sartre’s en soi), ‘for itself’ (sometimes ‘separately’, sometimes ‘for its own consciousness’), and ‘in and for itself’ (meaning what has realized itself and realizes it)”. |
18. Cf. Madame de Remusat, Mémoires 1802-1808, Paris, 1880, t. 1, pp. 114-5. A citação foi aqui traduzida do texto francês, conforme a nova edição de Le gai savoir(Gallimard). Há ligeiras discrepâncias entre o texto da citação que se acha nela e o da edição mais antiga, da Mercure de France, embora ambas indiquem a mesma edição de Madame Remusat. Nietzsche cita o trecho em alemão, sem indicação bibliográfica, como costuma fazer. É de notar que o texto alemão usa man (pronome impessoal correspondente ao onfrancês, ou ao seportuguês) onde no original francês consta vous, e que o pronome vous pode designar um só interlocutor (no tratamento formal) ou, como plural de tu, todos os possíveis interlocutores (“vocês”). Ou seja: Napoleão poderia, em princípio, estar se dirigindo a todas as pessoas ou apenas a sua amiga. |
19. Cf. Suetônio, Augusto, 90, 1; Nero, 49, 1. Sobre a morte de Tibério, no fim desta seção, cf. Tácito, Anais, VI, 50. |
20. “homem do conhecimento”: Erkennender — nas outras versões consultadas: “sujeito cognoscente”, conocedor, uomo della conoscenza, connaisseur, connaisant, when attaining knowledge. O termo — gerúndio substantivado do verbo erkennen (“conhecer”, “discernir”, “reconhecer”) — é usado frequentemente por Nietzsche. A expressão que escolhemos para traduzi-lo em português quer designar o homem que se dedica ao conhecimento, diferenciando-se de “homem deconhecimento(s)”, isto é, que o(s) possui. Para ainda outras opções dos tradutores estrangeiros, ver nota 64 de Além do bem e do mal, nesta mesma coleção de obras de Nietzsche (São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p. 231; bolso, p. 209). |
21. “vaabitas”: seita muçulmana, fundada no século XVIIIpor Maomé Ibn Abdul-Wahhab. |
22. “o inglês...”: Nietzsche se refere a William Gifford Palgrave, autor de A narrative of a year’s journey through Central and Eastern Arabia |
23. “ideias dolorosas gerais”: quälende allgemeine Vorstellungen— nas outras versões consultadas: “representações gerais torturantes”, la figuración de los tormentos en la fantasía,universali rappresentazioni di tormento, l’imagination du supplice, communes représentations torturantes, painful general ideas; o tradutor americano lembra, numa nota, que o termo Vorstellung, no singular, fora usado por Schopenhauer no título de sua obra principal, sendo o objeto da crítica desta seção, antes de tudo, a “filosofia pessimista” de Schopenhauer. O mesmo vocábulo aparece na seção seguinte (§ 49), no trecho em itálico que traduzimos por “já na imaginação”, que no original é schon in der Vorstellung, e que nas demais traduções foi também vertido de outras formas, atestando a polissemia do termo: “logo na apresentação”, con la imaginación, già nell’immaginazione, déjà en imagination, dès la représentation qu’il en a, in anticipation. |
24. “a percepção”: ein Erraten. O verbo erraten (aqui substantivado, por isso grafado com inicial maiúscula) não tem um equivalente exato em português. O sentido que os dicionários bilíngues oferecem primeiramente (“adivinhar”) é mais esotérico, digamos, do que o termo alemão. Mas esses dicionários alemão-português — o Michaelis (Nova York, Ungar, s/d [1934]), o Tochtrop (Porto Alegre, Globo, 4aed., 1959) e o de Udo Schau (Porto Editora, s/d [1986]) — também sugerem “supor”, “imaginar”, “acertar”, “atinar”, “compreender”, “resolver”, “solucionar”, “decifrar”, “conjecturar”. Nas versões estrangeiras consultadas encontramos: “a intuição”, la adivinación, un divinare, la divination, l’intuition, the discovery |
25. “A aflição é necessária!”: Not ist nötig! — “A necessidade é necessária”, El mal es necesario? [sic], È necessario angustiarsi!,La misère est nécessaire!,La détresse est nécessaire!,Neediness is needed!. Cf. a seção 48, que tem o título “Conhecimento da aflição” (Kenntnis der Not). |
26. “ó, queridas imagens de Sais!”: cf. nota 2. |
27. realidade”: Wirklichkeit. Em sua tradução de trechos de A gaia ciência, no volume da coleção Os Pensadores dedicado a Nietzsche, Rubens Rodrigues Torres Filho prefere o termo efetividade, pondo ênfase na raiz do original alemão, o verbo wirken(“agir”, “atuar”, “fazer efeito”); cf. a nota em que ele justifica sua versão, em Nietzsche, Obras incompletas (São Paulo,Abril Cultural, 2aed., 1978; essa nota foi por nós reproduzida em ABM, nota 73, p. 233; bolso p. 211). Quanto às traduções estrangeiras que examinamos, todas empregam “realidade”. |
28. “maníacos da Lua e de Deus!”: Mond- und Gottsüchtigen — “lunáticos, embriagados do divino”, lunáticos y ebrios de lo divino,bramosi della luna e di Dio,lunatiques et ivres du divin,lunatiques et chercheurs de Dieu,moonstruck and God-struck. O adjetivo alemão mondsüchtigtambém significa “sonâmbulo”. |
29. Segundo nota de Colli e Montinari, Nietzsche teria em mente duas passagens de Aristóteles: uma da Ética nicomaqueia(1123 b6-8), e outra da Retórica (1361 a6-7). Após citar o trecho da Ética numa nota, Walter Kaufmann faz o seguinte comentário: “Com esse aforismo absurdo, as páginas sobre as mulheres (seções 60-75) alcançam seu nadir e seu fim. O resto do livro II(até a seção 107) lida com a arte”. |
30. il Blas: romance picaresco de Alain René Lesage (1668-1747), no qual o herói, um jovem espanhol de família pobre, torna-se rico depois de muitas aventuras; também mencionado adiante, na seção 361. |
31. “algo de deliberado e buscado”: etwas Suchendes,Versuchtes — jogo com suchen(“procurar”) e versuchen (“tentar”); nas outra versões: “[revela,] até certo ponto, uma procura, uma improvisação”; el algo que encierra de investigación y de tentativa; come una ricerca,un qualcosa di tentato; quelque chose qui tient de la recherche et de la tentative; [témoigne] toujours d’une recherche,d’une improvisation; somewhat deliberate and contrived.Cf. nota 77 de ABM. |
32. Cf. Aristóteles, Poética, 1449b; ver ABM,nota 139. |
33. Cf. Marcial, Epigramas, IV, 80. 6. |
34. “nos arrumarmos e imaginarmos nele”: uns in ihm zurechtlegen. Foram utilizados dois verbos para traduzir um só do original, a fim de expressar o duplo sentido nele presente: significa “pôr em ordem”, “dispor” e, figuradamente, “cogitar”, “preparar no espírito”. As outras versões oferecem: “reconhecer-nos nele”, adaptarnos a ello,in esso sistemare noi,nous accomoder à sa façon,pour nous y reconnaître nous-mêmes,find ourselves in it. |
35. “Mentem demais os cantores!”, teria dito Homero, conforme Aristóteles, Metafísica, 983a, 3; tratava-se antes de um provérbio, segundo Colli e Montinari. |
36. “ocultas-inquietantes”: heimlich-unheimlich.Esse par de adjetivos aparentemente antitéticos tem relação etimológica com o mesmo substantivo, Heim, “lar” (home, em inglês). O primeiro significou originalmente “doméstico”, “pertencente ao lar”; mas logo (desde o século XII) passou a ter o sentido de “o que se faz em casa e não em público”, ou seja, “secreto”, “furtivo”, “oculto”. O segundo veio a designar o que não é familiar, o que é lúgubre, sinistro, inquietante. O sentimento do unheimlich foi objeto de um conhecido estudo de Sigmund Freud (“Das Unheimliche”, 1919). Nas outras versões encontramos: “secretas e misteriosas”,secretos e intranquilos,quietamente inquietanti,secrets et inquiétants,l’intime étrangeté,secret and uncanny |
37. o enfatizar o termo wichtig(“importante”), Nietzsche lembra a sua relação com Gewicht (“peso”), que usa em seguida. Em alemão, não apenas semanticamente (como em português), mas também etimologicamente, o que é importante é o que “tem peso”. |
38. Cf. Heráclito, fragmento 53 (Diels-Kranz 22 B 53). |
39. Traduzido da citação alemã de Nietzsche: “Kennt er die Zeit, so kenn’ ich seine Launen — fort mit dem Schellen-Hanswurst!”, que difere um pouco do original inglês: “I’ll know his humour, when he knows his time:/ What should the wars do with these jigging fools?/ Companion, hence!” ( Julius Caesar, IV,2, conforme a edição da Oxford, The complete works, Clarendon Press, 1988; em outras edições os versos se acham em IV, 3). |
40. “Seja um homem e não siga a mim”: último verso de uma quadra que Goethe acrescentou à segunda edição(1775) de Os sofrimentos do jovemWerther, como epígrafe à segunda parte do romance (retirada nas edições posteriores). As palavras “mas a si próprio! A si próprio!” são acréscimo de Nietzsche. |
41. “Ad usum Delphin (‘Para uso do Delfim’): menção que levavam as edições de clássicos latinos preparadas por ordem de Luís XIV(1638-1715), rei da França, para uso especial de seu filho e das quais foram eliminados cuidadosamente os trechos ‘escabrosos’” (Paulo Rónai, Não perca seu latim, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 5aed., 1990). Nietzsche coloca a expressão no plural (“Delfins”), designando os seletos seres “que virão”, e faz dela um uso irônico, pois o trabalho dos filólogos não é mutilar os textos, mas conservá-los íntegros. |
42. “Os cavalheiros olhavam corajosamente e as belas abaixavam o olhar”: Die Ritter schauten mutig drein und in den Schoß die Schönen— citação do poema Der Sänger(“O cantor”), de Goethe, no qual o rei, ouvindo com prazer um cantor que se acha em frente ao portão do castelo, chama-o para cantar no salão. Logo adiante, “graça” e “gentileza” foram as traduções aqui dadas a Grazie e Anmut; nas demais versões: “graça”/“graciosidade”, gracia/lindeza,grazia/leggiadria,grâce/joliesse,Anmut, amenité/grâce (o tradutor incluiu o original antes de sua versão),the Graces/Charm |
43. “‘ser não domesticado’”: ungebändigte Mensch — carta de Goethe a Karl Friedrich Zelter, 2 de setembro de 1812. |
44. “o primeiro estadista alemão”: Bismarck; “seu imperial porta-voz”, em seguida, é Guilherme I |
45. amour-plaisir, amour-vanité: cf. Stendhal, De l’amour, capítulo I |
46. Que te interessa, se te amo?”: “Wenn ich dich liebe,was geht’s dich an?” — citação de Goethe, Anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, IV, 9, e Poesia e verdade,III, 4; a frase também é citada por Nietzsche em O caso Wagner(seção 2). |
47. Cf. Emerson, Essays, “Gifts”. |
48. “super-homens [...] quase-homens e sub-homens”:Übermenschen [...]Neben- und Untermenschen; segundo Kaufmann, esta é a primeira ocasião em que aparece o termo Übermensch nos livros de Nietzsche. Sobre a tradução por “super-homem”, ver nota 31 deEcce homo; na edição portuguesa foi empregado “seres sobre-humanos [...] de seres aparentados a humanos e de seres infra-humanos”; e nas outras, superhombres [...] hombres diferentemente conformados y menos que humanos;superuomini [...]esseri affini agli uomini o subumani;surhumains [...] d’ hommes conformés différement et de soushumains;êtres surhumains, en marge ou au-dessous de l’humain;overmen [...] near-men and undermen. |
49. “a humana liberdade e variedade de pensamento”: die Freigeisterei und Vielgeisterei des Menschen — “a liberdade e pluralidade de espírito do homem”,la liberdad del pensamiento y el múltiple pensar del hombre,la libertà di spirito e la multiforme spiritualità dell’uomo,de la libre pensée et de la pensée multiple de l’homme,le libertinage et la pluralité de la pensée de l’homme,the free-spiriting and many-spiriting of man |
50. A Septuaginta é a tradução grega do Velho Testamento. Ali os ‘pagãos’ são mencionados inúmeras vezes (‘por que se enfurecem os pagãos etc.’). A palavra grega é sempre ἔθνη(‘povos’) e Úlfila a traduz literalmente por thiut- [a palavra de que se originou deutsch, ‘alemão’] (não sei mais a terminação correta). Ou seja, thiuta, naquele tempo, significava ‘povo’ (a questão da etimologia da palavra independe completamente disso!). O que afirmo é: os godos se acostumaram a associar ao sentido‘pagãos’ o seu termo para povos: tal como os cristãos que falavam grego fizeram com seu ἔθνη.” — de um cartão-postal de Nietzsche a Peter Gast, que pedira explicação sobre essa passagem; cartão de 30/7/1882, em Nietzsche, Sämtliche Briefe [Cartas completas], Munique/Berlim, DTV/de Gruyter, 1986, vol. 6, p. 233. Walter Kaufmann, que também cita esse trecho numa nota, observa entre colchetes, após a primeira menção da palavra povos, que esta é “uma tradução correta do hebraico goyim”; e da mesma forma acrescenta, após a última frase: “[e os antigos hebreus com goyim]”. |
51. Palavras que Lutero teria dito na assembleia de Worms, em 1521, quando se negou a rejeitar suas novas ideias. |
52. Cf. Horácio, Ars poetica, 191 |
53. Segundo o Dicionário etimológico da língua portuguesa, de Antônio Geraldo da Cunha (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2aed., 1986), o verbo mentiri, do latim clássico, significava “mentir”, “imaginar”, “inventar”, derivando do substantivo mens (“mente”). |
54. “Eco é o nome de uma ninfa dos bosques e das fontes, personagem central de diversas lendas tendentes a explicar a origem do eco. [...] Segundo outra variante da lenda, a jovem amava em vão o belo Narciso e teria desaparecido depois de morta, convertendo-se numa voz que, a partir desse momento, jamais deixou de repetir as últimas sílabas das palavras pronunciadas.” — Pierre Grimal, Dicionário da mitologia grega e romana (São Paulo, Bertrand Brasil, trad. Victor Jabouille, 2aed., 1993). |
55. “pilhéria”: Witz, um termo que, sabidamente, tem vários sentidos; nas versões francesas, portuguesa e espanhola — que, tudo indica, foi feita a partir da francesa de Henri Albert, pois sempre a acompanha — usou-se “malícia”; a italiana preferiu arguzia, e a americana, jokeWitz também significa “espírito”, “graça”, “engenho”, sendo claramente aparentado ao inglês wit.Quanto a “eruditos”, na frase seguinte, é uma tradução insatisfatória para Gelehrten; “doutos” seria mais pertinente, porém demasiado erudita; os outros tradutores usam: “letrados”, sabios,dotti,savants,savants,scholars. VerABM, nota 37; no presente livro, o termo aparece também nos títulos das seções 348, 349 e 366. |
56. “ter alegria com o mal dos outros”: schadenfroh sein — nas outras versões consultadas: “tirar satisfação do mal dos outros”, La risa es un ser malicioso[sic], essere maligni,être malicieux,se réjouir d’un préjudice,being schadenfroh (o tradutor americano conserva o termo original e explica, em nota de rodapé: “The word is famous for being untranslatable; it signifies taking a mischievous delight in the discomfort of another person”). |
57. Hic niger est[Esse é negro]”: citação de Horácio, também usada por Nietzsche em Genealogia da moral, I, 5 (cf. nota correspondente, em nossa edição da Genealogia). |
58. “Conclusão errada, lance errado”: Fehlschluß, Fehlschuß — “Falsa conclusão, golpe falhado”; Deducción falsa [sic; omissão]; Conclusione errata, colpo a vuoto; Fausse conclusion [sic]; Fausse conclusion, coup manqué; Bad reasoning, bad shot [o original é transcrito no rodapé] |
59. “toda delicada resolução quanto a seguir ou preceder”: jede zarte Entschliessung im Folgen oder Vorangehen. O original não é muito claro, como se nota pelas diferentes traduções: “todas as subtis decisões sobre o que deve seguir e o que deve preceder”, toda sutil revelación de lo passado y de lo porvenir,ogni più delicata risoluzione nel seguire o nel precedere,toute subtile révélation du passé et de l’avenir,toute résolution subtile dans l’accom-pagniment ou le prélude,all tender resolutions about following or going ahead. |
60. Cérbero: na mitologia grega, um monstruoso cão que guardava o Hades, o reino dos mortos; tinha várias cabeças de cão, inúmeras cabeças de serpente levantavam-se de seu dorso e uma serpente era a sua cauda. |
61. Segundo Paulo Rónai (Não perca o seu latim), a expressão Suum cuique é de Cícero, da obra intitulada Dos deveres (I, 10). De acordo com Alfred Sellner, em Latein im Alltag [“Latim no dia a dia”] (Wiesbaden, VMA, 1984), ela é atribuída igualmente a Catão, o Velho (que viveu antes de Cícero). Esse autor também informa que Frederico Ida Prússia (1657-1713) adotou a expressão como lema, inscrevendo-a nas moedas que cunhou. |
62. Os dois verbos da frase são nachmachene vormachen. O primeiro(literalmente “fazer depois”) significa “imitar”; o segundo é ambíguo: pode significar “mostrar como se faz” (vor, “diante de”; machen,“fazer”), mas também “iludir-se”. Os outros tradutores ignoraram essa ambiguidade, com a costumeira exceção de Walter Kaufmann. |
63. Alusão a Mateus 10, 30 e Lucas 12, 7. |
64. “Orfeu sabia cantar melodias tão suaves que até as feras o seguiam, as árvores e as plantas se inclinavam na sua direção e os homens mais rudes se acalmavam.” — P. Grimal, Dicionário da mitologia grega e romana, edição já citada. |
65. “contentamento”: Genügsamkeit — nas demais versões: “sobriedade”, contento,appagamento,contentement,frugalité,contentmentCf. o final da seção 8, em que “Oh, satisfeitos!” foi a tradução dada a Oh, ihr Genügsamen!, e também o final da seção 284: die großen Selbst-Ungenügsamen (“os grandes autoinsatisfeitos”). |
66. “sob o sortilégio de tais valores”: unter dem Banne solcher Geltungen — “sob o império de tais valores”, bajo el imperio de semejantes reglas,in balìa d’un siffatto criterio,sous l’empire de pareilles règles, sous l’anathème de pareilles valeurs,under the spell of such notions. Sobre o termo Bann, ver nota 54 de ABM |
67. “imagens do formador de imagens”: Bilder des Bildners — este segundo termo também pode significar “escultor” ou “educador”, ligando-se ao substantivo Bild (“imagem”) e ao verbo bilden (“formar”); a pluralidade de sentidos desses termos alemães acompanha a riqueza do mito, pois Prometeu teria criado o homem a partir do barro e o teria formado culturalmente.As demais traduções recorreram a: “do criador de imagens”, del imaginativo,del plasmatore d’immagini,de l’imagier,du créateur d’images,of the maker. Logo em seguida, Prometeiadesigna a trilogia de Ésquilo, as três peças que tratavam da história de Prometeu, das quais apenas a primeira chegou até nós inteira. Nessa trilogia, como se sabe, o herói é acorrentado ao monte Cáucaso por ordem de Zeus, como castigo por haver roubado e dado aos homens o fogo dos deuses, e uma águia (abutre, na versão de Nietzsche) come diariamente o seu fígado, que sempre se renova, num tormento sem fim. |
68. “humanidade”: Menschlichkeit. A palavra portuguesa designa tanto a natureza do que é humano como a totalidade do gênero humano. No caso, Nietzsche tem em mente o primeiro sentido, pois usaria Menschheit,se quisesse designar o gênero humano. Em inglês se diz, respectivamente, humanity e mankind |
69. Segundo uma antiga tradição grega, o oráculo de Delfos disse a Homero que ele morreria em Ios (a ilha onde teria nascido), e que deveria ter cuidado com “o enigma das crianças”. Anos depois, já idoso, passou pela ilha de Ios e, vendo alguns meninos pescadores que voltavam do mar, perguntou o que haviam pegado. Eles então responderam: “Tudo o que pegamos deixamos para trás, e trouxemos tudo o que não pegamos”. Homero não entendeu essa enigmática resposta, e eles então explicaram: não haviam pescado nenhum peixe, haviam catado seus piolhos; os que conseguiram pegar haviam jogado fora, e traziam no corpo os que não haviam apanhado. Homero lembrou-se da previsão do oráculo e, percebendo que iria morrer, escreveu seu epitáfio (o “desgosto” por não decifrar o enigma é, ao que parece, uma interpretação de Nietzsche). Afastando-se, Homero escorregou num trecho lamacento da praia, machucou-se na queda e morreu três dias depois (cf. The contest of Homer and Hesiod, em Hesiod. The homeric hymns and homerica, vol. 57 da Loeb Classical Library, trad. H. G. Evelyn-White, Cambridge e Londres, 1982 [1914], pp. 594-7). A elucidação desta referência, que não se acha em nenhuma das edições e traduções aqui utilizadas, foi uma gentileza do helenista Zilton Andrade Filho. |
70. Nietzsche se refere à expressão idiomática mit einem blauen Auge davonkommen (literalmente: “sair [de uma situação] com um olho azul”), que significa “escapar por pouco ou sem grande prejuízo”. |
71. Diferentemente dos pensadores gregos da época, que ensinavam na “praça”, Epicuro recebia os discípulos no jardim de sua casa. |
72. “todos os que se dedicaram ao trabalho intelectual”: alle Menschen der geistigen Arbeit— segundo os outros tradutores, “que trabalham com o espírito”,trabajo intelectual,lavoro intellettuale,travail cérebral,travail spirituel,[all those whose] work is of the spirit. Geralmente traduz-se geistig por “espiritual”, pois Geistcorresponde a “espírito”; mas essa correspondência não é exata, pois a palavra alemã pode referir-se predominantemente ao intelecto, ao espírito no sentido não religioso (há também o adjetivo geistlich, que designa o espiritual no sentido religioso e até mesmo eclesiástico). Por isso Kaufmann achou necessário esclarecer, numa nota, que se trata de “artists, scholars, writers” |
73. Na ópera homônima de Gluck (1777), Armida é uma princesa árabe que tem poderes mágicos. Ela se apaixona por Rinaldo, guerreiro cristão, e cria um bosque encantado para prendê-lo |
74. So leben die Wellen — so leben wir, die Wollenden! — o efeito poético original vem da paronomásia já presente no título da seção: Wille und Welle (“Vontade e onda”); sendo que nessa frase Nietzsche usa o substantivo die Wollenden,que seria o gerúndio — adjetivado — do verbo wollen, “querer”. A mesma palavra surge na seção 19 de Além do bem e do mal, por exemplo, onde foi traduzida por “querente” (cf. nota 52 de ABM). |
75. A palavra alemã para “dor” (Schmerz) é do gênero masculino, assim como Hund (“cão”) |
76. Segundo o historiador Lawrence Stone, citado por Kaufmann, Oliver Cromwell morreu logo após uma das maiores tempestades do século, e para muitos dos seus contemporâneos ela simbolizou o fim de tudo o que ele representava. |
77. O pathos seria um sentimento, algo transitório e passivo, enquanto o ethos (cf. “ética”) seria próprio do caráter e, portanto, duradouro e ativo. |
78. Cf. Tácito,Histórias, IV, 6 |
79. Spinoza, Tractatus politicus, I, 4. |
80. “Cada qual é o mais distante de si mesmo”: Jeder ist sich selber der Fernste.Cabe reproduzir, neste ponto, uma nota de Walter Kaufmann: “Der Fernste (the farthest) is the opposite of der Nächste(the nearest), which is the word used in the German Bible where the English versions have the ‘neighbor’ [‘o próximo’, nas versões portuguesas da Bíblia]”.Em seguida, no texto, “escrutador das entranhas” foi o equivalente que achamos para Nierenprüfer, termo formado por Nietzsche com base na expressão auf Herz und Nieren prüfen, “examinar no coração e nos rins”, isto é, minuciosamente. |
81. “humanidade”: Menschlichkeit; usado também no título da seção, entre aspas; ver nota 68. |
82. “a partilha da alegria”: die Mitfreude — cunhagem de Nietzsche, sobre o modelo de Mitleiden, “compaixão” (literalmente “sofrer com”); cf. aforismo 499 de Humano, demasiado humano (São Paulo, Companhia das Letras, 2000; Companhia de Bolso, 2005). |
83. “monstro e aliciador”: Unhold und Rattenfänger — nas outras versões: “demónio e caçador de ratos”, domesticador de ratas,spirito maligno e ammaliatore,attrapeur de rats et [ce]lutin,demon et preneur de rats,monster and pied piper. Com exceção do italiano e do americano, os tradutores estrangeiros caíram na armadilha dos Rattenfänger, entendendo a palavra ao pé da letra; ver, a propósito, a explicação contida na nota 109 de ABM. Em seguida, “arrogantes” traduz übermütig, um termo caro a Nietzsche, juntamente com o seu substantivo Übermut (“excesso de alegria”, “petulância”, “arrogância”), que aparece no texto de orelhas da presente edição, retirado do livro autobiográfico do filósofo. Nas traduções consultadas lemos: “arrogantes”, petulantes,tracotanti,pétulants,orgueilleux,overweening |
84. Asclépio era o deus da medicina (o símbolo atual da medicina, uma serpente enrolada num pau, era uma das insígnias de Asclépio). Hipócrates, considerado o pai da medicina, foi um dos seus adoradores. Ao dizer, no leito de morte, que deve um presente a esse deus, Sócrates estaria dando a entender que foi curado de uma doença. O episódio é relatado por Platão nas últimas páginas do Fédon |
85. “declínio”:Untergang. O termo pode significar “ruína”, “naufrágio”, “ocaso”, “poente” (referindo-se ao sol), “destruição”. Ele se acha, por exemplo, no título de um livro famoso de Oswald Spengler, Der Untergang des Abendlandes[O declínio do Ocidente], e no de um longo poema de Hans Magnus Enzensberger,Der Untergang des Titanic[O naufrágio do Titanic], assim como num artigo de Sigmund Freud, “Der Untergang des Ödipuskomplexes”. O verbo que a ele corresponde (untergehen) foi usado por Nietzsche algumas linhas antes e traduzido por “declinar”.Os demais tradutores, em sua maioria, também usam “declínio” para Untergang; Masini prefere tramonto (“ocaso”), enquanto Kaufmann usa o verbo to go underAqui terminava o livro na primeira edição, de 1882. Esta seção 342 é quase idêntica à primeira seção do Prólogo de Assim falou Zaratustra, o livro seguinte de Nietzsche. A diferença está em que no Zaratustra quase cada frase constitui um parágrafo e é omitida a referência ao lago Urmi (substituído por “o lago da sua terra natal”). Este fica situado no Irã, a terra do profeta Zaratustra ou Zoroastro, o personagem histórico que serviu de base para a ficção de Nietzsche. |
86. “jovialidade”: Heiterkeit. Rubens Rodrigues Torres Filho prefere “serenidade”, embora reconhecendo que essa versão, a mais frequente, “requer um reparo” (ver sua esclarecedora nota, no mencionado volume de Os Pensadores, p. 212). J. Guinsburg recorre ao composto “serenojovialidade”, em sua versão de O nascimento da tragédia, volume desta coleção de obras de Nietzsche (São Paulo, Companhia das Letras, 1992; cf. nota 2, p. 145; Companhia de Bolso, 2007, p. 143). No presente contexto — o de uma gaiaciência — preferimos o termo jovialidade. Os colegas estrangeiros utilizaram “alegria”, serenidad,serenità,serenité,gaieté,cheerfulness. |
87. “descrença”: Unglaube. Cabe lembrar que em alemão a palavra Glaube significa tanto “fé” como“crença”, e o verbo glaubentem a mesma amplitude semântica de “acreditar”: pode-se acreditar numa divindade, num amigo, em si mesmo, num político, em Papai Noel etc. |
88. Alusão a uma passagem da primeira epístola de são Paulo aos Coríntios (2, 4): “[...] a minha palavra e a minha pregação não consistiram em discursos persuasivos de sabedoria, mas na demonstração do Espírito e da força divina” (conforme a versão do Pontifício Instituto Bíblico de Roma, São Paulo, Edições Paulinas, s/d). A expressão usada por Nietzsche, Beweis der Kraft (“prova de força”), já era corrente nas discussões teológicas do século XIX, segundo diz Kaufmann, como forma abreviada de “in Beweisung des Geistes und der Kraft” (“em demonstração do espírito e da força”), na versão de Lutero. |
89. Há aqui uma ligeira diferença entre as edições de Schlechta e de Colli e Montinari: a primeira diz feiner zu scheiden (“distinguir mais sutilmente”); a segunda, ferner zu scheiden (“distinguir mais longe”, isto é, “mais”). A primeira versão é melhor, e, por isso, mesmo as traduções declaradamente feitas com base em Colli e Montinari (a italiana e a nova francesa) adotaram-na sorrateiramente: “[fazer distinções] mais nítidas”, [distinguir]con más sentido, più sottilmente,avec plus de sensibilité,avec plus de subtilité,finer [distinctions] |
90. “instinto fundamental da vida”: Lebens-Grundtrieb. Até o momento procuramos verter Triebapenas por “impulso”, justificando tal escolha numa longa nota de ABM (pp. 216-20; bolso pp. 195-9). Mas revelou-se necessário lançar mão de “instinto” também, segundo o contexto. Apresentamos os argumentos para isso em As palavras de Freud — O vocabulário freudiano e suas versões (São Paulo, Ática, 1998; capítulo sobre Trieb, pp. 243-61). |
91. Herrenhut: cidade da província da Saxônia, conhecida por abrigar a seita dos Irmãos Morávios (“Herrenhuter”) |
92. “fortuna”: Vermögen, que também significa “faculdade”, “aptidão”. Logo antes, “virtude e arte” foi a tradução dada a Kraft und Kunst, perdendo-se a aliteração do original; normalmente a primeira palavra é vertida por “força”, “energia”, mas o sentido de “virtude” ou “faculdade” (entre outros) também está presente — como em heilende Kraft, “virtude curativa”. De modo análogo, a palavra portuguesa virtudederiva do latim vir(“varão”, de onde “viril”, “varonil”). O termo alemão, de resto, liga-se etimologicamente ao inglês craft (“habilidade”, “perícia”) |
93. “natureza comunitária e gregária”: Gemeinschafts- und Herden-Natur — geralmente traduzimos Herden- por “de rebanho”, em outras passagens deste e de outros livros de Nietzsche, que com frequência usa o termo pejorativamente (cf. ABM, §§ 201-3, e EH, IV, 4-5, por exemplo) |
94. “um mundo generalizado, vulgarizado”: eine verallgemeinerte, vergemeinete Welt. Os outros tradutores também foram literais (não há opção, já que esse jogo de palavras é irreproduzível), sendo que Kaufmann fez uma ligeira mudança: a world that is made common and meaner, diz elePouco adiante, “geral” e “generalização” correspondem às mesmas palavras de origem latina usadas por Nietzsche, generell e Generalisation. |
95. “Ele me reconheceu”: Er hat mich erkannt; “conhecimento”: Erkenntnis;“algo estranho deve ser remetido a algo conhecido”: etwas Fremdes soll auf etwas Bekanntes zurückgeführt werden. Nesta seção, foi preciso alternar entre “conhecer” e “reconhecer” para erkennen e entre “conhecido” e “familiar” para bekanntMais adiante, na frase “algo que [...] nos é bem conhecido ou familiar”, empregamos duas palavras onde há apenas uma no original: bekannt. Assim preparamos o terreno para, logo adiante, verter“was bekannt ist, ist erkannt” por “o que é familiar é conhecido”. Sobre esses termos, cf. notas 22 e 110 de ABM. Quanto a fremd, significa “estranho” no sentido de “alheio”, “estrangeiro”, não no de “singular” ou “bizarro”; assim, a palavra alemã para “língua estrangeira” é Fremdsprache. |
96. “Com ferro de madeira”: Aus hölzernem Eisen — uma expressão proverbial para denotar uma contradição em termos. |
97. Cabe lembrar que todo substantivo alemão, seja próprio ou comum, é escrito com inicial maiúscula, de modo que Gott designa tanto “Deus” como “deus”. Em vários outros casos, é preciso considerar que um substantivo que aparece com minúscula nas traduções talvez fosse grafado com maiúscula pelo autor, se ele tivesse essa opção para destacar o termo (a norma de empregar maiúscula nos substantivos remonta ao século XVIII, quando substituiu o costume de grafar certos adjetivos com maiúscula). Algumas linhas adiante, nesta seção, “feminismo” é versão literal de Feminismus, que Nietzsche usa — de maneira pouco simpática ao sexo feminino, como é seu hábito — no sentido de “debilidade”, “coisa de mulher”. |
98. “falsificação”: Falschmünzerei; perdeu-se aqui a metáfora original, pois o termo alemão (um favorito do autor) significa literalmente “cunhagem de moeda falsa”. As versões consultadas trazem: “falsificação”, les da el carácter de falsificación,opera di falsari,faux monnayage,fausse monnaie,counterfeit. O título de um romance de André Gide, Les faux monnayeurs (Os moedeiros falsos), tem origem nessa expressão de Nietzsche. |
99. “Época da Fundação”: Nietzsche se refere ao período em que foi fundado o Reich (“império”) alemão sob Bismarck, na década de 1870, com seu rápido crescimento industrial e especulação financeira. |
100. “o velho pião rangento Bahnsen”: den alten Brummkreisel Bahnsen. No original há uma boa sonoridade na expressão, que certamente “convidou” a imagem à mente de Nietzsche. Um Brummkreiselé um brinquedo infantil, um grande pião de metal que faz ruído ao girar. Bahnsen (Julius Bahnsen; ver o “Glossário de nomes de pessoas”), que escreveu livros sobre caracterologia e sobre filosofia da história, opunha a sua Realdialektik à dialética hegeliana e foi um dos poucos discípulos de Schopenhauer. Eduard von Hartmann, mencionado pouco antes, ficou famoso e até popular com sua Filosofia do inconsciente (1869). Mainländer, citado pouco adiante, era o pseudônimo de Philipp Batz, autor de Filosofia da redenção (1876). |
101. “Alemanha, Alemanha acima de tudo” (Deutschland, Deutschland über Alles) é o hino nacional alemão;sub specie speciei alude à célebre expressão de Spinoza, sub specie aeternitas [do ponto de vista da eternidade], na Ética, V, 29. |
102. “a velha aranha”: cf. Genealogia,III, 9 e nota correspondente. |
103. O termo original é Vergutmütigung, substantivação de gutmütig, que significa “de boa índole”, “bondoso”; os outros tradutores recorreram a: “o adoçar da sua índole”, su dulcificación,il suo mansuefarsi,son adoucissement,sa bonasserie,more good-natured. Quanto a “trivialização”, foi aqui usada para verter Verflachung, que literalmente significa “achatamento”, “aplanamento”. |
104. “um homem que não vingou”: ein mißratener Mensch; o verbo mißraten significa “não dar certo”, “sair errado”; já o adjetivo wohlgeraten, também usado por Nietzsche em outros lugares, significa“bem logrado, de boa índole” (cf. nota 7 de EH). Os demais tradutores usam: “um homem desencaminhado”, aquel hombre fracasado,un uomo fallito,un homme manqué,un homme malvenu,a human being who has turned out badly. Quanto ao título desta seção, cabe observar que Hintergründe (“motivos secretos”) é também o plural de Hintergrund (“pano de fundo”, background, em inglês). |
105. “tais vícios impulsivos”: diese triebkräftigen Laster — os demais tradutores oferecem: “estes vícios compulsivos”; estosvicios, que tienen verdadera potencia dinámica; l’energia impulsiva di questi vizi; ces vices qui ont une véritable puissance dynamique; ces vices pleins de force impulsive; these propelling vices. |
106. “força motriz”: treibende Kraft — “energia impulsionadora”, fuerza activa,forza che dà impulso,force active,force impulsive,driving force. Observe-se aqui a presença de Trieb, no adjetivo treibend, que lhe é cognato; mas adotamos a boa versão tradicional, que se encontra dicionarizada, aliás (cf. o léxico alemão-português de Udo Schau, Porto Editora) . |
107. “Que elas ‘dão-se por’, mesmo quando — se dão”: Daß sie “sich geben”, selbst noch, wenn sie — sich gebenNietzsche joga com os sentidos do verbo: no primeiro caso, “fazer-se passar por”; no segundo, “entregar-se”. |
108. “ser absorvida”: aufgehen — nas outras versões consultadas:“fundir-se”, fundirse,risolversi,se fondre,s’épanouir,to be absorbed.Algumas linhas adiante, onde se lê “A mulher se concede, o homem acrescenta”, o original diz Das Weib gibt sich weg,der Mann nimmt zu; e as outras versões,“A mulher abandona-se, o homem adquire mais”; La mujer se entrega, el hombre la toma; La donna si spende, l’uomo s’accresce; La femme se donne,l’homme prend; La femme s’abandonne, l’homme s’accroît d’autant; Woman gives herself away,man acquires more. |
109. “a pior companhia te faz sentir...”: cf. Fausto, 1637-8: “A pior companhia te faz sentir/ Que és um ser humano entre seres humanos [Die schlechteste Gesellschaft läßt dich fühlen/ Daß du ein Mensch mit Menschen bist]”; “sentir” é enfatizado por Nietzsche. |
110. “‘mais justo’”: “billiger” — Nietzsche põe entre aspas o adjetivo para destacar seu duplo sentido: billigpode significar tanto “barato” como “justo”; por isso a tradução em língua inglesa usou cheaper and fairer, enquanto as demais ignoraram a questão, recorrendo simplesmente a “mais barato”. |
111. “evidência sensível do ator”:Schauspieler-Sinnenfälligkeit — “exteriorização do ator”, el exterior del cómico,l’evidenza sensibile del commediante,l’extériorité du comédien,la physionomie extérieure de l’acteur,the actor’s appeal to the senses. |
112. Alusão ao episódio da Odisseia(canto XII) em que Ulisses faz que seus homens tapem os ouvidos com cera e o amarrem ao mastro do navio, a fim de escaparem ao perigoso canto das sereias. |
113. Cf. Spinoza, Ética, V, 33 ss. Na oração seguinte, Nietzsche cita as palavras amore deusem latim; elas têm a mesma grafia em português. |
114. “saint-simonianos”: Saint-Simon (1760-1825) foi um dos maiores nomes do socialismo utópico francês. |
115. “timonicamente”: timonisch, no original — referência a Timão de Atenas, notório “odiador” do gênero humano, protagonista da peça homônima de Shakespeare. Logo antes, nessa frase, lê-se: “como outrora se odiou os seres humanos”; se tivéssemos empregado o verbo no plural, como querem vários gramáticos, a oração poderia ter o sentido de que os seres humanos odiaram uns aos outros. Aliás, também haveria problema com o singular: em “se odiou o ser humano”, este tanto pode haver odiado a si mesmo como haver sido odiado. Isto parece ser uma limitação da língua portuguesa, que dispõe de uma só palavra para indicar a impessoalidade na terceira pessoa do singular (onde se usa on, em francês; man, em alemão; uno, em espanhol) e a reflexividade (se, sich,se, respectivamente). |
116. Em Ecce homo, onde toda esta seção é reproduzida (na parte 2 do capítulo sobre Assim falou Zaratustra), foi omitido “um adivinho” (ein Wahrsager); as outras possíveis divergências entre esta passagem e a que se encontra em nossa edição de Ecce homose devem a pequenas mudanças na tradução. |
117. “grilos”: Grillen. Em alemão — e, por acaso, também em italiano —, a palavra designa tanto o inseto como “capricho”, “mania”; nas outras versões: “os cuidados”, las ideas negras,i grilli,les idées noires,les cigales,the blues. |
118. Citação de Beethoven; com essas palavras, cantadas por um barítono, ele introduz o coro baseado no poema “à alegria”, de Schiller, no último movimento da Nona sinfonia |
119. “A maldição do cantor”: título de um poema de Ludwig Uhland (1787-1862). |
120. Vogelfrei, literalmente “livre-pássaro”, é um adjetivo que significa “fora da lei”. A escolha desse nome — que, aliás, soa como um sobrenome alemão — é um indício de como o autor se sentia “à margem”. Além disso, vários dos poemas falam de pássaros, sendo que o terceiro deles, “No Sul”, teve antes o título de “Príncipe Vogelfrei”, quando era parte dos “Idílios de Messina”, coletânea publicada em 1882. Dos oito poemas que a constituíam, seis foram reaproveitados nesse Apêndice. Ele foi acrescentado ao livro quando da segunda edição, em 1887. As edições estrangeiras de A gaia ciência diferem quanto ao tratamento dado a esses poemas e àqueles de “Brincadeira, Astúcia e Vingança”: a portuguesa omitiu todos eles, juntamente com o prólogo, sem informar ao leitor de sua existência; a espanhola fez o mesmo, apenas conservando o prólogo; a italiana e as francesas os mantiveram, traduzindo literalmente os poemas; por fim, a americana foi exemplar nesse ponto: reproduziu o original alemão nas páginas à esquerda e ofereceu belas traduções rimadas de todos os poemas. Nisso Walter Kaufmann reafirmou o talento que havia demonstrado ao traduzir o Fausto, de Goethe. Na presente edição, o original é reproduzido em face das traduções, mas limitamo-nos a verter quase literalmente os poemas. |
121. Esse primeiro poema é uma paródia dos célebres versos finais do Segundo Fausto, de Goethe. |
122. “teocrítico”: theokritisch. Alusão brincalhona a Teócrito, poeta pastoral grego do século IIIa.C. |
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